Micro-cosmo A minha realidade escondida O homem é um mistério para si próprio Sabemos muito pouco ou nada do nosso coração. Mantemos a distância disso, como se tivéssemos medo. O que nos é muito íntimo é também o que mais nos assusta. O coração é o centro da nossa identidade, lá realmente somos nós mesmos, mas temos medo de descer a esta profundeza, talvez, para evitar uma verdade amarga: ainda somos estranhos a nós mesmos. Essa é a parte mais dolorosa da nossa humanidade. Falhamos em algo de importante: conhecer a nós mesmos, o nosso íntimo oculto; e assim … vivemos e morremos sem saber quem realmente somos. É doloroso perceber que ainda somos estranhos na nossa própria casa. O coração é o centro do nosso ser. É lá que achamos os nossos pensamentos mais profundos, as intuições, emoções e decisões. Mas também é lá que ficamos mais alienados de nós mesmos. Descendo da mente para o coração entramos no santuário onde acontece a revelação de Deus. Eis o centro da vida espiritual. É no interior, no coração, que Jesus se faz conhecer, em segredo. Qualquer actividade humana é ineficaz se não passar pela intimidade do coração. Estou espantado por continuar a receber os dons de Deus, a saúde, os dons intelectuais e afectivos, e continuar a utilizá-los egoisticamente, para impressionar os outros, para me afirmar, … em vez de os utilizar para a glória de Deus. Vivo neste mundo sem Deus, convicto que posso viver sozinho, sem precisar de ninguém, pensando só em mim, e sendo totalmente independente. Sempre fui obediente, cuidei da casa, dos filhos, não perdi tempo em coisas inúteis, nem desperdicei dinheiro … fui responsável, tradicional, caseiro … mas sinto-me ciumento, não aceito que alguém me ultrapasse, sinto a minha ira, a minha susceptibilidade, até a minha obstinação e ressentimento, não consigo perdoar … Em vez de sentir gratidão pelos dons recebidos, quero ainda mais, e fico sempre insatisfeito … quando encontrarei paz em meu coração? Não aceito que os outros sejam louvados, reconhecidos, sinto-me posto ao lado, desvalorizado, perco a confiança em mim mesmo, perco a auto-estima … Relacionamentos conflituosos, litígios, acusações, recriminações, cólera manifestada ou reprimida, ciúmes confessados ou não… Devo compreender que não pode haver relacionamento humano equilibrado, libertador e cheio de vida, se pretender que o outro deve libertar-me da minha solidão interior. Esta é uma pura ilusão, não há ser humana que me possa preencher! Estou a exigir do outro uma plenitude de vida, que só Deus pode dar. O relacionamento humano tornase sufocante, quando não acaba na violência, psicológica ou até física. Uma violência destrutiva que me faz cair num círculo vicioso, segundo o qual, quanto menos recebo, tanto mais quero. Hoje, muitas pessoas caem no esgotamento, pois o sofrimento interior atingiu os níveis mais profundos Procurei longe, afastei-me e perdi. Quero voltar para casa, confiar na voz do Pai que me chama «amado». «Em casa encontrarás um abrigo seguro, lá receberás o Meu Amor que preenche teu coração; lá, em casa, finalmente encontrará descanso o teu coração inquieto!» O verdadeiro relacionamento humano implica a capacidade de estar sós, de proteger o nosso íntimo mistério. Não há verdadeira comunicação sem a capacidade de viver em solidão. É uma honestidade falsa e enganadora pensar que a verdadeira amizade não deve ter secretos, que tudo deve ser comunicado. Nem a vida conjugal o exige. Esta pretensão, além de ser danosa, torna o relacionamento superficial, tormentoso, vazio de conteúdo, cansativo … Muitas pessoas acham difícil apreciar uma certa limitação na abertura na vida conjugal (ou na amizade), pois não sabem criar confins que permitam uma descoberta nova e surpreendente da outra pessoa. É uma ilusão pretender vencer a solidão existencial com o relacionamento humano: só Deus pode entrar nesta intimidade e ser nosso companheiro … É preciso proteger o nosso santuário interior e respeitar religiosamente a interioridade do outro, esta é condição que torna possível um verdadeiro relacionamento humano. Quanto acontece no profundo do coração tem a dimensão da delicadeza, da vulnerabilidade e poética beleza, não temos palavras suficientes para a explicar e, por isso, não pode suportar uma exposição pública descuidada. Cantai e dançai juntos, sejais felizes, mas deixais que cada um voe sozinho. As cordas da viola vibram sozinhas, mesmo quando tocam a mesma música. Estai juntos, mas nunca perto demais, pois também os pilares do templo são separados … (Gilbran) A vida íntima é algo que merece respeito e protecção, torná-la pública significa banalizá-la As pessoas vivem fechadas em si mesmas, desiludidas, com uma sensação de desconfiança, pois as relações de trabalho - e, tantas vezes, as relações mais íntimas - são vítimas de competição e rivalidade. O relacionamento humano, tantas vezes, nos deixa vazios, porque, de facto, o sofrimento toca os níveis mais profundos do nosso ser, onde os outros não podem entrar. Quando procuramos os outros, com a secreta esperança que iremos, finalmente, encontrar alguém capaz de nos libertar do nosso vazio interior, nos aventuramos em relacionamentos tormentosos e sufocantes. A amizade e o amor não nascem de um coração ansioso de apagar os seus desejos insatisfeitos. Deixa que Espírito Santo encha teu coração de Amor e de Paz … Não há comunidade sem uma saudável solidão. Não pode haver uma verdadeira abertura aos outros sem interioridade. Qualquer relacionamento humano inclui a necessidade de proteger e cuidar da vida interior, exige humildade e coragem para deixar que o Senhor entre e nos liberte de todo o apego. Lá, no coração podemos estar presentes a nós mesmos, escutar atentamente as vozes que nos habitam, pois quanto lá acontece é digno de tudo o nosso amor. Lá, no coração, podemos, distinguir, entre as outras vozes, o Espírito Santo que clama «Abbá, Pai»; é a vós do Pai, que nos chama «filhos amados». Sim, lá no coração nasce a verdadeira comunidade, pois a presença de Deus nos liberta de todo o apego, nos preenche de amor e de paz, é a vida nova do Espírito … assim já não procuramos os outros com avidez, sedentos de afecto, mas desejosos de lhe oferecer um amor incondicional. Está aberta assim a possibilidade de uma verdadeira amizade. A comunidade é uma realidade interior …