Pragmática e narrativa em saúde (ou “A dimensão ética: quando falar é agir”) Disciplina: Literatura, narrativa e medicina Tatiana Piccardi ([email protected]) FFLCH e FM-USP, 27/05/2015 “O caso é grave.” => sequência implícita prenuncia algo ruim O caso é grave, mas vamos lutar. Operador argumentativo Verbo na primeira pessoa do plural Campo semântico da guerra REVERSÃO DA DIREÇÃO ARGUMENTATIVA REDIRECIONAMENTO DA NARRATIVA O que é pragmática? Pergunta chave que se propõe responder: o que fazemos quando falamos, e como o fazemos? Uma abordagem pragmática de estudo das narrativas em saúde (e da linguagem de modo geral) pressupõe falar em uso da linguagem em situação concreta. Lugar de cruzamento das pesquisas em filosofia e em linguística. Definições de pragmática Charles Morris (1938)*: A pragmática é a parte da semiótica que trata da relação entre os signos e os usuários dos signos ou, seja, da relação dos signos com seus intérpretes. (definição clássica). A relação das frases com os estados de coisas que elas significam é, na terminologia de Morris, a relação propriamente semântica, distinta da relação pragmática. A pragmática aborda a linguagem como fenômeno simultaneamente comunicativo e social. (definição integradora) Uso dos signos norteado por regras compartilhadas e pelo conjunto das condições de possibilidade do discurso. *Foundations of the Theory os Signs. In International Encyclopedia of Unified Sciences (org. Morris & Carnap) Origens da pragmática: diferenças de posicionamento na filosofia da linguagem (ou filosofia analítica) •A filosofia da linguagem está preocupada com a verdade sobre os fatos do mundo e com sua perfeita expressão. •Entende que a linguagem do dia-a-dia é insuficiente para a expressão dessas verdades. Para a filosofia da linguagem, a linguagem do dia-a-dia é repleta de vícios e incompletudes que inviabilizam a obtenção e a expressão do saber filosófico sobre os fatos do mundo. •Considera que é preciso buscar a linguagem ideal para que se possa fazer filosofia. •A linguagem ideal é a linguagem matemática e as formas constativas/declarativas de linguagem, que permitiriam a averiguação da veracidade/falsidade das proposições. •Filósofos da linguagem que deram importantes contribuições: Gottlob Frege (Sobre sentido e referência, 1892) e Bertrand Russell. A questão da verdade/falsidade para a filosofia da linguagem (ou filosofia analítica) •Linguagem como tertium quid (terceiro elemento) entre a res extensa (realidade material) e a res cogitans (mente). Para que a mente depreenda com precisão a realidade material e crie conceitos sobre o mundo, é preciso operar numa linguagem perfeita. •Leibniz teria dito: “Se Deus descesse à Terra, certamente se dirigiria a nós na linguagem da matemática”. •A linguagem ideal para a filosofia da linguagem é a que melhor se aproxima da linguagem matemática. No âmbito da linguagem verbal, o foco da filosofia da linguagem recai sobre as proposições, consideradas como elementos de linguagem verbal de caráter constativo/declarativo, ou seja, passíveis de serem consideradas verdadeiras ou falsas. •A veracidade/falsidade das proposições é verificada pela relação direta entre o que a proposição declara e o referente. Havendo relação, a proposição é verdadeira, e, portanto, representa um conhecimento seguro sobre os fatos do mundo. Não havendo relação, a proposição é falsa, e, portanto, representa um conhecimento errado sobre os fatos do mundo. •Exemplo: “O rei da França é calvo”. A filosofia da linguagem ordinária (ou filosofia linguística) como “berço” da perspectiva pragmática sobre a linguagem •Para a Filosofia da Linguagem Ordinária, as palavras não servem apenas para corporificar conceitos. A linguagem não é um tertium quid. •A linguagem do dia-a-dia, que na oralidade incorpora a linguagem não verbal, expressa com bastante perspicácia e sutileza os “fatos do mundo”. •A linguagem que interessa à filosofia não precisa ser a linguagem idealizada, livre das “impurezas” da linguagem do cotidiano. O saber que circula no cotidiano pela linguagem do homem comum pode dizer muito sobre o estado de coisas daquele homem, daquele lugar, daquele tempo. •A filosofia da linguagem ordinária entende toda linguagem como performativa (inclusive enunciados formulados sob a forma de proposição). Desta forma, não interessa o valor de verdade do que é enunciado, mas o seu valor de ato, seu sucesso ou insucesso no contexto de uso e o saber que constrói. •Filósofos da linguagem ordinária que deram importantes contribuições: Gilbert Ryle, Peter Strawson, Ludwig Wittgenstein e John Austin (How to do Things with Words, 1962/1975). Algumas noções privilegiadas •Ato de fala •Contexto •Desempenho (competência comunicativa) •Implicatura •Dêixis (embreagem enunciativa) •Importante: para a pragmática, a palavra funciona como “place holder”. Não se liga a uma referência, mas estabelece, na situação concreta de fala (língua nas práticas sociais), uma rede de relações/sentidos possíveis. John L. Austin e a visão performativa da linguagem: a teoria dos atos de fala 1911-1960 •A noção é desenvolvida em How to do Things with Words, 1962/1975 (tradução para o português de Danilo Marcondes, Quando dizer é fazer: palavras e ação, 1990). •Austin entendia a linguagem humana como ação. Entendia que o estudo do ato de fala deveria se integrar em uma teoria geral da ação humana. •Os enunciados são entendidos como atos de fala, que geram uma concreta mudança de estado, em diferentes níveis. Exemplos: Eu te batizo João Antonio de Carvalho. Prometo que chegarei cedo amanhã. #Que calor faz aqui! • A noção de ato de fala deve procurar explicar o que se faz ao dizer algo. O ato de fala apresenta-se simultaneamente como: ato locucionário, ato ilocucionário e ato perlocucionário Locucionário é o ato mesmo de formular o enunciado, para o que o falante utiliza os recursos da língua de que dispõe. É o ato de atualizar (pôr em funcionamento em situação concreta) o sistema linguístico. Ilocucionário é o ato da comunicação em si, que implica o fazer algo ao enunciar, que pode ser um pedido, uma ordem, uma promessa, distinguindo-se assim o ato ilocucionário do significado estrito do enunciado, ou seu sentido “literal”. Eu te batizo João Antonio de Carvalho -> ato de batizar Prometo que chegarei cedo amanhã -> ato de prometer #Que calor faz aqui! -> em dado contexto, ato de pedir A finalidade específica do ato da enunciação (pedido, ordem, promessa, etc.) é o que Austin denomina força ilocucionária. Perlocucionário, por sua vez, é o efeito do enunciado no interlocutor, que pode ser previsto pelo falante ou não, a depender do quão convencional é o ato. A imprevisibilidade dos efeitos da fala projeta o discurso para o novo, para o não convencional, com consequências que podem redirecionar a interlocução por caminhos não planejados. O que distingue, para Austin, o ilocucionário do perlocucionário? No que diz respeito ao ato ilocucionário: •Sua apreensão é assegurada. •A apreensão leva o outro necessariamente a uma resposta. Exemplo: “Eu vos declaro marido e mulher.” Ato locucionário: ato de emitir, de modo coerente com a gramática da língua, a sequência verbal “eu vos declaro marido e mulher”, cujo significado é declarar a união legal de um homem e uma mulher. Ato ilocucionário: ato de declarar casados certo homem e certa mulher, de modo a que de fato eles se tornem casados após o proferimento do enunciado. A força do ato é o seu resultado: a realização de uma união legal. Ato perlocucionário: ato de produzir efeitos no interlocutor por meio do proferimento do enunciado. Tais efeitos caracterizam-se por sua imprevisibilidade (em diferentes graus). Por exemplo: a tristeza ou a alegria provocadas no público, expressas ou não verbalmente; o proferimento de enunciados como “finalmente ele se casou”, etc. “Uptake” O ato de fala, em seus componentes locucionário e ilocucionário, só se realiza quando há o “uptake” por parte do interlocutor. Podemos entender por “uptake” a apreensão da força ilocucionária. O fato de Austin afirmar que sem o “uptake” não há ato de fala nos informa que Austin compreende toda linguagem como interlocução e retira a figura do locutor do centro da enunciação. Ele passa a ser partícipe do processo de comunicação, em conjunto com seu interlocutor. Desdobramentos Para Austin, não há cisão entre sujeito e objeto (Homem e língua). O enunciado performativo (i.e., todo enunciado) não pode ser analisado como qualquer objeto de natureza física, uma vez que a linguagem é inseparável do sujeito que fala. Esta inseparabilidade vai de encontro a pressupostos arraigados na filosofia ocidental, como a oposição homem vs mundo, mente vs corpo, indivíduo vs sociedade, saúde vs doença, etc. O sujeito que fala não pode ser um sujeito mental, desassociado do seu corpo e da sociedade que o constituiu. .A referência depende do conhecimento que os interlocutores têm do processo de comunicação em si. A referência se desloca para dentro da enunciação e é por ela construída, em função de saberes discursivos compartilhados. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Problema inicial: o que é narrativa? •Narrativa enquanto tipo textual (série causal de eventos conectados em uma estrutura prototípica). •Narrativa enquanto modo textual constitutivo de certos gêneros de discurso do cotidiano (gêneros escritos: relatórios, atas, relatos de caso, diários; gêneros orais: diálogos espontâneos, diálogos estruturados - como a consulta médica -, entrevistas, rodas de discussão, aulas). A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Tais narrativas refletem de um modo ou de outro o corpo que sofre, e cuja coerência precisa ser construída na e durante a interlocução. Para que haja construção de sentido, é preciso haver, por parte dos interlocutores, o adequado “uptake” da força ilocucionária do que foi enunciado. O exemplo do Sr. Mário... A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Ao procurar compreender a narrativa do doente como ato de fala, torna-se possível ter em conta, durante a interlocução médico-paciente, que: A fala humana não se calca nos critérios de verdade/falsidade, mas nos princípios de sucesso/insucesso. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Marcas linguísticas que eventualmente chamem a atenção podem estar sendo agregadas para compor a força ilocucionária do ato. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? A função comunicativa não se desatrela do enraizamento social do que é dito. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Não existe linguagem ideal, mas a linguagem que serve à comunicação e atende a seus objetivos. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Muito do que é dito é dito de forma não explicitada e pode compor atos de fala indiretos. A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Muito do que é dito deixa resíduos que correspondem a efeitos de sentido não previstos (componente perlocucionário do ato de fala). A narrativa do “doente” como ato de fala: O que é essa narrativa e como entendê-la como ato de fala? Se o “uptake” é condição para que o ato de fala seja feliz, e se a realização do “uptake” é alternada de acordo com o turno conversacional, os interlocutores têm igual responsabilidade sobre o sucesso da interação verbal. Impacto da narrativa na produção de conhecimento Em certo ponto de seu livro The Wounded Storyteller (1995, p. 23), Arthur Frank nos diz: “Pensar sobre uma história é reduzi-la a um conteúdo e analisar esse conteúdo. Pensar com histórias pressupõe que as histórias estejam completas e que não há nada além delas. Pensar com uma história é experimentar seu impacto em nossa própria vida e encontrar nessa história uma verdade pessoal.” (grifo meu)