Capítulo I – Números Naturais e Inteiros - FTP da PUC

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O infinito atormentou, desde sempre, a sensibilidade dos homens; mais do
qualquer
outra idéia, a de infinito solicitou e fecundou a sua inteligência; mais do que
nenhum, o
conceito de infinito tem que ser elucidado
Hilbert, 1921
Capítulo I – Números Naturais e Inteiros
I.1 - Introdução
Um dos interesses centrais num curso de análise é estudarmos o conceito de
infinito dum ponto de vista matemático. A análise tratará vários aspectos
atrelados à idéia do infinito matemático: o infinitamente grande, o infinitamente
pequeno, o infinitamente próximo, o “chegar” no infinito, etc...
Como primeiro exemplo temos o Paradoxo de Zenon (de Elea, 490 a.c. a 430
a.C.):
Suponha que Aquiles disputa uma corrida com uma tartaruga e dá a ela uma
vantagem inicial. Passado um certo instante Aquiles atinge um certo ponto que
já fora passado pela tartaruga. Num instante seguinte Aquiles atinge um outro
ponto, no qual a tartaruga já estivera. Assim, a cada vez que Aquiles atinge a
posição ocupada pela tartaruga no instante anterior, sempre veremos a
tartaruga à frente de Aquiles. Portanto Aquiles nunca ultrapassará a tartaruga.
Decerto este paradoxo nos remete a definição do infinitamente pequeno –
instante, e do infinitamente grande – nunca ultrapassará.
Arquimedes (secIII a.C.) usando o método de exaustão desenvolvido por
Eudoxo, inscrevendo sucessivamente polígonos regulares com número de
lados cada vez maior, calculou o valor de π.
Aqui temos novamente a noção do infinito (número de lados) atrelada à noção
do cada vez menor (áreas cada vez mais próximas da área do círculo).
Dentre os vários assuntos de reflexão e pesquisa percorridos por Galileo Galilei
(1564~1642) a continuidade do tempo e do movimento também esteve
presente. A continuidade necessita sem dúvida uma idéia precisa à cerca de
conjuntos numéricos que mensuram tais grandezas. Aqui vamos para além do
infinitamente pequeno (o instante), mas como considerá-los em consecução
“um após o outro”.
Finalmente com o desenvolvimento do cálculo diferencial e integral, com a
utilização do conceito de limite (tanto para o infinitamente próximo como para o
infinitamente longínquo) e de infinitesimais (cuja existência era questionada por
pessoas como Berkeley (1685~1783)), o cálculo elevou a discussão à cerca do
infinito a uma precisão matemática que beiramos o próprio limite da linguagem,
notadamente com os trabalhos de G. Cantor (1845~ 1918)
O primeiro, mais simples, mas não por isso menos intrigante conjunto infinito a
estudarmos será o conjunto dos números naturais.
I.2 Os Naturais
No início do capítulo anterior falávamos que podemos apresentar um conjunto
listando os seus elementos, ou declarando uma regra formadora para estes.
Podemos começar listando o conjunto dos naturais. Aqui se dá a primeira
dificuldade, pois certamente vocês já se depararam com o questionamento:
“0 é natural ou não?”
Alguns autores listam os naturais a partir do zero. Preferiremos não incluí-lo por
dois motivos:
i)
Noção ordinal e cardinal dos números: Uma vez que o significado
primevo dos naturais estava associado a idéia de contagem ou
ordenação, não faz sentido falarmos em 0 objetos, pois estes só são
contáveis a partir que existam, ou 0-ésimo objeto, pois não faz
sentido em falarmos em objeto anterior ao primeiro.
ii)
A diferenciação entre números naturais e números inteiros se dará
no momento que pensarmos também nas operações concernentes
aos conjuntos numéricos. Então neste contexto o 0 passará a ser
necessário, junto com os inteiros negativos.
Existem ainda motivos de ordem mais filosófica, que não estaremos abordando
neste texto.
Fixado este ponto, vamos listar o conjunto dos naturais que denotaremos por
N.
Certamente nossos espíritos nos conduzem a listar os elementos na forma:
N= {1, 2, 3, 4, ....}
Nesta simples apresentação temos implícito certas idéias a cerca dos
elementos do conjunto:
Listamos pressupondo que a partir do primeiro elemento (1) obtemos os
demais sequencialmente sem dúvida alguma, de forma que não precisamos
escrever todos os números. Esta implícito então uma ordenação, e que este
conjunto estende-se ao infinito de forma bem-definida e conhecida.
Estas idéias apreendidas serão os elementos básicos para caracterizarmos o
conjunto dos naturais de forma axiomática.
No tratamento axiomático não partimos das propriedades dos números para
construirmos o conjunto, mas sim estamos interessados em um número
minimal de definições a partir das quais podemos obter tudo o que concerne o
conjunto desejado.
I.3 Teoria Axiomática dos Naturais
Axiomas de Peano
A partir destes podemos construir e ou obter todas as operações e
propriedades que concernem os naturais.
Partimos dos objetos:
Um conjunto N, cujos elementos são chamados de números naturais. Uma
aplicação s:N→N tal que para cada n  N, s(n) é chamado de sucessor de n.
A aplicação s deve satisfazer os seguintes axiomas:
P1: s:N→N é injetiva, ou seja, se m, n  N, m  n  s(m)  s(n)
P2: existe um elemento e  N chamado unidade que não é sucessor de
ninguém, ou seja não existe
n N
tal que s(n)=e. Além disso se
n  N, n  e, ! (existe único) m  N tal que s(m)  n .
P3:(Princípio da Indução) Se X  N é subconjunto de N tal que e  X , e para
todo n  X então s(n )  X então X=N.
Comentários:
i) Uma outra forma de anunciarmos a injetividade é:
Para m, n  N, se s(m )  s(n )  m  n
Lembremos das equivalênc ias lógicas que :
Se P  Q então ~ Q ~ P
ii) Como todo número tem um sucessor e como s(n) é injetiva, e ainda como e
não é o sucessor de nenhum elemento de N, decorre que necessariamente N é
infinito, pois se fosse finito um dos elementos (que chamaremos de o último)
não teria sucessor. Caso e pudesse ser sucessor de algum número, então
poderíamos ter grupos finitos tal que a aplicação s:N→N satisfizesse os
axiomas P1 e P2.
(Certifique-se que você entendeu este argumento).
iii)Observe que dado o conjunto 10N={10, 20, 30, 40, ...} se declararmos que:
1 (a unidade)=10, e s(n)=n+10, para n  10 N , então o conjunto acima com a
unidade declarada e a aplicação anunciada satisfazem os axiomas de Peano.
Desta forma muitos são os conjuntos com uma aplicação s que satisfazem os
axiomas de Peano.
Exercícios:
Para os conjuntos abaixo defina a aplicação “sucessor”:
a)C={1, 3, 5, 7, .....}
b)C={2, 4, 8, 16, ....}
c)C={1, 3, 7, 15, 31, ....}
I.4 O Princípio da Indução Finita
O terceiro axioma de Peano, o princípio da indução, tem grande relevância
dentro do formalismo matemático.
Para tal muitas vezes se enuncia o princípio da indução da seguinte forma:
(no que segue s(n)=n+1, onde 1 é a unidade).
Seja P uma propriedade referente aos naturais ( X  N ). Se 1 (unidade)
gozar desta propriedade ( 1 X ) e se, do fato de algum natural n gozar de P
puder-se concluir que o n+1 (sucessor de n) também verifica P (para
n  X então s(n )  X ) então todos naturais verificam P (X=N).
Uma vez que este enunciado é válido para o conjunto dos naturais, podemos
usá-lo largamente.
Exemplo:
1 - Desejamos mostrar que:
1 + 3 + 5 + ...... + (2n-1)=n2
para n natural.
Desejamos mostrar que esta fórmula vale para todos os naturais.
Então basta verificar se esta fórmula verifica o princípio da indução, ou seja se
o conjunto dos números naturais que verificam tal igualdade, se encaixam no
Princípio da Indução, e então poderemos concluir que a igualdade será valida
para todos naturais.
O princípio da Indução se organiza em três passos:
i)Verificar a propriedade para a unidade, no caso e=1.
ii)Supor que vale para um certo natural qualquer n=k
iii)Provar que vale para n=k+1
Dem:
i)Para n=1 temos:
1=12, Ok!
ii)Supor que vale para n=k, ou seja verifica-se:
1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)=k2
iii)Provar para k+1. Para k+1 temos:
1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)+(2(k+1)-1) =
=1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)+(2k+1) =
Como: 1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)=k2 (hipótese da indução – passo ii)
1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)+(2k+1) =
= k2+(2k+1)
=(k+1)2
Ou seja:
1 + 3 + 5 + ...... + (2k-1)+(2(k+1)-1) = (Soma até n=k+1)
= (k+1)2
Exercícios:
Use o princípio da Indução Finita para provar que:
a)S=1+2+.....+n=(n/2).(n+1)
b)S=q+q2+ q3+ q4+..... +qn= q(1-qn)/(1-q)
c)S=1+3+5+...+(2n-1)=n2
I.6 Operações Algébricas sobre os Naturais
Com o princípio da Indução podemos definir e verificar as principais
propriedades algébricas concernentes aos Números Naturais.
Soma: Existe uma operação de soma definida indutivamente (ou
recursivamente) por:
i) Se m  N , a soma de m a unidade é:
m  1  s(m)  N
ii)Definimos então o termo de recursão na forma:
m+(k+1) =
= m+s(k) = s(m+k)
ou seja
m+(k+1) =(m+k)+1
Note que na definição pelo raciocínio indutivo (ou por recursão) definimos para
o primeiro elemento (m+1) e damos a definição para m+(k+1). Desta forma a
partir de (m+1) define-se para m+(1+1)=m+2, a partir de (m+2) definimos
(m+2)+1 = m+3, e assim sucessivamente.
Com isto podemos verificar que os naturais são fechados mediante a operação
de soma, i.e.:
Se m, n  N , então m  n  N
Além disso podemos então mostrar por indução as principais propriedades
concernentes a soma:
Associatividade: m+(n+p)=(m+n)+p
Comutatividade: m+n=n+m
Regra do Corte: Se m+n=m+p, então n=p
Tricotomia: Dados m,n naturais temos:
Ou m=n, ou existe p natural tal que m+p=n; ou existe q natural tal que m=n+q.
Vamos fazer uma delas deixando as demais como exercício:
Tricotomia: Tomemos m natural
i)
Para k=1, o enunciado pede que demontremos que:
ou m=1 ou se m  1, m=1+p para algum p natural, ou 1=m+q, para algum q
natural.
Considerando o caso em que m  1, investigaremos apenas (e será sempre o
caso, como veremos) a possibilidade em que m=1+p.
Pelo axioma ii m é necessariamente sucessor de algum p, e neste caso
m=s(p)=p+1.
ii)
Supomos que, que fixado m, verifica-se a tricotomia para um certo
n=k, ou seja:
ou m=k,
ou se m  k, então ou m=k+p para algum p natural,
ou k=m+q, para algum q natural.
iii)
Provaremos a partir da hipótese indutiva (ii) que a tricotomia vale
para n=k+1, ou seja:
Ou m=k+1, ou existe p natural tal que m+p=(k+1); ou existe q natural tal que
m=(k+1)+q.
Da hipótese indutiva temos: Ou m=k, ou existe natural a tal que m+a=k; ou
existe b natural tal que m=k+b (trocamos p e q por a e b para não haver
confusão com o enunciado iii).
Se m=k, então (k+1)=s(m)=m+1, ou seja existe p (=1) tal que (k+1)=m+p
Se m  k, da hipótese indutiva temos:
ou m+a=k;
ou m=k+b (para certos a ou b).
Se m+a=k, então s(m+a)=s(k), ou seja:
(m+a)+1=(k+1), e pela definição da soma:
m+(a+1)=(k+1), ou seja achamos natural p=(a+1), tal que m+p=(k+1).
Demonstra-se da mesma forma no caso em que m=k+b.
Definimos da mesma forma o produto de dois naturais m, n, ou seja:
m.n significa tomarmos a soma (...((m+m)+m)+......+m), n vezes
consecutivamente, ou equivalentemente de forma indutiva:
1.m=m,
(n+1).m=n.m+n
Verificamos que os naturais são fechados também com relação ao produto, i.e.
m.n  N .
Provamos também as propriedades da multiplicação indutivamente, ou seja:
Associatividade: m.(n.p)=(m.n).p
Comutatividade: m.n=n.m
Regra do Corte: Se n.p=n.q, então n=q
Distributiva: n.(a+b)=n.a+n.b
Vamos demonstrar a última propriedade por indução.
i)
Verificar para n=1.
1.(a+b)=a+b=1.a+1.b.
ii)
Supor para n=k
k.(a+b)=k.a+k.b
iii)
Provar para n=k+1
(k+1).(a+b)=(a+b)+(a+b)+...........+(a+b)+(a+b) (Pela definição do produto)
k-vezes
= k.(a+b) + (a+b) (pela definição do produto para os k primeiros termos)
= k.a+k.b + (a+b) (pela hipótese indutiva enunciada em ii)
= k.a+a +k.b+b (pela comutatividade e associatividade da soma)
= (k+1).a+(k+1).b (pela definição do produto para (k+1))
Note novamente que embora os passos empregados sejam simples até certo
ponto óbvios, precisamos estar certos a cada passo o que podemos usar e o
que não podemos.
Ex:
1 – Definir uma regra por indução não equivale a demonstrar uma propriedade
por indução. Na definição, usamos o raciocínio indutivo (ou recursivo) para
definir os objetos desejados (reveja os exercícios do parágrafo I.2).
Defina indutivamente as operações:
a)pn dados naturais p e n
(Lembre-se quais são os elementos algébricos já definidos)
b)n!
2 - Demonstre a comutatividade e a regra do corte para a soma e para o
produto por indução.
I.7 Desigualdades
Das regras do corte da soma e do produto podemos ter duas definições
fundamentais:
Desigualdades:
Dados m, n  N, m  n , então, dizemos que
m  n se m  n  p para algum p  N, caso contrário (se m  q  n para algum q  N) então m n
Comentários:
Ora claro que dados dois números m, n sabemos dizer qual é maior e qual é
menor. Esta definição está apenas fixando o nosso critério de ordenação m
(pois como veremos existem outros) que neste caso esta vinculado diretamente
à operação de soma e, portanto a definição da função sucessor s:N→N.
Podemos verificar as seguintes propriedades para a desigualdade:
a)Transiti vidade :
Se m  n, e n  p, então m  p
b) Tricotomia :
Teremos necessaria mente um dos três casos :
m  n; ou se m  n então, ou mn ou nm
c)Monotoni cidade com relação à soma :
Se m  n, então m  p  n  p, para todo p  N
d)Monotoni cidade com relação ao produto :
Se m  n, então m.p  n.p, para todo p  N
Ex: Demonstre as propriedades diretamente.
I.8 Outros conjuntos Infinitos
Uma vez que temos definido de forma axiomática os naturais bem como as
operações de soma e produto através da aplicação “elemento sucessor”,
gostaríamos de prosseguir axiomaticamente as chamadas operações inversas
da soma e do produto.
Deixaremos, entretanto esta tarefa para os cursos de Estruturas Algébricas
onde tais operações incorrem nas definições dos principais elementos
algébricos, a saber: anéis, grupos e corpos. No que segue vamos apenas usar
a definição:
Z={..., -2, -1, 0, 1, 2, ...}. Quanto aos racionais, este será o assunto do próximo
capítulo.
Conjuntos Enumeráveis:
Dizemos que um conjunto é enumerável se for finito ou se existe uma bijeção
entre este conjunto e os números naturais. Então se um conjunto infinito for
enumerável significa que “é do mesmo tamanho” dos Naturais.
Ex:
a)Considere P  2.n, n  N . Construímos uma bijeção entre P e N da seguinte
forma:
f :N P
f ( n )  2.n
e
f 1 : P  N
f 1( 2.m )  m
b)Para Z={..., -2, -1, 0, 1, 2, ...}consideremos a seguinte ordenação:
Dados m, n  N, m antecede a n se m  n .
Se m  n , então m, n  N, m antecede a n se m for negativo
Segundo esta ordenação, apresentamos o conjunto Z da seguinte forma:
Z={0,-1, 1, -2, 2, -3, 3, -4, 4, ...}
Vamos construir uma bijeção entre N e Z por listagem:
0, 1, 2, 3, 4, 5, 6 , 7, 8, 9...
0, -1, 1, -2, 2, -3, 3, -4 4, -5...
Desta forma vemos que N e Z estão em correspondência.
Mas sabemos que: P  N  Z
Temos aqui a primeira quebra de paradigmas quando tratamos do infinito: A
parte e o todo podem ser equivalentes.
Iremos, no que segue, estar tomando o conjunto dos Naturais como referência
para “medirmos” os conjuntos infinitos.
Nota:
É comum aparecer na literatura o termo: Dois conjuntos A e B estão em
correspondência biunívoca. Uma correspondência biunívoca se estabelece
quando temos uma relação unívoca de A para B bem como de B para A.
Seja r : A  B relação entre A e B. Se dado a  A existe único b em B tal que r(a)  b,
então r é relação unívoca entre A e B.
(Sabemos a diferença entre função e relação?)
Exercícios:
Defina uma bijeção entre:
a)N e os números ímpares.
b)N e o conjunto {2, 4, 8, .. }
c)N e o produto cartesiano Nx(Z2={0,1})
d)N e o Produto Cartesiano NxN
>>>>>>>>>>>>
Referências:
Lima, E.L. (Elon), Curso de Análise vol1
Caraça, B.J., Lições de Álgebra e Análise vol1
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