INTRODUÇÃO - Faculdade Mineira de Direito

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INTRODUÇÃO
Tomás Antônio Gonzaga, português, morador das Minas Gerais no século
XVIII, mais conhecido pela sua participação na Inconfidência Mineira e por suas liras
árcades, se formou em Direito pela Universidade de Coimbra1.
Filho de um magistrado carioca, o poeta de Marília de Dirceu veio para o
Brasil pela primeira vez em 1752 acompanhar seu pai que havia sido nomeado
Ouvidor Geral da capitania de Pernambuco. Domiciliado no Brasil, Tomás Antônio
Gonzaga foi estudar no Colégio da Companhia de Jesus da Baía, em Salvador. Ao
fim dos seus estudos secundários no colégio dos jesuítas, como não havia ensino
superior no país, retornou a Portugal para ingressar na Faculdade das Leis da
Universidade de Coimbra.
Em 7 de fevereiro de 1768, Gonzaga colou grau de bacharel em leis. Logo
depois se transferiu para a cidade do Porto onde passou a exercer a advocacia. No
ano seguinte à reforma curricular da Universidade de Coimbra, iniciada pelo
Marquês de Pombal em 1772, ele se candidatou ao magistério, à cátedra de Direito
Pátrio2, para o que escreveu o texto acadêmico denominado Tratado de Direito
Natural.
Segundo Joaci Pereira Furtado3, seu trabalho, dedicado ao Marquês de
Pombal, nunca foi apresentado, pois não estava redigido em latim – língua na qual
eram lidas as teses e ministradas as aulas na então Universidade.
Após o ingresso na magistratura portuguesa, Tomás Antônio Gonzaga
retornou ao Brasil, em 1782, para assumir o cargo de Ouvidor da Comarca de Vila
Rica. Sua estada nas Minas Gerais foi marcada por suas poesia e pela sua atuação
no levante conhecido como Inconfidência Mineira. Por causa deste movimento,
Gonzaga foi condenado ao degredo em Moçambique e morreu, em 1809, nesta terra
africana exercendo a função de Juiz de Alfândega.
No Brasil, seus textos literários e sua atuação política na Inconfidência
Mineira provocaram a fama desse intelectual estudado por historiadores e literatos
1
Sobre a biografia de Tomás Antônio Gonzaga ver Lyra, Pedro, (org.), na Coleção Nossos Clássicos. Ver
também a edição crítica de Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga escrita por Rodrigues Lapa, por fim
ver GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do iluminismo. p.72.
3 Sobre a cronologia da vida de Gonzaga ver também Joaci Pereira Furtado na obra organizada por ele sobre as
Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga. Márcio Jardim também considera que tal tese provavelmente não
fora apresentada.
5
nas universidades brasileiras e portuguesas. Sua obra sobre o Direito Natural não
alcançou fama no sentido de despertar os mesmos interesses acadêmicos entre os
juristas.
O Tratado de Direito Natural aborda o jusnaturalismo e foi escrita no século
XVIII - século dominado pelas idéias filosóficas e jurídicas sobre o Direito Natural.
No seu Prólogo, Gonzaga justifica o seu tema e transmite o domínio de tais idéias
sobre a Europa da seguinte forma:
Resolvi a dá-lo a luz, incitado em dois motivos: o primeiro foi o ver que
não há em nossa língua um só tratado sobre esta matéria (...). Esta
falta me pareceu que se devia remediar; pois sendo o estudo do
Direito Natural sumamente útil a todos, não era justo que meus
nacionais se vissem constituídos na necessidade ou de o ignorarem
ou de mendigarem os socorros de uma língua estranha. 4
A concepção de Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga é desconhecida
da maior parte dos juristas. Seu texto acadêmico sofreu uma série de influências de
pensadores jusnaturalistas o que o torna parte de uma escola referente ao Direito
Natural. Percebemos, então, que há uma necessidade de investigação sobre o tema
no sentido de buscar uma relação entre o pensamento deste intelectual lusobrasileiro e o próprio jusnaturalismo.
Podemos falar de vários “jusnaturalismos”, no que tange à sua conceituação e
fundamentação. A concepção de direito natural foi modificada com o passar dos
séculos de forma que não há uma homogeneidade doutrinal deste tema. Na verdade
existiram diversas escolas jusnaturalistas que ora fundamentaram o direito natural
nas leis cósmicas, na vontade divina ou na natureza do homem.
Luño Pena5 afirma que o direito natural acompanha a humanidade desde o
início. O jusnaturalismo está assim definido por Valle:
O jusnaturalismo é a concepção que afirma a existência do Direito
Natural como realidade anterior e superior ao Direito Positivo, i. e., o
direito estabelecido pelos homens. O direito natural dimana da
própria natureza das coisas (ou do homem) e constitui o elemento
básico e insubstituível da ordem jurídica e a medida da legitimidade
do Direito Positivo. 6
4
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942. p. 365.
5
LUÑO PENA, Henrique. Derecho Natural. Barcelona: La Ormiga de Oro, 1954. p. 130.
6
VALLE, Gabriel. Modernidade e direito. Porto Alegre: Síntese, 2001. p. 211.
6
O episódio de Antígona, descrito na obra de Sófocles pode ser considerado
como uma das primeiras manifestações do jusnaturalismo. Neste exemplo grego,
Antígona apela ao direito natural para justificar o enterro de seu irmão em Tebas –
proibido pelo édito de Creonte. O soberano não permitiu que Polinice, irmão de
Antígona, fosse honrado com um túmulo em virtude desse ter se revoltado contra ele
no passado.
Na Antigüidade, a morte e todo ritual funerário eram de cunho sagrado para o
homem. Não ser sepultado significava uma espécie de condenação eterna ao morto
Polinice. Antígona, então, recusa a condenação imposta a seu irmão e o enterra
contrariando ao decreto. Ao descobrir que seu édito havia sido desrespeitado,
Creonte exige explicações de
Antígona que se defende baseando-se no direito
natural:
Não foi do Sumo Zeus essa ordem emanada.
Nem a justiça a impôs dos Manes na morada.
Do céu não procedeu. Nem podia acudir-me
Que um decreto de rei ou ato humano infirme
Invioláveis leis, eternas, não escritas,
À raça dos mortais por imortais prescritas.
Não são d’ontem nem d’hoje; estranhas são às datas.
Têm existido sempre, imutáveis, inatas.
Por humana coação leis santas infringir
Fora da divindade a cólera atrair. 7
Creonte não aceita as palavras de Antïgona e diante de sua atitude de
erguer túmulo ao irmão profere sua pena: ser enterrada viva. Tebas está contra o
édito de Creonte e contra à pena imposta à irmã de Polinice que nada fez do que
cumprir os ditames das leis divinas. Hémon, filho de Creonte, tenta persuadi-lo de
sua decisão imposta a Antígona, mas não consegue demovê-lo da mesma naquele
instante.
Depois de Antígona ser posta em seu túmulo, Creonte decide evitar sua
morte, porém quando lá chega, ela já se encontra morta – enforcou-se com os
cadarços da cintura. Hémon também crava uma faca no peito e morre frente ao pai.
Eurídice, mãe de Hémon, não suporta tamanha dor e se mata. Creonte perde o filho,
a mulher e Antígona, todos cumprindo seus trágicos destinos.
7
SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Edipo em Colono, Antígona. Rio de Janeiro: Zaahar, 1997.
p. 86.
7
A partir de Sófocles, podemos compreender o direito natural como o
conjunto de normas que não são criadas ou editadas pelo homem, sendo entretanto
de seu conhecimento e possuindo força obrigatória em relação ao agir humano.
Assim, nas leis naturais podemos encontrar a legitimidade do direito positivo. Tratase do direito que permite a Antígona enterrar seu irmão em Tebas, independente da
proibição de Creonte.
Não podemos deixar de considerar que nesta passagem duas concepções
de direito, uma arcaica e outra que se constitui na fonte de inspiração de uma idéia
de direito natural de resistência. Na verdade, não há uma superioridade do direito
positivo frente ao natural ou vice-versa porque ambas as esferas de ordem jurídica,
na Antigüidade, ainda estão misturadas. Nossa monografia não poderá adentrar na
complexidade do tema, por isso nos limitaremos a esta ponderação.8
Para a concepção jusnaturalista, o Direito tem como fonte e como medida de
legitimação uma ordem ontológica que transcende a vontade humana e, é
primordialmente, a expressão do justo decorrente da natureza. O direito natural
ultrapassa o homem enquanto o seu fundamento e é um exemplo de Direito ideal,
comum à natureza humana. Sua revelação ora se mostra pelo fator divino ora pela
razão, mas o direito natural não é do ser humano. Percebemos que, em todas as
manifestações do direito natural, o homem tenta buscar no absoluto segurança para
as relações jurídicas e para a própria alma humana.
A partir da classificação proposta por Luño Pena, destacaremos neste
trabalho a concepção de direito natural em apenas três períodos (antigo, teológico e
da escola clássica jusnaturalista) para, através deles, encontrar o lugar de Tomás
Antônio Gonzaga enquanto pensador jusnaturalista.
O período antigo compreende o pensamento grego e romano e estudaremos
os seus seguintes representantes: os sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles e Cícero.
No período teológico – baseado na filosofia cristã – Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino serão os autores cujas concepções de direito natural serão aqui
aprofundadas. Estes dois períodos serão vistos no primeiro capítulo.
Por fim, veremos a versão da Escola Clássica de Jusnaturalismo, também
conhecida como racionalista moderna que dominou os séculos XVII e XVIII.
Procuraremos em determinados expoentes desta matriz – Hugo Grotius, Pufendorf e
8
FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: persuasão, técnica e. São Paulo: Atlas,
1993. P. 54.
8
Thomas Hobbes o sentido adquirido pelo direito natural. Tal escola será tratada em
um capítulo próprio. Tomás Antônio Gonzaga se considera pertencente 9 à essa
escola.
A partir, desse tratamento histórico dada ao conceito de direito natural
analisaremos no último capítulo o direito natural de Tomás Antônio Gonzaga. A
escolha dos autores se baseou, especialmente, nas referências do próprio Gonzaga
em sua tese sobre o assunto.
O objetivo primordial deste trabalho é iniciar um estudo sobre a relação entre
a matriz jusnaturalista européia vigente nos séculos XVII e XVIII e o Direito Natural
em Tomás Antônio Gonzaga. Nossa proposta nesta monografia é, especialmente,
conhecer o Direito Natural a partir do Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio
Gonzaga dentro da corrente do jusnaturalismo que norteou todo o seu trabalho.
Também é objetivo deste trabalho realizar um levantamento bibliográfico
suficiente para a produção de uma futura pesquisa sobre este assunto em cursos de
pós-graduação.
Como personagem da História do Brasil, sua trajetória enquanto jurista filiado
às idéias jusnaturalistas, encontra-se pouco estudada. Tal tarefa se mostra muito
ambiciosa na medida em que o tema requer uma pesquisa profunda e apurada – o
que não é possível em uma simples monografia de conclusão de curso.
9
Gonzaga se considera pertencente à esta Escola, apesar das diferenças entre seu pensamento e o da mesma,
como demosntraremos.
9
Capítulo 1
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE O DIREITO NATURAL
A necessidade de uma perspectiva histórica sobre o direito natural pode ser
explicada por Del Vecchio:
De cada ciência é vantajoso conhecer a história. Mas a importância
de tal conhecimento faz-se senti de modo particular a respeito das
disciplinas filosóficas: em estas, o presente, sem o passado, carece
de sentido. Os problemas filosóficos que hoje discutimos são
fundamentalmente os mesmos que os filósofos antigos se
mostraram, ainda que de modo germinal ou embrionário. 10
Acreditamos como o autor acima, que a “história da filosofia é um meio de
estudo e investigação”11 capaz de possibilitar uma construção de um sistema de
conceitos somente percebido com a análise das experiências intelectuais já vividas
pelo homem. Daí a nossa procura a partir do passado do conceito de direito natural,
para, enfim, chegar ao sentido dado a ele por Tomás Antônio Gonzaga.
1.1 PERÍODO ANTIGO – Do mundo grego dos sofistas ao mundo romano de
Cícero
1.1.1 Os Sofistas
As idéias dos sofistas bem como os seus escritos são conhecidos graças aos
seus adversários. Especialmente através dos diálogos platônicos em que Sócrates
discorda dos sofistas, conhecemos as teses defendidas por estes pensadores
eloqüentes, retóricos, polêmicos que atuaram na Grécia no século V A. C. .
Os sofistas foram de suma importância para a filosofia na medida em que
representaram um “movimento intelectual humano, filosófico, crítico”
12.
Tal crítica
repousava nos problemas relativos ao homem, de ordem psicológica, moral e social
10
DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. Trad.: Antônio José Brandão. 5a ed. Coimbra:
Armênio Amado, 1979. (Original em italiano). p.33.
10
que, até então, não eram questionados. Esses pensadores percorriam as cidades
ensinando a juventude por um determinado preço.
Sobre o público que desejava aprender a retórica dos sofistas, considera
Guthrie que:
Os sofistas não tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos
para pagar as suas altas taxas, ou auditórios para suas conferências
e exibições públicas. Todavia alguns dos mais velhos e
conservadores desaprovavam fortemente a eles. Esta desaprovação
vincula-se, como Platão mostra, com seu profissionalismo. 13
Não cabe neste trabalho examinar o pensamento dos sofistas ou as várias
tendências filosófica existentes dentro deste movimento. Vamos aqui nos prender ao
conceito do direito natural adotado pelos mesmos.
Edgar Godói da Mata Machado14 e Luño Pena acreditam que os sofistas
foram os primeiros a estabelecer a diferença exata entre direito natural e direito
positivo. Disse Antífon:
Pois as normas das leis são acidentais enquanto as regras da
natureza são necessárias; e as normas da lei são criadas por
convenção e não produzidas pela natureza; as da natureza são, ao
contrário, originárias não suscetíveis de serem convencionadas. (...)
Apresento reflexões sobre estes pontos porque muito do que é certo
de acordo com a lei está em conflito com a natureza... e muito do que
aqui será tido como discordante com a natureza (...)15
Para os sofistas, o homem, e não a natureza seria o princípio e a causa de si
mesmo. A natureza faria com que as leis fossem idênticas em todas as partes. No
entanto, pelo contrário, o que se vê é que homens de culturas diferentes possuem
legislações e valores jurídicos diferentes, na medida em que se encontra em seu
poder definir o que é justo e o que é injusto16. Para Del Vechio, os sofistas também
assumiram geralmente uma atitude negativa a respeito do justo natural. Se
houvesse tal justo natural, todas as leis seriam iguais17. Parece que os sofistas
11
DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p.33.
LUÑO PENA, Henrique. História da filosofia do direito. 2a ed. Barcelona: La Ormiga de Oro, 1955. p.119.
13
GUTHRIE, W.K.C. Os sofistas. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1995. p.40-41.
14
MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao
estudo do direito. Belo Horizonte: Vega, 1981. p.15.
15
Antífon, In: ROSS, Alf. . Direito e Justiça. São Paulo: EDIPRO, 2000. p. 276-277.
16
BIITAR, Edurado C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e
tópicos conceituais. São Paulo: Atlas, 2001. p. 55.
17
DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p.36.
12
11
encontram na idéia de natureza uma fonte de argumentos capazes de se contrapor
ao direito positivo.
Segundo Ross, a natureza, a que os sofistas recorriam para a fundamentação
do direito natural não estava relacionada à metafísica ou algum sentido religioso:
Aqui, também, parece verdadeiro que o ser humano é a medida de
todas as coisas, que se referiam os sofistas à experiências fatuais da
humanidade quanto a prazer e à dor, às necessidades fatuais e às
valorações humanas. Um direito natural deste tipo é essencialmente
diferente do direito natural metafísico que posteriormente
predominou, e pode ser facilmente interpretado, se para isto
estivermos dispostos, como uma primeira tentativa de realismo na
política jurídica.18
Podemos estabelecer que o direito natural para os sofistas encontrou diversos
sentidos dependendo de cada geração. Para uma parte destes pensadores, o direito
“positivo em sua essência é uma emanação ou revelação daquilo que por natureza é
eternamente válido, o que lhe confere sua força obrigatória, e somente oposta ao
império da força. “
19
Trata-se de uma atribuição ao direito natural como instância
legitimadora e ratificadora da ordem vigenteA segunda geração dos sofistas já
acreditava que o direito natural não se prestaria, simplesmente, a dar “solidez e
constância às regras de conduta impostas pelo Estado, mas servirá de modelo à
transformação e adaptação do direito vigente.”20 Outra atribuição é dada aqui ao
direito natural, sendo este o fundamento para uma ação revolucionária.
Os sofistas não criaram uma escola ou um sistema filosófico comum. Na
verdade, a importância dos sofistas reside no levantamento das questões filosóficas
que serão mais tarde discutidas por Sócrates, Platão e Aristóteles. Desta diversidade
de conceitos e opiniões sobre o direito natural entre os sofistas, podemos considerar
que o assunto já era fruto de debate e disputa. Nestas primeiras aspirações
filosóficas o direito natural é recorrente e já se busca um fundamento para o mesmo.
18
ROSS, Alf. Direito e Justiça. p. 270.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. p. 277.
20
MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao
estudo do direito. . p. 61.
19
12
1.1.2 SÓCRATES
Sócrates nasceu e viveu em Atenas entre 469 e 399 a.C e combateu,
especialmente, as doutrinas sofistas.
Desde a juventude Sócrates se interessou pela filosofia, conhecendo o
pensamento anterior e contemporâneo dos filósofos gregos. Praticava sua filosofia
ensinando em conversas nos locais públicos e nos passeios pelas praças e pelos
mercados.
Seu método discursivo e dialético ficou conhecido como maiêutica na medida
em que Sócrates não pretendia dar respostas prontas aos seus discípulos, mas que
eles próprios, através de seus questionamentos, encontrassem a verdade. Consistia
tal método, então, em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma
questão que ele pensa conhecer, e pô-lo em contradição. A mensagem final que
Sócrates tentava transmitir em seu ensino gratuito visava a revelar o meio de ter
acesso ao verdadeiro saber e levar cada um a recusar os conhecimentos prontos.
De inicio, interessava-se pelos ensinamentos dos filósofos da natureza 21, mas
depois se revoltou contra eles, pois eles haviam sido filósofos físicos, que
procuravam respostas nas causas exteriores e gerais da natureza. Achava que
existia algo mais digno para se estudar e, tal como os sofistas, passou a se dedicar
ao estudo do homem. Por isso, sondou a alma humana, em diversos aspectos
como a justiça, a honra, o patriotismo, a moralidade e a ética.
Sócrates teve uma morte drástica e cruel. Em um tribunal popular foi
condenado a morte por negar os deuses do Estado, instituir novos e por perverter a
juventude de Atenas. Ele foi considerado, aos setenta anos, líder espiritual de um
partido revoltoso.
21
Os chamados filósofos da natureza investigavam as questões e as transformações pertinentes a physis.
Também buscavam compreender como e de que era feito o mundo. Tentaram romper com a visão mítica e
religiosa da natureza que prevalecia na época, adotando uma forma mais científica de pensar. Podem ser
elencados entre eles Tales de Mileto, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Zenão de Eléia,
Empédocles, Anaxágoras, Leucipo de Mileto, Demócrito.
13
Está na morte de Sócrates a grande indagação a respeito do direito natural.
Segundo Edgar da Mata Machado, o filósofo condenado a tomar cicuta foi um
testemunho a favor do direito natural – “testemunho pelo martírio”. Segundo o autor,
sua morte não era um preito ao direito positivo pelo simples fato de cumprir uma
sentença estatal. Sua morte era a única maneira pela qual pôde convencer aos
outros de que realmente acreditava em uma ordem subjetiva de valores.
22
Para Del Vecchio, Sócrates acreditava na total obediência às leis do Estado.
O bom cidadão deveria obedecer até mesmo às leis más para que as leis boas não
fossem violadas. A questão da justiça reside neste ponto, na medida em que para
Sócrates, ser justo significava cumprir os ditames da lei.
Assim, mesmo sendo condenado injustamente à morte, sua execução não
poderia contrariar a ordem de Atenas. “Isso porque Sócrates vislumbra nas leis um
conjunto de preceitos de obediência incontornável, não obstante possam estas ser
justas ou injustas.”
23
Neste sentido, no diálogo Críton de Platão, Sócrates nos
esclarece:
Ninguém de nós [as leis] proíbe que se retire com todos os seus
bens e vá se instalar onde for de seu agrado. Contudo, aquele que
permanecer aqui após concordar com essa nossa maneira de
administrar a justiça, e com a política seguida pela República, será
obrigado a obedecer a tudo que lhe ordenamos e, se desobedecer
àquelas leis que lhe permitiram nascer, porque perturba aquelas que
o amamentaram e alimentaram e porque, após obrigar-se a
obedecer-nos, ofende a fé jurada e não se esforça em persuadir-nos
se lhe parece que existe algo de injusto em nós. 24
Não seria, então, a morte de Sócrates uma desobediência às leis naturais e
uma afirmação à superioridade do direito positivo? Enfrentar sua condenação da
forma serena como ocorreu não seria uma contradição à sua frase de que “importa
obedecer mais aos deuses que aos atenienses” ? 25
22
MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao
estudo do direito. p. 35.
23
BITTAR, Edurado C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e
tópicos conceituais. p. 64.
24
PLATÃO. Críton.. In. ____ . Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.111. (Os Pensadores).
25
PLATÃO. Apologia. In. ____ . Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.81. (Os Pensadores).
14
Trechos no mesmo diálogo Críton de Platão têm sido utilizados ora para
considerar a morte de Sócrates uma apologia ao direito natural ora para considerá-la
um tributo ao direito positivo. Sobre tal polêmica, adotamos a posição do Júlio Aguiar
de Souza:
No entanto a morte de Sócrates recusa-se a ser capturada por uma
ou outra corrente. Nem o positivismo jurídico nem a Escola de Direito
Natural podem fazer dela argumento a seu favor. Ao tentar encaixála às suas convicções, os defensores de ambas as escolas são
obrigadas a mutilar o pensamento socrático. Não foi para
testemunhar a favor de uma determinada concepção de direito que
Sócrates a aceitou. A idéia de Justiça, em Sócrates, permanece uma
idéia aberta, vacilante entre duas posições extremas e cuja
harmonização, parecemos, não se mostrou realizável. Suas reflexões
o levaram a um limite da idéia de Justiça. 26
O autor ainda continua a explicar suas idéias:
Sócrates recusa-se a uma visão unilateral, ora tocada no critério da
justiça do Direito Natural ora focada no da norma do Direito Positivo.
(...) Com isto fica interditada para Sócrates a possibilidade racional
discursiva, que só se mostrava capaz de tratar o direito ou como pura
idéia de justiça ou como pura norma positiva. 27
Analisando os dizeres de Júlio Souza Aguiar sobre a morte de Sócrates e seu
impacto para o direito natural, acreditamos que sua reflexão é bastante coerente
com o que propôs o filósofo grego. Não se tratava, simplesmente, de morrer por
causa de uma condenação de Atenas ou fazer de tal morte um martírio traduzido em
defesa do direito natural. Há um paradoxo na morte de Sócrates que não pode ser
respondido nem pelo direito natural e nem mesmo pelo direito positivo. Sócrates não
definiu o sentido que pretendia dar à lei natural, ou se esta que se diferenciava da lei
positiva. O que o filósofo ressalta sempre é a obediência às leis, sejam naturais ou
positivas. Sua morte pode ser compreendida como o cumprimento estrito das leis,
quais sejam, positivas e naturais.
1.1.3 Platão
Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e
abastados. A partir dos vinte anos, Platão conheceu seu mestre Sócrates, tornandose seu discípulo.
26
AGUIAR, Júlio Souza. Espinosa e direito natural. Belo Horizonte: UFMG, 2000. (mimeo). p.50.
15
Com a morte de Sócrates, Platão deu início a uma série de viagens pelo
mundo, para se instruir (390 –388 a. C.). Visitou o Egito, a região que hoje ocupa a
Itália meridional, a Sicília e outros locais onde travou diversos debates filosóficos
importantes. Nesta época chegou a ser vendido como escravo e, depois de
libertado, voltou a Atenas.
Em Atenas, pelo ano de 387 a. C., Platão fundava a sua célebre escola a
partir dos modelos pitagóricos que tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu,
perto de Colona, povoado da Ática, um terreno, onde levantou um templo às Musas,
que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase
um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).
As obras filosóficas de Platão tratam de diversos temas. Ao contrário de
Sócrates, seus escritos exotéricos foram mantidos completos no decorrer dos
séculos. Entre seus temas filosóficos, interessou-se vivamente pela política e pela
justiça. Sua concepção de Estado também figura como fundamental para a filosofia
política. Platão faleceu em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o
ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de
Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muitas vezes
com os elementos puramente racionais do sistema.
Neste trabalho nos resumiremos a discutir o conceito de Justiça e de Estado
para assim, buscar em Platão seu entendimento acerca do direito natural.
Para Platão, a realidade se divide entre o mundo dos sentidos e no mundo
das idéias. O mundo dos sentidos é uma cópia imperfeita e perecível das idéias.
Neste as coisas surgem e desaparecem. O mundo das idéias é a possibilidade de
existência de um plano superior de realidade que pode ser percebido através do uso
da razão. Neste plano as idéias são eternas e imutáveis e o efêmero e o contigente
não importam.
Talvez estejam no mundo das idéias as leis da natureza porque estas são de
caráter imutável e eterno. Delineiam o que é inteligível, perfeito, absoluto e podem
ser conhecidas pelo homem através do uso da razão contemplativa. Percebemos,
novamente, como as leis naturais transcendem ao homem e, segundo Platão se
encontram em um mundo ideal.
Sobre a definição de justiça, Platão diz na República:
16
Agora, pois, vê se tenho razão. O princípio que estabelecemos de
início, ao fundarmos a cidade, e que devia ser sempre observado,
esse princípio ou uma das suas formas é, creio, a justiça. Nós
estabelecemos, e repeti-mo-lo muitas vezes, que cada um deve
ocupar-se na cidade apenas de uma tarefa, aquela para a qual é
mais apto por natureza. (...) Mais ainda: que a justiça consiste em
fazer seu próprio trabalho e não interferir no dos outros. 28
Sobre a justiça, Salgado nos oferece uma interessante crítica:
Platão abre duas perspectivas para a concepção de justiça: a justiça
como idéia e a justiça como virtude ou como prática individual; isto
mostra a República, obra em que tematiza com maior propriedade.
29
(..) De qualquer forma, Platão delineia duas vertentes que se
separarão no correr da história: a justiça como norteadora da
conduta e definidora do direito e da lei e a justiça como virtude
norteada e determinada pela lei. De um lado, a idéia de justiça, do
próprio Platão, soberana, não sujeita nem mesmo à vontade da
divindade, informadora do seu Estado e de outro, a concepção de
justiça como o hábito de cumprir o direito, ora entendido como direito
positivo, ora entendido como direito legislado por Deus ou derivado
da natureza. A justiça como idéia acentua o lado contemplativo da
filosofia grega, a justiça como virtude, o ideal de vida ativa no sentido
que são componentes essenciais de toda a filosofia ocidental. 30
1.1.4 Aristóteles
Aristóteles nasceu em Estagira, Macedônia em 384 a. C. Aos 18 anos
ingressou na Academia de Platão e lá se tornou seu discípulo por mais de 20 anos.
Após a morte de Platão, em 343 a. C, Aristóteles foi convidado a se tornar o
preceptor de Alexandre Magno. Após este assumir o trono, o filósofo estagirita
fundou sua própria escola, perto de Atenas, que foi denominada Liceu. Com a morte
de Alexandre, em 323 a.C, Aristóteles foi acusado de ateísmo e se refugiou em
Cálcis, onde faleceu no ano seguinte.
Escreveu notáveis livros sobre Biologia, Ética, Política, Direito, Estética,
Psicologia influenciando pensadores de todos os tempos. Nas palavras de Del
28
29
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.131-132.
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo
Horizonte: UFMG, 1986. p.22.
30
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 27.
17
Vecchio, Aristóteles “dedicou-se a todos os ramos do conhecimento e pode se dizer
que, com ele, iniciaram-se muitas das nossas ciências.”31
O termo justiça pode ser tomado
ora em sua acepção particular, ora em sua acepção universal. A
palavra é ambígua, e podemos dizer que um ato é justo ou 1o)
quando não viola a lei, ou 2o) quando alguém toma o que lhe é
devido (nem mais, nem menos), ou 3o) quando realiza a igualdade. A
segunda e a terceira acepções acabam se identificando, pois realizar
a igualdade é exatamente tomar aquilo que lhe é devido, nem mais,
nem menos. 32
Para o filósofo estagirita não há apenas um tipo de justiça. Para a nossa
monografia,
a distinção de Aristóteles a respeito da justiça natural e a justiça
legítima é que nos interessa e nos restringiremos à mesma.
O Direito Natural, o justo natural, para Aristóteles, não é escrito e sua validade
é idêntica em todas as partes, independente da vontade dos homens. A lei natural é
válida em si mesma e obrigatória para todos. “Há, portanto, uma lei natural ou direito
natural), que é a lei que revela a natureza da comunidade política (...).”
33
Já o Direito Positivo, o civil, o justo legítimo é próprio de cada povo;
podendoser entendido como um direito ordenado por lei. Esta separação entre
direito natural e positivo realizada por Aristóteles se encontra bem definida em sua
Ética a Nicômaco:
A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as
coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem
de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser
determinado indiferentemente de uma maneira ou outra, mas depois
de determinado já não é indiferente – por exemplo que o resgate de
um prisioneiro será uma mina... (...) 34
A citação acima nos remete à importância do termo político em Aristóteles.
Para o filósofo, a vida no contexto político de Atenas constitui a própria condição do
ser humano. Somente aqueles que participam das decisões políticas, os cidadãos,
possuem à chamada dignidade de ser humano. Nas palavras de Aristóteles:
31
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. p.44.
GALUPPO, Marcelo Campos. A virtude como justiça. Disponível
em:<http//sites.uol.com.br/marcelosgaluppo>. Acesso em 21 nov.2002.
33
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 40.
34
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1973. p. 206. (Os Pensadores)..
32
18
A cidade –estado é algo natural, e o homem, um animal político ou
social; e um homem que, por natureza e não meramente por acaso,
fosse apolítico ou insociável, ou seria inferior na escala humana, ou
estaria superior a ela.35
Aristóteles é considerado o “pai do direito natural” na medida em que
diferenciou este do direito positivo, retomando tal separação dos sofistas. Importante
ainda ressaltar que nem mesmo as lei naturais são imutáveis para o filósofo. Tal
como demostra a passagem abaixo, ambas as manifestações de justiça – a natural
e a legítima – podem ser modificadas; pois, apenas entre os deuses permanece a
imutabilidade. No caso da justiça legal, ou seja, expressa pela lei positiva devemos
perceber que sua mera aplicação mecânica36 pode não corresponder à justiça. A
equidade se torna, então, a própria possibilidade de aplicação da justiça ao caso
concreto.
Algumas pessoas pensam que toda justiça é deste tipo, porque
aquilo que existe por natureza é imutável e tem a mesma forma em
todos os lugares (como o fogo queima aqui e na Pérsia), ao passo
que tais pessoas vêm mudanças no que é tido como justo. Isto,
porém, não é verdadeiro de maneira irrestrita, mas apenas em certo
sentido; com os deuses, realmente, isto não é verdadeiro de modo
algum enquanto conosco, embora exista algo verdadeiro até por
natureza, todos os dispositivos legais são mutáveis seja como for,
existem uma justiça natural e uma justiça que não é natural. 37
Consideração importante sobre o justo natural, encontramos em Salgado que
aponta:
Entretanto, o justo natural é melhor não só do que o justo legal no
sentido de convencional, mas superior a toda a forma de justiça, o
que autoriza concluir ser, também na justiça particular, a
conformidade com a lei (natural) o elemento essencial para o
conceito de justiça.38
1.1.5 Cícero
Cícero é o último expoente da matriz jusnaturalista da Antigüidade que será
aqui analisado. Cícero viveu entre 106 a. C. e 43 a. C. e pode ser considerado um
35
ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os pensadores; Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.253
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 44.
36
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Os Pensadores). p. 206.
37
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Os Pensadores). p. 206.
38
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 43.
36
19
dos grandes agentes da helenização da cultura romana e transmissor da filosofia
grega. Luño Pena39 o considera o primeiro pensador que criou a terminologia
filosófica latina.
Com formação jurídica, exerceu a advocacia e também ocupou a
magistratura. Cícero, porém, almejava os negócios públicos e se tornou grande
político na República romana. Seus feitos militares não se equiparavam aos
intelectuais o que prejudicava sua carreira política no cenário da época. Em vista
disto, Cícero possuía um discurso simples, eloqüente que tentava atingir a plebe
romana.
Segundo Del Vecchio40, Cícero não pertence exatamente a nenhuma escola
filosófica. Com uma formação diversificada – iniciou seus estudos com os estóicos e
posteriormente conheceu a escola epicurista, chegando até a estudar em Atenas –
Cícero vivenciou todas as escolas de seu tempo. Seus temas, a partir de matrizes
bem ecléticas, tratam, especialmente, da teoria política, da justiça e da ética.
Independente de sua importante atuação no âmbito político, Cícero contribuiu
em muito para a corrente jusnaturalista. Para Edgar da Mata Machado, este jurista
romano foi o mais importante representante na Antigüidade “da noção de direito
natural, real, objetivo”41.
Tal como os estóicos, o jurista romano defendia que o direito é dado pela
própria natureza. Há uma lei eterna emanada pelos deuses que pode ser percebida
pelo homem através de sua natureza racional. A lei natural nada mais é do que a
apreensão pelo homem através de sua razão do conteúdo destas leis eternas. Como
disposto na República por Cícero:
Existe uma lei verdadeira, razão reta conforme a natureza, presente
em todos, imutável, eterna. Por seus mandamentos chama o homem
ao bem e suas interdições deriva-o do mal. Quer ordene, quer
proíba, ela não se dirige em vão aos homens de bem, mas nenhuma
influência exerce sobre os maus. Não é permitido invalidá-la por meio
de outras leis, nem derrogar um só de seus preceitos. É impossível
abrogá-la por completo. Nem o Senado nem o povo podem liberarnos dela, tampouco é preciso buscar fora de nós quem a explique e a
interprete. Ela não será diferente em Roma ou em Atenas, e não
será, no futuro, diferente do que é hoje, mas uma única lei, eterna e
inalterável, regerá todos os povos, em todas as épocas. Um só deus
39
LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filsofia del derecho. p. 153.
DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p. 55.
41
MATA MACHADO. , Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução
ao estudo do direito. p. 63.
40
20
é, com efeito, como mestre e chefe de todos. É ele o autor desta lei,
quem a promulgou e a sancionou. Aquele que não a obedece foge
de si mesmo, renegando sua natureza humana, e prepara para si os
maiores castigos, mesmo se consegue escapar aos outros suplícios,
os dos homens.42
A lei natural, para Cícero, não é escrita, mas faz parte da própria natureza
humana que define o que deve ser feito e impede o que não deve sê-lo. Tais leis
naturais devem ser reproduzidas nas leis positivas, seja no direito das gentes, seja
no direito civil. Kelsen43 salienta que, para Cícero, o autor do direito da natureza é
Deus, e encontramos também no filósofo romano o fundamento metafísico-religioso
da doutrina do direito natural.
Percebemos, então, que a lei natural é dada aos homens pelos deuses.
Observa Salgado que:
a vontade de Deus no estoicismo é de um deus impessoal, que não
coincide com o demiurgo platônico que ordena o mundo segundo as
idéias que lhe estão supra ordenados, nem com o Deus pessoal do
cristianismo que domina suas criaturas de modo absoluto.44
Cícero diferencia o direito natural, do chamado direito das gentes e do direito
civil. O direito das gentes consiste no direito comum a todos os povos, inclusive aos
romanos, em virtude do consentimento mútuo dos mesmos. O direito civil é
construído por cada povo em particular.
O direito natural dominou o campo teórico em todo o mundo romano na medida em
que se tornou o critério para o fundamento do direito positivo. “O direito positivo é
modificação do direito natural, feita com elementos arbitrários e acidentais.“45
1.2 O período teológico: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino
Através da doutrina cristã, foi introduzido o conceito de pessoa, aprofundado o
sentido da dignidade humana e a concepção da lei natural com a participação da lei
eterna na criatura racional. A humanidade modificou sua concepção de mundo a
partir do cristianismo.
42
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. 3a ed. São Paulo: Atena, 1983.. p.34.
KELSEN, Hans. A justiça e o direito natural. São Paulo: Pioneira, 1971. p. 96- 98
44
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 43.
43
21
O cristianismo, nos dizeres de Del Vecchio, não possui um significado jurídico
no que tange à sua construção ideológica. O cristianismo produziu efeitos tais no
mundo do Direito que acabou por aproximá-lo da Teologia. O Direito passou a ser
originada de uma ordem divina e assim também o Estado. Tal vontade divina nos é
apresentada não mais pela razão, ou por alguma ordem de caráter cósmico – idéia
que freqüentou a Antigüidade – mas pela revelação. Só após o Renascimento tais
relações entre o Direito e a religião serão revistas pelos juristas.
Para Tomás Antônio Gonzaga, o cristianismo é marco teórico fundamental
para a construção de seu pensamento a respeito do direito natural46. Apesar de ter
vivido e estudado nos séculos XVIII e XIX, sua formação foi absolutamente cristã,
católica e se prendeu em muito ao mundo medieval. Suas citações na obra referida
mencionam sempre passagens bíblicas e doutores da Igreja.
A começar pelos primeiros estudos em um colégio jesuíta, o poeta de Marília
de Dirceu se mostra um homem preso à fé para a justificação do direito natural. Ele
deseja escrever
um livro sobre o jusnaturalismo porque não havia algo neste
sentido em língua portuguesa47. Tal fato pode ser comprovado por este trecho no
prólogo de sua teoria sobre o direito natural:
O segundo motivo foi a necessidade que há de uma obra que se
possa meter nas mãos de um principiante, sem os receios de que
beba os erros de que estão cheios as obras dos naturalistas que não
seguem a pureza da nossa religião. Sim, não lerás aqui os erros de
Grotius, que dá a intender que os cánones dos Concílios podem deixar
de ser rectos; que estes e o Papado pretendem adulterar as primeiras
verdades. 48
Assim sendo, para a melhor compreensão do sentido dado por Gonzaga ao
direito natural é importante retornarmos a Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
Tais pensadores podem ser considerados como ícones da filosofia cristã e da
própria filosofia medieval. Por estes pensadores podem ser resgatados a influência
do cristianismo e seu impacto na humanidade após o fim da Antigüidade.
45
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 56.
Daí nossa crítica sobre sua pretensa filiação à Escola de Direito Natural Moderna.
47
Ver nota n° 4 desta monografia que indica que havia dois motivos para o tratado de Gonzaga ter sido escrito
por ele.
48
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 368.
46
22
1.2.1 Santo Agostinho
Santo Agostinho nasceu no norte da África na cidade de Tagarte, em 354 d.C.
Considerado o maior representante da chamada Patrística, Santo Agostinho se
interessou pela filosofia ao ler uma obra de Cícero. Na juventude também conheceu
a Bíblia mas esta não chamou sua atenção. Apesar das insistências de sua mãe, o
cristianismo só veio a converter Agostinho anos mais tarde.
Sua vida, até os 32 anos foi de um jovem mundano que aproveitava os
prazeres da vida e detestava o grego – o que o impediu de ler os clássicos na língua
original. A partir de seus vinte anos, foi se tornar professor de retórica, primeiro em
Tagaste e depois em Cartago. Posteriormente foi viver em Roma e de lá foi para
Milão, onde foi novamente professor de retórica.
Foi influenciado pelos estóicos, por Platão, pelo neoplatonismo e até pelos
adeptos do ceticismo. A infância como cristão não o impediu de sua primeira ligação
ao maniqueísmo, doutrina religiosa difundida nesta época. Aos 32 anos, depois de
conhecer a palavra de Paulo, se converteu à fé cristã.
Voltou, então, a Tagaste onde fundou uma comunidade monástica. Aos 36
anos, tornouse vigário de Hipona, na África, onde permaneceu até sua morte em
395 d. C.
Agostinho ficou conhecido por "cristianizar" Platão, fazendo vários paralelos
entre a parte idealista espiritualista dele (que diz existir um mundo transcendente) e
as sagradas escrituras, fazendo a distinção entre o corpo, sujeito à sorte do mundo e
a alma, que é atemporal., com a qual se pode conhecer a Deus. Antes de Deus ter
criado o mundo a partir do nada as Idéias eternas já estavam em sua mente. Deus é
bondade pura. Ele já conhece o que uma pessoa vai viver antes dela existir. Assim
apesar da humanidade ter sido amaldiçoada depois do pecado original, alguns
alcançarão a verdade divina, a salvação.
Disposto a fundamentar racionalmente a fé, para Santo Agostinho, sem a fé a
razão não é capaz de levar à felicidade49. A razão, serve de auxiliar da fé,
esclarecendo e tornando inteligível aquilo que intuímos.
49
Gonzaga se refere a esta felicidade de Santo Agostinho em seuTtratado na pág. 368. Tal como o filósofo
medieval, Gonzaga ressalta a felicidade verdadeira, somente alcançada em Deus.
23
A teologia deve muito ele e sua importância na Igreja Católica é sempre
ressaltada. Trata-se, portanto, de uma obra vasta, sendo que nos prenderemos ao
exame de sua concepção de justiça.
Segundo Luño Pena, o pensamento jurídico de Santo Agostinho sintetizou
toda a referida doutrina anterior e influenciou o pensamento posterior da chamada
Filosofia escolástica. Ele forneceu as noções fundamentais de ordem, justiça, lei e
Estado. Para o presente trabalho, nos restringiremos à sua discussão sobre o direito
natural.
Para Santo Agostinho, existe uma lei eterna de Deus que manda preservar a
ordem natural e proíbe qualquer tipo de perturbação à mesma. A lei natural é a
razão do homem, naturalmente gravada em seu coração
50.
A consciência reflete as
normas eternas que estão impressas em nosso coração. Há, então, uma lei eterna
proveniente de Deus que é revelada ao homem em sua consciência, que estabelece
o que deve e o que não deve ser feito.
Através da lei natural, também, o homem tende a se associar e viver em
comunidade51. O primeiro impulso natural do homem é procurar a paz, o segundo a
busca de segurança e o terceiro a se unir a outros homens em famílias e depois em
comunidade. A família, assim, é a primeira sociedade natural e dela surgirá – em
virtude de seu próprio crescimento – a cidade.
Por fim, é importante destacar em Santo Agostinho, que pela lei natural, o
homem não tem poder, nem autoridade sobre outro homem, mas somente sobre as
coisas e os animais. Por ser a imagem e semelhança de Deus, todo homem é livre e
igual52 perante os seus.
1.2.2 São Tomás de Aquino
São Tomás de Aquino (1227-1274) nasceu em Roccasicca, entre Nápoles e
Roma, de uma família nobre. Seguindo a tradição da época, entrou aos cinco anos
para o Monastério beneditino de Monte Casino. Aos 17 anos se tornou dominicano e
concluiu os estudos em Paris. Estudou Teologia e Filosofia e se dedicou ao ensino
e à fé cristã.
50
O conceito de lei natural em Gonzaga é bastante semelhante ao de Santo Agostinho.
AGOSTINHO, Aurélio (Santo). A cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Lemes. São Paulo: Editora das Américas,
1961. LXIX, parte VII.
52
Gonzaga também defende esta igualdade dos homens concedida por Deus pela sua natureza.
51
24
São Tomás é famoso por ter “cristianizado” Aristóteles, à semelhança do que
fez Agostinho com Platão. Ele transformou o pensamento desse sábio num padrão
aceitável pela Igreja Católica. Foi também um dos responsáveis pelo resgate do
filósofo grego no Ocidente de sua época.
Apesar de Aristóteles não ter conhecido a revelação cristã, como diz Tomás,
e de sua obra ser original, autônoma e independente de dogmas, ele estaria em
harmonia com o saber contido na Bíblia. São Tomás aplica o pensamento de
Aristóteles na teologia.
São Tomás de Aquino passou a vida em Paris e lá escreveu comentários
sobre a Sagrada Escritura e suas duas Sumas, que compõem de forma muito
especial a sua obra: a Suma contra os Gentios e a Suma Teológica.
São Tomás de Aquino pode ser considerado o grande doutrinador da Igreja
Católica, sistematizando de forma orgânica o pensamento cristão. Tratou de
diversos temas como a teologia, a filosofia, a metafísica, a antropologia, a ética e
construiu toda uma filosofia jurídica. Restringiremo-nos aos seus conceitos
relacionados à filosofia jurídica, especialmente àqueles que se ligam ao
jusnaturalismo.
Tal como Aristóteles contribuiu decisivamente para a doutrina jusnaturalista,
Tomás de Aquino em muito colaborou para os fundamentos mesma. Sobre a lei,
Aquino acredita que a mesma seja algo racional que move o ser humano para o
bem. Deus nos instruiu pela lei e pela graça. O autor cristão, em sua Suma
Teológica, classifica as leis em quatro tipos: a lei eterna, a lei divina, a natural e a lei
humana. A lei eterna é conhecida parcialmente pelo homem mediante suas
manifestações. Trata-se de sua manifestação a lei divina, na medida em que essa é
revelada aos homens através da Sagradas Escrituras. A lei natural pode ser
conhecida através da razão e a lei humana é criada pelo próprio homem.
A lei eterna é a lei promulgada por Deus que coordena todos os atos e
movimentos. Em tudo está tal lei, tudo rege e tudo ordena de forma que regula toda
a criação. Não está tal lei sujeita às vicissitudes a que as leis humanas estão porque
deriva da razão divina. A lei eterna é o princípio e o fim, uma vez que, “todo o
conjunto do universo está submetido ao governo da razão divina”53.
53
AQUINO, São Tomás (Santo). Suma teologica.. Madrid: La Editorial Católica, 1953-60. 16v. Questão 91, 1a
parte da 2a parte. p. 24.
25
A lei natural pode ser totalmente conhecida pelo homem através do uso da
sua razão e é a própria manifestação desta lei eterna. “A participação da lei eterna
pela criatura racional se dá o nome de lei natural.54”
As características da lei natural são a universalidade e a possibilidade de
mudança no caso concreto. “O jusnaturalismo tomista não vislumbra na natureza um
código imutável incondicionado e absoluto, mas uma justiça variável e contingente
como a razão humana. “55
A lei humana se fundamenta na lei natural. Aquela determina a ordem das
coisas humanas e depende da conformidade com a razão. Como a primeira lei da
razão é a natural, todas as leis humanas devem ser a sua expressão. Desta
maneira, o direito positivo deriva do direito natural sendo este o parâmetro para a
atuação do legislador.
O simples fato de uma lei positiva não estar de acordo com a lei natural não
justifica a desobediência ao que foi criado pelo homem; a desobediência só se
justifica se essa representar uma afronta à lei divina, a lei eterna conhecida pelo
homem: caso contrário a lei humana deve ser imperativamente obedecida.
Aquino ainda a define o homem como animal social. Enquanto Aristóteles
conceituou o homem como animal político, São Tomás o considera um ser voltado
para a vida em sociedade. O filósofo estagirita condicionou a condição humana à
sua participação nas decisões políticas o que exclui a mesma de escravos,
mulheres. Aquino estende a todos os homens, independente de sua condição, a
humanidade, pois a tendência à vida em social é comum a cada um de nós.
54
AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Questão 91, 1a parte da 2a parte. p. 28.
BITTAR, Eduardo C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e
tópicos conceituais. p. 200.
55
26
Capítulo 2
A Escola Moderna do Jusnaturalismo: os séculos XVII e XVIII
De São Tomás de Aquino à Escola Moderna do Junasturalismo,
ultrapassamos pelos menos 4 séculos. A humanidade neste período conheceu o
Renascimento, a Reforma Protestante e a Contra Reforma, a América e tantos
outros fatos, descobertas que transformaram a sua concepção sobre o Direito e seu
fundamento. Não poderemos indicar todos os que contribuíram para tantas
mudanças na história. Assim, vamos nos deter séculos XVII e XVIII e mais
precisamente na Escola Moderna de Jusnaturalismo. Tomás Antônio Gonzaga
afirmara pertencer a esta matriz de pensamento.
Pretendemos, então, a partir do Hugo Grotius, Thomas Hobbes e Samuel
Pufendorf – representantes da Escola Moderna do Jusnaturalimo – traçar as
características principais da mesma. Gonzaga em seu tratado, combate,
especialmente, esses autores, e daí a nossa escolha restrita aos três.
A Escola Jusnaturalista Moderna se distanciou por completo das concepções
aristotélica e tomista que predominavam sobre o direito natural. Em nada se
relacionando à Escola Espanhola de Vitorio e Suárez A partir do século XVII torna-se
mais nítida a separação entre direito e religião no que tange à justificação daquele.
Os juristas almejavam construir um sistema racional de normas de forma a não mais
fundamentar o direito em bases teológicas. Para Ferraz Júnior está na criação de
sistema a maior contribuição do jusnaturalismo moderno:
A teoria jurídica européia, que até então era mais uma teoria da
exegese e da interpretação de textos singulares, passa a receber um
caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura
dominou e até hoje domina os códigos e compêndios jurídicos.56
Para a maior parte dos autores referentes à Escola Jusnaturalista
Moderna, o direito natural está desvinculado de seu fundamento divino. A natureza
humana passou a ser concebida de maneira empirista e racional. O direito está
dividido em dois sistemas normativos diferenciados: o natural e o positivo. São,
pois, ordens distintas, a religiosa e a jurídica. Sobre esta necessidade de se pautar o
direito sob os domínios da razão em leis naturais, afirma Ferraz Júnior:
56
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica decisão, dominação. p.68
27
A redução das proposições a relações lógicas é pressuposto óbvio
da formulação de leis naturais, universalmente válidas, a que se
agrega o postulado antropológico que vê no homem não um cidadão
da cidade de Deus, ou, como no século XIX, do mundo histórico, mas
um ser natural, um elemento de um mundo concebido segundo leis
naturais.57
As diferenças são claras entre a escola clássica e moderna. Devemos
ressaltar principalmente que o direito natural, para a escola moderna jusnaturalista
passou a ter um conceito subjetivo. Diferentemente de Aristóteles, São Tomás ou
Agostinho, o direito natural não é mais um dado de forma objetiva apresentado pela
ordem divina. Ele deverá ser construído a partir da razão humana, pois o homem é
que se constitui como a base para todo conhecimento.
Segundo
Luño
Pena58,
são
quatro
as teses principais da
Escola
Jusnaturalista. A primeira diz respeito à natureza humana enquanto fundamento do
direito. A segunda se relaciona ao estado de natureza no sentido deste ser a
construção racional para explicar a vida em sociedade. Para explicar a origem do
Estado e do Direito, a terceira tese fundamenta o contrato social. Por fim, a Escola
defende os direitos naturais como inatos, invioláveis e imprescritíveis. Podemos,
então, resumir as idéias dos pensadores jusnaturalistas modernos nestas quatro
diretrizes principais: a natureza humana, o estado de natureza, o contrato social e
os direitos naturais.
Nos dizeres de Edgar da Mata Machado, os jusnaturalistas modernos são os
grandes adversários do conceito de direito natural. Reproduzindo suas palavras,
percebemos que o racionalismo como expressão do direito natural, é um primeiro
avanço para a concretização de um Direito Positivo:
Racionalizado, reduzido a conceito “inventado” pelo espírito sem
qualquer referências às circunstâncias e às situações concretas
históricas, fáticas, existenciais, da condição humana, o direito natural
dos jusnaturalistas estaria fadado, em breve, apenas iniciado o
século XIX, a ser completamente elidido pelos que não vêem outro
objeto para o Direito senão o estudo das normas originárias da
ordem estatal, expressa sob as mais diferentes formas.59
57
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica decisão, dominação. p. 68.
LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filosofia del derecho. p. 548.
59
MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao
estudo do direito. p. 76.
58
28
2.1 Hugo Grotius
Considerado o fundador da Escola Moderna do Jusnaturalismo 60, Hugo
Grotius nasceu em Delft, na Holanda no ano de 1583. Cursou Direito na
Universidade de Leyden e também estudou Letras. Já em 1615 se interessou por
conflitos de ordem internacional e foi para Inglaterra resolver uma pendência
comercial entre este país e o seu. Residiu ainda na França de onde precisou se
retirar, em 1621, em função das disputas políticas internas deste Estado. A partir de
1634 foi por dez anos, embaixador da Suécia em Paris. Morreu na Alemanha no ano
de 1645.
Grotius possuía grande interesse pelo direito internacional. Ele procurou
formular um sistema de normas entre os vários Estados de forma a serem válidas
em tempo de guerra e de paz. Tal sistema também deveria ser construído de
maneira diferente das normas positivas de cada Estado e independente das crenças
religiosas. Nem o Papa e nem o Imperador eram mais capazes de exercer o controle
nas relações internacionais neste dado momento histórico em face das lutas e
divisões religiosas e daí a busca de Grotius por um sistema alternativo para estas
relações. Este sistema alternativo para a resolução dos conflitos de ordem
internacional se basearia nas leis naturais. A Bíblia não poderia mais exercer este
papel normativo conciliador porque admitia interpretações diferentes, mas a lei da
natureza poderia ser a solução, na medida em que era a mesma para todas as
nações e todos os homens.
O conceito de direito para Hugo Grotius está desvinculado da Teologia. O
direito pode e deve ser demonstrado racionalmente. O direito é um pressuposto para
a vida em sociedade. Grotius acredita que o homem tende a uma vida social – a
partir de um instinto natural e teleológico – e para que a mesma possa ser
desenvolvida o direito precisa regulamentá-la. A partir destes elementos podemos
entender o novo sentido dado pelo autor ao direito natural.
Diferentemente das escolas jusnaturalistas anteriores, para Grotius o direito
natural existe e subsiste independente de Deus. Sua frase célebre: ”O Direito Natural
existiria mesmo que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas
60
Luño Pena discorda desta posição na medida em que defende que Grotius seguiu as orientações de seus
predecessores jusnaturalistas.
29
humanas”
61
que consagra esta independência, não quis dizer que o direito natural
não provinha mais de Deus. Grotius insiste ainda que as leis naturais estão escritas
nas mentes e nos corações dos homens por Deus, mas as normas de direito natural
persistem de forma autônoma à vontade divina, na medida em que são próprias do
homem. O fundamento, então do direito natural passa a ser a natureza social e
racional do homem, impressa e dada aos homens pelo Senhor.
O direito natural é caracterizado por Grotius como universal e imutável. Sua
força obrigatória deriva de Deus, que criou a natureza humana, porém a sua
imutabilidade nem mesmo Deus pode modificar.
Portanto, para o filósofo:
O direito natural é um ditame da razão que indica ter alguma coisa,
por sua conformidade ou não-conformidade com a própria natureza,
fealdade ou necessidade moral, donde estar proibida ou ordenada
por Deus, autor da natureza.62
Há ainda outro tipo de direito que se distingue do direito natural: trata-se do
direito das gentes. O direito das gentes não pode ser deduzido racionalmente como
o direito natural porque se origina do consentimento de todos os países. Todos os
povos possuem a liberdade para modificar essas regras. A força obrigatória para o
cumprimento do direito das gentes reside unicamente na adesão ao pacto firmado
entre as nações. O fundamento, então, para o direito internacional, é obrigatoriedade
dos pactos.
Partindo deste princípio da inviolabilidade dos pactos, podemos deduzir que
dele derivam a legitimidade dos governos e a impossibilidade do descumprimento
dos tratados internacionais. Grotius se apresenta também como um autor
contratualista, na medida em que, de forma empírica em admite a constituição do
governo com base em um pacto.
Gonzaga utiliza diversos conceitos de Grotius e em seu tratado poderemos
compreender o amplo significado deste pensador para o jusnaturalismo moderno.
61
GROTIUS, Hugo. In: BITTAR, Eduardo, C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito:
panorama histórico e tópicos conceituais. p. 222.
62
GROTIUS, Hugo. On the Law of War and Peace “Natural right is the dictate of right reason, shewing the
moral turpitude, or moral necessity, of any act from its agreement or disagreement with a rational nature, and
consequently that such an act is either forbidden or commanded by God, the author of nature.” Disponível
em:<www.cosntitution.org >. Acesso em 10 dez. .2002.
30
2.2 Samuel Pufendorf
Samuel Pufendorf nasceu em Chamnitz – cidade que se localiza no atual
território alemão – em 1632. Filho de um pastor luterano, Pufendorf se formou em
Teologia e Direito na Universidade de Leipzig , sendo o primeiro autor alemão que
separou racionalmente a Filosofia da Teologia. 63 Sua distinção
ultrapassou o critério de normas referentes ao sentido e à finalidade
desta vida, em contraposição às referentes à outra vida, distinguindo
as ações humanas em internas e externas. O que permanece
guardado no coração e não se manifesta exteriormente deve ser
objeto da Teologia Moral. 64
Foi embaixador da Suécia na Dinamarca e, por motivos políticos, ficou preso
por aproximadamente oito meses. Neste período, o autor escreveu sua primeira
obra, em 1660, inspirado em Hobbes e Grotius. Para Del Vecchio e Luño Pena, o
pensamento de Pufendorf é uma síntese destes dois filósofos.
Assumiu a cátedra de Direito Natural e da Gentes – a primeira criada no
ambiente universitário – na Universidade de Heidelberg.
Também lecionou na
Faculdade de Direito da Suécia. Seu prestígio se deu, especialmente, com o seu
Tratado de Direito Natural e das Gentes publicado em 1672. Faleceu em 1694,
depois do reconhecimento acadêmico. Tomás Antônio Gonzaga se refere muito a
este tratado de Pufendorf e daí a necessidade de conhecer suas principais idéias
sobre o jusnaturalismo.
Contrariando Hobbes, para Pufendorf o estado de natureza, anterior à vida
em sociedade, se caracteriza por um clima de paz entre os homens iguais e livres.
Só que tal estado é frágil na medida em que é construído sob uma relativa
segurança. A sociedade nasce de um contrato entre os homens que passam a se
submeter somente à autoridade do Estado para não viverem nesse ambiente
inseguro existente no estado de natureza.
Pufendorf ressalta a origem das leis naturais no próprio homem bem como a
sua sociabilidade natural:
A natureza do homem, então, é de tal modo constituída que a raça
humana não pode estar segura sem vida social e a mente parece ser
capaz de idéias que servem a esse fim. (...) Segue-se daí que Deus
63
64
LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filosofia del derecho. p. 547.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 68.
31
quer que o homem use para a preservação de sua natureza as
forças que existem dentro de si pelas quais ele está consciente de
superar as bestas; e que Deus também quer que a vida humana seja
diferente da vida sem lei tal como a dos animais. Já que ele não
pode alcançar isto senão pela observância da lei natural, é também
compreensível que ele seja obrigado por Deus a observá-la isto
como meio que o próprio estabeleceu expressamente para o homem
alcançar esse fim (...) 65
Assim, diferentemente de Hobbes, e se aproximando de Grotius, Pufendorf
acredita na sociabilidade natural do homem. Trata-se de um princípio regulativo
natural de se associar que leva o homem a viver em comunidade em busca de sua
própria sobrevivência.
Devemos apontar como importante contribuição de Pufendorf a criação de um
sistema completo e elaborado para a Escola de Direito Natural. A este respeito
Tércio Ferraz Júnior, sintetiza:
Pufendorf coloca-se num ponto intermediário do desenvolvimento do
pensamento jurídico do século XVII, podendo ser considerado um
grande sintetizador dos sistemas de sua época, dele partindo, por
outro lado, as linhas sistemáticas básicas que vão dominar,
sobretudo, o direito alemão até o século XIX. 66
Importante ressaltar, por fim, que Pufendorf divide as normas de Direito
Natural em absolutas e hipotéticas. Sobre tal distinção, afirma Tércio Ferraz Júnior:
As primeiras são aquelas que obrigam, independentemente, das
instituições estabelecidas pelo próprio homem; as segundas, ao
contrário, as pressupõem. Esta Segunda classe de normas é dotada
de certa variabilidade e flexibilidade, possibilitando ao Direito Natural
uma espécie de adequação à evolução temporal. A idéia de sistema
envolve, a partir daí, todo o complexo do direito metodicamente
coordenado na sua totalidade ao Direito Natural.67
“Mans nature, then, is so constituted that the human race cannot secure without social life and the human mind
is seen to be capable of ideas which serve this end. It follows that God wills that a man should use for the
preservation of his nature the powers within him in which he is conconscious of surpassing the beasts; and he
also wills that human life be different from the lawless life. Since he cannnot achieve this except by observence
of natural law, it is also understood that he is oligated by God to observ is as the means which God Himself has
established expressly to achieve this end” PUFENDORF, Samuel. On the duty of man and citizen Acoording to
Natural Law Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.36.
66
FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 68.
67
FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 69.
65
32
2.3 Thomas Hobbes
Thomas Hobbes nasceu em Wesport, na Inglaterra em 1588. Estudou na
Universidade de Oxford e se dedicou ao ensino privado de vários jovens nobres. Em
seus estudos adquiriu profunda aversão à Escolática. Viveu na França, onde
conheceu Descartes e se tornou professor de matemática. Em 1651, voltou para a
Inglaterra e continuou a escrever até sua morte em 1679.
Este autor é considerado por parte da doutrina defensor do Estado absoluto e
do ser humano enquanto expressão única do egoísmo.
Para compreendermos o sentido dado por Hobbes ao direito natural, teremos
que perpassar filosofia política e, a partir dela, buscar sua contribuição ao
jusnaturalismo.
Inicialmente, entende-se por estado de natureza uma situação não-histórica
pensada para auxiliar o estudo da questão da legitimidade do poder dentro da
sociedade. Busca-se compreender o comportamento do homem fora do ambiente
social para com isso perceber os motivos da constituição da própria.
68
O estado de guerra permanente surge porque cada homem é um adversário
potencial do outro que tenta saciar seus apetites, paixões e garantir a sobrevivência
biológica às custas da sua própria força. Trata-se de um verdadeiro embate entre
iguais. Neste estado o homem não tem como desejar, ou seja planejar seu futuro,
porque deve se preocupar com a sua sobrevivência estando em constante risco pela
concorrência de outros que também tentam sobreviver usando toda a força, sendo
que os recursos para tanto escassos
Nesta guerra permanente, o choque entre os homens é inevitável, pois a
única medida do direito de cada um é a lei do mais forte. Cada homem procura sua
auto-conservação e proveito próprio dentro de um reino dos instintos e das paixões.
Este é o quadro que se estabelece no estado de natureza. O resultado final deste
estado de guerra permanente é o extermínio da humanidade.
68
Para Hobbes, o homem no estado de natureza é movido pela sua própria força, na tentativa de saciar os seus
apetites e sobreviver. Apetite pode ser definido como tudo que se quer sem haver a possibilidade de espera para
se obter. Força pode ser entendida como tudo aquilo que pode aumentar a potência humana. O homem precisa
obter certas coisas, mas está entregue a si mesmo porque não mantém laços sociais. Nesse estado de natureza o
homem só pode obter aquilo que sua força permite ter e guardar. O homem neste estado é pura paixão, na
medida em que vive para a satisfação do imediato.
33
O estado de natureza de Hobbes parece paradoxal, porque o ser humano se
encontra na sua maior potência, não sendo exercido nenhum controle sobre seus
atos. Os homens são livres e iguais nesta luta por todas as coisas e pela
sobrevivência. Não há espaço para se pensar no futuro porque não existe a
possibilidade de agir ou transformar a realidade. Não há vencedores nesta guerra,
porque, ao final dela os homens se destroem.
Para se evitar a destruição da humanidade entra-se na sociedade através do
contrato social. “A transferência mútua de direitos é aquilo que se chama contrato.” 69
O homem hobbesiano descrito no estado de natureza não desaparece com a
civilização. Na verdade, com a constituição da sociedade, aquele permanece
adormecido ou controlado pelas instituições e leis da vida civilizada. Mas, o homem,
movido pelas paixões do estado de natureza, pode aflorar a qualquer momento
porque, continua dentro do ser humano que vive em sociedade.
A saída deste estado de natureza está ligada à capacidade do homem de
perceber que está limitado no estado de natureza, pois não há segurança para que
se planeje o futuro. A luta está restrita ao presente e à sobrevivência biológica. E
todos os homens lutarão para alcançar esse mesmo objetivo com a força que cada
um possui.
Se existe uma enorme possibilidade de um indivíduo isolado não conseguir
meios (e esses são escassos) para sua sobrevivência biológica, e se existem outros
homens dispostos como ele a este mesmo objetivo, a morte desse passa a ser
visualizada como a sua. O homem passa a temer a morte violenta porque ela pode
acontecer a qualquer um. E a razão, começa a procurar uma forma de sair deste
estado para que a vida do ser humano possa ser preservada.
A presença da racionalidade no estado de natureza pode ser percebida na
presença das leis naturais. Sobre o que seja o direito de natureza, Hobbes define:
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam de ius
naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio
poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria
natureza, ou seja de sua vida; e consequentemente de fazer tudo
aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim.70
69
70
HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1994. (Os Pensadores). p.115.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. (Os Pensadores). p.113.
34
A lei de natureza, em Hobbes, é
um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual
se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou
privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que
pense poder contribuir melhor para preservá-la. 71
Percebemos que as leis naturais derivam da razão humana e visam,
especialmente, a preservação da vida. As leis naturais, então, para Hobbes,
acompanham a natureza humana e conduzem o mesmo a buscar um estado de paz.
A partir da consciência adquirida dessa necessidade da saída do estado de
natureza, todos os homens, em comum acordo, optam por alienar seus direitos
aparentemente plenos e pactuam que não se submeterão à morte violenta.
Para Hobbes, quem garante o contrato é o Leviatã. A garantia do pacto não
depende de um homem só, mas da adesão de todos, de forma que nenhum homem
se julgue responsável pelo cumprimento do mesmo. O Leviatã pode ser entendido
como uma instância superior, a lei fundadora da civilização, mas o que importa é
destacar que este só garante que a morte dos homens não será violenta.
71
HOBBES, Thomas. O Leviatã. In: Coleção Os pensadores; Hobbes. p.113.
35
Capítulo 3
O Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga
Depois
dos
dois
capítulos
a
respeito
da
perspectiva
histórica
do
jusnaturalismo, devemos tentar agora encontrar o sentido dado por Gonzaga ao
tema. Para isso, analisaremos neste capítulo seu Tratado de Direito Natural. Nesta
análise, pretendemos estabelecer uma primeira parte que investiga as condições em
que o Tratado foi publicado e em uma segunda parte buscar reconstruir o sistema do
autor.
3. 1 Como era Gonzaga e como era Coimbra por volta de meados do século
XVIII
Tomás Antônio Gonzaga fora aprovado bacharel em leis em 6 de junho de
1766. Ele saiu de Coimbra com o título de bacharel formado o que o permitia o
exercício profissional da advocacia e o acesso à magistratura Em março de 1768
passou a assinar Dr. Gonzaga, pois também alcançara o título de doutor nesta
data.Adelto Gonçalves aponta as seguintes preferências e características de nosso
poeta ao deixar Coimbra:
Ao deixar Coimbra, era um jovem de 23 anos, estatura ordinária e
fisionomia clara animada por dois olhos azuis e penetrantes. Já
levava o gosto pela Antigüidade que marcaria a sua poesia. (...) Se
também cultivava Camões, não deixava de admirar Miguel de
Cervantes.72
Gonzaga se encontrava em pleno arcadismo literário, e no ano em que deixou
Coimbra, o ministro abolira o Índex Jesuítico que impedia a importação de obras
gregas e latinas e a circulação de numerosos clássicos portugueses. Substituindo
este Índex, fora criada a Real Mesa Censória, que possuía um espírito bem mais
liberal.
“Portugal por aqueles tempo vivia uma atmosfera artificial como se o país
estivesse separado da Europa por léguas e léguas.”73
Em outubro de 1770,
Gonzaga estava em Lisboa, quando, em uma grande fogueira, foram queimadas
72
73
GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do Iluminismo. p. 70.
GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do Iluminismo. p. 71.
36
obras de Voltaire, Bayle, Rosseau e outros que eram considerados inimigos da
religião e defensores do ateísmo.
Em 1773, Tomás Antônio Gonzaga resolveu se candidatar à uma cátedra
acadêmica na Universidade de Coimbra. Para tal empenho, escreveu o Tratado de
Direito Natural, dedicado ao Marquês de Pombal. Lembramos que o pai de Tomás
Antônio, João Bernardo Gonzaga, também ligado à área jurídica e à magistratura,
pertencia ao “círculo íntimo dos conselheiros de Pombal”
74,
o que poderia lhe
facilitar o ingresso nesta Universidade.
O trabalho de Gonzaga aparecia com um certo atraso, pois apresentava como
novidade um tema já bastante conhecido e discutido. No entanto, devemos
considerar que a circulação de idéias na Europa era bastante lenta e os autores
citados por ele se encontravam ainda vivos. No seu prólogo, ele reclama da falta de
obras sobre o jusnaturalismo em sua língua. Tal reclamação confirma esta lenta
circulação de idéias, na medida em que, no século XVVIII, há uma certa carência de
publicações sobre um assunto corrente em língua portuguesa.
Importante salientar ainda que o poeta nos colocou em dia com os principais
autores da doutrina ligada ao direito natural. Temos, então, uma obra que se propôs
a investigar um tema de grande valia para meio jurídico com a defesa de
determinados argumentos que já então não eram os mais recentes. O que nos
parece contraditório, então, é que seu Tratado que se dizia filiado à Escola Moderna
de Jusnaturalismo defendia idéias que não pertenciam a ela.
A dedicatória ao Marquês de Pombal talvez possa esclarecer estes tempos de
Tomás Antônio Gonzaga e de seu Tratado. Vejamos, primeiramente, os termos
desta dedicatória no que tange ao espírito renovador do Marquês:
Também, Senhor, também, me estimulou o espírito da gratidão.
Todos sabem ser V.Exa. aquele Herói, que, amante da verdadeira
ciência e desejoso do crédito dos seus nacionais, os estimulou aos
estudos dos Direitos Naturais e Públicos, ignorados se não de todos,
ao menos dos que seguiam a minha profissão, como se não fossem
sólidos fundamentos dela. 75
74
MAXWELL, Keneth. A devassa da devassa: a inconfidência mineira, Brasil - Portugal, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 123.
75
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 362.
37
Coimbra foi reformada na época do Marquês para aproximá-la do restante da
Europa e evitar a decadência do ensino superior. Sobre esta reforma devemos inferir
que a prática do pombalismo, por si só, se moviam entre avanços e recuos em
relação ao antigo e o moderno – como verificamos no próprio Tratado de Direito
Natural. Gonzaga pretendia estar atualizado com os autores jusnaturalistas deste
momento – e ele o faz, porém se entrega a uma série de idéias que não mais eram
aceitas.
A rigor os efeitos desta reforma passaram a ser vistos a partir de 1770:
Foram criadas as faculdades de Filosofia e de Matemática e
remodeladas outras, como a de Medicina, que passou a exigir cinco
anos de estudos. Matemática ficou com as cadeiras de Ciências
Físicas e Matemáticas, Álgebra, Astronomia e Geometria. Foram
criados o Museu de História Natural, o Observatório Astronômico, o
Jardim Botânico de Coimbra, a Oficina Tipográfica e o Gabinete de
Física, que foi confiado ao italiano Domingos Vadelli, doutor pela
então Universidade de Pádua. 76
Tal renovação em muito entusiasmou os mais cultos, que pretendiam ver
Coimbra de acordo com o século e Portugal sem os vestígios dos atrasos
provocados pelos jesuítas. Sobre este combate entre jesuítas e Pombal importante
ressaltar que o combate era de caráter político e não religioso, como acentuado por
Caio Boschi77. Não se tratava, então, de uma luta contra a religião católica ou a
ordem dos jesuítas enquanto promotoras da fé. O combate era contra o poder
político que a Igreja, através, especialmente, dos jesuítas exerciam em Portugal,
especialmente, antes de Pombal.
A candidatura de Tomás Antônio Gonzaga à cadeira de Direito Pátrio, em
1773, em muito se deve a este clima de reforma e mudança que surgiu dentro da
Universidade a partir deste momento. A aspiração à cátedra se limitou ao Tratado,
já que o Marquês de Pombal não autorizou a sua publicação.
Tomás Antônio era um bacharel que não tomara ainda conhecimento de
Rousseau, publicado em 1762, nem mesmo das idéias de Jonh Locke de um século
antes mas como citar também esses filósofos em uma época em que seus livros
76
GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues
Lapa. p. 72.
77
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São
Paulo: Ática, 1986. p.47.
38
ardiam na fogueira da Mesa Real Censória? Podemos ainda afirmar que era
extremamente perigoso defender idéias mais recentes que proclamavam os direitos
individuais. Gonzaga se apresentou como um jusnaturalista contrário à esta
tendência revolucionária.
Sobre a dedicatória a Pombal havemos de ponderar que em muito Gonzaga
pretendia agradá-lo. O Marquês não era um defensor do absolutismo total e não
ignorava os avanços da Ilustração. O poeta Gonzaga construiu um Tratado onde ao
rei cabia exercer o poder, porém não deveria se tornar tirano afirmando também a
superioridade do Direito Pátrio, ao lado do Direito Natural e das Gentes, ou seja a
primazia da razão. Há mostras do Iluminismo em seu pensamento quando diz que
“todos os homens são iguais e têm direito a que outro não os sujeite.” 78
A respeito do exercício do poder real, este deveria ser, em sua opinião,
superior inclusive ao do Papa e ao dos clérigos. Trata-se de um mero oportunismo
de Gonzaga já que durante a década de 1760, Dom José79 lutara contra o Papa e
chegara até a romper relações diplomáticas com a Santa Sé. Sobre a relação entre
a Igreja e o Estado pombalino neste período, considera Caio Boschi:
Pombal direcionou sua ação no sentido de reforçar o aparelho de
Estado, no firme propósito de eliminar todas as forças de
contestação da autoridade estatal. Para tanto, do ponto de vista
político, era imprescindível submeter a Igreja à autoridade central,
pondo termo à hegemonia eclesiástica sobre a sociedade civil. 80
Neste sentido de reforço ao poder estatal frente à Igreja por Pombal, o
combate aos jesuítas aconteceu porque esses religiosos representavam “a peça –
chave da vida religiosa e política de Portugal, isto é o aparelho ideológico
dominante, contra o qual voltar-se-ia toda a carga da administração de Pombal.”81
Na opinião do poeta, competiria exclusivamente, ao soberano a decisão de
queimar determinados livros82. Percebemos, portanto, o caráter até certo ponto
78
GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues
Lapa. p. 500.
79
Dom José era rei de Portugal sendo sua sucessora dona Maria I, a Piedosa para os portugueses e a Louca para
os brasileiros.
80
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. p.46.
81
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. p.47.
82
GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues
da Lapa. p. 511.
39
interesseiro de Gonzaga que escreveu um texto que ia ao encontro dos proclames
do Marquês de Pombal, que em muito se portava como um déspota esclarecido.
Assim sendo, temos as condições em que o Tratado foi concebido em uma
época contraditória governada por um Pombal que, ora pretendia colocar Portugal
sob os auspícios das idéias iluministas ora insistia na construção de um poder
concentrado nas mãos de um único soberano. Gonzaga, em sua tentativa de chegar
à Coimbra, é reflexo de tudo isso. Pretendia escrever algo que agradasse àquele
que promovia a reforma na Universidade e que, de qualquer maneira, lhe
interessava. E, ainda, persistia em uma espécie de absolutismo cujo fundamento o
Direito Natural estava vinculado ao poder divino.
Adelto Gonçalves levanta duas hipóteses quanto à publicação do Tratado de
Direito Natural. Em uma primeira hipótese, Gonzaga fora recusado, mas não
isoladamente, pois todos os candidatos que obedeceram ao novo regimento e
apresentaram teses para obter acesso às cadeiras acadêmicas foram preteridos.
Colocar Grotius, Pufendorf, Heinécio em seu Tratado pode ter causado uma grande
polêmica em Coimbra com a crítica interna ao seu avanço, o que provocou a sua
natural reprovação.
A segunda hipótese, corroborada por Márcio Jardim83, Joaci Pereira Furado84,
é de que o texto em questão não foi sequer lido pelo Professor Joaquim Vieira
Godinho, catedrático de Direito Pátrio, cujo substituto era Pascoal José de Melo
Freire dos Reis, e muito menos pelo ministro Carvalho e Melo, vulgo Marquês de
Pombal85, porque não se encontrava escrito em latim como era obrigatória na época
para livros e teses.
Com o insucesso na sua entrada na Universidade de Coimbra, Gonzaga
deixou seu Tratado de lado e passou a advogar em Lisboa. Em 1778, aos 34 anos, o
poeta passou ao cargo de juiz de fora em Beja, onde permaneceu até 1781.
Coincidentemente, só depois que Pombal deixou de ocupar o poder, Tomás Antônio
Gonzaga conseguiu um lugar de destaque dentro da magistratura.
83
JARDIM, Márcio. Inconfidência mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989.
p.72.
84
FURTADO, Joaci Pereira. “Cronologia de Tomás Antônio Gonzaga”, In: Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas
chilenas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.17.
85
Marquês de Pombal permaneceu no poder até 1777, por 22 anos consecutivos.
40
Como juiz de fora, o poeta alcançou posição de destaque na comunidade.
Tinha rendas anuais elevadas e um cargo onde possuía maior autonomia que os
juízes ordinários.
Em 27 de fevereiro de 1782, Gonzaga foi nomeado ouvidor – geral de Vila
Rica. Ele veio para as Minas Gerais para exercer o cargo civil de maior importância
no Brasil Colônia - a Ouvidoria.
3.2 Sobre o sistema elaborado no Tratado de Direito Natural
Depois de vistas as condições em que O Tratado de Direito Natural foi
publicado, bem como a sociedade portuguesa e o ambiente universitário de Coimbra
naquele
momento,
podemos
compreender
o
sistema
imaginado
por
Gonzaga.Entendemos por sistema as partes que compõem o Tratado e seu
conteúdo.
O Tratado de Direito Natural está dividido em três partes. A primeira parte é
denominada “Dos princípios necessários para o direito natural e civil”, a segunda
“Dos princípios para os direitos que provém da sociedade cristã e civil” e por fim a
terceira e ultima que é “Do direito, da justiça e das Leis”. Vamos ver, resumidamente,
cada uma delas.
3.2.1 Dos princípios necessários para o direito natural e civil
Na Introdução do Tratado nos deparamos com a primeira definição dada por
Gonzaga sobre o direito natural:
A colecção pois destas leis, que Deus infundiu no homem para o
conduzir ao fim que se propôs na sua criação, é ao que vulgarmente
se chama Direito Natural, ou lei da natureza, porque elas nos são
naturalmente intimadas por meio do discurso e da razão. 86
Temos, então, o que Tomás Antônio chama de direito natural e sua citação
acima nos mostra que Deus imprimiu no coração dos homens leis naturais. Ainda na
Introdução, o autor também define o que considera como Direito Civil:
41
como no estado natural não podiam haver estas outras leis, pois a
Natureza, que a todos fez iguais, não deu a uns o poder de
mandarem nem pôs nos mais a obrigação de obedecerem, aprovou
Deus as sociedades humanas, dando ao sumo Imperante todo o
poder necessário para semelhante fim. A colecção das leis, que
provém deste direito, é ao que chamamos de Direito Civil, pois que
elas não provém da Natureza, que obriga a todos como homem, mas
só da sociedade, que obriga aos que nela vivem, como cidadões.87
Nesta parte, Gonzaga pretende apresentar “os princípio de um e de outro
direito”
88.
E o capítulo que a inaugura é Da Existência de Deus. Tal como as leis da
natureza foram impressas no coração dos homens – a transcendência do direito
natural também é divina – a organização da sociedade também depende desta
premissa.
A existência de Deus é um fato que não pode ser negado de forma alguma:
“Isto é uma verdade que qualquer um alcança.”89 Para continuar sua discussão
sobre tal verdade, Gonzaga se utiliza dos antigos, dos modernos e até dos povos
bárbaros para reafirmar sua convicção. Sobre sua reflexão neste tema, interessante
passagem pode nos revelar uma face do autor muito conhecida nos tempos da
Inconfidência:
se apenas vemos um relógio, ou outra máquina, não a podemos
atribuir ao acaso, mas logo conhecemos que houve um artífice que a
fabricou, como poderemos olhar para a máquina do mundo, tão
superior a todas, sem que venhamos no conhecimento que havia
haver um autor sumamente sábio e sumamente poderoso que a
fizesse?90
Deus foi comparado por Tomás Antônio a uma artífice que fabricou a
máquina do mundo. Esta concepção de Deus em muito se assemelha à apregoada
pela Maçonaria. Adelto Gonçalves indica que o poeta era filiado à Maçonaria, porém
não se sabe exatamente a partir de quando se de deu tal ingresso. A rigor, a
primeira organização paramaçônica portuguesa foi fundada em 1779, em Lisboa, e
se chamava Academia Real das Ciências. O biógrafo de Gonzaga acredita que o
86
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 368.
87
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 369.
88
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 369.
89
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 373.
90
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 375.
42
poeta não participou desta fundação, pois estava neste momento em Beja. Mas,
possivelmente, acompanhou estas notícias da Academia e as anteriores que se
referiam à doutrina maçônica. A sua segunda convicção é da existência do direito
natural. Negá-lo não é menos nocivo à sociedade humana que a péssima doutrina
dos ateus.”91 As leis naturais provém de Deus, daí sua necessidade de provar a
existência Dele.
Para a comprovação da existência do direito natural, o poeta se fez valer de
Grotius e do apóstolo Paulo. A partir daí, a questão do livre arbítrio emerge para
continuar a construção de idéias de seu Tratado. Consiste o livre arbítrio na
faculdade humana de agir para o bem ou para o mal. Deus não poderia imputar à
sua criatura um ato que não lhe fosse de sua vontade. Na liberdade do homem e no
livre arbítrio encontramos a finalidade da lei, que é
fazer-nos “merecedores do
prêmio e do castigo por meio dela; pois se Deus não se propusesse semelhante fim,
escusava de nos dar a razão. (...)”92
Sobre o conflito de normas, esse deverá ser assim solucionado:
Sendo a lei a norma das acções, o que não só se deve entender da
lei natural, mas também da humana, é necessário examinar-se com
qual das leis se deverá conformar a nossa ação, nos caso em que
concorram duas totalmente opostas. Ninguém duvida que, se uma for
de Deus e a outra do soberano, devemos obedecer em primeiro lugar
à de Deus; pois sendo ele superior ao legislador humano, é bem
certo que não haverá lei humana, que possa revogar o menor dos
preceitos divinos 93
Citando a regra de Pufendorf, toda ação deve ser atribuída ao seu respectivo
autor. A partir desta regra geral, não poderão ser imputadas as ações humanas que
se fazem sem o lume da razão e sem vontade94.
No último capítulo desta primeira parte, temos o princípio do direito natural. A
vontade de Deus é o princípio do Direito Natural para Tomás Antônio Gonzaga, já
que quem o criou foi o próprio Senhor. Neste capítulo, Gonzaga combate Grotius e
sua frase célebre, de que se não houvesse Deus, ainda assim haveria Direito
91
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 379.
92
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 391.
93
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 419.
94
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 423.
43
Natural em função da razão humana. Sobre isto, o poeta afirma: “Esta doutrina
repugna à piedade, pois é supor que além de Deus há outro ente, a quem tenhamos
obrigação de obedecer, e com quem Deus tivesse a necessidade de se
conformar”.95 Grotius e Pufendorf estabeleceram como princípio do Direito natural a
sociedade e a natureza humana. Gonzaga os considera ateus, inimigos da religião
por colocarem como princípio outro que não Deus e sua vontade.
Lourival Gomes Machado, critica Gonzaga nas suas referências a trechos de
Grotius porque o poeta se utiliza dos mesmos de forma errônea. A começar porque
Grotius não é uma ateu, mas antes de tudo um crente cristão, e prossegue:
Novamente, Gonzaga toma no texto de Grotius apenas aquilo que
lhe abrirá oportunidade para refutação com que, na verdade visa
menos comentar o trecho referido do que expor suas próprias idéia.
(..) Ora, no caso, o fato de citar isoladamente e sem referência,
apenas o terceiro sentido da palavra, assume certa gravidade, pois o
texto de Grotius não é de molde a admitir tal mutilação, posto que se
encadeiam e se completam as várias interpretações do termo.96
E estas imprecisões vão se suceder durante todo o Tratado.
3.2.2 Dos princípios para os direitos que provém da sociedade cristã e civil
Tomás Antônio escreve na segunda parte sobre o que hoje podemos chamar
de política. Ele pretende determinar os princípio necessários para o estabelecimento
tanto da sociedade cristã como da sociedade civil. E é sobre a sociedade cristã que
ele começa a discorrer primeiramente.
O poeta inicia sua discussão sobre a sociedade cristã defendendo a
necessidade da religião revelada. Sendo necessária a revelação divina ao homem,
esta se concretiza no cristianismo. Cristo se revelou como verdadeiro Deus e sua
doutrina se expandiu por todo o mundo. Nestas colocações sobre o cristianismo,
Gonzaga se mostra com um domínio total sobre a matéria. Há todo um
conhecimento prévio sobre a fé, as bases da religião católica e suas páginas
transpiram a própria religiosidade do poeta. Não nos esqueçamos que seus estudos
95
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 433.
96
MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Editora da Universidade de São
Paulo, 1968. p. 41.
44
secundários foram feitos entre os jesuítas, o que lhe permitiria estas inúmeras
citações bíblicas e teológicas sobre a sua religião.
A origem da Igreja Católica em Cristo, via São Pedro, a torna a única legítima
para Gonzaga. Sobre isso, discorre da seguinte forma:
Provados que não pode haver mais do que uma só igreja, pois não
podem haver diversos sacramentos e diversa doutrina, nem mais do
que um só sacrifício e uma só cabeça, havemos de concluir que as
igrejas que seguem a religião com erros, e por isso separadas do
grêmio da verdadeira igreja Romana, não são verdadeiramente
igrejas de Cristo, mas sinagogas do Anticristo, como lhes chamam S.
Hilário e outros.97
A Igreja sendo a herdeira de Cristo na Terra é assistida pelo Espírito Santo o
que a permite ser considerada como uma instituição santa. Para sua organização,
Gonzaga trata da mesma de modo a nos revelar que o poder do Papa é inferior ao
do Concílio98.
Na constituição do que seja a sociedade civil e de seus princípios, temos,
basicamente, uma exposição sobre o governo e seu exercício. Ainda no início, após
citar as opiniões de Pufendor, Heinécio, Bodino e Hobbes, Gonzaga volta à
providência divina de Santo Agostinho em sua Cidade de Deus como real motivação
da vida em sociedade civil:
É o homem o mais feroz e soberbo dos animais: ora quantos seriam
os homicídios e por que leves causa não se praticariam a ser cada
um juiz das suas próprias ofensas e árbitro dos seus próprios
desagravos. Daqui se segue que a sociedade civil, posto que não
seja mandada por Direito Natural, de forma que digamos que o
quebram os que vivem sem ela à maneira dos brutos, é contudo
sumamente útil e necessária, para se guardarem não só os preceitos
naturais que dizem respeito à paz e felicidade temporal, mas também
para se cumprirem as obrigações que temos para com Deus, porque
nem a religião pode estar sem uma sociedade cristã, nem esta
sociedade cristã sem uma concórdia entre os homens, nem esta
concórdia se poderá conseguir sem ser por meio de uma sociedade
civil.99
97
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 456.
98
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 460.
99
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 481.
45
A sociedade civil se constituiu como base do consentimento dos homens e da
concretização da vontade de Deus.
O povo se submete ao monarca e a ele deve obediência tal como deve
governá-lo bem e defendê-lo. O poeta também critica a Democracia, sendo esta a
pior de todas100 qualidades de uma cidade. A experiência romana aqui é posta como
a prova do declínio democrático. Questiona também a aristocracia com base em
seu conhecimento das decisões jurídicas:
a experiência nos ensina que muitas vezes se propõe em um tribunal
uma matéria, sem que se possa decidir, já porque os juízes são
diversos e por isso na verdade disconformes os votos, já porque as
paixões e interesses de uns fazem que estes alucinados embaracem
a execução dos sentimentos, que os outros tem santos e
necessários. Daqui segue ser a Monarquia melhor forma de governo
não só por ser mais pronta, mas também por se evitarem os
incômodos que se experimentam na aristocracia (...). 101
Concordando com São Tomás, Santo Agostinho, Aristóteles, Sêneca, Tomás
Antônio aposta que somente um rei é capaz de exercer da melhor maneira o
governo sobre uma sociedade102. Ele defende uma monarquia divina na medida em
que Deus aprova e confirma título de soberano ao rei. Todo o poder emana, como é
dito na epístola aos em Romanos103, do Senhor. Com tal justificativa, temos que ao
povo compete apenas a faculdade de eleição, além da obediência e respeito. Ele
ainda reafirma o poder sagrado do rei em virtude de Deus e a sua respectiva
sacralidade que subordina seus súditos.
A concepção de Gonzaga não é de um sistema absolutista total.
Discordando de Maquiavel, isto não é dizer que o rei pode fazer tudo que lhe
parecer.
104
O rei não pode ser tirano porque nada mais é do que “um ministro de
Deus para o bem.”105 Desta sua limitação do poder real podemos considerar que o
poeta vai ao encontro dos ideais do pombalismo sobre o assunto. Há uma defesa do
100
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 484.
101
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 485.
102
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 487.
103
Rm 13, 1-2.
104
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 493.
105
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 494.
46
absolutismo real, porém com moderação, uma espécie de despotismo esclarecido
apregoada pelo Marquês de Pombal nos idos do século XVIII.
Podemos, agora, compreender porque ele estava próximo à segunda
escolática na medida, em que defendia uma monarquia não despótica de origem
divina. Em sua opinião, o governante não poderia fazer tudo, devendo respeitar as
leis, as diferenças de direito e as hierarquias havidas no interior da sociedade. O
monarca necessitava procurar a felicidade do Reino e repartir com justiça prêmios e
castigos.106
Havemos apenas de fazer uma breve observação no tocante ao pensamento
político de Tomás Antônio ora visto e uma possível ligação entre o mesmo e sua
atuação no levante da Inconfidência Mineira. A historiografia tradicional atribuiu a
Gonzaga a função de constitucionalista da nova República Mineira que seria
inspirada107, especialmente, nos ideais dos fundadores norte-americanos. Com seu
conhecimento sobre as leis era a ele108 que competiria escrever a Constituição do
Estado Mineiro, então separatista.
3.2.3 Do Direito, Da Justiça e das Leis
Tomás Antônio, na última parte do Tratado revela sua concepção sobre o
direito, a justiça e as leis.
A respeito do direito positivo considera que é aquele que provém do legislador
e se subdivide em positivo humano e positivo particular. “Grócio subdivide o positivo
divino em particular, que é o que deu Deus a uma só nação, como foi o que deu aos
hebreus, e em universal dado a todos os homens (...)”109 Concordando Grotius,
Gonzaga se utiliza de sua classificação para definir o direito positivo. No entanto, o
poeta se utiliza dos fragmentos de Grotius de forma que lhe aprouver. Ora o recorta
para considerá-lo um ateu inimigo da religião ora o cita para uma divisão do direito
onde o mesmo Grotius se mostra um convicto cristão que não consegue excluir o
fundamento do direito positivo de Deus e da ordem divina.
106
Sobre este comentário ver VILLALTA. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: uso do livro na
América Portuguesa.
107
FURTADO, João P. O manto de penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.71.
108
A função também é dada ao Cláudio Manuel da Costa e Cônego Vieira. Ver. FURTADO, João P. O manto de
penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. p.19.
47
A lei também se subdivide em divina e humana. O primeiro requisito da lei
humana é ser honesta110. O segundo é que ela não ofenda a pública utilidade, pois,
tal como em Aquino111, seu fim é o bem dos povos. O terceiro é que toda lei deve ser
possível para que seja cumprida pelos vassalos112. O quarto é que deve ser
perpétua e durar para sempre, enquanto existir sociedade. Sobre esta perpetuidade,
Gonzaga diz não se deve entendê-la tão rigorosamente113.
O quinto requisito é que somente o sumo poder pode emitir uma lei, porque
este é o competente para este exercício. O súditos devem obedecer tais leis e esta
obrigação pode ser externa ou interna114. Externa quando provém do medo e do
castigo e interna quando se faz dentro do foro íntimo. O rei pode obrigar no foro de
todas as consciências porque ele é um ministro do Senhor115.
Na esteira de São Tomás, o sexto requisito é a promulgação da lei a todos
os indivíduos da sociedade para sua validade. A partir desta os súditos se obrigam a
cumprí-la. Dentro da promulgação, o sétimo requisito consiste que a lei deve estar
escrita com palavras claras e próprias. Também deve a lei, em seu oitavo requisito,
dispor sobre as ações futuras e não retroceder. Percebemos que não é um requisito
da lei que o povo a aceite.
A lei divina ou lei eterna emana de Deus. A lei divina pode ser revelada via as
Escrituras e nesta se divide em velha e nova. A velha, dada aos hebreus, e a nova
ensinada por Cristo.
A lei divina é “é a fonte de todas as mais e a primeira regra das ações
humanas.“116 nos termos de São Tomás, e na interação de leis temos para Gonzaga
a lei natural
a lei natural não é outra coisa mais do que a lei divina, participada à
criatura por meio da razão, que manda que se faça o que é
109
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 517.
110
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 433
111
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 527.
112
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 527.
113
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 529.
114
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 532.
115
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p 533.
116
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 534.
48
necessário para se viver conforme a natureza racional, como
racional, e proíbe que se execute o que é inconvenientemente à
mesma natureza racional, como racional.117
Dos princípios da lei natural, Gonzaga destaca que não é possível ignorá-los
porque está nos corações dos homens. Esta lei é imutável porque ordena o que é
conveniente ao estado da natureza racional e esta não se altera. Gonzaga ainda
divide o direito positivo humano em eclesiástico e civil. Ressalta que as decisões da
Igreja em matéria de fé não são direito eclesiástico, pois as disposições do Papa são
expressão do direito divino.
Com relação às diferenças entre o direito positivo e o natural, afirma Tomás
Antônio, consolidando a sua opinião do fundamento transcendente e divino do direito
natural:
A diferença que vai do Direito Natural ao positivo é que o positivo é
meramente arbitrário e o natural não, porque Deus, sendo um ente
sumamente santo, há de proibir o que não for concernente à
natureza do seu criado. Daí vem que a maldade provém da proibição
e esta da repugnância que os actos tem com a natureza e o fim do
criado.118
Gonzaga é fiel à opinião de Justiniano quanto à Justiça. Esta nada mais é do
que a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu 119. São partes
integrantes da justiça, conforme São Tomás, a religião, a piedade, a observância, a
verdade, a graça, o castigo, a liberdade, o afeto e a humanidade120.
Discorda da divisão de Aristóteles quanto à sua justiça em comutativa e
distributiva, pois para o poeta se trata de uma única. Pela primeira vez, Gonzaga
elogia Grócio em sua divisão da justiça em expletrice e atributrice. A justiça pois
expletrice é a que dá o que se deve de direito perfeito; e a justiça aributrice a que dá
o que se deve de imperfeito.
121
Explicitando122 o que ele chama de direito perfeito e
imperfeito, temos o primeiro como aquele que provém de uma obrigação, como o
117
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 535.
118
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 520.
119
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 520.
120
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 523.
121
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas
de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 522.
122
GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga:
edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 522.
49
direito ao ressarcimento de um dano. E o segundo, o chamado de imperfeito, é
aquele que serve para remediar um pobre sem que este o possa exigir porque não é
de seu direito assim o pedir.
Por fim, Gonzaga se remete ainda aos costumes como uma atos praticados
reinteradamente ao menos pela maior parte da sociedade. Este terá força de lei
quando for honesto, útil à sociedade, introduzido publicamente e aprovado pessoal
ou legalmente pelo soberano.
Para concluir a análise do sistema do Tratado, nos valemos de Lourival
Gomes Machado:
O tratado desenvolve-se, todo, à volta de um tema central: há uma
ordem divina, posta por Deus na criação, por sua vontade regida
eternamente e perceptível à razão pela compreensão dos fins morais
inculcados na pessoa humana (...). De tal maneira, a idéias de Deus
passa a constituir a base conceitual de todo o sistema, sendo posta
não só preambularmente como uma primeira causa, mas também
como causa direta já do poder de mando, já do direito, que são os
dois principais objetos do Tratado. (..) O princípio divino não se opõe
ao esquema absolutista.123
3.3 A presença do jusnasturalismo moderno no Tratado de Direito Natural em
Tomás Antônio Gonzaga
Gonzaga pretendeu em seu Tratado filiar-se à Escola Jusnaturalista Moderna.
Contudo, podemos perceber que ele se afastou voluntariamente da tradição que,
desde o século XVI, os jusnaturalistas vinham compondo. O apego a fundamentos
teológicos para explicação do direito natural diminuiu gradativamente e essa Escola
procurou, definitivamente, encontrar na razão e no homem as fontes últimas do
direito natural. Não seria mais Deus o responsável por leis naturais que regeriam o
comportamento do ser humano, mas a própria razão, desvinculada desta ordem
divina, seria a nova base para essas leis naturais.
A concepção de direito natural que Gonzaga desenvolveu em sua obra
apresentada à Coimbra, se distanciou dessa Escola, na medida em que ele não
separa a esfera jurídica da religiosa. O argumento teológico, para Tomás Antônio,
fundamenta o direito natural porque esse depende da vontade de Deus para ser
revelado aos homens. A transcendência do direito natural vem de Deus,
inexoravelmente.
123
MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. p. 41.
50
Temos em Tomás de Aquino, especialmente, o principal marco teórico de
Gonzaga. Para o poeta de Marília de Dirceu, o direito natural está inscrito no
coração dos homens pela ordem divina. Neste sentido, todo conteúdo do direito
positivo deve se adequar às prescrições que lhe são superiores e fonte de
inspiração: o direito divino. Em Gonzaga, não se parte da condição humana, mas da
evidência divina para a justificação de sua teoria jusnaturalista.
Grotius representou o ponto inicial para laicização da teoria jusntaturalista.
Sua doutrina do direito natural reflete esse desejo de autonomia em relação à ordem
divina. O direito natural não mudaria seus ditames na hipótese da inexistência de
Deus, nem poderia ser modificado por Ele. A fé de Grotius não conta menos do que
a razão, porque para o autor também Deus é uma certeza. Ora, os argumentos de
Gonzaga em todo o Tratado dão a impressão que ele insiste no que não existe: o
pretenso ateísmo de Grotius. Grotius deixa explicito em seus textos que Deus é o
criador da natureza e do universo, porém existem certas leis, as naturais, que não
podem ser modificadas nem mesmo por Ele em função de fazerem parte da razão
humana. Portanto, temos que deixar claro que Gonzaga se enganou ao ler Grotius
como ateu, pois o que o jusnaturalista holandês pretendeu não foi ressaltar a
inexistência de Deus, mas que as leis naturais permaneceriam independente da
ordem divina.
Pufendorf, como continuador e inovador da doutrina de Grotius, também foi
alvo dos ataques de Gonzaga por pensar um direito natural desvinculado da vontade
divina. Gonzaga condena, por exemplo, a chamada sociabilidade natural do homem
defendida por Pufendorf porque para o poeta a providência divina motivou realmente
a vida em sociedade.
O intuito de Pufendorf foi transpor para o campo do direito natural a estrita
dedução da geometria. Assim compõe-se a construção do seu direito natural e das
gentes: dadas as bases, desenvolve-se o sistema segundo o dedutivismo.
Sobre a ordem divina, temos que toda a realidade de Gonzaga é inspirada
neste elemento sagrado. O estado de natureza, a sociedade civil, o direito natural
que ele concebe estão subordinados à autoridade de Deus. Tal atrelamento ao
aspecto teológico o leva a ler os autores de seu tempo como ateus e inimigos de sua
religião, por isso ele enfileirou Grotius, Pufendorf e Hobbes sem a menor
preocupação em diferenciá-los.
51
Não podemos negar que foi um avanço em seu Tratado buscar comentar
Grotius, Pufendorf, Hobbes e tentar trazê-los ao círculo acadêmico de Coimbra, mas
sua leitura dos mesmos foi equivocada em virtude de sua concepção, especialmente
tomista.
52
CONCLUSÃO
Como podemos perceber neste trabalho, Tomás Antônio Gonzaga é um
autor preso ao seu tempo e ao seu ambiente de formação. O século XVIII de
Gonzaga, em Portugal, nada mais é do que uma enorme contradição seja no seu
campo político, seja no seu campo jurídico. Seu Tratado reflete esse momento
histórico, trazendo, porém, contribuições próprias do autor.
No campo político, temos a defesa de um sistema absolutista não com
poderes ilimitados ao soberano. Seu direito natural não foi utilizado como fonte
ordenadora da sociedade ou justificativa para o exercício pleno do poder real. A
autoridade do soberano se apóia no princípio da sua origem divina e é superior aos
proclames do Papa. Não podemos atribuir a Gonzaga, nesse sentido, qualquer
aspecto revolucionário nos termos apregoados pelo Iluminismo.
Seu entendimento sobre a política em muito se prendeu aos ditames do
Marquês de Pombal – personagem histórica a qual foi dedicado sus obra.
Considerado uma espécies de déspota esclarecido, Pombal pretendia modernizar
Coimbra e nesta onda de reforma, Gonzaga se inspira ao elaborar um Tratado de
acordo com os “novos” tempos. No entanto, o que pudemos perceber é que se
Tratado é um mero retorno às idéias tomistas relativas ao direito natural. Não há,
portanto, uma filiação dele à Escola Jusnaturalista Moderna que pregava,
especialmente, o fim do direito natural a partir de bases teológicas.
Acreditamos que a principal novidade, tanto no Tratado, como de Pombal no
campo político português, foi a tentativa de conceber a sociedade com um soberano
superior às leis da Igreja e cujos poderes não eram todos concentrados nas suas
mãos. Não percebemos, portanto, uma sugestão de transformação na realidade
monárquica existente.
Sobre a ordem divina, temos que toda a realidade de Gonzaga é inspirada
neste elemento sagrado. Tal necessária vinculação ao aspecto divino o leva a se
afastar da Escola Jusnaturalista Moderna. Sua leitura sobre o jusnasturalismo, é
especialmente, tomista.
O poeta de Marília de Dirceu foi um intelectual muito interessante. Não é à toa
que ainda desperta tantos estudos literários e históricos. Que nossa monografia
possa ter ressaltado, pelo menos, a figura de Tomás Antônio Gonzaga como jurista.
53
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