4 INTRODUÇÃO Tomás Antônio Gonzaga, português, morador das Minas Gerais no século XVIII, mais conhecido pela sua participação na Inconfidência Mineira e por suas liras árcades, se formou em Direito pela Universidade de Coimbra1. Filho de um magistrado carioca, o poeta de Marília de Dirceu veio para o Brasil pela primeira vez em 1752 acompanhar seu pai que havia sido nomeado Ouvidor Geral da capitania de Pernambuco. Domiciliado no Brasil, Tomás Antônio Gonzaga foi estudar no Colégio da Companhia de Jesus da Baía, em Salvador. Ao fim dos seus estudos secundários no colégio dos jesuítas, como não havia ensino superior no país, retornou a Portugal para ingressar na Faculdade das Leis da Universidade de Coimbra. Em 7 de fevereiro de 1768, Gonzaga colou grau de bacharel em leis. Logo depois se transferiu para a cidade do Porto onde passou a exercer a advocacia. No ano seguinte à reforma curricular da Universidade de Coimbra, iniciada pelo Marquês de Pombal em 1772, ele se candidatou ao magistério, à cátedra de Direito Pátrio2, para o que escreveu o texto acadêmico denominado Tratado de Direito Natural. Segundo Joaci Pereira Furtado3, seu trabalho, dedicado ao Marquês de Pombal, nunca foi apresentado, pois não estava redigido em latim – língua na qual eram lidas as teses e ministradas as aulas na então Universidade. Após o ingresso na magistratura portuguesa, Tomás Antônio Gonzaga retornou ao Brasil, em 1782, para assumir o cargo de Ouvidor da Comarca de Vila Rica. Sua estada nas Minas Gerais foi marcada por suas poesia e pela sua atuação no levante conhecido como Inconfidência Mineira. Por causa deste movimento, Gonzaga foi condenado ao degredo em Moçambique e morreu, em 1809, nesta terra africana exercendo a função de Juiz de Alfândega. No Brasil, seus textos literários e sua atuação política na Inconfidência Mineira provocaram a fama desse intelectual estudado por historiadores e literatos 1 Sobre a biografia de Tomás Antônio Gonzaga ver Lyra, Pedro, (org.), na Coleção Nossos Clássicos. Ver também a edição crítica de Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga escrita por Rodrigues Lapa, por fim ver GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do iluminismo. p.72. 3 Sobre a cronologia da vida de Gonzaga ver também Joaci Pereira Furtado na obra organizada por ele sobre as Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga. Márcio Jardim também considera que tal tese provavelmente não fora apresentada. 5 nas universidades brasileiras e portuguesas. Sua obra sobre o Direito Natural não alcançou fama no sentido de despertar os mesmos interesses acadêmicos entre os juristas. O Tratado de Direito Natural aborda o jusnaturalismo e foi escrita no século XVIII - século dominado pelas idéias filosóficas e jurídicas sobre o Direito Natural. No seu Prólogo, Gonzaga justifica o seu tema e transmite o domínio de tais idéias sobre a Europa da seguinte forma: Resolvi a dá-lo a luz, incitado em dois motivos: o primeiro foi o ver que não há em nossa língua um só tratado sobre esta matéria (...). Esta falta me pareceu que se devia remediar; pois sendo o estudo do Direito Natural sumamente útil a todos, não era justo que meus nacionais se vissem constituídos na necessidade ou de o ignorarem ou de mendigarem os socorros de uma língua estranha. 4 A concepção de Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga é desconhecida da maior parte dos juristas. Seu texto acadêmico sofreu uma série de influências de pensadores jusnaturalistas o que o torna parte de uma escola referente ao Direito Natural. Percebemos, então, que há uma necessidade de investigação sobre o tema no sentido de buscar uma relação entre o pensamento deste intelectual lusobrasileiro e o próprio jusnaturalismo. Podemos falar de vários “jusnaturalismos”, no que tange à sua conceituação e fundamentação. A concepção de direito natural foi modificada com o passar dos séculos de forma que não há uma homogeneidade doutrinal deste tema. Na verdade existiram diversas escolas jusnaturalistas que ora fundamentaram o direito natural nas leis cósmicas, na vontade divina ou na natureza do homem. Luño Pena5 afirma que o direito natural acompanha a humanidade desde o início. O jusnaturalismo está assim definido por Valle: O jusnaturalismo é a concepção que afirma a existência do Direito Natural como realidade anterior e superior ao Direito Positivo, i. e., o direito estabelecido pelos homens. O direito natural dimana da própria natureza das coisas (ou do homem) e constitui o elemento básico e insubstituível da ordem jurídica e a medida da legitimidade do Direito Positivo. 6 4 GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942. p. 365. 5 LUÑO PENA, Henrique. Derecho Natural. Barcelona: La Ormiga de Oro, 1954. p. 130. 6 VALLE, Gabriel. Modernidade e direito. Porto Alegre: Síntese, 2001. p. 211. 6 O episódio de Antígona, descrito na obra de Sófocles pode ser considerado como uma das primeiras manifestações do jusnaturalismo. Neste exemplo grego, Antígona apela ao direito natural para justificar o enterro de seu irmão em Tebas – proibido pelo édito de Creonte. O soberano não permitiu que Polinice, irmão de Antígona, fosse honrado com um túmulo em virtude desse ter se revoltado contra ele no passado. Na Antigüidade, a morte e todo ritual funerário eram de cunho sagrado para o homem. Não ser sepultado significava uma espécie de condenação eterna ao morto Polinice. Antígona, então, recusa a condenação imposta a seu irmão e o enterra contrariando ao decreto. Ao descobrir que seu édito havia sido desrespeitado, Creonte exige explicações de Antígona que se defende baseando-se no direito natural: Não foi do Sumo Zeus essa ordem emanada. Nem a justiça a impôs dos Manes na morada. Do céu não procedeu. Nem podia acudir-me Que um decreto de rei ou ato humano infirme Invioláveis leis, eternas, não escritas, À raça dos mortais por imortais prescritas. Não são d’ontem nem d’hoje; estranhas são às datas. Têm existido sempre, imutáveis, inatas. Por humana coação leis santas infringir Fora da divindade a cólera atrair. 7 Creonte não aceita as palavras de Antïgona e diante de sua atitude de erguer túmulo ao irmão profere sua pena: ser enterrada viva. Tebas está contra o édito de Creonte e contra à pena imposta à irmã de Polinice que nada fez do que cumprir os ditames das leis divinas. Hémon, filho de Creonte, tenta persuadi-lo de sua decisão imposta a Antígona, mas não consegue demovê-lo da mesma naquele instante. Depois de Antígona ser posta em seu túmulo, Creonte decide evitar sua morte, porém quando lá chega, ela já se encontra morta – enforcou-se com os cadarços da cintura. Hémon também crava uma faca no peito e morre frente ao pai. Eurídice, mãe de Hémon, não suporta tamanha dor e se mata. Creonte perde o filho, a mulher e Antígona, todos cumprindo seus trágicos destinos. 7 SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Edipo em Colono, Antígona. Rio de Janeiro: Zaahar, 1997. p. 86. 7 A partir de Sófocles, podemos compreender o direito natural como o conjunto de normas que não são criadas ou editadas pelo homem, sendo entretanto de seu conhecimento e possuindo força obrigatória em relação ao agir humano. Assim, nas leis naturais podemos encontrar a legitimidade do direito positivo. Tratase do direito que permite a Antígona enterrar seu irmão em Tebas, independente da proibição de Creonte. Não podemos deixar de considerar que nesta passagem duas concepções de direito, uma arcaica e outra que se constitui na fonte de inspiração de uma idéia de direito natural de resistência. Na verdade, não há uma superioridade do direito positivo frente ao natural ou vice-versa porque ambas as esferas de ordem jurídica, na Antigüidade, ainda estão misturadas. Nossa monografia não poderá adentrar na complexidade do tema, por isso nos limitaremos a esta ponderação.8 Para a concepção jusnaturalista, o Direito tem como fonte e como medida de legitimação uma ordem ontológica que transcende a vontade humana e, é primordialmente, a expressão do justo decorrente da natureza. O direito natural ultrapassa o homem enquanto o seu fundamento e é um exemplo de Direito ideal, comum à natureza humana. Sua revelação ora se mostra pelo fator divino ora pela razão, mas o direito natural não é do ser humano. Percebemos que, em todas as manifestações do direito natural, o homem tenta buscar no absoluto segurança para as relações jurídicas e para a própria alma humana. A partir da classificação proposta por Luño Pena, destacaremos neste trabalho a concepção de direito natural em apenas três períodos (antigo, teológico e da escola clássica jusnaturalista) para, através deles, encontrar o lugar de Tomás Antônio Gonzaga enquanto pensador jusnaturalista. O período antigo compreende o pensamento grego e romano e estudaremos os seus seguintes representantes: os sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles e Cícero. No período teológico – baseado na filosofia cristã – Santo Agostinho e São Tomás de Aquino serão os autores cujas concepções de direito natural serão aqui aprofundadas. Estes dois períodos serão vistos no primeiro capítulo. Por fim, veremos a versão da Escola Clássica de Jusnaturalismo, também conhecida como racionalista moderna que dominou os séculos XVII e XVIII. Procuraremos em determinados expoentes desta matriz – Hugo Grotius, Pufendorf e 8 FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: persuasão, técnica e. São Paulo: Atlas, 1993. P. 54. 8 Thomas Hobbes o sentido adquirido pelo direito natural. Tal escola será tratada em um capítulo próprio. Tomás Antônio Gonzaga se considera pertencente 9 à essa escola. A partir, desse tratamento histórico dada ao conceito de direito natural analisaremos no último capítulo o direito natural de Tomás Antônio Gonzaga. A escolha dos autores se baseou, especialmente, nas referências do próprio Gonzaga em sua tese sobre o assunto. O objetivo primordial deste trabalho é iniciar um estudo sobre a relação entre a matriz jusnaturalista européia vigente nos séculos XVII e XVIII e o Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga. Nossa proposta nesta monografia é, especialmente, conhecer o Direito Natural a partir do Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga dentro da corrente do jusnaturalismo que norteou todo o seu trabalho. Também é objetivo deste trabalho realizar um levantamento bibliográfico suficiente para a produção de uma futura pesquisa sobre este assunto em cursos de pós-graduação. Como personagem da História do Brasil, sua trajetória enquanto jurista filiado às idéias jusnaturalistas, encontra-se pouco estudada. Tal tarefa se mostra muito ambiciosa na medida em que o tema requer uma pesquisa profunda e apurada – o que não é possível em uma simples monografia de conclusão de curso. 9 Gonzaga se considera pertencente à esta Escola, apesar das diferenças entre seu pensamento e o da mesma, como demosntraremos. 9 Capítulo 1 UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE O DIREITO NATURAL A necessidade de uma perspectiva histórica sobre o direito natural pode ser explicada por Del Vecchio: De cada ciência é vantajoso conhecer a história. Mas a importância de tal conhecimento faz-se senti de modo particular a respeito das disciplinas filosóficas: em estas, o presente, sem o passado, carece de sentido. Os problemas filosóficos que hoje discutimos são fundamentalmente os mesmos que os filósofos antigos se mostraram, ainda que de modo germinal ou embrionário. 10 Acreditamos como o autor acima, que a “história da filosofia é um meio de estudo e investigação”11 capaz de possibilitar uma construção de um sistema de conceitos somente percebido com a análise das experiências intelectuais já vividas pelo homem. Daí a nossa procura a partir do passado do conceito de direito natural, para, enfim, chegar ao sentido dado a ele por Tomás Antônio Gonzaga. 1.1 PERÍODO ANTIGO – Do mundo grego dos sofistas ao mundo romano de Cícero 1.1.1 Os Sofistas As idéias dos sofistas bem como os seus escritos são conhecidos graças aos seus adversários. Especialmente através dos diálogos platônicos em que Sócrates discorda dos sofistas, conhecemos as teses defendidas por estes pensadores eloqüentes, retóricos, polêmicos que atuaram na Grécia no século V A. C. . Os sofistas foram de suma importância para a filosofia na medida em que representaram um “movimento intelectual humano, filosófico, crítico” 12. Tal crítica repousava nos problemas relativos ao homem, de ordem psicológica, moral e social 10 DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. Trad.: Antônio José Brandão. 5a ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. (Original em italiano). p.33. 10 que, até então, não eram questionados. Esses pensadores percorriam as cidades ensinando a juventude por um determinado preço. Sobre o público que desejava aprender a retórica dos sofistas, considera Guthrie que: Os sofistas não tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos para pagar as suas altas taxas, ou auditórios para suas conferências e exibições públicas. Todavia alguns dos mais velhos e conservadores desaprovavam fortemente a eles. Esta desaprovação vincula-se, como Platão mostra, com seu profissionalismo. 13 Não cabe neste trabalho examinar o pensamento dos sofistas ou as várias tendências filosófica existentes dentro deste movimento. Vamos aqui nos prender ao conceito do direito natural adotado pelos mesmos. Edgar Godói da Mata Machado14 e Luño Pena acreditam que os sofistas foram os primeiros a estabelecer a diferença exata entre direito natural e direito positivo. Disse Antífon: Pois as normas das leis são acidentais enquanto as regras da natureza são necessárias; e as normas da lei são criadas por convenção e não produzidas pela natureza; as da natureza são, ao contrário, originárias não suscetíveis de serem convencionadas. (...) Apresento reflexões sobre estes pontos porque muito do que é certo de acordo com a lei está em conflito com a natureza... e muito do que aqui será tido como discordante com a natureza (...)15 Para os sofistas, o homem, e não a natureza seria o princípio e a causa de si mesmo. A natureza faria com que as leis fossem idênticas em todas as partes. No entanto, pelo contrário, o que se vê é que homens de culturas diferentes possuem legislações e valores jurídicos diferentes, na medida em que se encontra em seu poder definir o que é justo e o que é injusto16. Para Del Vechio, os sofistas também assumiram geralmente uma atitude negativa a respeito do justo natural. Se houvesse tal justo natural, todas as leis seriam iguais17. Parece que os sofistas 11 DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p.33. LUÑO PENA, Henrique. História da filosofia do direito. 2a ed. Barcelona: La Ormiga de Oro, 1955. p.119. 13 GUTHRIE, W.K.C. Os sofistas. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1995. p.40-41. 14 MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito. Belo Horizonte: Vega, 1981. p.15. 15 Antífon, In: ROSS, Alf. . Direito e Justiça. São Paulo: EDIPRO, 2000. p. 276-277. 16 BIITAR, Edurado C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e tópicos conceituais. São Paulo: Atlas, 2001. p. 55. 17 DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p.36. 12 11 encontram na idéia de natureza uma fonte de argumentos capazes de se contrapor ao direito positivo. Segundo Ross, a natureza, a que os sofistas recorriam para a fundamentação do direito natural não estava relacionada à metafísica ou algum sentido religioso: Aqui, também, parece verdadeiro que o ser humano é a medida de todas as coisas, que se referiam os sofistas à experiências fatuais da humanidade quanto a prazer e à dor, às necessidades fatuais e às valorações humanas. Um direito natural deste tipo é essencialmente diferente do direito natural metafísico que posteriormente predominou, e pode ser facilmente interpretado, se para isto estivermos dispostos, como uma primeira tentativa de realismo na política jurídica.18 Podemos estabelecer que o direito natural para os sofistas encontrou diversos sentidos dependendo de cada geração. Para uma parte destes pensadores, o direito “positivo em sua essência é uma emanação ou revelação daquilo que por natureza é eternamente válido, o que lhe confere sua força obrigatória, e somente oposta ao império da força. “ 19 Trata-se de uma atribuição ao direito natural como instância legitimadora e ratificadora da ordem vigenteA segunda geração dos sofistas já acreditava que o direito natural não se prestaria, simplesmente, a dar “solidez e constância às regras de conduta impostas pelo Estado, mas servirá de modelo à transformação e adaptação do direito vigente.”20 Outra atribuição é dada aqui ao direito natural, sendo este o fundamento para uma ação revolucionária. Os sofistas não criaram uma escola ou um sistema filosófico comum. Na verdade, a importância dos sofistas reside no levantamento das questões filosóficas que serão mais tarde discutidas por Sócrates, Platão e Aristóteles. Desta diversidade de conceitos e opiniões sobre o direito natural entre os sofistas, podemos considerar que o assunto já era fruto de debate e disputa. Nestas primeiras aspirações filosóficas o direito natural é recorrente e já se busca um fundamento para o mesmo. 18 ROSS, Alf. Direito e Justiça. p. 270. ROSS, Alf. Direito e Justiça. p. 277. 20 MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito. . p. 61. 19 12 1.1.2 SÓCRATES Sócrates nasceu e viveu em Atenas entre 469 e 399 a.C e combateu, especialmente, as doutrinas sofistas. Desde a juventude Sócrates se interessou pela filosofia, conhecendo o pensamento anterior e contemporâneo dos filósofos gregos. Praticava sua filosofia ensinando em conversas nos locais públicos e nos passeios pelas praças e pelos mercados. Seu método discursivo e dialético ficou conhecido como maiêutica na medida em que Sócrates não pretendia dar respostas prontas aos seus discípulos, mas que eles próprios, através de seus questionamentos, encontrassem a verdade. Consistia tal método, então, em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que ele pensa conhecer, e pô-lo em contradição. A mensagem final que Sócrates tentava transmitir em seu ensino gratuito visava a revelar o meio de ter acesso ao verdadeiro saber e levar cada um a recusar os conhecimentos prontos. De inicio, interessava-se pelos ensinamentos dos filósofos da natureza 21, mas depois se revoltou contra eles, pois eles haviam sido filósofos físicos, que procuravam respostas nas causas exteriores e gerais da natureza. Achava que existia algo mais digno para se estudar e, tal como os sofistas, passou a se dedicar ao estudo do homem. Por isso, sondou a alma humana, em diversos aspectos como a justiça, a honra, o patriotismo, a moralidade e a ética. Sócrates teve uma morte drástica e cruel. Em um tribunal popular foi condenado a morte por negar os deuses do Estado, instituir novos e por perverter a juventude de Atenas. Ele foi considerado, aos setenta anos, líder espiritual de um partido revoltoso. 21 Os chamados filósofos da natureza investigavam as questões e as transformações pertinentes a physis. Também buscavam compreender como e de que era feito o mundo. Tentaram romper com a visão mítica e religiosa da natureza que prevalecia na época, adotando uma forma mais científica de pensar. Podem ser elencados entre eles Tales de Mileto, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Zenão de Eléia, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo de Mileto, Demócrito. 13 Está na morte de Sócrates a grande indagação a respeito do direito natural. Segundo Edgar da Mata Machado, o filósofo condenado a tomar cicuta foi um testemunho a favor do direito natural – “testemunho pelo martírio”. Segundo o autor, sua morte não era um preito ao direito positivo pelo simples fato de cumprir uma sentença estatal. Sua morte era a única maneira pela qual pôde convencer aos outros de que realmente acreditava em uma ordem subjetiva de valores. 22 Para Del Vecchio, Sócrates acreditava na total obediência às leis do Estado. O bom cidadão deveria obedecer até mesmo às leis más para que as leis boas não fossem violadas. A questão da justiça reside neste ponto, na medida em que para Sócrates, ser justo significava cumprir os ditames da lei. Assim, mesmo sendo condenado injustamente à morte, sua execução não poderia contrariar a ordem de Atenas. “Isso porque Sócrates vislumbra nas leis um conjunto de preceitos de obediência incontornável, não obstante possam estas ser justas ou injustas.” 23 Neste sentido, no diálogo Críton de Platão, Sócrates nos esclarece: Ninguém de nós [as leis] proíbe que se retire com todos os seus bens e vá se instalar onde for de seu agrado. Contudo, aquele que permanecer aqui após concordar com essa nossa maneira de administrar a justiça, e com a política seguida pela República, será obrigado a obedecer a tudo que lhe ordenamos e, se desobedecer àquelas leis que lhe permitiram nascer, porque perturba aquelas que o amamentaram e alimentaram e porque, após obrigar-se a obedecer-nos, ofende a fé jurada e não se esforça em persuadir-nos se lhe parece que existe algo de injusto em nós. 24 Não seria, então, a morte de Sócrates uma desobediência às leis naturais e uma afirmação à superioridade do direito positivo? Enfrentar sua condenação da forma serena como ocorreu não seria uma contradição à sua frase de que “importa obedecer mais aos deuses que aos atenienses” ? 25 22 MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito. p. 35. 23 BITTAR, Edurado C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e tópicos conceituais. p. 64. 24 PLATÃO. Críton.. In. ____ . Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.111. (Os Pensadores). 25 PLATÃO. Apologia. In. ____ . Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.81. (Os Pensadores). 14 Trechos no mesmo diálogo Críton de Platão têm sido utilizados ora para considerar a morte de Sócrates uma apologia ao direito natural ora para considerá-la um tributo ao direito positivo. Sobre tal polêmica, adotamos a posição do Júlio Aguiar de Souza: No entanto a morte de Sócrates recusa-se a ser capturada por uma ou outra corrente. Nem o positivismo jurídico nem a Escola de Direito Natural podem fazer dela argumento a seu favor. Ao tentar encaixála às suas convicções, os defensores de ambas as escolas são obrigadas a mutilar o pensamento socrático. Não foi para testemunhar a favor de uma determinada concepção de direito que Sócrates a aceitou. A idéia de Justiça, em Sócrates, permanece uma idéia aberta, vacilante entre duas posições extremas e cuja harmonização, parecemos, não se mostrou realizável. Suas reflexões o levaram a um limite da idéia de Justiça. 26 O autor ainda continua a explicar suas idéias: Sócrates recusa-se a uma visão unilateral, ora tocada no critério da justiça do Direito Natural ora focada no da norma do Direito Positivo. (...) Com isto fica interditada para Sócrates a possibilidade racional discursiva, que só se mostrava capaz de tratar o direito ou como pura idéia de justiça ou como pura norma positiva. 27 Analisando os dizeres de Júlio Souza Aguiar sobre a morte de Sócrates e seu impacto para o direito natural, acreditamos que sua reflexão é bastante coerente com o que propôs o filósofo grego. Não se tratava, simplesmente, de morrer por causa de uma condenação de Atenas ou fazer de tal morte um martírio traduzido em defesa do direito natural. Há um paradoxo na morte de Sócrates que não pode ser respondido nem pelo direito natural e nem mesmo pelo direito positivo. Sócrates não definiu o sentido que pretendia dar à lei natural, ou se esta que se diferenciava da lei positiva. O que o filósofo ressalta sempre é a obediência às leis, sejam naturais ou positivas. Sua morte pode ser compreendida como o cumprimento estrito das leis, quais sejam, positivas e naturais. 1.1.3 Platão Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados. A partir dos vinte anos, Platão conheceu seu mestre Sócrates, tornandose seu discípulo. 26 AGUIAR, Júlio Souza. Espinosa e direito natural. Belo Horizonte: UFMG, 2000. (mimeo). p.50. 15 Com a morte de Sócrates, Platão deu início a uma série de viagens pelo mundo, para se instruir (390 –388 a. C.). Visitou o Egito, a região que hoje ocupa a Itália meridional, a Sicília e outros locais onde travou diversos debates filosóficos importantes. Nesta época chegou a ser vendido como escravo e, depois de libertado, voltou a Atenas. Em Atenas, pelo ano de 387 a. C., Platão fundava a sua célebre escola a partir dos modelos pitagóricos que tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, um terreno, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.). As obras filosóficas de Platão tratam de diversos temas. Ao contrário de Sócrates, seus escritos exotéricos foram mantidos completos no decorrer dos séculos. Entre seus temas filosóficos, interessou-se vivamente pela política e pela justiça. Sua concepção de Estado também figura como fundamental para a filosofia política. Platão faleceu em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade. A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Neste trabalho nos resumiremos a discutir o conceito de Justiça e de Estado para assim, buscar em Platão seu entendimento acerca do direito natural. Para Platão, a realidade se divide entre o mundo dos sentidos e no mundo das idéias. O mundo dos sentidos é uma cópia imperfeita e perecível das idéias. Neste as coisas surgem e desaparecem. O mundo das idéias é a possibilidade de existência de um plano superior de realidade que pode ser percebido através do uso da razão. Neste plano as idéias são eternas e imutáveis e o efêmero e o contigente não importam. Talvez estejam no mundo das idéias as leis da natureza porque estas são de caráter imutável e eterno. Delineiam o que é inteligível, perfeito, absoluto e podem ser conhecidas pelo homem através do uso da razão contemplativa. Percebemos, novamente, como as leis naturais transcendem ao homem e, segundo Platão se encontram em um mundo ideal. Sobre a definição de justiça, Platão diz na República: 16 Agora, pois, vê se tenho razão. O princípio que estabelecemos de início, ao fundarmos a cidade, e que devia ser sempre observado, esse princípio ou uma das suas formas é, creio, a justiça. Nós estabelecemos, e repeti-mo-lo muitas vezes, que cada um deve ocupar-se na cidade apenas de uma tarefa, aquela para a qual é mais apto por natureza. (...) Mais ainda: que a justiça consiste em fazer seu próprio trabalho e não interferir no dos outros. 28 Sobre a justiça, Salgado nos oferece uma interessante crítica: Platão abre duas perspectivas para a concepção de justiça: a justiça como idéia e a justiça como virtude ou como prática individual; isto mostra a República, obra em que tematiza com maior propriedade. 29 (..) De qualquer forma, Platão delineia duas vertentes que se separarão no correr da história: a justiça como norteadora da conduta e definidora do direito e da lei e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei. De um lado, a idéia de justiça, do próprio Platão, soberana, não sujeita nem mesmo à vontade da divindade, informadora do seu Estado e de outro, a concepção de justiça como o hábito de cumprir o direito, ora entendido como direito positivo, ora entendido como direito legislado por Deus ou derivado da natureza. A justiça como idéia acentua o lado contemplativo da filosofia grega, a justiça como virtude, o ideal de vida ativa no sentido que são componentes essenciais de toda a filosofia ocidental. 30 1.1.4 Aristóteles Aristóteles nasceu em Estagira, Macedônia em 384 a. C. Aos 18 anos ingressou na Academia de Platão e lá se tornou seu discípulo por mais de 20 anos. Após a morte de Platão, em 343 a. C, Aristóteles foi convidado a se tornar o preceptor de Alexandre Magno. Após este assumir o trono, o filósofo estagirita fundou sua própria escola, perto de Atenas, que foi denominada Liceu. Com a morte de Alexandre, em 323 a.C, Aristóteles foi acusado de ateísmo e se refugiou em Cálcis, onde faleceu no ano seguinte. Escreveu notáveis livros sobre Biologia, Ética, Política, Direito, Estética, Psicologia influenciando pensadores de todos os tempos. Nas palavras de Del 28 29 PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.131-132. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986. p.22. 30 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 27. 17 Vecchio, Aristóteles “dedicou-se a todos os ramos do conhecimento e pode se dizer que, com ele, iniciaram-se muitas das nossas ciências.”31 O termo justiça pode ser tomado ora em sua acepção particular, ora em sua acepção universal. A palavra é ambígua, e podemos dizer que um ato é justo ou 1o) quando não viola a lei, ou 2o) quando alguém toma o que lhe é devido (nem mais, nem menos), ou 3o) quando realiza a igualdade. A segunda e a terceira acepções acabam se identificando, pois realizar a igualdade é exatamente tomar aquilo que lhe é devido, nem mais, nem menos. 32 Para o filósofo estagirita não há apenas um tipo de justiça. Para a nossa monografia, a distinção de Aristóteles a respeito da justiça natural e a justiça legítima é que nos interessa e nos restringiremos à mesma. O Direito Natural, o justo natural, para Aristóteles, não é escrito e sua validade é idêntica em todas as partes, independente da vontade dos homens. A lei natural é válida em si mesma e obrigatória para todos. “Há, portanto, uma lei natural ou direito natural), que é a lei que revela a natureza da comunidade política (...).” 33 Já o Direito Positivo, o civil, o justo legítimo é próprio de cada povo; podendoser entendido como um direito ordenado por lei. Esta separação entre direito natural e positivo realizada por Aristóteles se encontra bem definida em sua Ética a Nicômaco: A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou outra, mas depois de determinado já não é indiferente – por exemplo que o resgate de um prisioneiro será uma mina... (...) 34 A citação acima nos remete à importância do termo político em Aristóteles. Para o filósofo, a vida no contexto político de Atenas constitui a própria condição do ser humano. Somente aqueles que participam das decisões políticas, os cidadãos, possuem à chamada dignidade de ser humano. Nas palavras de Aristóteles: 31 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. p.44. GALUPPO, Marcelo Campos. A virtude como justiça. Disponível em:<http//sites.uol.com.br/marcelosgaluppo>. Acesso em 21 nov.2002. 33 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 40. 34 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1973. p. 206. (Os Pensadores).. 32 18 A cidade –estado é algo natural, e o homem, um animal político ou social; e um homem que, por natureza e não meramente por acaso, fosse apolítico ou insociável, ou seria inferior na escala humana, ou estaria superior a ela.35 Aristóteles é considerado o “pai do direito natural” na medida em que diferenciou este do direito positivo, retomando tal separação dos sofistas. Importante ainda ressaltar que nem mesmo as lei naturais são imutáveis para o filósofo. Tal como demostra a passagem abaixo, ambas as manifestações de justiça – a natural e a legítima – podem ser modificadas; pois, apenas entre os deuses permanece a imutabilidade. No caso da justiça legal, ou seja, expressa pela lei positiva devemos perceber que sua mera aplicação mecânica36 pode não corresponder à justiça. A equidade se torna, então, a própria possibilidade de aplicação da justiça ao caso concreto. Algumas pessoas pensam que toda justiça é deste tipo, porque aquilo que existe por natureza é imutável e tem a mesma forma em todos os lugares (como o fogo queima aqui e na Pérsia), ao passo que tais pessoas vêm mudanças no que é tido como justo. Isto, porém, não é verdadeiro de maneira irrestrita, mas apenas em certo sentido; com os deuses, realmente, isto não é verdadeiro de modo algum enquanto conosco, embora exista algo verdadeiro até por natureza, todos os dispositivos legais são mutáveis seja como for, existem uma justiça natural e uma justiça que não é natural. 37 Consideração importante sobre o justo natural, encontramos em Salgado que aponta: Entretanto, o justo natural é melhor não só do que o justo legal no sentido de convencional, mas superior a toda a forma de justiça, o que autoriza concluir ser, também na justiça particular, a conformidade com a lei (natural) o elemento essencial para o conceito de justiça.38 1.1.5 Cícero Cícero é o último expoente da matriz jusnaturalista da Antigüidade que será aqui analisado. Cícero viveu entre 106 a. C. e 43 a. C. e pode ser considerado um 35 ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os pensadores; Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.253 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 44. 36 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Os Pensadores). p. 206. 37 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Os Pensadores). p. 206. 38 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 43. 36 19 dos grandes agentes da helenização da cultura romana e transmissor da filosofia grega. Luño Pena39 o considera o primeiro pensador que criou a terminologia filosófica latina. Com formação jurídica, exerceu a advocacia e também ocupou a magistratura. Cícero, porém, almejava os negócios públicos e se tornou grande político na República romana. Seus feitos militares não se equiparavam aos intelectuais o que prejudicava sua carreira política no cenário da época. Em vista disto, Cícero possuía um discurso simples, eloqüente que tentava atingir a plebe romana. Segundo Del Vecchio40, Cícero não pertence exatamente a nenhuma escola filosófica. Com uma formação diversificada – iniciou seus estudos com os estóicos e posteriormente conheceu a escola epicurista, chegando até a estudar em Atenas – Cícero vivenciou todas as escolas de seu tempo. Seus temas, a partir de matrizes bem ecléticas, tratam, especialmente, da teoria política, da justiça e da ética. Independente de sua importante atuação no âmbito político, Cícero contribuiu em muito para a corrente jusnaturalista. Para Edgar da Mata Machado, este jurista romano foi o mais importante representante na Antigüidade “da noção de direito natural, real, objetivo”41. Tal como os estóicos, o jurista romano defendia que o direito é dado pela própria natureza. Há uma lei eterna emanada pelos deuses que pode ser percebida pelo homem através de sua natureza racional. A lei natural nada mais é do que a apreensão pelo homem através de sua razão do conteúdo destas leis eternas. Como disposto na República por Cícero: Existe uma lei verdadeira, razão reta conforme a natureza, presente em todos, imutável, eterna. Por seus mandamentos chama o homem ao bem e suas interdições deriva-o do mal. Quer ordene, quer proíba, ela não se dirige em vão aos homens de bem, mas nenhuma influência exerce sobre os maus. Não é permitido invalidá-la por meio de outras leis, nem derrogar um só de seus preceitos. É impossível abrogá-la por completo. Nem o Senado nem o povo podem liberarnos dela, tampouco é preciso buscar fora de nós quem a explique e a interprete. Ela não será diferente em Roma ou em Atenas, e não será, no futuro, diferente do que é hoje, mas uma única lei, eterna e inalterável, regerá todos os povos, em todas as épocas. Um só deus 39 LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filsofia del derecho. p. 153. DEL VECCHIO, Giogio. Lições de filosofia do direito. p. 55. 41 MATA MACHADO. , Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito. p. 63. 40 20 é, com efeito, como mestre e chefe de todos. É ele o autor desta lei, quem a promulgou e a sancionou. Aquele que não a obedece foge de si mesmo, renegando sua natureza humana, e prepara para si os maiores castigos, mesmo se consegue escapar aos outros suplícios, os dos homens.42 A lei natural, para Cícero, não é escrita, mas faz parte da própria natureza humana que define o que deve ser feito e impede o que não deve sê-lo. Tais leis naturais devem ser reproduzidas nas leis positivas, seja no direito das gentes, seja no direito civil. Kelsen43 salienta que, para Cícero, o autor do direito da natureza é Deus, e encontramos também no filósofo romano o fundamento metafísico-religioso da doutrina do direito natural. Percebemos, então, que a lei natural é dada aos homens pelos deuses. Observa Salgado que: a vontade de Deus no estoicismo é de um deus impessoal, que não coincide com o demiurgo platônico que ordena o mundo segundo as idéias que lhe estão supra ordenados, nem com o Deus pessoal do cristianismo que domina suas criaturas de modo absoluto.44 Cícero diferencia o direito natural, do chamado direito das gentes e do direito civil. O direito das gentes consiste no direito comum a todos os povos, inclusive aos romanos, em virtude do consentimento mútuo dos mesmos. O direito civil é construído por cada povo em particular. O direito natural dominou o campo teórico em todo o mundo romano na medida em que se tornou o critério para o fundamento do direito positivo. “O direito positivo é modificação do direito natural, feita com elementos arbitrários e acidentais.“45 1.2 O período teológico: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino Através da doutrina cristã, foi introduzido o conceito de pessoa, aprofundado o sentido da dignidade humana e a concepção da lei natural com a participação da lei eterna na criatura racional. A humanidade modificou sua concepção de mundo a partir do cristianismo. 42 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. 3a ed. São Paulo: Atena, 1983.. p.34. KELSEN, Hans. A justiça e o direito natural. São Paulo: Pioneira, 1971. p. 96- 98 44 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 43. 43 21 O cristianismo, nos dizeres de Del Vecchio, não possui um significado jurídico no que tange à sua construção ideológica. O cristianismo produziu efeitos tais no mundo do Direito que acabou por aproximá-lo da Teologia. O Direito passou a ser originada de uma ordem divina e assim também o Estado. Tal vontade divina nos é apresentada não mais pela razão, ou por alguma ordem de caráter cósmico – idéia que freqüentou a Antigüidade – mas pela revelação. Só após o Renascimento tais relações entre o Direito e a religião serão revistas pelos juristas. Para Tomás Antônio Gonzaga, o cristianismo é marco teórico fundamental para a construção de seu pensamento a respeito do direito natural46. Apesar de ter vivido e estudado nos séculos XVIII e XIX, sua formação foi absolutamente cristã, católica e se prendeu em muito ao mundo medieval. Suas citações na obra referida mencionam sempre passagens bíblicas e doutores da Igreja. A começar pelos primeiros estudos em um colégio jesuíta, o poeta de Marília de Dirceu se mostra um homem preso à fé para a justificação do direito natural. Ele deseja escrever um livro sobre o jusnaturalismo porque não havia algo neste sentido em língua portuguesa47. Tal fato pode ser comprovado por este trecho no prólogo de sua teoria sobre o direito natural: O segundo motivo foi a necessidade que há de uma obra que se possa meter nas mãos de um principiante, sem os receios de que beba os erros de que estão cheios as obras dos naturalistas que não seguem a pureza da nossa religião. Sim, não lerás aqui os erros de Grotius, que dá a intender que os cánones dos Concílios podem deixar de ser rectos; que estes e o Papado pretendem adulterar as primeiras verdades. 48 Assim sendo, para a melhor compreensão do sentido dado por Gonzaga ao direito natural é importante retornarmos a Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Tais pensadores podem ser considerados como ícones da filosofia cristã e da própria filosofia medieval. Por estes pensadores podem ser resgatados a influência do cristianismo e seu impacto na humanidade após o fim da Antigüidade. 45 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. p. 56. Daí nossa crítica sobre sua pretensa filiação à Escola de Direito Natural Moderna. 47 Ver nota n° 4 desta monografia que indica que havia dois motivos para o tratado de Gonzaga ter sido escrito por ele. 48 GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 368. 46 22 1.2.1 Santo Agostinho Santo Agostinho nasceu no norte da África na cidade de Tagarte, em 354 d.C. Considerado o maior representante da chamada Patrística, Santo Agostinho se interessou pela filosofia ao ler uma obra de Cícero. Na juventude também conheceu a Bíblia mas esta não chamou sua atenção. Apesar das insistências de sua mãe, o cristianismo só veio a converter Agostinho anos mais tarde. Sua vida, até os 32 anos foi de um jovem mundano que aproveitava os prazeres da vida e detestava o grego – o que o impediu de ler os clássicos na língua original. A partir de seus vinte anos, foi se tornar professor de retórica, primeiro em Tagaste e depois em Cartago. Posteriormente foi viver em Roma e de lá foi para Milão, onde foi novamente professor de retórica. Foi influenciado pelos estóicos, por Platão, pelo neoplatonismo e até pelos adeptos do ceticismo. A infância como cristão não o impediu de sua primeira ligação ao maniqueísmo, doutrina religiosa difundida nesta época. Aos 32 anos, depois de conhecer a palavra de Paulo, se converteu à fé cristã. Voltou, então, a Tagaste onde fundou uma comunidade monástica. Aos 36 anos, tornouse vigário de Hipona, na África, onde permaneceu até sua morte em 395 d. C. Agostinho ficou conhecido por "cristianizar" Platão, fazendo vários paralelos entre a parte idealista espiritualista dele (que diz existir um mundo transcendente) e as sagradas escrituras, fazendo a distinção entre o corpo, sujeito à sorte do mundo e a alma, que é atemporal., com a qual se pode conhecer a Deus. Antes de Deus ter criado o mundo a partir do nada as Idéias eternas já estavam em sua mente. Deus é bondade pura. Ele já conhece o que uma pessoa vai viver antes dela existir. Assim apesar da humanidade ter sido amaldiçoada depois do pecado original, alguns alcançarão a verdade divina, a salvação. Disposto a fundamentar racionalmente a fé, para Santo Agostinho, sem a fé a razão não é capaz de levar à felicidade49. A razão, serve de auxiliar da fé, esclarecendo e tornando inteligível aquilo que intuímos. 49 Gonzaga se refere a esta felicidade de Santo Agostinho em seuTtratado na pág. 368. Tal como o filósofo medieval, Gonzaga ressalta a felicidade verdadeira, somente alcançada em Deus. 23 A teologia deve muito ele e sua importância na Igreja Católica é sempre ressaltada. Trata-se, portanto, de uma obra vasta, sendo que nos prenderemos ao exame de sua concepção de justiça. Segundo Luño Pena, o pensamento jurídico de Santo Agostinho sintetizou toda a referida doutrina anterior e influenciou o pensamento posterior da chamada Filosofia escolástica. Ele forneceu as noções fundamentais de ordem, justiça, lei e Estado. Para o presente trabalho, nos restringiremos à sua discussão sobre o direito natural. Para Santo Agostinho, existe uma lei eterna de Deus que manda preservar a ordem natural e proíbe qualquer tipo de perturbação à mesma. A lei natural é a razão do homem, naturalmente gravada em seu coração 50. A consciência reflete as normas eternas que estão impressas em nosso coração. Há, então, uma lei eterna proveniente de Deus que é revelada ao homem em sua consciência, que estabelece o que deve e o que não deve ser feito. Através da lei natural, também, o homem tende a se associar e viver em comunidade51. O primeiro impulso natural do homem é procurar a paz, o segundo a busca de segurança e o terceiro a se unir a outros homens em famílias e depois em comunidade. A família, assim, é a primeira sociedade natural e dela surgirá – em virtude de seu próprio crescimento – a cidade. Por fim, é importante destacar em Santo Agostinho, que pela lei natural, o homem não tem poder, nem autoridade sobre outro homem, mas somente sobre as coisas e os animais. Por ser a imagem e semelhança de Deus, todo homem é livre e igual52 perante os seus. 1.2.2 São Tomás de Aquino São Tomás de Aquino (1227-1274) nasceu em Roccasicca, entre Nápoles e Roma, de uma família nobre. Seguindo a tradição da época, entrou aos cinco anos para o Monastério beneditino de Monte Casino. Aos 17 anos se tornou dominicano e concluiu os estudos em Paris. Estudou Teologia e Filosofia e se dedicou ao ensino e à fé cristã. 50 O conceito de lei natural em Gonzaga é bastante semelhante ao de Santo Agostinho. AGOSTINHO, Aurélio (Santo). A cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Lemes. São Paulo: Editora das Américas, 1961. LXIX, parte VII. 52 Gonzaga também defende esta igualdade dos homens concedida por Deus pela sua natureza. 51 24 São Tomás é famoso por ter “cristianizado” Aristóteles, à semelhança do que fez Agostinho com Platão. Ele transformou o pensamento desse sábio num padrão aceitável pela Igreja Católica. Foi também um dos responsáveis pelo resgate do filósofo grego no Ocidente de sua época. Apesar de Aristóteles não ter conhecido a revelação cristã, como diz Tomás, e de sua obra ser original, autônoma e independente de dogmas, ele estaria em harmonia com o saber contido na Bíblia. São Tomás aplica o pensamento de Aristóteles na teologia. São Tomás de Aquino passou a vida em Paris e lá escreveu comentários sobre a Sagrada Escritura e suas duas Sumas, que compõem de forma muito especial a sua obra: a Suma contra os Gentios e a Suma Teológica. São Tomás de Aquino pode ser considerado o grande doutrinador da Igreja Católica, sistematizando de forma orgânica o pensamento cristão. Tratou de diversos temas como a teologia, a filosofia, a metafísica, a antropologia, a ética e construiu toda uma filosofia jurídica. Restringiremo-nos aos seus conceitos relacionados à filosofia jurídica, especialmente àqueles que se ligam ao jusnaturalismo. Tal como Aristóteles contribuiu decisivamente para a doutrina jusnaturalista, Tomás de Aquino em muito colaborou para os fundamentos mesma. Sobre a lei, Aquino acredita que a mesma seja algo racional que move o ser humano para o bem. Deus nos instruiu pela lei e pela graça. O autor cristão, em sua Suma Teológica, classifica as leis em quatro tipos: a lei eterna, a lei divina, a natural e a lei humana. A lei eterna é conhecida parcialmente pelo homem mediante suas manifestações. Trata-se de sua manifestação a lei divina, na medida em que essa é revelada aos homens através da Sagradas Escrituras. A lei natural pode ser conhecida através da razão e a lei humana é criada pelo próprio homem. A lei eterna é a lei promulgada por Deus que coordena todos os atos e movimentos. Em tudo está tal lei, tudo rege e tudo ordena de forma que regula toda a criação. Não está tal lei sujeita às vicissitudes a que as leis humanas estão porque deriva da razão divina. A lei eterna é o princípio e o fim, uma vez que, “todo o conjunto do universo está submetido ao governo da razão divina”53. 53 AQUINO, São Tomás (Santo). Suma teologica.. Madrid: La Editorial Católica, 1953-60. 16v. Questão 91, 1a parte da 2a parte. p. 24. 25 A lei natural pode ser totalmente conhecida pelo homem através do uso da sua razão e é a própria manifestação desta lei eterna. “A participação da lei eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural.54” As características da lei natural são a universalidade e a possibilidade de mudança no caso concreto. “O jusnaturalismo tomista não vislumbra na natureza um código imutável incondicionado e absoluto, mas uma justiça variável e contingente como a razão humana. “55 A lei humana se fundamenta na lei natural. Aquela determina a ordem das coisas humanas e depende da conformidade com a razão. Como a primeira lei da razão é a natural, todas as leis humanas devem ser a sua expressão. Desta maneira, o direito positivo deriva do direito natural sendo este o parâmetro para a atuação do legislador. O simples fato de uma lei positiva não estar de acordo com a lei natural não justifica a desobediência ao que foi criado pelo homem; a desobediência só se justifica se essa representar uma afronta à lei divina, a lei eterna conhecida pelo homem: caso contrário a lei humana deve ser imperativamente obedecida. Aquino ainda a define o homem como animal social. Enquanto Aristóteles conceituou o homem como animal político, São Tomás o considera um ser voltado para a vida em sociedade. O filósofo estagirita condicionou a condição humana à sua participação nas decisões políticas o que exclui a mesma de escravos, mulheres. Aquino estende a todos os homens, independente de sua condição, a humanidade, pois a tendência à vida em social é comum a cada um de nós. 54 AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Questão 91, 1a parte da 2a parte. p. 28. BITTAR, Eduardo C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e tópicos conceituais. p. 200. 55 26 Capítulo 2 A Escola Moderna do Jusnaturalismo: os séculos XVII e XVIII De São Tomás de Aquino à Escola Moderna do Junasturalismo, ultrapassamos pelos menos 4 séculos. A humanidade neste período conheceu o Renascimento, a Reforma Protestante e a Contra Reforma, a América e tantos outros fatos, descobertas que transformaram a sua concepção sobre o Direito e seu fundamento. Não poderemos indicar todos os que contribuíram para tantas mudanças na história. Assim, vamos nos deter séculos XVII e XVIII e mais precisamente na Escola Moderna de Jusnaturalismo. Tomás Antônio Gonzaga afirmara pertencer a esta matriz de pensamento. Pretendemos, então, a partir do Hugo Grotius, Thomas Hobbes e Samuel Pufendorf – representantes da Escola Moderna do Jusnaturalimo – traçar as características principais da mesma. Gonzaga em seu tratado, combate, especialmente, esses autores, e daí a nossa escolha restrita aos três. A Escola Jusnaturalista Moderna se distanciou por completo das concepções aristotélica e tomista que predominavam sobre o direito natural. Em nada se relacionando à Escola Espanhola de Vitorio e Suárez A partir do século XVII torna-se mais nítida a separação entre direito e religião no que tange à justificação daquele. Os juristas almejavam construir um sistema racional de normas de forma a não mais fundamentar o direito em bases teológicas. Para Ferraz Júnior está na criação de sistema a maior contribuição do jusnaturalismo moderno: A teoria jurídica européia, que até então era mais uma teoria da exegese e da interpretação de textos singulares, passa a receber um caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura dominou e até hoje domina os códigos e compêndios jurídicos.56 Para a maior parte dos autores referentes à Escola Jusnaturalista Moderna, o direito natural está desvinculado de seu fundamento divino. A natureza humana passou a ser concebida de maneira empirista e racional. O direito está dividido em dois sistemas normativos diferenciados: o natural e o positivo. São, pois, ordens distintas, a religiosa e a jurídica. Sobre esta necessidade de se pautar o direito sob os domínios da razão em leis naturais, afirma Ferraz Júnior: 56 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica decisão, dominação. p.68 27 A redução das proposições a relações lógicas é pressuposto óbvio da formulação de leis naturais, universalmente válidas, a que se agrega o postulado antropológico que vê no homem não um cidadão da cidade de Deus, ou, como no século XIX, do mundo histórico, mas um ser natural, um elemento de um mundo concebido segundo leis naturais.57 As diferenças são claras entre a escola clássica e moderna. Devemos ressaltar principalmente que o direito natural, para a escola moderna jusnaturalista passou a ter um conceito subjetivo. Diferentemente de Aristóteles, São Tomás ou Agostinho, o direito natural não é mais um dado de forma objetiva apresentado pela ordem divina. Ele deverá ser construído a partir da razão humana, pois o homem é que se constitui como a base para todo conhecimento. Segundo Luño Pena58, são quatro as teses principais da Escola Jusnaturalista. A primeira diz respeito à natureza humana enquanto fundamento do direito. A segunda se relaciona ao estado de natureza no sentido deste ser a construção racional para explicar a vida em sociedade. Para explicar a origem do Estado e do Direito, a terceira tese fundamenta o contrato social. Por fim, a Escola defende os direitos naturais como inatos, invioláveis e imprescritíveis. Podemos, então, resumir as idéias dos pensadores jusnaturalistas modernos nestas quatro diretrizes principais: a natureza humana, o estado de natureza, o contrato social e os direitos naturais. Nos dizeres de Edgar da Mata Machado, os jusnaturalistas modernos são os grandes adversários do conceito de direito natural. Reproduzindo suas palavras, percebemos que o racionalismo como expressão do direito natural, é um primeiro avanço para a concretização de um Direito Positivo: Racionalizado, reduzido a conceito “inventado” pelo espírito sem qualquer referências às circunstâncias e às situações concretas históricas, fáticas, existenciais, da condição humana, o direito natural dos jusnaturalistas estaria fadado, em breve, apenas iniciado o século XIX, a ser completamente elidido pelos que não vêem outro objeto para o Direito senão o estudo das normas originárias da ordem estatal, expressa sob as mais diferentes formas.59 57 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica decisão, dominação. p. 68. LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filosofia del derecho. p. 548. 59 MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Elementos da teoria geral do direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito. p. 76. 58 28 2.1 Hugo Grotius Considerado o fundador da Escola Moderna do Jusnaturalismo 60, Hugo Grotius nasceu em Delft, na Holanda no ano de 1583. Cursou Direito na Universidade de Leyden e também estudou Letras. Já em 1615 se interessou por conflitos de ordem internacional e foi para Inglaterra resolver uma pendência comercial entre este país e o seu. Residiu ainda na França de onde precisou se retirar, em 1621, em função das disputas políticas internas deste Estado. A partir de 1634 foi por dez anos, embaixador da Suécia em Paris. Morreu na Alemanha no ano de 1645. Grotius possuía grande interesse pelo direito internacional. Ele procurou formular um sistema de normas entre os vários Estados de forma a serem válidas em tempo de guerra e de paz. Tal sistema também deveria ser construído de maneira diferente das normas positivas de cada Estado e independente das crenças religiosas. Nem o Papa e nem o Imperador eram mais capazes de exercer o controle nas relações internacionais neste dado momento histórico em face das lutas e divisões religiosas e daí a busca de Grotius por um sistema alternativo para estas relações. Este sistema alternativo para a resolução dos conflitos de ordem internacional se basearia nas leis naturais. A Bíblia não poderia mais exercer este papel normativo conciliador porque admitia interpretações diferentes, mas a lei da natureza poderia ser a solução, na medida em que era a mesma para todas as nações e todos os homens. O conceito de direito para Hugo Grotius está desvinculado da Teologia. O direito pode e deve ser demonstrado racionalmente. O direito é um pressuposto para a vida em sociedade. Grotius acredita que o homem tende a uma vida social – a partir de um instinto natural e teleológico – e para que a mesma possa ser desenvolvida o direito precisa regulamentá-la. A partir destes elementos podemos entender o novo sentido dado pelo autor ao direito natural. Diferentemente das escolas jusnaturalistas anteriores, para Grotius o direito natural existe e subsiste independente de Deus. Sua frase célebre: ”O Direito Natural existiria mesmo que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas 60 Luño Pena discorda desta posição na medida em que defende que Grotius seguiu as orientações de seus predecessores jusnaturalistas. 29 humanas” 61 que consagra esta independência, não quis dizer que o direito natural não provinha mais de Deus. Grotius insiste ainda que as leis naturais estão escritas nas mentes e nos corações dos homens por Deus, mas as normas de direito natural persistem de forma autônoma à vontade divina, na medida em que são próprias do homem. O fundamento, então do direito natural passa a ser a natureza social e racional do homem, impressa e dada aos homens pelo Senhor. O direito natural é caracterizado por Grotius como universal e imutável. Sua força obrigatória deriva de Deus, que criou a natureza humana, porém a sua imutabilidade nem mesmo Deus pode modificar. Portanto, para o filósofo: O direito natural é um ditame da razão que indica ter alguma coisa, por sua conformidade ou não-conformidade com a própria natureza, fealdade ou necessidade moral, donde estar proibida ou ordenada por Deus, autor da natureza.62 Há ainda outro tipo de direito que se distingue do direito natural: trata-se do direito das gentes. O direito das gentes não pode ser deduzido racionalmente como o direito natural porque se origina do consentimento de todos os países. Todos os povos possuem a liberdade para modificar essas regras. A força obrigatória para o cumprimento do direito das gentes reside unicamente na adesão ao pacto firmado entre as nações. O fundamento, então, para o direito internacional, é obrigatoriedade dos pactos. Partindo deste princípio da inviolabilidade dos pactos, podemos deduzir que dele derivam a legitimidade dos governos e a impossibilidade do descumprimento dos tratados internacionais. Grotius se apresenta também como um autor contratualista, na medida em que, de forma empírica em admite a constituição do governo com base em um pacto. Gonzaga utiliza diversos conceitos de Grotius e em seu tratado poderemos compreender o amplo significado deste pensador para o jusnaturalismo moderno. 61 GROTIUS, Hugo. In: BITTAR, Eduardo, C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e tópicos conceituais. p. 222. 62 GROTIUS, Hugo. On the Law of War and Peace “Natural right is the dictate of right reason, shewing the moral turpitude, or moral necessity, of any act from its agreement or disagreement with a rational nature, and consequently that such an act is either forbidden or commanded by God, the author of nature.” Disponível em:<www.cosntitution.org >. Acesso em 10 dez. .2002. 30 2.2 Samuel Pufendorf Samuel Pufendorf nasceu em Chamnitz – cidade que se localiza no atual território alemão – em 1632. Filho de um pastor luterano, Pufendorf se formou em Teologia e Direito na Universidade de Leipzig , sendo o primeiro autor alemão que separou racionalmente a Filosofia da Teologia. 63 Sua distinção ultrapassou o critério de normas referentes ao sentido e à finalidade desta vida, em contraposição às referentes à outra vida, distinguindo as ações humanas em internas e externas. O que permanece guardado no coração e não se manifesta exteriormente deve ser objeto da Teologia Moral. 64 Foi embaixador da Suécia na Dinamarca e, por motivos políticos, ficou preso por aproximadamente oito meses. Neste período, o autor escreveu sua primeira obra, em 1660, inspirado em Hobbes e Grotius. Para Del Vecchio e Luño Pena, o pensamento de Pufendorf é uma síntese destes dois filósofos. Assumiu a cátedra de Direito Natural e da Gentes – a primeira criada no ambiente universitário – na Universidade de Heidelberg. Também lecionou na Faculdade de Direito da Suécia. Seu prestígio se deu, especialmente, com o seu Tratado de Direito Natural e das Gentes publicado em 1672. Faleceu em 1694, depois do reconhecimento acadêmico. Tomás Antônio Gonzaga se refere muito a este tratado de Pufendorf e daí a necessidade de conhecer suas principais idéias sobre o jusnaturalismo. Contrariando Hobbes, para Pufendorf o estado de natureza, anterior à vida em sociedade, se caracteriza por um clima de paz entre os homens iguais e livres. Só que tal estado é frágil na medida em que é construído sob uma relativa segurança. A sociedade nasce de um contrato entre os homens que passam a se submeter somente à autoridade do Estado para não viverem nesse ambiente inseguro existente no estado de natureza. Pufendorf ressalta a origem das leis naturais no próprio homem bem como a sua sociabilidade natural: A natureza do homem, então, é de tal modo constituída que a raça humana não pode estar segura sem vida social e a mente parece ser capaz de idéias que servem a esse fim. (...) Segue-se daí que Deus 63 64 LUÑO PENA, Henrique. Historia de la filosofia del derecho. p. 547. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 68. 31 quer que o homem use para a preservação de sua natureza as forças que existem dentro de si pelas quais ele está consciente de superar as bestas; e que Deus também quer que a vida humana seja diferente da vida sem lei tal como a dos animais. Já que ele não pode alcançar isto senão pela observância da lei natural, é também compreensível que ele seja obrigado por Deus a observá-la isto como meio que o próprio estabeleceu expressamente para o homem alcançar esse fim (...) 65 Assim, diferentemente de Hobbes, e se aproximando de Grotius, Pufendorf acredita na sociabilidade natural do homem. Trata-se de um princípio regulativo natural de se associar que leva o homem a viver em comunidade em busca de sua própria sobrevivência. Devemos apontar como importante contribuição de Pufendorf a criação de um sistema completo e elaborado para a Escola de Direito Natural. A este respeito Tércio Ferraz Júnior, sintetiza: Pufendorf coloca-se num ponto intermediário do desenvolvimento do pensamento jurídico do século XVII, podendo ser considerado um grande sintetizador dos sistemas de sua época, dele partindo, por outro lado, as linhas sistemáticas básicas que vão dominar, sobretudo, o direito alemão até o século XIX. 66 Importante ressaltar, por fim, que Pufendorf divide as normas de Direito Natural em absolutas e hipotéticas. Sobre tal distinção, afirma Tércio Ferraz Júnior: As primeiras são aquelas que obrigam, independentemente, das instituições estabelecidas pelo próprio homem; as segundas, ao contrário, as pressupõem. Esta Segunda classe de normas é dotada de certa variabilidade e flexibilidade, possibilitando ao Direito Natural uma espécie de adequação à evolução temporal. A idéia de sistema envolve, a partir daí, todo o complexo do direito metodicamente coordenado na sua totalidade ao Direito Natural.67 “Mans nature, then, is so constituted that the human race cannot secure without social life and the human mind is seen to be capable of ideas which serve this end. It follows that God wills that a man should use for the preservation of his nature the powers within him in which he is conconscious of surpassing the beasts; and he also wills that human life be different from the lawless life. Since he cannnot achieve this except by observence of natural law, it is also understood that he is oligated by God to observ is as the means which God Himself has established expressly to achieve this end” PUFENDORF, Samuel. On the duty of man and citizen Acoording to Natural Law Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.36. 66 FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 68. 67 FERRZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. p. 69. 65 32 2.3 Thomas Hobbes Thomas Hobbes nasceu em Wesport, na Inglaterra em 1588. Estudou na Universidade de Oxford e se dedicou ao ensino privado de vários jovens nobres. Em seus estudos adquiriu profunda aversão à Escolática. Viveu na França, onde conheceu Descartes e se tornou professor de matemática. Em 1651, voltou para a Inglaterra e continuou a escrever até sua morte em 1679. Este autor é considerado por parte da doutrina defensor do Estado absoluto e do ser humano enquanto expressão única do egoísmo. Para compreendermos o sentido dado por Hobbes ao direito natural, teremos que perpassar filosofia política e, a partir dela, buscar sua contribuição ao jusnaturalismo. Inicialmente, entende-se por estado de natureza uma situação não-histórica pensada para auxiliar o estudo da questão da legitimidade do poder dentro da sociedade. Busca-se compreender o comportamento do homem fora do ambiente social para com isso perceber os motivos da constituição da própria. 68 O estado de guerra permanente surge porque cada homem é um adversário potencial do outro que tenta saciar seus apetites, paixões e garantir a sobrevivência biológica às custas da sua própria força. Trata-se de um verdadeiro embate entre iguais. Neste estado o homem não tem como desejar, ou seja planejar seu futuro, porque deve se preocupar com a sua sobrevivência estando em constante risco pela concorrência de outros que também tentam sobreviver usando toda a força, sendo que os recursos para tanto escassos Nesta guerra permanente, o choque entre os homens é inevitável, pois a única medida do direito de cada um é a lei do mais forte. Cada homem procura sua auto-conservação e proveito próprio dentro de um reino dos instintos e das paixões. Este é o quadro que se estabelece no estado de natureza. O resultado final deste estado de guerra permanente é o extermínio da humanidade. 68 Para Hobbes, o homem no estado de natureza é movido pela sua própria força, na tentativa de saciar os seus apetites e sobreviver. Apetite pode ser definido como tudo que se quer sem haver a possibilidade de espera para se obter. Força pode ser entendida como tudo aquilo que pode aumentar a potência humana. O homem precisa obter certas coisas, mas está entregue a si mesmo porque não mantém laços sociais. Nesse estado de natureza o homem só pode obter aquilo que sua força permite ter e guardar. O homem neste estado é pura paixão, na medida em que vive para a satisfação do imediato. 33 O estado de natureza de Hobbes parece paradoxal, porque o ser humano se encontra na sua maior potência, não sendo exercido nenhum controle sobre seus atos. Os homens são livres e iguais nesta luta por todas as coisas e pela sobrevivência. Não há espaço para se pensar no futuro porque não existe a possibilidade de agir ou transformar a realidade. Não há vencedores nesta guerra, porque, ao final dela os homens se destroem. Para se evitar a destruição da humanidade entra-se na sociedade através do contrato social. “A transferência mútua de direitos é aquilo que se chama contrato.” 69 O homem hobbesiano descrito no estado de natureza não desaparece com a civilização. Na verdade, com a constituição da sociedade, aquele permanece adormecido ou controlado pelas instituições e leis da vida civilizada. Mas, o homem, movido pelas paixões do estado de natureza, pode aflorar a qualquer momento porque, continua dentro do ser humano que vive em sociedade. A saída deste estado de natureza está ligada à capacidade do homem de perceber que está limitado no estado de natureza, pois não há segurança para que se planeje o futuro. A luta está restrita ao presente e à sobrevivência biológica. E todos os homens lutarão para alcançar esse mesmo objetivo com a força que cada um possui. Se existe uma enorme possibilidade de um indivíduo isolado não conseguir meios (e esses são escassos) para sua sobrevivência biológica, e se existem outros homens dispostos como ele a este mesmo objetivo, a morte desse passa a ser visualizada como a sua. O homem passa a temer a morte violenta porque ela pode acontecer a qualquer um. E a razão, começa a procurar uma forma de sair deste estado para que a vida do ser humano possa ser preservada. A presença da racionalidade no estado de natureza pode ser percebida na presença das leis naturais. Sobre o que seja o direito de natureza, Hobbes define: O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam de ius naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.70 69 70 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1994. (Os Pensadores). p.115. HOBBES, Thomas. O Leviatã. (Os Pensadores). p.113. 34 A lei de natureza, em Hobbes, é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. 71 Percebemos que as leis naturais derivam da razão humana e visam, especialmente, a preservação da vida. As leis naturais, então, para Hobbes, acompanham a natureza humana e conduzem o mesmo a buscar um estado de paz. A partir da consciência adquirida dessa necessidade da saída do estado de natureza, todos os homens, em comum acordo, optam por alienar seus direitos aparentemente plenos e pactuam que não se submeterão à morte violenta. Para Hobbes, quem garante o contrato é o Leviatã. A garantia do pacto não depende de um homem só, mas da adesão de todos, de forma que nenhum homem se julgue responsável pelo cumprimento do mesmo. O Leviatã pode ser entendido como uma instância superior, a lei fundadora da civilização, mas o que importa é destacar que este só garante que a morte dos homens não será violenta. 71 HOBBES, Thomas. O Leviatã. In: Coleção Os pensadores; Hobbes. p.113. 35 Capítulo 3 O Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga Depois dos dois capítulos a respeito da perspectiva histórica do jusnaturalismo, devemos tentar agora encontrar o sentido dado por Gonzaga ao tema. Para isso, analisaremos neste capítulo seu Tratado de Direito Natural. Nesta análise, pretendemos estabelecer uma primeira parte que investiga as condições em que o Tratado foi publicado e em uma segunda parte buscar reconstruir o sistema do autor. 3. 1 Como era Gonzaga e como era Coimbra por volta de meados do século XVIII Tomás Antônio Gonzaga fora aprovado bacharel em leis em 6 de junho de 1766. Ele saiu de Coimbra com o título de bacharel formado o que o permitia o exercício profissional da advocacia e o acesso à magistratura Em março de 1768 passou a assinar Dr. Gonzaga, pois também alcançara o título de doutor nesta data.Adelto Gonçalves aponta as seguintes preferências e características de nosso poeta ao deixar Coimbra: Ao deixar Coimbra, era um jovem de 23 anos, estatura ordinária e fisionomia clara animada por dois olhos azuis e penetrantes. Já levava o gosto pela Antigüidade que marcaria a sua poesia. (...) Se também cultivava Camões, não deixava de admirar Miguel de Cervantes.72 Gonzaga se encontrava em pleno arcadismo literário, e no ano em que deixou Coimbra, o ministro abolira o Índex Jesuítico que impedia a importação de obras gregas e latinas e a circulação de numerosos clássicos portugueses. Substituindo este Índex, fora criada a Real Mesa Censória, que possuía um espírito bem mais liberal. “Portugal por aqueles tempo vivia uma atmosfera artificial como se o país estivesse separado da Europa por léguas e léguas.”73 Em outubro de 1770, Gonzaga estava em Lisboa, quando, em uma grande fogueira, foram queimadas 72 73 GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do Iluminismo. p. 70. GONÇALVES, Adelto. Gonzaga: um poeta do Iluminismo. p. 71. 36 obras de Voltaire, Bayle, Rosseau e outros que eram considerados inimigos da religião e defensores do ateísmo. Em 1773, Tomás Antônio Gonzaga resolveu se candidatar à uma cátedra acadêmica na Universidade de Coimbra. Para tal empenho, escreveu o Tratado de Direito Natural, dedicado ao Marquês de Pombal. Lembramos que o pai de Tomás Antônio, João Bernardo Gonzaga, também ligado à área jurídica e à magistratura, pertencia ao “círculo íntimo dos conselheiros de Pombal” 74, o que poderia lhe facilitar o ingresso nesta Universidade. O trabalho de Gonzaga aparecia com um certo atraso, pois apresentava como novidade um tema já bastante conhecido e discutido. No entanto, devemos considerar que a circulação de idéias na Europa era bastante lenta e os autores citados por ele se encontravam ainda vivos. No seu prólogo, ele reclama da falta de obras sobre o jusnaturalismo em sua língua. Tal reclamação confirma esta lenta circulação de idéias, na medida em que, no século XVVIII, há uma certa carência de publicações sobre um assunto corrente em língua portuguesa. Importante salientar ainda que o poeta nos colocou em dia com os principais autores da doutrina ligada ao direito natural. Temos, então, uma obra que se propôs a investigar um tema de grande valia para meio jurídico com a defesa de determinados argumentos que já então não eram os mais recentes. O que nos parece contraditório, então, é que seu Tratado que se dizia filiado à Escola Moderna de Jusnaturalismo defendia idéias que não pertenciam a ela. A dedicatória ao Marquês de Pombal talvez possa esclarecer estes tempos de Tomás Antônio Gonzaga e de seu Tratado. Vejamos, primeiramente, os termos desta dedicatória no que tange ao espírito renovador do Marquês: Também, Senhor, também, me estimulou o espírito da gratidão. Todos sabem ser V.Exa. aquele Herói, que, amante da verdadeira ciência e desejoso do crédito dos seus nacionais, os estimulou aos estudos dos Direitos Naturais e Públicos, ignorados se não de todos, ao menos dos que seguiam a minha profissão, como se não fossem sólidos fundamentos dela. 75 74 MAXWELL, Keneth. A devassa da devassa: a inconfidência mineira, Brasil - Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 123. 75 GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 362. 37 Coimbra foi reformada na época do Marquês para aproximá-la do restante da Europa e evitar a decadência do ensino superior. Sobre esta reforma devemos inferir que a prática do pombalismo, por si só, se moviam entre avanços e recuos em relação ao antigo e o moderno – como verificamos no próprio Tratado de Direito Natural. Gonzaga pretendia estar atualizado com os autores jusnaturalistas deste momento – e ele o faz, porém se entrega a uma série de idéias que não mais eram aceitas. A rigor os efeitos desta reforma passaram a ser vistos a partir de 1770: Foram criadas as faculdades de Filosofia e de Matemática e remodeladas outras, como a de Medicina, que passou a exigir cinco anos de estudos. Matemática ficou com as cadeiras de Ciências Físicas e Matemáticas, Álgebra, Astronomia e Geometria. Foram criados o Museu de História Natural, o Observatório Astronômico, o Jardim Botânico de Coimbra, a Oficina Tipográfica e o Gabinete de Física, que foi confiado ao italiano Domingos Vadelli, doutor pela então Universidade de Pádua. 76 Tal renovação em muito entusiasmou os mais cultos, que pretendiam ver Coimbra de acordo com o século e Portugal sem os vestígios dos atrasos provocados pelos jesuítas. Sobre este combate entre jesuítas e Pombal importante ressaltar que o combate era de caráter político e não religioso, como acentuado por Caio Boschi77. Não se tratava, então, de uma luta contra a religião católica ou a ordem dos jesuítas enquanto promotoras da fé. O combate era contra o poder político que a Igreja, através, especialmente, dos jesuítas exerciam em Portugal, especialmente, antes de Pombal. A candidatura de Tomás Antônio Gonzaga à cadeira de Direito Pátrio, em 1773, em muito se deve a este clima de reforma e mudança que surgiu dentro da Universidade a partir deste momento. A aspiração à cátedra se limitou ao Tratado, já que o Marquês de Pombal não autorizou a sua publicação. Tomás Antônio era um bacharel que não tomara ainda conhecimento de Rousseau, publicado em 1762, nem mesmo das idéias de Jonh Locke de um século antes mas como citar também esses filósofos em uma época em que seus livros 76 GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 72. 77 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. p.47. 38 ardiam na fogueira da Mesa Real Censória? Podemos ainda afirmar que era extremamente perigoso defender idéias mais recentes que proclamavam os direitos individuais. Gonzaga se apresentou como um jusnaturalista contrário à esta tendência revolucionária. Sobre a dedicatória a Pombal havemos de ponderar que em muito Gonzaga pretendia agradá-lo. O Marquês não era um defensor do absolutismo total e não ignorava os avanços da Ilustração. O poeta Gonzaga construiu um Tratado onde ao rei cabia exercer o poder, porém não deveria se tornar tirano afirmando também a superioridade do Direito Pátrio, ao lado do Direito Natural e das Gentes, ou seja a primazia da razão. Há mostras do Iluminismo em seu pensamento quando diz que “todos os homens são iguais e têm direito a que outro não os sujeite.” 78 A respeito do exercício do poder real, este deveria ser, em sua opinião, superior inclusive ao do Papa e ao dos clérigos. Trata-se de um mero oportunismo de Gonzaga já que durante a década de 1760, Dom José79 lutara contra o Papa e chegara até a romper relações diplomáticas com a Santa Sé. Sobre a relação entre a Igreja e o Estado pombalino neste período, considera Caio Boschi: Pombal direcionou sua ação no sentido de reforçar o aparelho de Estado, no firme propósito de eliminar todas as forças de contestação da autoridade estatal. Para tanto, do ponto de vista político, era imprescindível submeter a Igreja à autoridade central, pondo termo à hegemonia eclesiástica sobre a sociedade civil. 80 Neste sentido de reforço ao poder estatal frente à Igreja por Pombal, o combate aos jesuítas aconteceu porque esses religiosos representavam “a peça – chave da vida religiosa e política de Portugal, isto é o aparelho ideológico dominante, contra o qual voltar-se-ia toda a carga da administração de Pombal.”81 Na opinião do poeta, competiria exclusivamente, ao soberano a decisão de queimar determinados livros82. Percebemos, portanto, o caráter até certo ponto 78 GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues Lapa. p. 500. 79 Dom José era rei de Portugal sendo sua sucessora dona Maria I, a Piedosa para os portugueses e a Louca para os brasileiros. 80 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. p.46. 81 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. p.47. 82 GONZAGA, Tomás Antônio. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 511. 39 interesseiro de Gonzaga que escreveu um texto que ia ao encontro dos proclames do Marquês de Pombal, que em muito se portava como um déspota esclarecido. Assim sendo, temos as condições em que o Tratado foi concebido em uma época contraditória governada por um Pombal que, ora pretendia colocar Portugal sob os auspícios das idéias iluministas ora insistia na construção de um poder concentrado nas mãos de um único soberano. Gonzaga, em sua tentativa de chegar à Coimbra, é reflexo de tudo isso. Pretendia escrever algo que agradasse àquele que promovia a reforma na Universidade e que, de qualquer maneira, lhe interessava. E, ainda, persistia em uma espécie de absolutismo cujo fundamento o Direito Natural estava vinculado ao poder divino. Adelto Gonçalves levanta duas hipóteses quanto à publicação do Tratado de Direito Natural. Em uma primeira hipótese, Gonzaga fora recusado, mas não isoladamente, pois todos os candidatos que obedeceram ao novo regimento e apresentaram teses para obter acesso às cadeiras acadêmicas foram preteridos. Colocar Grotius, Pufendorf, Heinécio em seu Tratado pode ter causado uma grande polêmica em Coimbra com a crítica interna ao seu avanço, o que provocou a sua natural reprovação. A segunda hipótese, corroborada por Márcio Jardim83, Joaci Pereira Furado84, é de que o texto em questão não foi sequer lido pelo Professor Joaquim Vieira Godinho, catedrático de Direito Pátrio, cujo substituto era Pascoal José de Melo Freire dos Reis, e muito menos pelo ministro Carvalho e Melo, vulgo Marquês de Pombal85, porque não se encontrava escrito em latim como era obrigatória na época para livros e teses. Com o insucesso na sua entrada na Universidade de Coimbra, Gonzaga deixou seu Tratado de lado e passou a advogar em Lisboa. Em 1778, aos 34 anos, o poeta passou ao cargo de juiz de fora em Beja, onde permaneceu até 1781. Coincidentemente, só depois que Pombal deixou de ocupar o poder, Tomás Antônio Gonzaga conseguiu um lugar de destaque dentro da magistratura. 83 JARDIM, Márcio. Inconfidência mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989. p.72. 84 FURTADO, Joaci Pereira. “Cronologia de Tomás Antônio Gonzaga”, In: Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.17. 85 Marquês de Pombal permaneceu no poder até 1777, por 22 anos consecutivos. 40 Como juiz de fora, o poeta alcançou posição de destaque na comunidade. Tinha rendas anuais elevadas e um cargo onde possuía maior autonomia que os juízes ordinários. Em 27 de fevereiro de 1782, Gonzaga foi nomeado ouvidor – geral de Vila Rica. Ele veio para as Minas Gerais para exercer o cargo civil de maior importância no Brasil Colônia - a Ouvidoria. 3.2 Sobre o sistema elaborado no Tratado de Direito Natural Depois de vistas as condições em que O Tratado de Direito Natural foi publicado, bem como a sociedade portuguesa e o ambiente universitário de Coimbra naquele momento, podemos compreender o sistema imaginado por Gonzaga.Entendemos por sistema as partes que compõem o Tratado e seu conteúdo. O Tratado de Direito Natural está dividido em três partes. A primeira parte é denominada “Dos princípios necessários para o direito natural e civil”, a segunda “Dos princípios para os direitos que provém da sociedade cristã e civil” e por fim a terceira e ultima que é “Do direito, da justiça e das Leis”. Vamos ver, resumidamente, cada uma delas. 3.2.1 Dos princípios necessários para o direito natural e civil Na Introdução do Tratado nos deparamos com a primeira definição dada por Gonzaga sobre o direito natural: A colecção pois destas leis, que Deus infundiu no homem para o conduzir ao fim que se propôs na sua criação, é ao que vulgarmente se chama Direito Natural, ou lei da natureza, porque elas nos são naturalmente intimadas por meio do discurso e da razão. 86 Temos, então, o que Tomás Antônio chama de direito natural e sua citação acima nos mostra que Deus imprimiu no coração dos homens leis naturais. Ainda na Introdução, o autor também define o que considera como Direito Civil: 41 como no estado natural não podiam haver estas outras leis, pois a Natureza, que a todos fez iguais, não deu a uns o poder de mandarem nem pôs nos mais a obrigação de obedecerem, aprovou Deus as sociedades humanas, dando ao sumo Imperante todo o poder necessário para semelhante fim. A colecção das leis, que provém deste direito, é ao que chamamos de Direito Civil, pois que elas não provém da Natureza, que obriga a todos como homem, mas só da sociedade, que obriga aos que nela vivem, como cidadões.87 Nesta parte, Gonzaga pretende apresentar “os princípio de um e de outro direito” 88. E o capítulo que a inaugura é Da Existência de Deus. Tal como as leis da natureza foram impressas no coração dos homens – a transcendência do direito natural também é divina – a organização da sociedade também depende desta premissa. A existência de Deus é um fato que não pode ser negado de forma alguma: “Isto é uma verdade que qualquer um alcança.”89 Para continuar sua discussão sobre tal verdade, Gonzaga se utiliza dos antigos, dos modernos e até dos povos bárbaros para reafirmar sua convicção. Sobre sua reflexão neste tema, interessante passagem pode nos revelar uma face do autor muito conhecida nos tempos da Inconfidência: se apenas vemos um relógio, ou outra máquina, não a podemos atribuir ao acaso, mas logo conhecemos que houve um artífice que a fabricou, como poderemos olhar para a máquina do mundo, tão superior a todas, sem que venhamos no conhecimento que havia haver um autor sumamente sábio e sumamente poderoso que a fizesse?90 Deus foi comparado por Tomás Antônio a uma artífice que fabricou a máquina do mundo. Esta concepção de Deus em muito se assemelha à apregoada pela Maçonaria. Adelto Gonçalves indica que o poeta era filiado à Maçonaria, porém não se sabe exatamente a partir de quando se de deu tal ingresso. A rigor, a primeira organização paramaçônica portuguesa foi fundada em 1779, em Lisboa, e se chamava Academia Real das Ciências. O biógrafo de Gonzaga acredita que o 86 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 368. 87 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 369. 88 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 369. 89 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 373. 90 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 375. 42 poeta não participou desta fundação, pois estava neste momento em Beja. Mas, possivelmente, acompanhou estas notícias da Academia e as anteriores que se referiam à doutrina maçônica. A sua segunda convicção é da existência do direito natural. Negá-lo não é menos nocivo à sociedade humana que a péssima doutrina dos ateus.”91 As leis naturais provém de Deus, daí sua necessidade de provar a existência Dele. Para a comprovação da existência do direito natural, o poeta se fez valer de Grotius e do apóstolo Paulo. A partir daí, a questão do livre arbítrio emerge para continuar a construção de idéias de seu Tratado. Consiste o livre arbítrio na faculdade humana de agir para o bem ou para o mal. Deus não poderia imputar à sua criatura um ato que não lhe fosse de sua vontade. Na liberdade do homem e no livre arbítrio encontramos a finalidade da lei, que é fazer-nos “merecedores do prêmio e do castigo por meio dela; pois se Deus não se propusesse semelhante fim, escusava de nos dar a razão. (...)”92 Sobre o conflito de normas, esse deverá ser assim solucionado: Sendo a lei a norma das acções, o que não só se deve entender da lei natural, mas também da humana, é necessário examinar-se com qual das leis se deverá conformar a nossa ação, nos caso em que concorram duas totalmente opostas. Ninguém duvida que, se uma for de Deus e a outra do soberano, devemos obedecer em primeiro lugar à de Deus; pois sendo ele superior ao legislador humano, é bem certo que não haverá lei humana, que possa revogar o menor dos preceitos divinos 93 Citando a regra de Pufendorf, toda ação deve ser atribuída ao seu respectivo autor. A partir desta regra geral, não poderão ser imputadas as ações humanas que se fazem sem o lume da razão e sem vontade94. No último capítulo desta primeira parte, temos o princípio do direito natural. A vontade de Deus é o princípio do Direito Natural para Tomás Antônio Gonzaga, já que quem o criou foi o próprio Senhor. Neste capítulo, Gonzaga combate Grotius e sua frase célebre, de que se não houvesse Deus, ainda assim haveria Direito 91 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 379. 92 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 391. 93 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 419. 94 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 423. 43 Natural em função da razão humana. Sobre isto, o poeta afirma: “Esta doutrina repugna à piedade, pois é supor que além de Deus há outro ente, a quem tenhamos obrigação de obedecer, e com quem Deus tivesse a necessidade de se conformar”.95 Grotius e Pufendorf estabeleceram como princípio do Direito natural a sociedade e a natureza humana. Gonzaga os considera ateus, inimigos da religião por colocarem como princípio outro que não Deus e sua vontade. Lourival Gomes Machado, critica Gonzaga nas suas referências a trechos de Grotius porque o poeta se utiliza dos mesmos de forma errônea. A começar porque Grotius não é uma ateu, mas antes de tudo um crente cristão, e prossegue: Novamente, Gonzaga toma no texto de Grotius apenas aquilo que lhe abrirá oportunidade para refutação com que, na verdade visa menos comentar o trecho referido do que expor suas próprias idéia. (..) Ora, no caso, o fato de citar isoladamente e sem referência, apenas o terceiro sentido da palavra, assume certa gravidade, pois o texto de Grotius não é de molde a admitir tal mutilação, posto que se encadeiam e se completam as várias interpretações do termo.96 E estas imprecisões vão se suceder durante todo o Tratado. 3.2.2 Dos princípios para os direitos que provém da sociedade cristã e civil Tomás Antônio escreve na segunda parte sobre o que hoje podemos chamar de política. Ele pretende determinar os princípio necessários para o estabelecimento tanto da sociedade cristã como da sociedade civil. E é sobre a sociedade cristã que ele começa a discorrer primeiramente. O poeta inicia sua discussão sobre a sociedade cristã defendendo a necessidade da religião revelada. Sendo necessária a revelação divina ao homem, esta se concretiza no cristianismo. Cristo se revelou como verdadeiro Deus e sua doutrina se expandiu por todo o mundo. Nestas colocações sobre o cristianismo, Gonzaga se mostra com um domínio total sobre a matéria. Há todo um conhecimento prévio sobre a fé, as bases da religião católica e suas páginas transpiram a própria religiosidade do poeta. Não nos esqueçamos que seus estudos 95 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 433. 96 MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Editora da Universidade de São Paulo, 1968. p. 41. 44 secundários foram feitos entre os jesuítas, o que lhe permitiria estas inúmeras citações bíblicas e teológicas sobre a sua religião. A origem da Igreja Católica em Cristo, via São Pedro, a torna a única legítima para Gonzaga. Sobre isso, discorre da seguinte forma: Provados que não pode haver mais do que uma só igreja, pois não podem haver diversos sacramentos e diversa doutrina, nem mais do que um só sacrifício e uma só cabeça, havemos de concluir que as igrejas que seguem a religião com erros, e por isso separadas do grêmio da verdadeira igreja Romana, não são verdadeiramente igrejas de Cristo, mas sinagogas do Anticristo, como lhes chamam S. Hilário e outros.97 A Igreja sendo a herdeira de Cristo na Terra é assistida pelo Espírito Santo o que a permite ser considerada como uma instituição santa. Para sua organização, Gonzaga trata da mesma de modo a nos revelar que o poder do Papa é inferior ao do Concílio98. Na constituição do que seja a sociedade civil e de seus princípios, temos, basicamente, uma exposição sobre o governo e seu exercício. Ainda no início, após citar as opiniões de Pufendor, Heinécio, Bodino e Hobbes, Gonzaga volta à providência divina de Santo Agostinho em sua Cidade de Deus como real motivação da vida em sociedade civil: É o homem o mais feroz e soberbo dos animais: ora quantos seriam os homicídios e por que leves causa não se praticariam a ser cada um juiz das suas próprias ofensas e árbitro dos seus próprios desagravos. Daqui se segue que a sociedade civil, posto que não seja mandada por Direito Natural, de forma que digamos que o quebram os que vivem sem ela à maneira dos brutos, é contudo sumamente útil e necessária, para se guardarem não só os preceitos naturais que dizem respeito à paz e felicidade temporal, mas também para se cumprirem as obrigações que temos para com Deus, porque nem a religião pode estar sem uma sociedade cristã, nem esta sociedade cristã sem uma concórdia entre os homens, nem esta concórdia se poderá conseguir sem ser por meio de uma sociedade civil.99 97 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 456. 98 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 460. 99 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 481. 45 A sociedade civil se constituiu como base do consentimento dos homens e da concretização da vontade de Deus. O povo se submete ao monarca e a ele deve obediência tal como deve governá-lo bem e defendê-lo. O poeta também critica a Democracia, sendo esta a pior de todas100 qualidades de uma cidade. A experiência romana aqui é posta como a prova do declínio democrático. Questiona também a aristocracia com base em seu conhecimento das decisões jurídicas: a experiência nos ensina que muitas vezes se propõe em um tribunal uma matéria, sem que se possa decidir, já porque os juízes são diversos e por isso na verdade disconformes os votos, já porque as paixões e interesses de uns fazem que estes alucinados embaracem a execução dos sentimentos, que os outros tem santos e necessários. Daqui segue ser a Monarquia melhor forma de governo não só por ser mais pronta, mas também por se evitarem os incômodos que se experimentam na aristocracia (...). 101 Concordando com São Tomás, Santo Agostinho, Aristóteles, Sêneca, Tomás Antônio aposta que somente um rei é capaz de exercer da melhor maneira o governo sobre uma sociedade102. Ele defende uma monarquia divina na medida em que Deus aprova e confirma título de soberano ao rei. Todo o poder emana, como é dito na epístola aos em Romanos103, do Senhor. Com tal justificativa, temos que ao povo compete apenas a faculdade de eleição, além da obediência e respeito. Ele ainda reafirma o poder sagrado do rei em virtude de Deus e a sua respectiva sacralidade que subordina seus súditos. A concepção de Gonzaga não é de um sistema absolutista total. Discordando de Maquiavel, isto não é dizer que o rei pode fazer tudo que lhe parecer. 104 O rei não pode ser tirano porque nada mais é do que “um ministro de Deus para o bem.”105 Desta sua limitação do poder real podemos considerar que o poeta vai ao encontro dos ideais do pombalismo sobre o assunto. Há uma defesa do 100 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 484. 101 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 485. 102 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 487. 103 Rm 13, 1-2. 104 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 493. 105 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 494. 46 absolutismo real, porém com moderação, uma espécie de despotismo esclarecido apregoada pelo Marquês de Pombal nos idos do século XVIII. Podemos, agora, compreender porque ele estava próximo à segunda escolática na medida, em que defendia uma monarquia não despótica de origem divina. Em sua opinião, o governante não poderia fazer tudo, devendo respeitar as leis, as diferenças de direito e as hierarquias havidas no interior da sociedade. O monarca necessitava procurar a felicidade do Reino e repartir com justiça prêmios e castigos.106 Havemos apenas de fazer uma breve observação no tocante ao pensamento político de Tomás Antônio ora visto e uma possível ligação entre o mesmo e sua atuação no levante da Inconfidência Mineira. A historiografia tradicional atribuiu a Gonzaga a função de constitucionalista da nova República Mineira que seria inspirada107, especialmente, nos ideais dos fundadores norte-americanos. Com seu conhecimento sobre as leis era a ele108 que competiria escrever a Constituição do Estado Mineiro, então separatista. 3.2.3 Do Direito, Da Justiça e das Leis Tomás Antônio, na última parte do Tratado revela sua concepção sobre o direito, a justiça e as leis. A respeito do direito positivo considera que é aquele que provém do legislador e se subdivide em positivo humano e positivo particular. “Grócio subdivide o positivo divino em particular, que é o que deu Deus a uma só nação, como foi o que deu aos hebreus, e em universal dado a todos os homens (...)”109 Concordando Grotius, Gonzaga se utiliza de sua classificação para definir o direito positivo. No entanto, o poeta se utiliza dos fragmentos de Grotius de forma que lhe aprouver. Ora o recorta para considerá-lo um ateu inimigo da religião ora o cita para uma divisão do direito onde o mesmo Grotius se mostra um convicto cristão que não consegue excluir o fundamento do direito positivo de Deus e da ordem divina. 106 Sobre este comentário ver VILLALTA. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: uso do livro na América Portuguesa. 107 FURTADO, João P. O manto de penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.71. 108 A função também é dada ao Cláudio Manuel da Costa e Cônego Vieira. Ver. FURTADO, João P. O manto de penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. p.19. 47 A lei também se subdivide em divina e humana. O primeiro requisito da lei humana é ser honesta110. O segundo é que ela não ofenda a pública utilidade, pois, tal como em Aquino111, seu fim é o bem dos povos. O terceiro é que toda lei deve ser possível para que seja cumprida pelos vassalos112. O quarto é que deve ser perpétua e durar para sempre, enquanto existir sociedade. Sobre esta perpetuidade, Gonzaga diz não se deve entendê-la tão rigorosamente113. O quinto requisito é que somente o sumo poder pode emitir uma lei, porque este é o competente para este exercício. O súditos devem obedecer tais leis e esta obrigação pode ser externa ou interna114. Externa quando provém do medo e do castigo e interna quando se faz dentro do foro íntimo. O rei pode obrigar no foro de todas as consciências porque ele é um ministro do Senhor115. Na esteira de São Tomás, o sexto requisito é a promulgação da lei a todos os indivíduos da sociedade para sua validade. A partir desta os súditos se obrigam a cumprí-la. Dentro da promulgação, o sétimo requisito consiste que a lei deve estar escrita com palavras claras e próprias. Também deve a lei, em seu oitavo requisito, dispor sobre as ações futuras e não retroceder. Percebemos que não é um requisito da lei que o povo a aceite. A lei divina ou lei eterna emana de Deus. A lei divina pode ser revelada via as Escrituras e nesta se divide em velha e nova. A velha, dada aos hebreus, e a nova ensinada por Cristo. A lei divina é “é a fonte de todas as mais e a primeira regra das ações humanas.“116 nos termos de São Tomás, e na interação de leis temos para Gonzaga a lei natural a lei natural não é outra coisa mais do que a lei divina, participada à criatura por meio da razão, que manda que se faça o que é 109 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 517. 110 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 433 111 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 527. 112 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 527. 113 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 529. 114 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 532. 115 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p 533. 116 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 534. 48 necessário para se viver conforme a natureza racional, como racional, e proíbe que se execute o que é inconvenientemente à mesma natureza racional, como racional.117 Dos princípios da lei natural, Gonzaga destaca que não é possível ignorá-los porque está nos corações dos homens. Esta lei é imutável porque ordena o que é conveniente ao estado da natureza racional e esta não se altera. Gonzaga ainda divide o direito positivo humano em eclesiástico e civil. Ressalta que as decisões da Igreja em matéria de fé não são direito eclesiástico, pois as disposições do Papa são expressão do direito divino. Com relação às diferenças entre o direito positivo e o natural, afirma Tomás Antônio, consolidando a sua opinião do fundamento transcendente e divino do direito natural: A diferença que vai do Direito Natural ao positivo é que o positivo é meramente arbitrário e o natural não, porque Deus, sendo um ente sumamente santo, há de proibir o que não for concernente à natureza do seu criado. Daí vem que a maldade provém da proibição e esta da repugnância que os actos tem com a natureza e o fim do criado.118 Gonzaga é fiel à opinião de Justiniano quanto à Justiça. Esta nada mais é do que a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu 119. São partes integrantes da justiça, conforme São Tomás, a religião, a piedade, a observância, a verdade, a graça, o castigo, a liberdade, o afeto e a humanidade120. Discorda da divisão de Aristóteles quanto à sua justiça em comutativa e distributiva, pois para o poeta se trata de uma única. Pela primeira vez, Gonzaga elogia Grócio em sua divisão da justiça em expletrice e atributrice. A justiça pois expletrice é a que dá o que se deve de direito perfeito; e a justiça aributrice a que dá o que se deve de imperfeito. 121 Explicitando122 o que ele chama de direito perfeito e imperfeito, temos o primeiro como aquele que provém de uma obrigação, como o 117 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 535. 118 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 520. 119 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 520. 120 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 523. 121 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 522. 122 GONZAGA, Tomás Antônio. O tratado de direito natural. In: Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga: edição crítica de Rodrigues da Lapa. p. 522. 49 direito ao ressarcimento de um dano. E o segundo, o chamado de imperfeito, é aquele que serve para remediar um pobre sem que este o possa exigir porque não é de seu direito assim o pedir. Por fim, Gonzaga se remete ainda aos costumes como uma atos praticados reinteradamente ao menos pela maior parte da sociedade. Este terá força de lei quando for honesto, útil à sociedade, introduzido publicamente e aprovado pessoal ou legalmente pelo soberano. Para concluir a análise do sistema do Tratado, nos valemos de Lourival Gomes Machado: O tratado desenvolve-se, todo, à volta de um tema central: há uma ordem divina, posta por Deus na criação, por sua vontade regida eternamente e perceptível à razão pela compreensão dos fins morais inculcados na pessoa humana (...). De tal maneira, a idéias de Deus passa a constituir a base conceitual de todo o sistema, sendo posta não só preambularmente como uma primeira causa, mas também como causa direta já do poder de mando, já do direito, que são os dois principais objetos do Tratado. (..) O princípio divino não se opõe ao esquema absolutista.123 3.3 A presença do jusnasturalismo moderno no Tratado de Direito Natural em Tomás Antônio Gonzaga Gonzaga pretendeu em seu Tratado filiar-se à Escola Jusnaturalista Moderna. Contudo, podemos perceber que ele se afastou voluntariamente da tradição que, desde o século XVI, os jusnaturalistas vinham compondo. O apego a fundamentos teológicos para explicação do direito natural diminuiu gradativamente e essa Escola procurou, definitivamente, encontrar na razão e no homem as fontes últimas do direito natural. Não seria mais Deus o responsável por leis naturais que regeriam o comportamento do ser humano, mas a própria razão, desvinculada desta ordem divina, seria a nova base para essas leis naturais. A concepção de direito natural que Gonzaga desenvolveu em sua obra apresentada à Coimbra, se distanciou dessa Escola, na medida em que ele não separa a esfera jurídica da religiosa. O argumento teológico, para Tomás Antônio, fundamenta o direito natural porque esse depende da vontade de Deus para ser revelado aos homens. A transcendência do direito natural vem de Deus, inexoravelmente. 123 MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. p. 41. 50 Temos em Tomás de Aquino, especialmente, o principal marco teórico de Gonzaga. Para o poeta de Marília de Dirceu, o direito natural está inscrito no coração dos homens pela ordem divina. Neste sentido, todo conteúdo do direito positivo deve se adequar às prescrições que lhe são superiores e fonte de inspiração: o direito divino. Em Gonzaga, não se parte da condição humana, mas da evidência divina para a justificação de sua teoria jusnaturalista. Grotius representou o ponto inicial para laicização da teoria jusntaturalista. Sua doutrina do direito natural reflete esse desejo de autonomia em relação à ordem divina. O direito natural não mudaria seus ditames na hipótese da inexistência de Deus, nem poderia ser modificado por Ele. A fé de Grotius não conta menos do que a razão, porque para o autor também Deus é uma certeza. Ora, os argumentos de Gonzaga em todo o Tratado dão a impressão que ele insiste no que não existe: o pretenso ateísmo de Grotius. Grotius deixa explicito em seus textos que Deus é o criador da natureza e do universo, porém existem certas leis, as naturais, que não podem ser modificadas nem mesmo por Ele em função de fazerem parte da razão humana. Portanto, temos que deixar claro que Gonzaga se enganou ao ler Grotius como ateu, pois o que o jusnaturalista holandês pretendeu não foi ressaltar a inexistência de Deus, mas que as leis naturais permaneceriam independente da ordem divina. Pufendorf, como continuador e inovador da doutrina de Grotius, também foi alvo dos ataques de Gonzaga por pensar um direito natural desvinculado da vontade divina. Gonzaga condena, por exemplo, a chamada sociabilidade natural do homem defendida por Pufendorf porque para o poeta a providência divina motivou realmente a vida em sociedade. O intuito de Pufendorf foi transpor para o campo do direito natural a estrita dedução da geometria. Assim compõe-se a construção do seu direito natural e das gentes: dadas as bases, desenvolve-se o sistema segundo o dedutivismo. Sobre a ordem divina, temos que toda a realidade de Gonzaga é inspirada neste elemento sagrado. O estado de natureza, a sociedade civil, o direito natural que ele concebe estão subordinados à autoridade de Deus. Tal atrelamento ao aspecto teológico o leva a ler os autores de seu tempo como ateus e inimigos de sua religião, por isso ele enfileirou Grotius, Pufendorf e Hobbes sem a menor preocupação em diferenciá-los. 51 Não podemos negar que foi um avanço em seu Tratado buscar comentar Grotius, Pufendorf, Hobbes e tentar trazê-los ao círculo acadêmico de Coimbra, mas sua leitura dos mesmos foi equivocada em virtude de sua concepção, especialmente tomista. 52 CONCLUSÃO Como podemos perceber neste trabalho, Tomás Antônio Gonzaga é um autor preso ao seu tempo e ao seu ambiente de formação. O século XVIII de Gonzaga, em Portugal, nada mais é do que uma enorme contradição seja no seu campo político, seja no seu campo jurídico. Seu Tratado reflete esse momento histórico, trazendo, porém, contribuições próprias do autor. No campo político, temos a defesa de um sistema absolutista não com poderes ilimitados ao soberano. Seu direito natural não foi utilizado como fonte ordenadora da sociedade ou justificativa para o exercício pleno do poder real. A autoridade do soberano se apóia no princípio da sua origem divina e é superior aos proclames do Papa. Não podemos atribuir a Gonzaga, nesse sentido, qualquer aspecto revolucionário nos termos apregoados pelo Iluminismo. Seu entendimento sobre a política em muito se prendeu aos ditames do Marquês de Pombal – personagem histórica a qual foi dedicado sus obra. Considerado uma espécies de déspota esclarecido, Pombal pretendia modernizar Coimbra e nesta onda de reforma, Gonzaga se inspira ao elaborar um Tratado de acordo com os “novos” tempos. No entanto, o que pudemos perceber é que se Tratado é um mero retorno às idéias tomistas relativas ao direito natural. Não há, portanto, uma filiação dele à Escola Jusnaturalista Moderna que pregava, especialmente, o fim do direito natural a partir de bases teológicas. Acreditamos que a principal novidade, tanto no Tratado, como de Pombal no campo político português, foi a tentativa de conceber a sociedade com um soberano superior às leis da Igreja e cujos poderes não eram todos concentrados nas suas mãos. Não percebemos, portanto, uma sugestão de transformação na realidade monárquica existente. Sobre a ordem divina, temos que toda a realidade de Gonzaga é inspirada neste elemento sagrado. Tal necessária vinculação ao aspecto divino o leva a se afastar da Escola Jusnaturalista Moderna. Sua leitura sobre o jusnasturalismo, é especialmente, tomista. O poeta de Marília de Dirceu foi um intelectual muito interessante. Não é à toa que ainda desperta tantos estudos literários e históricos. Que nossa monografia possa ter ressaltado, pelo menos, a figura de Tomás Antônio Gonzaga como jurista. 53 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Lisboa: Presença, 1985. AGOSTINHO, Aurélio (Santo). A cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Lemes. São Paulo: Editora das Américas, 1961. AGUIAR, Júlio Souza. Espinosa e o direito natural. Belo Horizonte: UFMG, 2000. (mimeo) AQUINO, Tomás de (Santo). Suma teologica. Madrid: La Editorial Católica, 1953-60. 16v. (Tradução de: Summa Theologica). ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores). ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1973. (Os Pensadores). BITTAR, Eduardo C.B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito: panorama histórico e tópicos conceituais. 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