Encontro de linguagens: relações entre a Geografia e a Literatura.

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Encontro de linguagens: relações
entre a Geografia e a Literatura.
Francielle Bonfim Beraldi
Mestranda
em
Geografia
pela
Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD)- MS
[...] ver o mundo pelos olhos da Arte, tanto
quanto a arte vê o mundo pelos olhos da
Geografia. Fundir num só os olhares
imagéticos sobre os espaços da geografia,
ciências sociais, literatura, pintura, cinema,
arquitetura, veres geográficos... Acostumados
com o objetivo que impregnou o mundo da
ciência, dissociamos no mundo o que é dela e o
que é da arte. Não nos indagamos se não é
este o nó cego que, até agora, afastou o olhar
do geógrafo da capacidade de ver e
acompanhar o mundo como o espaço tenso do
ser contraditório.
(MOREIRA, 1996)
Está em questão a cientificidade da geografia e
algumas colocações têm de ser feitas para que
seja legítima a própria existência da geografia
enquanto um segmento da divisão do trabalho
científico. E o problema que nos parece ser o
crucial diz respeito à definição do solo teórico
da geografia, à determinação do seu objeto
científico.
Carlos Walter Porto Gonçalves
Apontamentos iniciais sobre Geografia e
Literatura
- Demônio imaginado
Moderna e Geografia.
por
Laplace:
Ciência
“A velha aliança rompeu-se; o homem sabe
finalmente que está só na imensidão indiferente do
Universo que emergiu por acaso”
Monod em Prigogine & Stengers (1997, p.59)
A ciência Moderna desde Newton até os dias de hoje
legou
muitos
conhecimentos
à
ciência
que
revolucionaram a forma de ver o mundo e de analisar os
fenômenos naturais. Em Prigogine & Stengers (1997, p.3)
vimos que houve uma “transformação sem retorno das
nossas relações com a natureza que produziu o sucesso da
ciência moderna”, confirmando o que dizemos quanto a
ser esta uma revolução cientifica.
No entanto, muitas vezes, como esta forma
de se fazer ciência consistia em modelos
matemáticos, onde a comprovação de um
fenômeno se dava por meio de dados para
que se chegasse a uma verdade, outras
ciências que não a Matemática e a Física
passaram a utilizar de métodos e fórmulas
destas para que as conclusões a que
chegassem fossem tidas como cientificas.
A Geografia foi uma delas e sua relação com os
métodos das ciências naturais variou ao longo
de sua história. A “universal máquina do
mundo”, lembrada por SANTOS (2002, p.40) e
que chegou ao auge após os estudos de Isaac
Newton fez toda a diferença na forma de fazer
Geografia no seio da ciência moderna pósnewtoniana.
Como a história da Geografia não está deslocada
da história das ciências humanas, podemos dizer
que ela também se deparou com o dilema
enfrentado pelas ciências humanas,
Em Jobim &Souza (2005, p. 320), que ou:
Enveredam pelos caminhos da exatidão, do cálculo e da
geometria humana, e, nessa direção, arriscam construir
uma concepção de homem que é pura abstração
conceitual, ou admitem que a condição humana é pura
abstração conceitual, ou admitem que a condição
humana exige uma cientificidade que se define de uma
outra maneira. (grifo nosso)
A relação entre Literatura e Geografia ocorre
desde os processos iniciais de institucionalização
desse saber científico no mundo moderno, na
primeira metade do século XIX, contudo, foram
as condições colocadas a partir do final do século
XX que levaram a novas formas de abordagem
literária pela Geografia, o que reverberou, no
caso brasileiro, com um sensível aumento dessa
problemática nos estudos geográficos atuais.
Quanto à relação inicial entre
Literatura e Geografia, podemos
encontrar desde os trabalhos clássicos
de Humboldt, quanto os de Ratzel e
outros fundadores da Geografia
institucionalizada, o uso da Literatura
para reforçar determinados conteúdos
geográficos por eles trabalhados,
como apresenta Brosseau (2007).
Quanto ao crescimento dessa
temática nos estudos atuais da
Geografia e suas novas formas
de contato e possibilidades,
podemos
citar,
para
contextualizar o atual estado
em nível mundial, entre outros
autores, Brosseau (2003 e 2007)
Poema de Ovídio no Cosmos, Humboldt
Near Troezene stands a hill, exposed in air
To winter winds, of leafy shadows bare:
This once was level ground; but (strange to tell)
Th' included vapors, that in caverns dwell,
Laboring with colic pangs, and close confined,
In vain sought issue for the rumbling wind:
Yet still they heaved for vent, and heaving still,
Enlarged the concave and shot up the hill,
As breath extends a bladder, or the skins
Of goats are blown t'inclose the hoarded wines;
The mountain yet retains a mountain's face,
And gathered rubbish heads the hollow space
Perto de Troezene existe uma colina,
exposta no ar/Para ventos de inverno,
de sombras, demonstra-se frondosa e
nua:/Desta vez foi ao nível do solo, mas
(estranho dizer)/Que há vapores
contidos, que habitam em cavernas,/
Trabalhando em cólicas, e se fecham
em si, confinados,/ Na ocasião procurou
em vão pelo vento estrondoso:/No
entanto, ele ainda se soltou para
desabafar, e ainda arfando,/ Ampliou o
côncavo e subiu o morro,/Como a
respiração enche uma bexiga, ou à
pele/Das cabras são soprados os vinhos
acumulados;/A
montanha
ainda
mantém a empreita de enfrentar uma
montanha,/E ao lixo restam recolhidas
as cabeças vazias.
QUADRO: Alguns eventos e publicações sobre
Geografia e Literatura na América do Sul,
América do Norte e Europa.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
O Mapa e a Trama (2007), no qual, rejeitando o
caráter de crítica literária, trata do uso da
Literatura como fruição e também como fonte de
conhecimento ao geógrafo. Utilizando-se bastante
da obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão
Veredas, fala das geografias expostas, colocadas a
nu de forma rica e instigante pelo autor,
apresentando como as condições físicas da
paisagem e os elementos geográficos enquanto
relevo e contexto político e social apresentados
pelos escritores em suas obras, acabam por
caracterizar um determinado arranjo espacial, em
seu sentido mais físico e psicológico, que
reverberam na própria narrativa e na forma com
que a mesma é enunciada.
Assim, o espaço da narrativa não é o mesmo com o qual
trabalha o geógrafo, de maneira geral; tal pesquisador
está preocupado com o movimento do mundo em que
vivemos. Por mais que o mundo possa ser interpretado, e
compreendido, de modos diferentes, não é o espaço da
ficção. De qualquer maneira, o diálogo entre a Geografia e
a Literatura constitui uma ponte que pode enriquecer
tanto as análises realizadas lá como cá. (SUZUKI, 2006,
p. 66)
É possível refletirmos que estas construções se
dão sobre diferentes óticas, mas há
reivindicações interessantes, principalmente no
sentido de que, estudos sobre Geografia e
Literatura não sejam postas como um braço da
Geografia Cultural. Collot (2011) traz essa
preocupação quando afirma que:
Il n’en reste pas moins nécessaire de bien
marquer la spécificité littéraire des œuvres et
de leur approche, si l’on ne veut pas
transformer la géographie littéraire en une
simple annexe de la géographie culturelle.
Certains géographes ont su parfaitement
intégrer cette spécificité dans leur approche
de la littérature.
No entanto, é necessário indicar claramente as
obras literárias específicas e sua abordagem,
se não se transforma a geografia literária como
um mero apêndice da geografia cultural.
Alguns geógrafos têm sido capazes de integrar
plenamente esta especificidade na sua
abordagem à literatura.
Não há ciência, de fato, sem o estímulo
(sabor, prazer) da busca e sem a palavra,
instrumento do saber. Da palavra da
ciência suprimiu-se o saber e, com ele, o
gosto da busca. O gosto pela palavra
institui uma fronteira entre o sábio e o
cientista. (HISSA, 2006, p. 193)
Perigos de incorrer na transposição de um
saber pelo outro:
No trabalho com a Literatura, é frequente a
utilização de textos para a caracterização
literária de uma paisagem, para reforçar os
conteúdos.
Desta forma ressalta-se apenas a Geografia,
sendo a Literatura apenas um pano de fundo
para a memorização de conteúdos, ou
ilustração destes.
Mas há também um outro lado...
[...] da subjugação da Literatura por uma
concepção de Geografia, passa-se a dar muito
peso ao texto literário, como se ele em si
apresentasse a verdadeira geograficidade. Por
interagir a objetividade da realidade com a
subjetividade da vivência humana, essa
perspectiva se foca na análise dos aspectos
subjetivos da narrativa, tentando identificar os
elementos psicossociais dos personagens que
definem certa espacialidade. A Literatura passa
a dizer como a Geografia deve ler o mundo,
portanto, não existem trocas e diálogos mais
ricos, apenas a incorporação de uma leitura pela
outra. (FERRAZ, 2011, p. 22)
A compreensão dos espaços e dos enredos
dos textos literários apresenta-se como
essencial para a relação entre a Geografia
e a Literatura e neste ponto está a
importância de fazer uso de algumas
metodologias que possibilitem essa busca,
mas que ao mesmo tempo não
representem camisas de força para o
pensamento.
[...] palavra e imagem tornam-se elementos
cruciais ao domínio do conhecimento e da
linguagem geográfica. Para os geógrafos, como
forma de elaborar referenciais e instrumentos
que ampliem a capacidade de leitura do
mundo;
para
os
não-geógrafos,
como
conhecimento que viabilize a conscientização
do homem no mundo, capacitando-os a
identificar de forma mais crítica e rica o lugar
e o seu contexto a partir do sentido da vida.
(FERRAZ, 2004, s/p)
O que há de comum entre a Literatura e a
Geografia, que possibilita, então, um
encontro destas em tantas produções e
vem sendo construída no cenário da
Geografia brasileira? De que Literatura
estamos tratando? De qual Geografia
estamos falando?
Esse homem novo, americano, brasileiro, gerado
pelo vasto e profundo processo aqui desenvolvido
de miscigenação e aculturação, não podia
exprimir-se com a mesma linguagem do europeu,
por isso transformou-a, adaptou-a, condicionou-a
às novas necessidades expressionais, do mesmo
modo que se adaptou às novas condições
geográficas, ecológicas, às novas relações
humanas e animais, do mesmo modo que
adaptou seu paladar às novas frutas, criando, em
consequência, novos sentimentos, atitudes,
afetos, ódios, motivos de comportamento, de luta,
alegria e tristeza. (COUTINHO, 1960, p.15)
A Literatura vale-se da via da subjetividade, dos
sentidos manifestados através da palavra. Em
relação à Geografia, podemos ver que há uma via
mais objetiva, de busca de sentidos de localização
mais definidos. As questões como “onde estou?”,
“para onde vou?” carecem de ser respondidas
também de uma forma mais funcional, mais
direta, mais ou menos como: você está no Brasil,
país da América do Sul, no município tal, no
bairro tal etc.
Mas é possível lembrar que mesmo este
localizar-se geograficamente passa pela
subjetividade porque compreender este
movimento escalar requer exercícios de
imaginação e reflexão. Assim, na ciência
(geográfica) necessária é a pragmaticidade
dos questionamentos, temas e interesses
relacionados
ao
objeto
de
estudo.
Diversamente da Literatura, na qual não há
lastro exato para tais questionamentos.
No livro Pelo Espaço: Por uma Nova
Política da Espacialidade, Massey (2007)
constrói uma argumentação sobre o espaço
contemplando a este como esfera da
multiplicidade,
das
diversas
trajetórias,
rompendo com a rigidez e com a ideia de um
espaço morto, atemporal e linear. Identificamonos com a construção de Massey sobre a
espacialidade, pois este tipo de concepção sobre o
espaço contempla a produção de geografias
menores.
Somente a linguagem, em sua dimensão
dialógica, polifônica e alegórica, pode
devolver às ciências humanas a dignidade
para enfrentar o compromisso de redefinir os
seus critérios de exatidão, buscando através
de leis que lhe são próprias uma outra
possibilidade de interpretar e compreender a
complexidade da condição humana. (JOBIM
&SOUZA, 2005, p. 321)
Afrânio Coutinho, em seu livro intitulado “Conceito de
Literatura Brasileira” aponta que a “a literatura surge
sempre onde há um povo que vive e sente” (COUTINHO,
1960, p.67)
A Literatura traz as mazelas e as dores, as
alegrias e os prazeres humanos, numa reflexão
que te permite a paixão. Beber num diálogo
muito interessante, com os chamados segmentos
áridos, da ciência e da filosofia etc, para que eles
tornem-se essa paixão. Então, uma coisa sem a
outra, não existe. Todos devemos oferecer aos
nossos jovens e às nossas crianças, a
possibilidade da imaginação, a possibilidade de
olhar o mundo sob diferentes focos ou
perspectivas.
Douglas Santos, em entrevista concedida à
revista Entre-Lugar
(n°1, 2010:193)
Segundo Deleuze e Guattari, (1995, volume
1, p. 11):
Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito
de matérias diferentemente formadas, de
datas e velocidades muito diferentes. Desde
que se atribui um livro a um sujeito,
negligencia-se este trabalho das matérias e a
exterioridade de suas correlações. Fabrica-se
um bom Deus para movimentos geológicos.
Num livro, como em qualquer coisa, há
linhas de articulação ou segmentaridade,
estratos, territorialidades, mas também
linhas
de
fuga,
movimentos
de
desterritorialização e desestratificação.
As velocidades comparadas de escoamento,
conforme estas linhas, acarretam fenômenos de
retardamento relativo, de viscosidade ou, ao
contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo
isto, as linhas e as velocidades mensuráveis,
constitui um agenciamento. Um livro é um tal
agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma
multiplicidade — mas não se sabe ainda o que o
múltiplo implica quando ele deixa de ser
atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado
de substantivo.
O livro não é a imagem do mundo segundo uma
crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há
evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro
assegura a desterritorialização do mundo, mas o
mundo opera uma reterritorialização do livro, que se
desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo
(se ele é disto capaz e se ele pode).
Deleuze e Guattari, (1995 p. 19)
Haersbaert & Bruce (2009, p. 8), ao analisarem a
desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari
também nos falam um pouco do livro; na visão destes
autores:
“Podemos nos territorializar em qualquer coisa, desde
que façamos agenciamento maquínico de corpos e
agenciamentos coletivos de enunciação. O território pode
ser construído em um livro a partir do agenciamento
maquínico das técnicas, dos corpos da natureza (as
árvores), do corpo do autor e das multiplicidades que o
atravessam; e do agenciamento coletivo de enunciação,
nesse caso, um sistema sintático e semântico, por
exemplo.”
A multiplicidade, não enquanto generalização, mas enquanto
expressão de diversas facetas nos salta aos olhos, tendo em
vista que, ao ver a relação entre a Geografia e a Literatura
estamos também reconhecendo que esta faz parte das
Geografias presentes nos textos. Ao trabalharmos as diversas
facetas/expressões múltiplas, presentes nos espaços criados
pelos autores nos textos literários, poderemos ver que
conceitos como lugar, paisagem, território, podem ser
visualizados nos enredos em momentos diversos das obras.
A Literatura é fonte de prazer mas não é só isso. É igualmente
modo de conhecer o mundo. Nós não teríamos condições de
conhecer o mundo, o todo da vida dos homens apenas no
curto período de tempo das nossas vidas (....) A literatura dá
prazer. A palavra é importante. Como se tem prazer ao sentir
a harmonia de um quadro ou de uma música. Há muitos
professores que só trabalham essa parte, mas a Literatura é
muito mais que isso. Por ela, os alunos podem descobrir toda
a grandeza existente nos homens, para que saibam que essa
grandeza existe neles igualmente.
(PONTUSCHKA, PAGANELLI E CACETE, 2007, p. 236-237)
Para que uma estória realmente prenda a atenção da
criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade.
Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a
imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a
tornar claras suas emoções; estar harmonizada com
suas
ansiedades
e
aspirações;
reconhecer
plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo,
sugerir soluções para os problemas que a perturbam.
Resumindo, deve de uma só vez relacionar-se com
todos os aspectos de sua personalidade - e isso sem
nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro
crédito a seus predicamentos e, simultaneamente,
promovendo a confiança nela mesma e no seu futuro.
Bruno Bettelheim (2002, p. 5)
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