Texto & Contexto Enfermagem ISSN: 0104-0707 texto&[email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Fernandes Carvalho, Ana Fátima; Mamede Villela, Marli O surgimento do câncer de mama na visão de um grupo de mulheres mastectomizadas Texto & Contexto Enfermagem, vol. 13, núm. 1, janeiro-março, 2004, pp. 35-40 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=71413106 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto O surgimento do câncer de mama na visão de um grupo de mulheres mastectomizadas - 35- O SURGIMENTO DO CÂNCER DE MAMA NA VISÃO DE UM GRUPO DE MULHERES MASTECTOMIZADAS1 THE DEVELOPMENT OF BREAST CANCER ACCORDING TO A GROUP OF MASTECTOMIZED WOMENEL SURGIMIENTO DEL CÁNCER DE MAMA SEGÚN LA VISIÓN DE UN GRUPO DE MUJERES MASTECTOMIZADAS Ana Fátima Carvalho Fernandes2; Marli Villela Mamede3 Este trabalho é parte da Tese de Doutoramento de Fernandes AFC Câncer de mama: influência da cultura no enfrentamento e no processo da cura da doença para um grupo de mulheres. Ribeirão Preto, 126p. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. 2 Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará. 3 Professor Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da EERP- USP. 1 PALAVRAS-CHAVE: Neoplasias mamárias. Mastectomia. Grupos. RESUMO: Objetivamos, neste estudo, identificar o surgimento do câncer de mama na visão de um grupo de mulheres mastectomizadas. O estudo qualitativo foi desenvolvido com 16 mulheres mastectomizadas, integrantes de um grupo de auto ajuda, através de observações e entrevistas. As mulheres atribuíram o seu câncer a: sentimentos reprimidos, herança familiar, estresse, trauma físico, hábitos alimentares, e falta de cuidado com o corpo. Concluímos que as mulheres demonstraram-se mais esclarecidas sobre a causa do surgimento de sua doença, quando apontam os principais fatores determinantes do câncer de mama. KEY WORDS: Breast neoplasms. Mastectomy. Groups. ABSTRACT: In this study we aimed to identify the development of breast cancer according to a group of mastectomized women in the process of having cancer. The qualitative study was developed through observations and interviews with 16 mastectomized women that were part of a self-help group. The women attributed their cancer to repressed feelings, family inheritance, stress, physical trauma, alimentary habits, and lack of care for the body. We concluded that the women demonstrated a clearer understanding on the cause of the appearance of their disease, when they point out the principal decisive factors of breast cancer. PALABRAS CLAVE: Neoplamas de la mamas. Mastectomia. Grupos. RESUMEN: El objetivo de este estudio fue identificar el surgimiento del cáncer de mama según la visión de un grupo de mujeres mastectomizadas. El estudio cualitativo fue desarrollado con 16 mujeres mastectomizadas, integrantes de un grupo de auto-ayuda, a través de observaciones y entrevistas. Las mujeres atribuyeron su cáncer a: sentimientos reprimidos, herencia familiar, estrés, trauma físico, hábitos alimentarios y la falta de cuidado con su propio cuerpo. Concluimos que las mujeres se mostraron más claras sobre la causa del surgimiento de su enfermedad, cuando indican los principales factores determinantes del cáncer de mama. . Endereço: Ana Fátima Carvalho Fernandes Rua Lauro Maia, 950. Apto. 402 60055 210 - Fortaleza, Ceará. E-mail: [email protected] Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):35-40. Artigo original: Pesquisa Recebido em: 15 de setembro de 2003 Aprovação final: 16 de fevereiro de 2004 - 36 - INTRODUÇÃO Embora o câncer seja uma doença celular, do ponto de vista biológico, já que os diversos tipos de tumores malignos mantêm em comum a perda do controle da divisão celular, estudos revelam que tal doença pode, também, expressar as condições de vida das populações e de desenvolvimento das sociedades1. Segundo o Ministério da Saúde, a estimativa da incidência de câncer no Brasil, referente às mulheres, em 2003, foi de 216.035 casos novos e 74.090 óbitos. Para o câncer de mama, estima-se 41.610 casos novos (taxa bruta de 46,35/100.000) e 9.335 óbitos (taxa bruta de 10,40/100.000). Observou-se aumento considerável da taxa de mortalidade por câncer de mama, de 1979 a 2000, numa variação percentual relativa de mais de 80,3%, fato que se deve ao diagnóstico realizado em estágios avançados da doença2. Conclui-se que o câncer de mama manter-se-á na vanguarda como causa mortis, em mulheres, seguido pelo câncer de pulmão, cólon, reto, colo do útero e estômago, apresentando-se como a segunda neoplasia maligna mais incidente no mundo civilizado2. A vivência de uma enfermidade provoca muitas reações e sentimentos estressantes, pois o paciente e a sua família terão que se adaptar aos diversos estágios que a enfermidade impõe³ .O tratamento de uma doença implica na realização de exames diagnósticos, fato este que contribui para a exacerbação de sentimentos de ansiedade e de aflição por parte do paciente. As mulheres ao vivenciar uma doença grave como o câncer, são levadas a buscar o autoconhecimento, a avaliar as suas posturas frente a determinadas situações que a vida lhes apresenta, a resgatar alguns valores e princípios que por muitas vezes, ao longo de suas caminhadas no mundo, mantiveram-se esquecidos em função de interesses pessoais que nortearam as suas trajetórias de vida4. O viver com a doença é permeado de conhecimento (idéias), crenças (aceitação de uma proposição como verdadeira), valores (sentimento que incentivam o comportamento humano), normas (regras que indicam o modo de agir) e símbolos (realidades valorativas). Assim, é o conhecimento adquirido (implícito ou explícito) que as pessoas utilizam para interpretar uma experiência e gerar um comportamento social . É na busca de apreender este momento vivenciado por estas mulheres que o estudo objetiva identificar o surgimento do câncer de mama na visão Fernandes AFC; Mamede MV de um grupo de mulheres mastectomizadas. METODOLOGIA O estudo, de natureza qualitativa, onde participaram 16 mulheres mastectomizadas, integrantes de um grupo de auto-ajuda, desenvolvido no Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará, durante o ano de 2001. Os dados foram obtidos a partir de entrevistas gravadas, através do seguinte questionamento básico: - o que foi para você ter câncer de mama? A gravação das entrevistas foi precedida da garantia do anonimato denominando nomes fictícios escolhidos pelas mulheres e da assinatura do consentimento informado. O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética de Pesquisa Clínica do Complexo Hospitalar na Universidade Federal do Ceará, sendo aprovado com pleno êxito. Na análise dos dados, utilizamos duas fases: a preliminar, em que é feita a leitura dos depoimentos e reorganização dos dados; e a análise final, em que identificamos as categorias5. As leituras permitiram-nos chegar a uma categoria e 6 sub-categorias, objeto de discussão, a seguir: O SURGIMENTO DO CÂNCER DE MAMA O viver com câncer pareceu-nos estar cheio de culpa, medo e incertezas. - Será que fizemos algo para merecer tal sorte? A dúvida do surgimento da doença é uma questão sempre presente, sendo as participantes categóricas em afirmar que, no caso particular de cada uma, elas terminaram por contrair a doença, em função de: Repressão de Sentimentos A nossa cultura abriga muitas crenças, a respeito dos sentimentos. Uma das principais está ligada ao fato de que, se a pessoa ignorar as emoções, como a raiva, ou a ansiedade, então elas simplesmente desaparecerão. Isso evidencia o comportamento de algumas mulheres com câncer de mama, que querem guardar para si os próprios sentimentos, fazendo com que os outros percebam que está tudo normal. Toda pessoa, ao longo de sua vida, depara-se com uma infinidade de situações problemáticas que podem contemplar desde grandes crises, tais como uma doença grave e suas conseqüências, até pequenas Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):35-40. O surgimento do câncer de mama na visão de um grupo de mulheres mastectomizadas dificuldades encontradas no cotidiano de todo ser humano6 como se vê nos depoimentos abaixo. Eu acho que tive muita coisa guardada dentro de mim, eu era uma pessoa muito submissa ao marido, fazia tudo o que ele queria e aquilo eu guardava e eu achava que eu não estava feliz, aí foi quando eu senti o problema. (Madalena) Eu sou uma pessoa muita calada, não sou de falar, desabafar, dizer o que eu estou sentindo; quando eu era pequena, meu pai brigava muito com a minha mãe. (Débora) Fatos de sua história de vida são lembrados por Judith, como coisas não resolvidas satisfatoriamente, que levaram a desgostos e sofrimento. Observa-se na fala o estado depressivo que é provocado por uma tensão exagerada, associada a fortes sentimentos de culpa. Depressão, desgosto, meu esposo bebia muito.(Judith) A repressão de sentimentos, demonstrada na fala de Noemi, é tratada assim7. a mulher é socializada para reprimir e ocultar sentimentos; quando são sentidas e expressas fortes emoções, carreadas de sentimentos de amor, de ódio, de raiva, de satisfação, de ansiedade e de tristeza, as pessoas reagem. Essas emoções raramente respondem da maneira como escolhemos, pelo que aumenta a possibilidade de conflito. Eu acho que tive um câncer de mama, porque eu tive muitos problemas emocionais, eu acho que essa doença num seja só hereditário, eu tive muito problema emocional sofri muito calada e aquilo ficou guardado, tudo que você guarda de ruim se transforma em algo ruim, foi o que aconteceu comigo, eu sofri muito tive muita mágoa, tive muito sofrimento. (Noemi) A maneira como as pessoas vivem, até o aparecimento do câncer, evidencia um tipo de criação e educação com muitas repressões, vivendo a mulher em função da família, sendo socializada para servir os outros, responsabilizando-se por tudo e negligenciando a saúde, conforme denunciam a fala de Ester. Eu era uma pessoa que não vivia para mim, eu só vivia em função do marido e dos filhos, eu não vivia, que hoje eu já me libertei muito de isso aí. Eu era anulada, eu achava que o meu direito era só ser mãe, ser esposa, ser dona de casa, não reivindicava nada, ainda tinha que ajudar no orçamento doméstico.(Ester) No depoimento a seguir, observamos Rute, alheia aos problemas pessoais, envolvida em conflitos domésticos, com sofrimento manifestado através da convivência com o marido e os filhos. Eu atribuo ‘a preocupação’, eu cuidei logo, não fiz Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):35-40. - 37- quimio e nem rádio, mas eu sempre tenho aquele receio, mas não quero mexer não, preocupação familiar, esposo, de filho. (Rute) A doença age como um revelação, ou seja, ela é capaz de tornar pública as relações intrapessoais e interpessoais estabelecidas pelo indivíduo8. É como se ela pudesse desnudar os seus relacionamentos e, a partir daí, o indivíduo teria a oportunidade de descobrir sobre o que os mesmos foram construídos: amor, dinheiro, troca, gratidão, partilha, confiança, disputa. Tenho uma vida de muito sofrimento, é casamento, é família, ninguém teve esse sofrimento de graça, e não é castigo de Deus não. (Noemi) Acho que o aparecimento dessa doença é de marido ruim, acaba com a gente. (Débora) Quase todas as pessoas com câncer tiveram, durante suas vidas, uma história de contenção das emoções, principalmente as agressivas, até porque, na nossa cultura, há uma socialização deste tipo de comportamento9. Depressão é passar muitos momentos amargos. Não ter uma oportunidade de falar, tudo tem que ficar calada, com medo do marido, eu acho que leva a esta doença. (Judith) [...]Não se amar e não se cuidar, não se sentir feliz, acho que tudo isso é. (Madalena) Este depoimento mostra como, culturalmente, as mulheres são orientadas para suportar o sofrimento e dar prioridade às necessidades dos outros, o que pode terminar gerando doenças ao exemplo do câncer. Esse tipo de comportamento se deve à nossa exposição aos símbolos culturais, condiciona-nos a absorvê-los, em nosso cotidiano10. Neste universo de fatos e fenômenos, é que construímos os acontecimentos, através dos quais vivemos e nos auto orientamos. Herança Familiar Estudos comprovam que a história familiar de câncer, em parentes de primeiro grau (mãe, irmã ou filha), multiplica o risco de ter a doença em duas a três vezes e se houver mais de um parente de primeiro grau, com câncer de mama, antes da menopausa, o risco é ainda maior². As mulheres participantes do estudo, ao refletirem sobre as possíveis causas de seu adoecimento, trazem a noção de que o fator hereditário pode ser um dos determinantes para o surgimento do câncer de mama, como retratam Séfora e Débora, em seus depoimentos. - 38 - Influência genética, porque eu já tive casos de duas tias minhas, irmãs de meu pai, eu acho que foi genes.(Séfora) Eu acho que foi isso, tá certo que na minha família teve um caso, irmã de minha mãe, inclusive a minha tia morreu de câncer e foi igual a mim, ela teve filhos gêmeos, eu também.(Débora) Já outras atribuíram o câncer de mama ao tipo de vida que tiveram. Estresse - “Vivido atarefado” A maioria das doenças ocorre em decorrência de um elemento estranho (real ou simbólico), na vida do doente, a partir do exterior, que age sobre esse último e faz com que se instale a doença11. Acredito que a tendência hereditária na influência do estresse contribui, eu acredito que através dos anos vai debilitando o organismo da gente. (Séfora) O depoimento de Abigail mostra que os pacientes de câncer foram afetados por um padrão de estresse decorrente da vida moderna, que exige mulheres mais participativas12. Estresse. Eu acho que eu levava uma vida altamente atarefada, sem lazer e enfrentando principalmente problemas familiares.(Abigail) As mulheres mencionam os papéis sociais que desenvolveram na família, a mercê de sua socialização e que trouxeram como conseqüência, a sua doença, sustentada por uma rotina. O câncer é visto como a mais terrível das bactérias, capaz de corroer a felicidade do homem. Essas rotinas em suas vidas geraram estresses e deixaram seqüelas, expressas em tom de muita infelicidade, como vemos no depoimento de Ester. Eu acho que o que me causou essa doença, era a vida que eu tinha, a vida sedentária, atribulada, muita coisa, muita responsabilidade em cima de mim. Eu acho que isso concorreu muito para eu ficar doente.(Ester) O estresse envolve mudança, para que o organismo possa se adaptar a nova situação. A mudança é um aspecto essencial à vida; daí, dificilmente a mulher que vive em estado de estresse, por acontecimentos da vida, consiga sair dele na doença. Tinha uma vida muito atribulada,influência do estresse. Meu corte foi muito grande. (Noemi) Ester atribui a padrões morais, adquiridos da família de origem, bem assim ao estilo de vida que levou, à ocorrência de sua doença. Uma doença, ao tempo em que nos joga na cama, mostra-nos a nossa própria limitação ou em outras palavras, a nossa propensão a determinadas doenças. O estresse, mencio- Fernandes AFC; Mamede MV nado pela depoente, está relacionado ao meio social onde está inserida, pois o fato de acumular responsabilidade pessoal sobre os outros, aumenta a resposta física ao estresse. Se eu tivesse uma vida mais aberta, mais liberal, talvez eu não tivesse sofrido tanto, foi uma coisa difícil de digerir(Ester). A vida tumultuada, repleta de compromissos, exigindo sempre mais da capacidade das pessoas, acaba por levar a uma desintegração da unidade interior e à fadiga cerebral. Com isso, podemos ter uma desestruturação mental, com possibilidade de depressão e estresse. Estas podem ser justificativas para o surgimento do câncer, muito embora nossa cultura tenha nos ensinado a viver a doença como um “azar”, que nada revela e que não há nada que possa justificar, como se nunca pudéssemos adoecer e morrer8. Hoje, está bem claro que o modo de vida, isso contribui muito, tristeza, isso concorre muito. (Raquel) O tipo de vida (estresse, agitação, dentre outras coisas), também foi atribuído por Abigail, Ester e Raquel, como causa do câncer de mama; a doença, em outras mulheres, pode estar associada ao tipo de vida que levam, o que põe em relevo a necessidade de reflexão, em torno da melhoria da qualidade de vida. O comportamento social, e mesmo a postura das mulheres são produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado das vivências e crenças de uma determinada cultura, disciplinadora de funções, que vão além de cuidar da casa e dos filhos, alcançando outras tarefas, inclusive trabalhos remunerados. Todo esse apanhado de atividades é, muitas vezes, considerado sinônimo de perfeição, criando o mito da “super mulher”. Vida atarefada. (Abigail) [...] as dificuldades, o ritmo de vida que leva, acho que são pessoas que têm os problemas parecidos com os que eu tinha. (Ester) Hoje está bem claro que o modo de vida contribui muito,[..]. (Raquel) As mulheres estão tomando consciência do aumento do número de casos de câncer de mama, estando também conscientes do mal a que estão expostas, por conta da vida que levam cheias de atribulações, não lhes dando tempo para cuidar da própria saúde. Trauma Físico como “Culpado” Na busca do entendimento do surgimento da doença, as mulheres atribuíram o seu câncer aos traumas emocionais ocorridos no seu cotidiano. Em ouTexto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):35-40. O surgimento do câncer de mama na visão de um grupo de mulheres mastectomizadas tro momento apontam os traumas físicos associados ao aparecimento de nódulos e tumores mamários, o que, de certa forma, confirma os depoimentos de nossas informantes. Neste sentido, cabe a pergunta: por que não insistir mais em uma investigação a respeito desses traumas? Talvez as falas femininas tenham demonstrado, muito pouco interesse sobre isso, mas, na verdade, é preciso aprofundar a questão, para que possamos conhecê-la melhor. Para nós, é muito mais fácil observar a doença, como fruto de um agente nocivo, concebido como “natural”, proveniente da relação do homem com o meio11. Esse modo de conceber as coisas está presente nos relatos de Raquel e Eva. A princípio eu não pensei em nada, pensei que fosse uma coisa simples, mas a gente raciocinando, fazendo um exame de consciência foi que eu me lembrei de uma pancada abrindo a porta de um jipe. (Raquel) Eu creio que seja de muitas pancadas, que apanhei do meu marido, eu vivia lutando com ele doente, apanhando ele do chão.(Eva) O trauma pode, realmente, não ter sido o elemento provocador do câncer, mas, também não deve ser encarado como algo de menor importância. Ainda assim, parece-nos que o que é vivido por elas, como um acidente, é infinitamente menos projetado nos processos comandados por uma etiologia externa. Entendemos, portanto, que estes incidentes contribuem para o estabelecimento de uma explicação para a doença, explicação esta considerada importante para o doente e para as pessoas com as quais o problema é compartilhado. Hábitos alimentares Buscamos, na antropologia da saúde, dados que pudessem complementar as afirmações11 a alimentação também está relacionada ao modelo exógeno, resultante da relação do homem com o meio químico; temos, assim, alimentos que são considerados fracos demais, ou forte demais em valor calórico; mal equilibrados, e não “naturais”, eles, de qualquer forma, agem como uma causa extrínseca sobre o organismo causando as doenças. Os depoimentos de Judith, Marta e Verônica, também confirmam estas teorias repassadas para o imaginário das mulheres, enquanto representação da causa do câncer. Comia muita comida gordurosa.(Judith e Marta) Agora essas moças novas é tudo com câncer, tamTexto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):35-40. - 39- bém, os alimentos são cheios de hormônio, o frango, a vaca, as verduras cheias de agrotóxico. (Verônica) Falta de cuidado com o corpo A constatação de que o tema prevenção envolve uma série de conceitos psicológicos – mudanças de crenças, valores, atitudes e comportamentos de saúde, percepção de ameaça à saúde, tem feito com que os profissionais voltassem mais a sua atenção para esses aspectos13. Mostra-nos o discurso de Marta, que a causa da doença é vista como algo de responsabilidade da pessoa afetada. Ela então é punida por sua negligência ou por algum excesso, mas sempre por um mau comportamento. Aqui a doença é vista como uma punição para o ato de negligência com a saúde11. A falta de conhecimento e prevenção tem que procurar o médico antes, como eu não tinha conhecimento, fazer a prevenção. (Marta) Comportamento preventivo é qualquer conduta adotada por uma pessoa que se acredita saudável, com o propósito de prevenir doenças ou detectá-las em estágio ainda assintomático ou precoce14. A falta deste comportamento preventivo é o que podemos observar nas falas de Abigail e Judith. A falta de toque nas mamas. É muito importante a gente se tocar e vê realmente como está as nossas mamas, às vezes descaso da prevenção, passar 2 ou 3 anos sem fazer a prevenção, quando vem a acontecer é um caso sem jeito. (Abigail) Falta de prevenção, porque não tem acesso aos hospitais, aos planos de saúde. (Judith) O modo como as pessoas agem diante da doença pode ser influenciado pelas crenças. Mesmo assim, uma pessoa pode acreditar que uma dada ação seja efetiva em reduzir a ameaça à saúde, porém, ao mesmo tempo, pode considerá-la inconveniente, onerosa, desconfortável, dolorosa ou geradora de ansiedade. Eu acho que é muita gente que não faz um exame, uma prevenção, não vai ao médico, eu tiro pelas minhas irmãs, eu morro de mandar e elas não vão. (Maria) A doença foi vista11, como um desarranjo, por falta de zelo com o corpo. Remete-nos o autor a uma reflexão sobre o fato de que só buscamos ajuda, quando imaginamos estar doente, conforme o confirmado no discurso de Maria. [..].eu nunca tinha apalpado o meu seio, nesse dia eu estava deitada e comecei a apalpar o meu seio e descobri o caroço. (Maria) - 40 - O conhecimento que elas demonstraram, não foi suficiente, para determinarmos um comportamento preventivo. Os hábitos culturais, ao exemplo da repressão da sexualidade, trazidos da família de origem, impedem-nas de tocar o corpo, de olharem-se no espelho de entenderem o processo da doença pelo qual estavam passando15. CONSIDERAÇÕES FINAIS O câncer de mama é uma doença que causa muitos transtornos à mulher, tanto física como emocionais. As mulheres deste estudo atribuem o surgimento do câncer de mama, ao estilo de vida que levavam e à influência do meio cultural em que se inserem. No caso das participantes deste estudo, a doença deixou-as mais conscientes quanto aos perigos que alguns hábitos de vida e comportamentos diários acarretam para o aparecimento de determinadas doenças. O estudo é de grande valia visto que o enfermeiro trabalhando com pacientes portadores de CA de mama, tem papel fundamental no acompanhamento prétrans e pós operatório e no preparo para alta, já que este paciente é na maioria das vezes submetido a grandes cirurgias, ciclos de quimioterapia e radioterapia. Daí a necessidade de se avaliar constantemente a influência do câncer na vida das mulheres, para estabelecermos intervenções de enfermagem mais efetivas coerentes com a problemática vivenciada. Este trabalho tem, assim a pretensão de oferecer um subsídio ao desenvolvimento de ações com mulheres mastectomizadas, servindo para minimizar os problemas de saúde que comprometem à sua qualidade de vida. Fernandes AFC; Mamede MV 2 Instituto Nacional do Câncer (BR). Câncer no Brasil dos registros de base populacional. Rio de Janeiro :Coordenação de Programas de Controle de Câncer; 2003. 3 Smeltzer SC, Bare B. Brunner & Suddarth: tratado de enfermagem médico-cirúrgica. 8ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998. 4 Rzeznik C, Dall‘Agnol CM. (Re) descobrindo a vida apesar do câncer. Rev Gaúch Enferm 2000; (n.esp): 84-100. 5 Hammersley M , Atkinson P. Etnografia: métodos de investigación. Buenos Aires: Paidós; 1994. 6 Gimenes M da GG. A pesquisa do enfrentamento na prática psico-oncológica. In: Carvalho MMMJ, organizadora. Psicooncologia no Brasil: resgatando o viver. São Paulo:Summus; 1998. p.232. 7 Ayers LK. Câncer de mama: a resposta está em você. 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