O ANTIGO TESTAMENTO

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O ANTIGO TESTAMENTO
Uma das novidades mais significativas da última reforma litúrgica foi a introdução do Antigo Testamento nas leituras da Missa.
Até há pouco tempo, podiam-se contar as passagens dos livros proféticos, históricos e sapienciais
que os fiéis escutavam.
Agora, no ciclo ferial incluem-se longas selecções dos mesmos, na leitura continuada. E aos
Domingos, a primeira leitura é quase sempre do Antigo Testamento, relacionada com o tema da
passagem evangélica do dia.
Talvez não nos tenhamos dado conta ainda do que pode significar, para a formação dos crentes,
que, quando se reúnem para a Eucaristia, vão escutando, ano após ano, a proclamação do Antigo
Testamento.
A salvação tem três dimensões
Estávamos acostumados a ver o cristianismo sob duas chaves ou dimensões:
‒ a vida de Cristo: o que aconteceu desde o seu nascimento até á sua morte e ressurreição;
‒ e a vida cristã: o que começou então, como consequência da sua obra salvadora: modo de viver
conforme aos critérios de Cristo.
A terceira dimensão no-la dá o Antigo Testamento. E poder-se-ia definir assim: a história.
Deus salva-nos do decurso da história. Desde a criação do mundo, a sua acção salvadora entrelaça-se com o tempo. E está em relação muito directa, nos últimos séculos, com a história de um povo
concreto, o de Israel, que Ele elegeu como depositário das suas promessas.
Na história desse povo estão as grandes “linhas-força” do seu plano de salvação. Nela está também a chave para entender o que a seguir aconteceu, na plenitude dos tempos, quando o Filho de
Deus Se fez homem.
Esta dimensão dá “relevo” ao mistério cristão. Dá-lhe profundidade, dinamiciade.
O cristianismo não é tanto um dogma doutrinal ou uma norma moral, mas uma história. A História da Salvação, na qual estamos submergidos activamente.
Por isso, é importante que incorporemos na nossa visão cristã esta terceira dimensão: a história.
O Antigo Testamento, chave para entender Cristo
Quando Jesus Se faz encontrar com os discípulos de Emaús, na tarde do domingo de Páscoa,
explicou-lhes o mistério da sua morte e ressurreição. E, para isso, seguiu este método: “começando
por Moisés e por todos os profetas, foi-lhes declarando quanto a Ele se referia em todas as Escrituras” (Lc 24, 27).
Todo o Antigo Testamento é figura e preparação de Cristo.
Cristo é a plenitude, o cumprimento de todo o anterior: da história, das promessas, das figuras de
salvação que vivem e palpitam nos livros do Antigo Testamento.
Um dia disse-o muito claramente Ele mesmo, na sinagoga da sua povoação, Nazaré. Abriu o livro
de Isaías e leu a passagem: “O Espírito está sobre Mim… Me ungiu… Me enviou a pregar…”.
Enrolou o livro, sentou-Se e disse: “Cumpre-se hoje esta Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4, 1721).
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Mateus diz umas dez vezes no seu evangelho que os diversos acontecimentos têm um sentido:
“para que se cumpra a Escritura”. Porque Cristo não veio “para abolir a Lei e os Profetas, mas
para a cumprir” (Mt 5, 17).
Por isso não O podemos entender a Ele e à sua obra, sem conhecer as grandes linhas e as categorias que aparecem nas Escrituras.
Não podemos compreender Cristo como “cordeiro que tira o pecado do mundo”, se não soubermos o que é o cordeiro e porque se diz que tira o pecado. Nem saberemos valorizá-l’O como “bom
pastor” até termos visto as ressonâncias desta figura na história dos bons e maus pastores de que
falam os profetas. Nem nos dirá grande coisa o Anjo da Anunciação quando assegura que o Messias
se sentará no trono de David, se não recorremos à história e aos seus anúncios. Nem veremos a profundidade da nova Páscoa de Cristo, ou porque Ele refere o cálice da nova aliança, se não o confrontamos com a primeira Páscoa e a primeira aliança da história de Israel.
O próprio Cristo nos indicou o modo de o entender: “Investigai as Escrituras, já que nelas credes
ter a vida eterna, pois elas dão testemunho de Mim” (Jo 5, 39).
Só assim compreenderemos porque Cristo Se apresenta a Si mesmo com categorias anunciadas
pelos profetas: o Filho do homem (Daniel), o predilecto do Pai (Isaías 42), o Servo de Deus (Isaías
53).
O Antigo Testamento, espelho da Igreja
Mas, ao mesmo tempo, estes livros são o espelho em que nos podemos olhar nós mesmos, a Igreja
de Cristo.
A história de Israel é a grande história do diálogo entre Deus e a humanidade. É a história viva e
palpitante da resposta que o povo de Israel deu ao plano de Deus, que se ia cumprir plenamente em
Cristo.
Na fé de Abraão e nas qualidades de Saul, na religiosidade de David e na difícil missão de Jeremias, nas suas perseguições e cativeiros do povo israelita e na sua peregrinação pelo deserto, na sua
aliança com Deus, pactuada no Sinai, tantas vezes rompida e reatada, e nas suas glórias e misérias,
nos seus momentos de fidelidade e no seu pecado…
Na história desse povo está a promessa e a preparação de todos os bens que agora gozamos e que
a partir de Cristo são realidade plena.
O triângulo de uma Salvação que é história
Assim, pode-se conceber que toda a História da Salvação se realiza em três etapas:
‒ o tipo e a figura, que é todo o Antigo Testamento;
‒ o cumprimento e a realidade, que é Cristo;
‒ e o prolongamento de Cristo, seu “sacramento”, que é a Igreja.
Cristo é o centro e a plenitude. Mas Israel, ou melhor, todo o tempo anterior a Cristo, desde a
criação, é a figura da Igreja: seu exemplo e experiência. “Todas estas coisas lhes aconteceram a
eles em figura e foram escritas para nos admoestar a nós, que chegámos à plenitude dos tempos” (I
Cor 10, 11).
Uma infinidade de exemplos poderia esclarecer esta tripla dimensão:
• a Páscoa:
a) a Páscoa judaica, que é o acontecimento da sua libertação do Egipto, com tudo o que supõe:
a sua saída do Egipto, a aliança no monte Sinai, a sua peregrinação pelo deserto, a constituição do Povo, a sua entrada na terra prometida…;
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b) a Páscoa nova e verdadeira, que é a Morte salvadora de Cristo, que Se entrega ao Pai como o
autêntico Cordeiro pascal, restaurando a nova Aliança, livrando-nos do pecado e agrupando
à sua volta o Novo Povo de Deus;
c) essa Páscoa vive e desdobra-se agora, historicamente, na comunidade eclesial, novo Israel,
que se associa à luta de Cristo contra o mal, e celebra continuamente a sua libertação na sua
vida e nos seus sacramentos;
• a comida pascal:
b) que Israel celebrava (e celebra) como memorial da saída do Egipto,
c) que em Cristo teve a sua plenitude no gesto sacramental da Última Ceia, em que já tornou
partícipes os discípulos da sua iminente entrega na Cruz,
d) e na Igreja tem uma perpetuidade na ceia eucarística, pela qual proclamamos a Morte do
Senhor até que Ele venha;
• os sacramentos:
a) Israel experimentou os grandes sinais da vontade salvadora de Deus: a passagem do Mar
Vermelho, o maná, as unções dos profetas, reis, etc.;
b) tiveram em Cristo a sua plenitude: o baptismo no Jordão como experiência nova da passagem das águas, a sua doação do Pão da Vida, a sua Unção como Messias…
c) e, agora, tem o seu prolongamento nos sacramentos da Igreja: o Baptismo, a Eucaristia, a
Unção da confirmação ou das ordenações ou do sacramento dos doentes…
O dilúvio e as suas três dimensões
Vamos fixar-nos em dois exemplos que podem esclarecer mais este relevo de profundidade que a
história dá ao mistério cristão. Um refere-se a uma realidade sacramental: o dilúvio como figura do
baptismo. Outro, à vida cristã como atitude nova perante as variadas circunstâncias que a história
nos traz.
O dilúvio é um acontecimento que se presta a muitos enfoques. O apóstolo Pedro relaciona-o com
o nosso baptismo, mas também, com a Morte e Ressurreição de Cristo:
‒ o facto histórico que lemos no Génesis pode-se resumir assim: a água purificadora, com a qual
Deus, ao mesmo tempo, castiga e salva; tudo fica submerso nas águas; um grupo salva-se na arca:
Noé é constituído em cabeça da nova humanidade;
‒ Pedro vê em Cristo o cumprimento perfeito desta figura (cf. I Pe 3, 18-21): foi Ele quem Se submergiu nas águas da morte, aceitando sobre Si o castigo pelo pecado da humanidade, e surgiu da
morte para uma nova existência, como Senhor glorioso, constituído Senhor e chefe da nova humanidade;
‒ e assim a Igreja, agora, celebra a salvação conquistada por Cristo, à qual se incorpora submergindo-se nas águas do Baptismo, que é o anti-tipo (cumprimento, sacramento) do dilúvio (assim lhe
chama Pedro em 3, 21); ela, a Igreja, é a arca da salvação e é a nova humanidade cuja Cabeça, Cristo, ressuscitou para a nova vida.
A figura e o anúncio foi o dilúvio.
A realidade, a verdade, Cristo na sua morte e ressurreição, atravessando as águas profundas da
morte e baixando ao “Sheol”, o lugar dos mortos.
O sacramento actual, a Igreja, no seu Baptismo e na associação ao mistério pascal de Cristo.
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O salmo 110 e a sua actualidade
É um dos salmos mais importantes. Repetimo-lo em Vésperas em cada Domingo. É claramente
messiânico, mas o seu sentido é difícil de captar, se não se olhar para o seu estilo literal:
•
Situação histórica
É um salmo real, em honra de um rei, precisamente no dia da sua entronização (esplendores
sagrados, festa); recordemos que, para os judeus, o rei é algo sagrado: é como o sacerdote de
Deus para com o povo (tu és sacerdote para sempre: o rei!).
Mas vê-se que o começo do seu reinado coincide com tempos de crise para o povo: inimigos,
perseguições… Ser rei nessas circunstâncias deve ser difícil; o rei tem medo perante o destino
que lhe possa tocar, se for vencido.
Nesse momento aparece o profeta e pronuncia para o rei um oráculo animando-o: “oráculo do
Senhor (Deus) ao meu senhor (rei): senta-te à minha direita, farei de teus inimigos… (não
temas: vencê-los-ás, Deus está contigo) és príncipe desde o dia do teu nascimento” (ou seja,
desde hoje, em que és consagrado rei por vontade de Deus: Eu mesmo te gerei…).
Em resumo: “tem ânimo, não temas os teus inimigos; és rei e Deus te ajudará a sair airoso da
tua difícil missão”.
• O Novo Testamento reza este salmo aplicando-o a Cristo. Por exemplo, o discurso de Pedro
em Actos 2, 34: Deus apoia Cristo; é sacerdote e rei; apesar dos inimigos e das aparências de
debilidade, avançará e triunfará; morrerá, mas para ressuscitar; nada poderão contra Ele as conjuras dos seus inimigos: “David diz: Disse o Senhor ao meu senhor… Saiba com absoluta certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus…” (idêntica perspectiva, se compararmos o salmo 2, 1-2 com Actos 4, 25-27: ali a conjura dos inimigos se identifica
claramente com a de Pilatos e Herodes…).
• Aplicação a nós
Também agora a situação da Igreja (e dos seus ministros) pode ser vista com caracteres pessimistas; para onde vai a Igreja? Conseguirá sair airosa da conjura dos seus inimigos de fora ou
contra as tensões de dentro?
Mas a História da Salvação continua! O salmo 109/110 convida-nos a contemplar também a
nossa pequena história de hoje com optimismo: oráculo do Senhor à Igreja de hoje: “porei os
teus inimigos…; a ajuda de Deus não te faltará; levantarás a cabeça”. O exemplo de Cristo que
morre, mas ressuscita, deve recordar-nos, de uma vez por todas, que a acção salvadora de Deus
continua em curso…
Uma história única
A história de Israel é a nossa própria história.
Como o homem de quarenta anos não pode prescindir da sua história passada (da sua infância, da
sua adolescência, da sua juventude), tão-pouco a Igreja, que chegou à plenitude em Cristo e vive
agora a sua maturidade, pode prescindir da sua etapa de preparação na vida de Israel.
É a mesma História da Salvação que continua: apesar da essencial evolução de ter-se cumprido o
tempo da plenitude.
Entre os livros do Antigo e os do Novo Testamento há uma unidade de revelação, que não se pode
desagregar.
E teremos que ir superando as dificuldades que esta perspectiva comporta hoje: porque tínhamos
abandonado (sobretudo a nível dos fiéis) a compreensão das categorias do Antigo Testamento, em
que a revelação divina expressa a nossa salvação: aliança, Páscoa, memorial, Servo de Jahvé, promessa, Messias, etc.
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Para isso contribuirá muito validamente a proclamação continuada e explicada dos livros do Antigo Testamento na celebração eucarística.
José Aldazábal
(Traduzido e adaptado por José Manuel Pereira
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