O bom e velho samba!: Consumo musical e brasilidade no Rio de

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PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014)
O bom e velho samba!: Consumo musical e brasilidade no Rio de
Janeiro pós 1990 1
Júlia Silveira de Araújo2
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar o consumo de “samba de raiz” no Rio de
Janeiro pós 1990 como processo de identificação e resgate de uma ideia de brasilidade.
Protagonizado por artistas e público majoritariamente de classe média, esse movimento
orgânico se organiza em torno de demandas simbólicas de uma geração em busca de
enraizamento em tempos de fluidez identitária. Através do resgate de repertórios e
sonoridades tradicionais do samba e da busca pela reprodução de um universo imaginado de
negritude, malandragem e periferia, esse segmento busca consolidar um pertencimento e
reaver uma memória coletiva através do consumo cultural.
Palavras-chave: Samba de Raiz; Identidade; Classe Média
Introdução
As canções populares (letra, melodia, ritmo, harmonia) são produtos
comunicacionais
no sentido fundamental do termo, já que se tratam de uma
mensagem emitida a ouvintes que a interpretarão subjetivamente. É necessário
também um mínimo compartilhamento de códigos, pois, do contrário, as múltiplas
significações e a apreciação provavelmente não ocorrerão. Tanto no âmbito do
consumo individualizado e privado quanto coletivo e público, faz-se necessário
compreender as músicas comercializadas como discursos situados historica cultural e
geograficamente, que remetem a concepções de mundo, ideologias, expressões de
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e subjetividade, do 2º Encontro
de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012.
2
Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Comunicação
pela UFF e graduada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail:
[email protected]
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pensamentos, hábitos e estilos de vida de um determinado grupo de produtores e/ou
consumidores. Nesse sentido, tocar e ouvir música ao vivo é um ato performático que,
para além da diversão e do prazer, pode abarcar processos de identificação e
distinção, reconhecimento ou negação do outro ou coesão comunitária.
Assim, partindo da compreensão das identidades como representações e
materialidades forjadas ou ressignificadas em processos interacionais, o presente
estudo analisará a produção e o consumo do chamado “samba de raiz” no Rio de
Janeiro pós anos 1990, como processo de afirmação de um ideal de brasilidade
calcado no ginga e negritude da nossa herança histórica afro-brasileira. A pesquisa se
atém especificamente ao segmento que se consagra a partir da revitalização do
boêmio bairro carioca da Lapa, onde organicamente se originou uma cena musical
inicialmente voltada a pesquisa e execução de clássicos do samba. O imaginário
acerca de uma origem ou essência do samba foi o cenário para que jovens de classe
média, abastados e com alto nível de escolaridade, pudessem acessar um universo
periférico de malandragem, historicamente associado a outros segmentos sociais.
A contemporaneidade globalizada e o retorno às identidades locais
Sabe-se que a afirmação do samba como símbolo de brasilidade em oposição a
outros gêneros musicais não é novidade, porém, atualmente, alguns dos principais
agentes engajados nesse processo são jovens de classe média, brancos, com educação
formal em música, ou seja, um segmento que costumava ser associado às
manifestações musicais “modernas”, inovadoras, de influências estrangeiras. Mas, se
o gênero surge no século XIX como cultura de gueto, marginalizada e desprestigiada,
porque está em voga agora e a partir de quais manifestações culturais e estratégias
midiáticas esse processo ocorre? Para responder a essas questões é necessário
contextualiza-las
nas
dinâmicas
múltiplas
e
contraditórias
da
sociedade
contemporânea, o que evidenciará resistências, novas demandas e estratégias
culturais, comerciais e comunicacionais peculiares.
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A dita pós-modernidade – também chamada de modernidade líquida
(BAUMAN, 1988), modernidade radicalizada (GIDDENS, 1991) e sociedade
espetacular (DEBORD, 1997) ou especular (SODRÉ, 2008) – refere-se ao período
histórico iniciado na década de 1980 com a aceleração do desenvolvimento do
sistema capitalista. Para evitar afirmações totalizantes ou ambíguas, fala-se aqui
simplesmente em contemporaneidade globalizada. Apesar das muitas perspectivas a
respeito do período, algumas de suas características são comumente apontadas, tais
como aceleração do fluxo de capitais, objetos e pessoas; consumismo exacerbado;
velocidade como valor primordial; fragmentação e dispersão de instituições e
indivíduos; unificação global; embaralhamento de referências locais; relacionamentos
instáveis. Diagnostica-se ainda a ampliação do uso das novas tecnologias da
informação, a supressão de distâncias físicas e simbólicas e mundialização das
experiências (sobretudo na esfera do consumo, enquanto processo de sociabilidade
e/ou construção identitária). A noção do tempo e do espaço e a construção e
percepção de etnia, raça e nacionalidade, que, “no passado, nos tinham fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais”, estão se modificando (HALL, 2005,
p.9). A identidade nacional; “comunidade imaginada” (ANDERSON apud HALL,
2005, p.51) que continha tradições, referências espaço-temporais, normas, mitos e
percepções acerca do povo; está se fragmentando.
Mas, contraditoriamente, há também resistências aos processos socioculturais
de pasteurização, segmentação, desvinculação e desestabilização. Ao analisar a
sociedade contemporânea globalizada, Bauman (1998) e Kellner (2001), por exemplo,
identificam um inesperado retorno ao tribalismo e às identidades nacionais, coletivas,
e Calclini (1999) observa que parte das culturas locais e regionais ainda resiste à
transnacionalização. Como explica Nercolini (2009), essa busca por identificação e
vinculação desponta no fim dos anos 1960 a partir de processos de descolonização e
novos movimentos sociais e está relacionada uma necessidade “de se agarrar ao
passado como a uma âncora, para não se perder na sobrecarga informacional e na
aceleração cultural exacerbada, processos com os quais nossos sentidos ainda não
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estariam equipados para lidar” (NERCOLINI, 2009, p.184). E nesses processos de
fixação o consumo é um importante marcador de sentido (DOUGLAS), um processo de
distinção (BOURDIEU, 2007) e, em alguns casos, até condição de felicidade e até dignidade
(BAUMAN, 1998). Douglas e Isherwood (2004) afirmam ainda que o consumo é um
importante ritual capaz de conferir sentido ao complexo e incompleto fluxo de
acontecimentos do cotidiano. Dessa forma, esses processos viabilizam os significados
e a memória dos grupos sociais, conferindo-lhes uma base consensual. O consumo
musical, mais especificamente, relaciona-se também com processos de distinção,
construção de gosto e pertencimento.
O amante da música provavelmente sabe muito de música e está atento à fina
discriminação e mudanças de prática que são a história da música; pode mesmo julgar
(embora no âmbito provado) se uma performance é melhor do que outra. Ele
compartilha um processo intensamente social e cultural. [...] O consumo usa os bens
para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos
fluidos de classificar pessoas e eventos. E agora o definimos como atividade ritual.
(Douglas; Isherwood, 2004, p. 115).
No contexto dos shows e rodas de samba, performances, disposição dos
artistas e do público, repertórios, clichês sonoros e discursivos, dança e postura
corporal e até as roupas compõe uma atmosfera de informalidade, espontaneidade,
improviso e “malandragem”, característica do imaginário do samba. Tendo em vista
que a maior parte dos produtores e consumidores desses shows não possuem o ethos
do sambista marginalizado, pobre e negro, cria-se uma espécie de ritual artísticocomunicacional para experimentar aquilo que acreditam ser expressão de uma cultura
genuinamente popular e brasileira. É através da apropriação desse repertório, da
reverência aos ícones do gênero, da reprodução de suas canções e estéticas que se
constrói coletivamente uma espécie de rito de celebração de um pertencimento local.
Nesse sentido, esses rituais consumo remetem a processos de ancoragem através da
sociabilidade e da exaltação de uma estética compreendida como síntese da cultura
nacional (embora deva-se ressaltar que se trata de uma percepção carioca de
brasilidade).
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Mais do que mera manifestação musical, o gênero agrega valores e seu
consumo coletivo oferece possibilidade de vínculos mais estáveis com o outro e com
uma determinada percepção de grupo e comunidade nacional. Dessa forma, o
sambista “adquire maior valor à medida que se demonstra mais próximo afetiva e
esteticamente de símbolos desta tradição”, “cujo eixo de valoração é a noção de
continuidade, de permanência” (TROTTA, 2007, p.5). Isso porque
as maneiras legítimas ficam devendo seu valor ao fato de que elas manifestam as
mais raras condições de aquisição, ou seja, um poder social sobre o tempo
reconhecido tacitamente, como a forma, por excelência, da excelência: possuir algo
‘antigo’, ou seja, as coisas presentes que são do passado, da historia acumulada,
entesourada, cristalizada (BOURDIEU, 2007, p.70)
O “samba sem sobrenome” pós década de 1990
Sabe-se que, em diversos momentos históricos, o gênero foi uma espécie de
trincheira musical, defendendo valores nacionais e tradicionais, contrapondo-se à
música estrangeira (rock, pop, jazz, etc.), à modernidade estética nacional (bossa,
MPB, etc.) e à modernidade comercial nacional (rock, pop, axé, etc.) No entanto, é
com o advento do pagode romântico nos anos de 1980 que o samba se vê pela
primeira vez em uma relevante disputa interna. O segmento musical moderno, que
despontou sobretudo através de grupos de São Paulo, tornou-se sucesso comercial e
de público, embora nem sempre tenha agradado aos críticos especializados. Das
primeiras iniciativas, que guardavam elementos típicos do samba, surgiram os
contemporâneos pagodeiros “românticos”, que se distanciaram da estética e das
temáticas típicas, influenciados pelo pop, pela soul music e por outras manifestações
culturais norte-americanas, verificadas, sobretudo, no recorrente uso de teclados, na
eliminação de instrumentos tradicionais e no estilo do canto.
Porém, também nos anos de 1990 surgiu uma geração que apostou em
pesquisa e releituras de clássicos do samba e produz músicas que dialogam com
antigas estéticas, estruturas e temáticas. No contexto desses embates estéticos e
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simbólicos surge o rótulo legitimador “samba de raiz”, que visava diferenciar-se
estetica, tematica, ideologica e mercadologicamente da nova vertente. A
nomenclatura passou a funcionar como um marcador em oposição ao “massivo”
pagode paulista que se tornara um grande sucesso mercadológico. Desde então, o
samba virou “moda” (TROTTA, 2006), ou seja, seus referenciais simbólicos estão
sendo cada vez mais partilhados por pessoas de diversas classes, idades, sexo e graus
de escolaridade e sua presença se verifica na mídia, lares, práticas coletivas e
imaginário nacional. Nesse sentido, cabe citar a matéria Sangue Novo no Samba,
publicada na Revista Época, na qual Ricardo Calil apresenta uma definição bastante
ilustrativa dessa nova geração:
embora as idades variem dos 20 aos 40 anos, há traços unindo esses músicos. Eles
gostavam de outros gêneros musicais na adolescência, como forró ou rock, mas um
dia descobriram o samba e decidiram não largá-lo mais. Na faculdade, de música ou
não, conheceram outros garotos com o mesmo gosto e resolveram formar grupos para
tocar os grandes clássicos do ritmo. Apesar da importância das faculdades como
ponto de encontro, a grande escola desses músicos de nova cepa foi a roda de samba.
No princípio, eles apareciam apenas para ouvir os bambas. Depois, começaram a
arriscar alguns sambinhas. Hoje, é cada vez mais comum vê-los dividindo o palco
com mestres como Wilson Moreira, Walter Alfaiate, Nelson Sargento, Xangô da
Mangueira e muitos outros.3
Por fim, cabe apontar que o movimento de “raiz” pós anos 1990 diferencia-se
de outras apropriações que a juventude detentora de capital cultural e simbólico fez do
samba ao longo da história, já que não se identifica nem com a formatação do gênero
para sua inserção nos meios de comunicação de massa (como no contexto do advento
do rádio nos anos de 1920 e 1930), nem com uma reinvenção estética (como a Bossa
Nova na década de 1950). Ao contrário, caracteriza-se por uma retomada de aspectos
tradicionais, tidos como “essenciais” e “legítimos”, e por uma reverência à estrutura,
temáticas, repertório e sonoridades características do gênero, até mesmo na criação e
composição de novas obras. Dessa forma, há atualmente uma “ligação entre passado e
presente que mostrou satisfazer a uma demanda de parte dos consumidores de música
3
CALIL, Ricardo. Sangue novo no samba. Revista Época. Disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR67548-6011,00.html. Acesso em 21/05/2012.
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na virada do milênio, ansiosa por reatar vínculos identitários” (TROTTA, 2006,
p.237). Os novos sambistas preocupam-se em encontrar respostas para suas recentes
demandas através de antigas referências, sonoridades e repertórios. O samba da
“moda” é o que os vocalistas do grupo carioca Casuarina chamam de “samba sem
sobrenome”: aquele que “não é um samba de raiz, não é o samba da Lapa, não é o
samba de roda. É o bom e velho samba, matriz principal da música brasileira”
(Estúdio Móvel - Casuarina, 2011).
Nesse sentido, o circuito4 que surge a partir da revitalização da Lapa revela-se
um movimento orgânico e peculiar, uma estratégia segmentada de “sobrevivência” na
fragmentação contemporânea (ESCOSTEGUY, 2010), calcado em um modelo
(carioca) de brasilidade. Tendo em vista que se caracteriza como lócus de jogos
manipulatórios, disputas, apropriações, negociações e resistências através de
processos de produção cultural e comunicação, revela-se como importante ritual de
consumo simbólico. As apropriações, performances sonoras e as audiabilidades
(sejam estas individuais ou coletivas) são partes de um ritual festivo, midiático e de
consumo. Compreendido como discurso, prática, mito, rito, representação, ação e
narrativa performática, o conceito de ritual nos serve para pensar processos de
construção social da realidade, comunicação e produção simbólica de inclusão ou
exclusão. Uma das principais funções desta forma de marcação social de
funcionamento estruturante e estruturado é conter a flutuação dos significados. Nesse
sentido, os rituais são ainda mais eficazes quando materializados.
Grupo Semente: Os pioneiros da nova geração nos anos 1990
Considerado pioneiro da nova geração de sambistas cariocas, o grupo Semente
– Bernardo Dantas (violão), João Callado (cavaquinho), Pedro Miranda (pandeiro e
4
Entende-se circuito através da chave comunicacional de Darnton (1990), que integra os processos de
criação, produção, difusão e recepção de textos diversos. Nesse sentido, a percepção da arte como
atividade que envolve a confecção de instrumentos, ensaios, divulgação de shows e que corresponde a
uma complexa rede de cooperação (Certeau, 1998) também revela a importância de pensar os rituais de
consumo a partir de perspectivas mais amplas e interdisciplinares.
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vocal), Ricardo Cotrim (surdo) e Teresa Cristina (vocal) – surgiu na segunda metade
da década de 1990 com projetos voltados para o resgate das obras de Candeia e
Paulinho da Viola. A partir de 1999, o conjunto passou a se apresentar semanalmente
no Bar Semente, na Lapa, sempre aos sábados. O projeto, incialmente despretensioso,
passou a atrair um público crescente, ganhando proporções inesperadas.
No ano seguinte, o Semente se apresentou no Teatro Rival ao lado de
importantes ícones do samba como Guilherme de Brito, Xangô da Mangueira, Nelson
Sargento e Wilson Moreira e iniciou o projeto Roda de Samba, na Sala Funarte, com
convidados como Argemiro da Portela, Tia Surica, Tantinho e Xangô da Mangueira.
Em 2002 lançaram pelo selo Biscoito Fino o disco O samba é minha nobreza, com
Roberto Silva, Pedro Miranda, Mariana Bernardes, Pedro Aragão e Pedro Paulo. No
mesmo ano, Teresa Cristina lançou pela Deck o disco duplo A música de Paulinho da
Viola, acompanhada pelo Grupo Semente, no qual gravou um dueto com o músico
homenageado na canção Depois de tanto amor (Paulinho da Viola e Hermínio Bello
de Carvalho). Em 2003, a cantora se apresentou no Centro Cultural Carioca ao lado
de Argemiro Patrocínio e Seu Jair do Cavaquinho, mesmo local onde o grupo
Semente fez temporada em abril de 2005. Em 2004, o Semente participou do disco
solo de Teresa intitulado A vida me fez assim (também lançado pela gravadora Deck).
O que merece destaque é a percepção do sucesso alcançado pelo grupo através
de sua proposta voltada para o resgate de repertórios clássicos do samba. Conforme
explica Trotta (2006), “a partir do minúsculo bar Semente e do samba que esses
protagonistas lá faziam, a vida noturna do bairro passou por uma grande
intensificação com a abertura de outros espaços destinados à música brasileira e,
principalmente, o samba” (TROTTA, 2006, p.228). A análise do histórico do grupo
possibilita perceber características do movimento que se pretende estudar, tendo em
vista que o conjunto é formado por jovens majoritariamente brancos e de classe
média; voltados para um repertório clássico do samba; que reverenciam antigos
compositores do gênero e apostam em uma sonoridade característica (com formação
baseada em surdo, pandeiro, cavaquinho e violão). Como aponta Trotta, o projeto
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surgiu em “em sintonia absoluta com o som mais característico do imaginário do
samba, que viria a ser representativo da recém-inventada categoria ‘samba de raiz’”
(TROTTA, 2006, p.228).
Nesse sentido, é relevante destacar a fala de Teresa Cristina a respeito da
primeira reunião que teve na gravadora Deck:
Tinha uma reunião na Deck, minha primeira gravadora, e eu com medo deles me
pedirem para cantar pagode paulista [risos]. Já preparando o ‘não, vou pensar, depois
a gente se fala’. E aí ele disse: queria que você gravasse um disco só com Paulinho da
Viola. Quando ele falou Paulinho da Viola, eu abri um sorriso e falei ‘claro’! 5
Através da declaração da artista é possível perceber algumas demandas do
segmento analisado, tais como a reverência aos artistas do passado, a valorização da
sonoridade tradicional do samba, a exaltação de um ethos tipicamente carioca (que
acaba sendo compreendido como uma síntese de brasilidade) e a abertura para o
diálogo com o mercado musical (tendo em vista que o episódio se passa em uma
gravadora), porém claramente distinto do projeto modernizador do pagode romântico
tipicamente paulista.
Casuarina e a segunda geração da Lapa nos anos 2000
A gente foge do estereótipo dos sambistas. Somos aparentemente todos brancos, não
usamos as roupas tradicionais. E isso nos distancia um pouco daquilo que é esperado
(João Cavalcanti, vocalista do grupo Casuarina).6
O grupo Casuarina surgiu em 2001 e atualmente é formado por Daniel Montes
(violão), Gabriel Azevedo (voz e pandeiro), João Cavalcanti (voz e tantan), João
Fernando (bandolim) e Rafael Freire (cavaquinho). Os cinco jovens, residentes da
5
Saraiva Conteúdo. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=2fM1T_M3otY&feature=related. Acesso em 20/05/2012.
6
Chico Science nos levou a fazer música, diz Casuarina. Disponível em
http://musica.terra.com.br. Acesso em 17/05/2012.
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Zona Sul carioca, formaram o conjunto durante um sarau em um curso de extensão da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Desde então, passaram a
frequentar a Lapa juntos, inicialmente como espectadores e posteriormente como
músicos, experimentando e consolidando a efervescência do bairro até então
protagonizada por outros artistas, como o Grupo Semente.
Em 2005, ao lado dos conjuntos Galocantô, Anjos da Lua e Batuque na
Cozinha, o Casuarina apresentou o projeto Samba em 4 tempos na Fundição Progresso
(consagrada casa de show da Lapa), resgatando o repertório clássico do gênero e
tocando algumas canções próprias. O primeiro álbum do grupo, intitulado Casuarina
e lançado em 2005 pela gravadora Biscoito Fino, apostou no resgate de clássicos
como Pranto de poeta (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito), Laranja madura
(Ataulfo Alves e Mário Lago) e Já Fui Uma Brasa (Adoniran Barbosa). O show de
lançamento do álbum aconteceu no mesmo ano no Teatro Rival BR, no Rio de
Janeiro, com a participação dos integrantes do Grupo Semente Pedro Miranda e
Teresa Cristina, que participaram das faixas 400 anos de favela (Zé Kéti) e Suingue
de Campo Grande (Novos Baianos), respectivamente. O segundo disco do grupo,
Certidão, lançado pela Biscoito Fino em 2007, foi um primeiro registro de canções
autorais como a que dá título ao álbum (João Fernando e João Cavalcanti), além de
Vaso ruim (Diego Zangado e Gabriel Azevedo), É João (João Cavalcanti) e A Roda
Morreu (João Fernando e João Cavalcanti). No entanto, o grupo não abriu mão das
releituras, apresentando novos arranjos para obras de compositores como Sidney
Miller, Délcio Carvalho, Sérgio Fonseca, etc.
Em 2009, lançou seu primeiro DVD, MTV Apresenta: Casuarina, também
disponível em CD. O trabalho foi fundamental para conferir maior visibilidade ao
conjunto, que no ano seguinte foi eleito o melhor grupo de samba pelo Prêmio da
Música Brasileira e fez turnê por vários países da Europa. Em 2011, a banda
participou do projeto Lapa de Todos os Sambas, realizado pelo Centro Cultural Banco
do Brasil, no Rio de Janeiro, com o objetivo de celebrar a revitalização da Lapa em
uma iniciativa que reuniu três gerações de cantores, músicos e compositores. No ano
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seguinte, o conjunto foi escolhido pela Prefeitura do Rio de Janeiro para comandar o
show de inauguração das obras de revitalização do mesmo bairro, que contou com
participações de Pedro Miranda, Teresa Cristina e Moyséis Marques (ex-integrante do
grupo). O show se tornará um DVD a ser lançado em 2013.
O último disco do grupo, Trilhos – Terra Firme, lançado pela Warner Music
em 2011, foi o primeiro projeto composto apenas por canções autorais. Essa iniciativa
denota uma nova tendência dessa geração, que continuam apostando no reforço da
tradição e da autenticidade do samba (presentes na formação das bandas, na dinâmica
das rodas, nas sonoridades e temáticas), porém através de suas próprias canções, em
um movimento de simultânea renovação e resgate.
Nesse sentido, Gabriel Azevedo, um dos vocalistas do Casuarina, afirma que:
fazer samba foi uma escolha, uma demanda nossa. E acho que isso torna até a coisa
mais verdadeira. Não desmerecendo quem vem do berço de samba, quem vem de
escola de samba. [...] Para fazer samba não precisa de certidão, não precisa de papel
assinado. Só o endosso que a gente teve no começo da carreira dos grandes mestres
do samba, para a gente, já foi suficiente. 7
Nota-se, portanto, que essa geração apresenta uma primeira fase de pesquisa e
retomada de antigos repertórios (calcada na reverência e na referência de grandes
compositores do gênero), porém, à medida que se consolida e estabelece laços
estáveis com o seu público e o mercado musical, posiciona-se também como
produtora de conteúdo. Estimulados e apoiados pelos artistas que veneravam, esses
músicos passaram a reivindicar o direito de produzirem seus próprios sambas, não
menos autênticos e legítimos. Incorporando influências múltiplas, criando suas obras,
se apropriando do imaginário e da memória de um grupo social do qual não se
originam, essa geração articula novas perspectivas e dinâmicas de produção e
consumo da música com sonoridades, temáticas e elementos do universo tradicional
do samba. E, através da apropriação desses elementos, artistas (e os consumidores
7
Chico Science nos levou a fazer música, diz Casuarina. Disponível em http://musica.terra.com.br.Acesso em
17/05/2012.
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desses trabalhos), acabam por adotar ou tentar reproduzir um estilo de vida ligado ao
universo do samba, materializando, assim, uma distinção simbólica. Como afirma
Bourdieu, “não há luta a propósito da arte cujo pretexto não seja, também, a
imposição de uma arte de viver, ou seja, a transmutação de determinada maneira
arbitrária de viver em maneira legítima de existir que atira qualquer outra maneira de
viver na arbitrariedade” (Bourdieu, 2007, p.57).
Considerações finais
O atual resgate do samba no Rio de Janeiro e seu consumo primordialmente
coletivo e ao vivo é uma das possíveis formas encontradas pela juventude para
consolidar um pertencimento, para reaver uma memória coletiva, para construir
outros laços sociais, através do consumo cultural. Há um esforço tanto inventivo e
original quanto um reforço de uma referência de nação e identidade coletiva, em
contraposição ao padrão musical hegemônico globalizado e massificado. Através da
busca por preservação de uma dita cultura nacional, construída através de um
aprendizado formal de música e da reprodução de determinadas sonoridades,
repertórios e performances ligadas ao universo tradicional do samba, esses jovens de
classe média fazem uma espécie de investimento afetivo, passando a deter uma posse
emocional dos signos e símbolos do gênero. Evidentemente, essa concepção de
brasilidade e de símbolos tipicamente nacionais se percebe e se constrói através de um
olhar carioca, regionalizado.
No entanto, o surgimento desses conjuntos não é fomentado apenas pelas
demandas simbólicas da contemporaneidade, mas também por disputas estéticas e
ideológicas no interior do próprio fazer artístico. O apogeu do pagode romântico não
suprimiu os valores comunitários e amadores da execução musical, muito caros ao
imaginário do samba, mas, por outro lado, o mercado passou a absorver novos e
antigos artistas que já não intimidavam pela falta de compromisso e amadorismo. No
mote dessa nova perspectiva, o movimento orgânico que surge protagonizado por
jovens na Lapa exalta valores, estéticas, repertórios e temáticas tradicionais
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(distanciando-se do projeto modernizador do pagode), porém permite o diálogo com
outras influências; se dá em um contexto de roda-show (que mescla o clima informal
com o profissionalismo e as grandes estruturas dos espetáculos) e faz uso das novas
tecnologias para divulgar seus trabalhos e projetos.
Evidentemente, não é possível dissecar toda a multiplicidade dos agentes
envolvidos nesse processo. No entanto, através da análise de dois casos exemplares,
se recorre a um recurso metodológico de representação, acentuação e abstração para
dar conta dessa realidade social. Ao destacar determinadas características e traços
distintivos desse segmento, se propõe uma caracterização racionalizada que permita
uma conexão de sentido com as práticas estudadas. Em suma, constitui-se uma
espécie de tipo ideal. Trata-se de jovens de classe média; brancos em sua maioria;
voltados para um repertório clássico do samba; reverenciando os grandes
compositores do gênero e apostando em uma formação de banda típica (surdo,
pandeiro, cavaquinho e violão). Em um segundo momento, os artistas continuam
apostando no reforço da tradição e da autenticidade, porém através de músicas
autorais, em um movimento de paradoxal resgate e renovação. Atualmente, tem-se
um circuito já consolidado, uma legitimação já construída e endossada por ícones da
música popular e, nesse contexto é que se propõe o conceito de roda-show para
classificar as apresentações que buscam recriar informalidade, espontaneidade,
“malandragem”
e
improviso,
porém
em
um
circuito
profissionalizado,
complexamente articulado, de grandes estruturas espetaculares.
Referências bibliográficas
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