PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) O bom e velho samba!: Consumo musical e brasilidade no Rio de Janeiro pós 1990 1 Júlia Silveira de Araújo2 Universidade Federal Fluminense (UFF) Resumo O presente trabalho tem como objetivo analisar o consumo de “samba de raiz” no Rio de Janeiro pós 1990 como processo de identificação e resgate de uma ideia de brasilidade. Protagonizado por artistas e público majoritariamente de classe média, esse movimento orgânico se organiza em torno de demandas simbólicas de uma geração em busca de enraizamento em tempos de fluidez identitária. Através do resgate de repertórios e sonoridades tradicionais do samba e da busca pela reprodução de um universo imaginado de negritude, malandragem e periferia, esse segmento busca consolidar um pertencimento e reaver uma memória coletiva através do consumo cultural. Palavras-chave: Samba de Raiz; Identidade; Classe Média Introdução As canções populares (letra, melodia, ritmo, harmonia) são produtos comunicacionais no sentido fundamental do termo, já que se tratam de uma mensagem emitida a ouvintes que a interpretarão subjetivamente. É necessário também um mínimo compartilhamento de códigos, pois, do contrário, as múltiplas significações e a apreciação provavelmente não ocorrerão. Tanto no âmbito do consumo individualizado e privado quanto coletivo e público, faz-se necessário compreender as músicas comercializadas como discursos situados historica cultural e geograficamente, que remetem a concepções de mundo, ideologias, expressões de 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e subjetividade, do 2º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012. 2 Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Comunicação pela UFF e graduada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected] PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) pensamentos, hábitos e estilos de vida de um determinado grupo de produtores e/ou consumidores. Nesse sentido, tocar e ouvir música ao vivo é um ato performático que, para além da diversão e do prazer, pode abarcar processos de identificação e distinção, reconhecimento ou negação do outro ou coesão comunitária. Assim, partindo da compreensão das identidades como representações e materialidades forjadas ou ressignificadas em processos interacionais, o presente estudo analisará a produção e o consumo do chamado “samba de raiz” no Rio de Janeiro pós anos 1990, como processo de afirmação de um ideal de brasilidade calcado no ginga e negritude da nossa herança histórica afro-brasileira. A pesquisa se atém especificamente ao segmento que se consagra a partir da revitalização do boêmio bairro carioca da Lapa, onde organicamente se originou uma cena musical inicialmente voltada a pesquisa e execução de clássicos do samba. O imaginário acerca de uma origem ou essência do samba foi o cenário para que jovens de classe média, abastados e com alto nível de escolaridade, pudessem acessar um universo periférico de malandragem, historicamente associado a outros segmentos sociais. A contemporaneidade globalizada e o retorno às identidades locais Sabe-se que a afirmação do samba como símbolo de brasilidade em oposição a outros gêneros musicais não é novidade, porém, atualmente, alguns dos principais agentes engajados nesse processo são jovens de classe média, brancos, com educação formal em música, ou seja, um segmento que costumava ser associado às manifestações musicais “modernas”, inovadoras, de influências estrangeiras. Mas, se o gênero surge no século XIX como cultura de gueto, marginalizada e desprestigiada, porque está em voga agora e a partir de quais manifestações culturais e estratégias midiáticas esse processo ocorre? Para responder a essas questões é necessário contextualiza-las nas dinâmicas múltiplas e contraditórias da sociedade contemporânea, o que evidenciará resistências, novas demandas e estratégias culturais, comerciais e comunicacionais peculiares. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) A dita pós-modernidade – também chamada de modernidade líquida (BAUMAN, 1988), modernidade radicalizada (GIDDENS, 1991) e sociedade espetacular (DEBORD, 1997) ou especular (SODRÉ, 2008) – refere-se ao período histórico iniciado na década de 1980 com a aceleração do desenvolvimento do sistema capitalista. Para evitar afirmações totalizantes ou ambíguas, fala-se aqui simplesmente em contemporaneidade globalizada. Apesar das muitas perspectivas a respeito do período, algumas de suas características são comumente apontadas, tais como aceleração do fluxo de capitais, objetos e pessoas; consumismo exacerbado; velocidade como valor primordial; fragmentação e dispersão de instituições e indivíduos; unificação global; embaralhamento de referências locais; relacionamentos instáveis. Diagnostica-se ainda a ampliação do uso das novas tecnologias da informação, a supressão de distâncias físicas e simbólicas e mundialização das experiências (sobretudo na esfera do consumo, enquanto processo de sociabilidade e/ou construção identitária). A noção do tempo e do espaço e a construção e percepção de etnia, raça e nacionalidade, que, “no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”, estão se modificando (HALL, 2005, p.9). A identidade nacional; “comunidade imaginada” (ANDERSON apud HALL, 2005, p.51) que continha tradições, referências espaço-temporais, normas, mitos e percepções acerca do povo; está se fragmentando. Mas, contraditoriamente, há também resistências aos processos socioculturais de pasteurização, segmentação, desvinculação e desestabilização. Ao analisar a sociedade contemporânea globalizada, Bauman (1998) e Kellner (2001), por exemplo, identificam um inesperado retorno ao tribalismo e às identidades nacionais, coletivas, e Calclini (1999) observa que parte das culturas locais e regionais ainda resiste à transnacionalização. Como explica Nercolini (2009), essa busca por identificação e vinculação desponta no fim dos anos 1960 a partir de processos de descolonização e novos movimentos sociais e está relacionada uma necessidade “de se agarrar ao passado como a uma âncora, para não se perder na sobrecarga informacional e na aceleração cultural exacerbada, processos com os quais nossos sentidos ainda não PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) estariam equipados para lidar” (NERCOLINI, 2009, p.184). E nesses processos de fixação o consumo é um importante marcador de sentido (DOUGLAS), um processo de distinção (BOURDIEU, 2007) e, em alguns casos, até condição de felicidade e até dignidade (BAUMAN, 1998). Douglas e Isherwood (2004) afirmam ainda que o consumo é um importante ritual capaz de conferir sentido ao complexo e incompleto fluxo de acontecimentos do cotidiano. Dessa forma, esses processos viabilizam os significados e a memória dos grupos sociais, conferindo-lhes uma base consensual. O consumo musical, mais especificamente, relaciona-se também com processos de distinção, construção de gosto e pertencimento. O amante da música provavelmente sabe muito de música e está atento à fina discriminação e mudanças de prática que são a história da música; pode mesmo julgar (embora no âmbito provado) se uma performance é melhor do que outra. Ele compartilha um processo intensamente social e cultural. [...] O consumo usa os bens para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos. E agora o definimos como atividade ritual. (Douglas; Isherwood, 2004, p. 115). No contexto dos shows e rodas de samba, performances, disposição dos artistas e do público, repertórios, clichês sonoros e discursivos, dança e postura corporal e até as roupas compõe uma atmosfera de informalidade, espontaneidade, improviso e “malandragem”, característica do imaginário do samba. Tendo em vista que a maior parte dos produtores e consumidores desses shows não possuem o ethos do sambista marginalizado, pobre e negro, cria-se uma espécie de ritual artísticocomunicacional para experimentar aquilo que acreditam ser expressão de uma cultura genuinamente popular e brasileira. É através da apropriação desse repertório, da reverência aos ícones do gênero, da reprodução de suas canções e estéticas que se constrói coletivamente uma espécie de rito de celebração de um pertencimento local. Nesse sentido, esses rituais consumo remetem a processos de ancoragem através da sociabilidade e da exaltação de uma estética compreendida como síntese da cultura nacional (embora deva-se ressaltar que se trata de uma percepção carioca de brasilidade). PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Mais do que mera manifestação musical, o gênero agrega valores e seu consumo coletivo oferece possibilidade de vínculos mais estáveis com o outro e com uma determinada percepção de grupo e comunidade nacional. Dessa forma, o sambista “adquire maior valor à medida que se demonstra mais próximo afetiva e esteticamente de símbolos desta tradição”, “cujo eixo de valoração é a noção de continuidade, de permanência” (TROTTA, 2007, p.5). Isso porque as maneiras legítimas ficam devendo seu valor ao fato de que elas manifestam as mais raras condições de aquisição, ou seja, um poder social sobre o tempo reconhecido tacitamente, como a forma, por excelência, da excelência: possuir algo ‘antigo’, ou seja, as coisas presentes que são do passado, da historia acumulada, entesourada, cristalizada (BOURDIEU, 2007, p.70) O “samba sem sobrenome” pós década de 1990 Sabe-se que, em diversos momentos históricos, o gênero foi uma espécie de trincheira musical, defendendo valores nacionais e tradicionais, contrapondo-se à música estrangeira (rock, pop, jazz, etc.), à modernidade estética nacional (bossa, MPB, etc.) e à modernidade comercial nacional (rock, pop, axé, etc.) No entanto, é com o advento do pagode romântico nos anos de 1980 que o samba se vê pela primeira vez em uma relevante disputa interna. O segmento musical moderno, que despontou sobretudo através de grupos de São Paulo, tornou-se sucesso comercial e de público, embora nem sempre tenha agradado aos críticos especializados. Das primeiras iniciativas, que guardavam elementos típicos do samba, surgiram os contemporâneos pagodeiros “românticos”, que se distanciaram da estética e das temáticas típicas, influenciados pelo pop, pela soul music e por outras manifestações culturais norte-americanas, verificadas, sobretudo, no recorrente uso de teclados, na eliminação de instrumentos tradicionais e no estilo do canto. Porém, também nos anos de 1990 surgiu uma geração que apostou em pesquisa e releituras de clássicos do samba e produz músicas que dialogam com antigas estéticas, estruturas e temáticas. No contexto desses embates estéticos e PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) simbólicos surge o rótulo legitimador “samba de raiz”, que visava diferenciar-se estetica, tematica, ideologica e mercadologicamente da nova vertente. A nomenclatura passou a funcionar como um marcador em oposição ao “massivo” pagode paulista que se tornara um grande sucesso mercadológico. Desde então, o samba virou “moda” (TROTTA, 2006), ou seja, seus referenciais simbólicos estão sendo cada vez mais partilhados por pessoas de diversas classes, idades, sexo e graus de escolaridade e sua presença se verifica na mídia, lares, práticas coletivas e imaginário nacional. Nesse sentido, cabe citar a matéria Sangue Novo no Samba, publicada na Revista Época, na qual Ricardo Calil apresenta uma definição bastante ilustrativa dessa nova geração: embora as idades variem dos 20 aos 40 anos, há traços unindo esses músicos. Eles gostavam de outros gêneros musicais na adolescência, como forró ou rock, mas um dia descobriram o samba e decidiram não largá-lo mais. Na faculdade, de música ou não, conheceram outros garotos com o mesmo gosto e resolveram formar grupos para tocar os grandes clássicos do ritmo. Apesar da importância das faculdades como ponto de encontro, a grande escola desses músicos de nova cepa foi a roda de samba. No princípio, eles apareciam apenas para ouvir os bambas. Depois, começaram a arriscar alguns sambinhas. Hoje, é cada vez mais comum vê-los dividindo o palco com mestres como Wilson Moreira, Walter Alfaiate, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira e muitos outros.3 Por fim, cabe apontar que o movimento de “raiz” pós anos 1990 diferencia-se de outras apropriações que a juventude detentora de capital cultural e simbólico fez do samba ao longo da história, já que não se identifica nem com a formatação do gênero para sua inserção nos meios de comunicação de massa (como no contexto do advento do rádio nos anos de 1920 e 1930), nem com uma reinvenção estética (como a Bossa Nova na década de 1950). Ao contrário, caracteriza-se por uma retomada de aspectos tradicionais, tidos como “essenciais” e “legítimos”, e por uma reverência à estrutura, temáticas, repertório e sonoridades características do gênero, até mesmo na criação e composição de novas obras. Dessa forma, há atualmente uma “ligação entre passado e presente que mostrou satisfazer a uma demanda de parte dos consumidores de música 3 CALIL, Ricardo. Sangue novo no samba. Revista Época. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR67548-6011,00.html. Acesso em 21/05/2012. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) na virada do milênio, ansiosa por reatar vínculos identitários” (TROTTA, 2006, p.237). Os novos sambistas preocupam-se em encontrar respostas para suas recentes demandas através de antigas referências, sonoridades e repertórios. O samba da “moda” é o que os vocalistas do grupo carioca Casuarina chamam de “samba sem sobrenome”: aquele que “não é um samba de raiz, não é o samba da Lapa, não é o samba de roda. É o bom e velho samba, matriz principal da música brasileira” (Estúdio Móvel - Casuarina, 2011). Nesse sentido, o circuito4 que surge a partir da revitalização da Lapa revela-se um movimento orgânico e peculiar, uma estratégia segmentada de “sobrevivência” na fragmentação contemporânea (ESCOSTEGUY, 2010), calcado em um modelo (carioca) de brasilidade. Tendo em vista que se caracteriza como lócus de jogos manipulatórios, disputas, apropriações, negociações e resistências através de processos de produção cultural e comunicação, revela-se como importante ritual de consumo simbólico. As apropriações, performances sonoras e as audiabilidades (sejam estas individuais ou coletivas) são partes de um ritual festivo, midiático e de consumo. Compreendido como discurso, prática, mito, rito, representação, ação e narrativa performática, o conceito de ritual nos serve para pensar processos de construção social da realidade, comunicação e produção simbólica de inclusão ou exclusão. Uma das principais funções desta forma de marcação social de funcionamento estruturante e estruturado é conter a flutuação dos significados. Nesse sentido, os rituais são ainda mais eficazes quando materializados. Grupo Semente: Os pioneiros da nova geração nos anos 1990 Considerado pioneiro da nova geração de sambistas cariocas, o grupo Semente – Bernardo Dantas (violão), João Callado (cavaquinho), Pedro Miranda (pandeiro e 4 Entende-se circuito através da chave comunicacional de Darnton (1990), que integra os processos de criação, produção, difusão e recepção de textos diversos. Nesse sentido, a percepção da arte como atividade que envolve a confecção de instrumentos, ensaios, divulgação de shows e que corresponde a uma complexa rede de cooperação (Certeau, 1998) também revela a importância de pensar os rituais de consumo a partir de perspectivas mais amplas e interdisciplinares. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) vocal), Ricardo Cotrim (surdo) e Teresa Cristina (vocal) – surgiu na segunda metade da década de 1990 com projetos voltados para o resgate das obras de Candeia e Paulinho da Viola. A partir de 1999, o conjunto passou a se apresentar semanalmente no Bar Semente, na Lapa, sempre aos sábados. O projeto, incialmente despretensioso, passou a atrair um público crescente, ganhando proporções inesperadas. No ano seguinte, o Semente se apresentou no Teatro Rival ao lado de importantes ícones do samba como Guilherme de Brito, Xangô da Mangueira, Nelson Sargento e Wilson Moreira e iniciou o projeto Roda de Samba, na Sala Funarte, com convidados como Argemiro da Portela, Tia Surica, Tantinho e Xangô da Mangueira. Em 2002 lançaram pelo selo Biscoito Fino o disco O samba é minha nobreza, com Roberto Silva, Pedro Miranda, Mariana Bernardes, Pedro Aragão e Pedro Paulo. No mesmo ano, Teresa Cristina lançou pela Deck o disco duplo A música de Paulinho da Viola, acompanhada pelo Grupo Semente, no qual gravou um dueto com o músico homenageado na canção Depois de tanto amor (Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho). Em 2003, a cantora se apresentou no Centro Cultural Carioca ao lado de Argemiro Patrocínio e Seu Jair do Cavaquinho, mesmo local onde o grupo Semente fez temporada em abril de 2005. Em 2004, o Semente participou do disco solo de Teresa intitulado A vida me fez assim (também lançado pela gravadora Deck). O que merece destaque é a percepção do sucesso alcançado pelo grupo através de sua proposta voltada para o resgate de repertórios clássicos do samba. Conforme explica Trotta (2006), “a partir do minúsculo bar Semente e do samba que esses protagonistas lá faziam, a vida noturna do bairro passou por uma grande intensificação com a abertura de outros espaços destinados à música brasileira e, principalmente, o samba” (TROTTA, 2006, p.228). A análise do histórico do grupo possibilita perceber características do movimento que se pretende estudar, tendo em vista que o conjunto é formado por jovens majoritariamente brancos e de classe média; voltados para um repertório clássico do samba; que reverenciam antigos compositores do gênero e apostam em uma sonoridade característica (com formação baseada em surdo, pandeiro, cavaquinho e violão). Como aponta Trotta, o projeto PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) surgiu em “em sintonia absoluta com o som mais característico do imaginário do samba, que viria a ser representativo da recém-inventada categoria ‘samba de raiz’” (TROTTA, 2006, p.228). Nesse sentido, é relevante destacar a fala de Teresa Cristina a respeito da primeira reunião que teve na gravadora Deck: Tinha uma reunião na Deck, minha primeira gravadora, e eu com medo deles me pedirem para cantar pagode paulista [risos]. Já preparando o ‘não, vou pensar, depois a gente se fala’. E aí ele disse: queria que você gravasse um disco só com Paulinho da Viola. Quando ele falou Paulinho da Viola, eu abri um sorriso e falei ‘claro’! 5 Através da declaração da artista é possível perceber algumas demandas do segmento analisado, tais como a reverência aos artistas do passado, a valorização da sonoridade tradicional do samba, a exaltação de um ethos tipicamente carioca (que acaba sendo compreendido como uma síntese de brasilidade) e a abertura para o diálogo com o mercado musical (tendo em vista que o episódio se passa em uma gravadora), porém claramente distinto do projeto modernizador do pagode romântico tipicamente paulista. Casuarina e a segunda geração da Lapa nos anos 2000 A gente foge do estereótipo dos sambistas. Somos aparentemente todos brancos, não usamos as roupas tradicionais. E isso nos distancia um pouco daquilo que é esperado (João Cavalcanti, vocalista do grupo Casuarina).6 O grupo Casuarina surgiu em 2001 e atualmente é formado por Daniel Montes (violão), Gabriel Azevedo (voz e pandeiro), João Cavalcanti (voz e tantan), João Fernando (bandolim) e Rafael Freire (cavaquinho). Os cinco jovens, residentes da 5 Saraiva Conteúdo. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=2fM1T_M3otY&feature=related. Acesso em 20/05/2012. 6 Chico Science nos levou a fazer música, diz Casuarina. Disponível em http://musica.terra.com.br. Acesso em 17/05/2012. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) Zona Sul carioca, formaram o conjunto durante um sarau em um curso de extensão da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Desde então, passaram a frequentar a Lapa juntos, inicialmente como espectadores e posteriormente como músicos, experimentando e consolidando a efervescência do bairro até então protagonizada por outros artistas, como o Grupo Semente. Em 2005, ao lado dos conjuntos Galocantô, Anjos da Lua e Batuque na Cozinha, o Casuarina apresentou o projeto Samba em 4 tempos na Fundição Progresso (consagrada casa de show da Lapa), resgatando o repertório clássico do gênero e tocando algumas canções próprias. O primeiro álbum do grupo, intitulado Casuarina e lançado em 2005 pela gravadora Biscoito Fino, apostou no resgate de clássicos como Pranto de poeta (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito), Laranja madura (Ataulfo Alves e Mário Lago) e Já Fui Uma Brasa (Adoniran Barbosa). O show de lançamento do álbum aconteceu no mesmo ano no Teatro Rival BR, no Rio de Janeiro, com a participação dos integrantes do Grupo Semente Pedro Miranda e Teresa Cristina, que participaram das faixas 400 anos de favela (Zé Kéti) e Suingue de Campo Grande (Novos Baianos), respectivamente. O segundo disco do grupo, Certidão, lançado pela Biscoito Fino em 2007, foi um primeiro registro de canções autorais como a que dá título ao álbum (João Fernando e João Cavalcanti), além de Vaso ruim (Diego Zangado e Gabriel Azevedo), É João (João Cavalcanti) e A Roda Morreu (João Fernando e João Cavalcanti). No entanto, o grupo não abriu mão das releituras, apresentando novos arranjos para obras de compositores como Sidney Miller, Délcio Carvalho, Sérgio Fonseca, etc. Em 2009, lançou seu primeiro DVD, MTV Apresenta: Casuarina, também disponível em CD. O trabalho foi fundamental para conferir maior visibilidade ao conjunto, que no ano seguinte foi eleito o melhor grupo de samba pelo Prêmio da Música Brasileira e fez turnê por vários países da Europa. Em 2011, a banda participou do projeto Lapa de Todos os Sambas, realizado pelo Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com o objetivo de celebrar a revitalização da Lapa em uma iniciativa que reuniu três gerações de cantores, músicos e compositores. No ano PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) seguinte, o conjunto foi escolhido pela Prefeitura do Rio de Janeiro para comandar o show de inauguração das obras de revitalização do mesmo bairro, que contou com participações de Pedro Miranda, Teresa Cristina e Moyséis Marques (ex-integrante do grupo). O show se tornará um DVD a ser lançado em 2013. O último disco do grupo, Trilhos – Terra Firme, lançado pela Warner Music em 2011, foi o primeiro projeto composto apenas por canções autorais. Essa iniciativa denota uma nova tendência dessa geração, que continuam apostando no reforço da tradição e da autenticidade do samba (presentes na formação das bandas, na dinâmica das rodas, nas sonoridades e temáticas), porém através de suas próprias canções, em um movimento de simultânea renovação e resgate. Nesse sentido, Gabriel Azevedo, um dos vocalistas do Casuarina, afirma que: fazer samba foi uma escolha, uma demanda nossa. E acho que isso torna até a coisa mais verdadeira. Não desmerecendo quem vem do berço de samba, quem vem de escola de samba. [...] Para fazer samba não precisa de certidão, não precisa de papel assinado. Só o endosso que a gente teve no começo da carreira dos grandes mestres do samba, para a gente, já foi suficiente. 7 Nota-se, portanto, que essa geração apresenta uma primeira fase de pesquisa e retomada de antigos repertórios (calcada na reverência e na referência de grandes compositores do gênero), porém, à medida que se consolida e estabelece laços estáveis com o seu público e o mercado musical, posiciona-se também como produtora de conteúdo. Estimulados e apoiados pelos artistas que veneravam, esses músicos passaram a reivindicar o direito de produzirem seus próprios sambas, não menos autênticos e legítimos. Incorporando influências múltiplas, criando suas obras, se apropriando do imaginário e da memória de um grupo social do qual não se originam, essa geração articula novas perspectivas e dinâmicas de produção e consumo da música com sonoridades, temáticas e elementos do universo tradicional do samba. E, através da apropriação desses elementos, artistas (e os consumidores 7 Chico Science nos levou a fazer música, diz Casuarina. Disponível em http://musica.terra.com.br.Acesso em 17/05/2012. PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) desses trabalhos), acabam por adotar ou tentar reproduzir um estilo de vida ligado ao universo do samba, materializando, assim, uma distinção simbólica. Como afirma Bourdieu, “não há luta a propósito da arte cujo pretexto não seja, também, a imposição de uma arte de viver, ou seja, a transmutação de determinada maneira arbitrária de viver em maneira legítima de existir que atira qualquer outra maneira de viver na arbitrariedade” (Bourdieu, 2007, p.57). Considerações finais O atual resgate do samba no Rio de Janeiro e seu consumo primordialmente coletivo e ao vivo é uma das possíveis formas encontradas pela juventude para consolidar um pertencimento, para reaver uma memória coletiva, para construir outros laços sociais, através do consumo cultural. Há um esforço tanto inventivo e original quanto um reforço de uma referência de nação e identidade coletiva, em contraposição ao padrão musical hegemônico globalizado e massificado. Através da busca por preservação de uma dita cultura nacional, construída através de um aprendizado formal de música e da reprodução de determinadas sonoridades, repertórios e performances ligadas ao universo tradicional do samba, esses jovens de classe média fazem uma espécie de investimento afetivo, passando a deter uma posse emocional dos signos e símbolos do gênero. Evidentemente, essa concepção de brasilidade e de símbolos tipicamente nacionais se percebe e se constrói através de um olhar carioca, regionalizado. No entanto, o surgimento desses conjuntos não é fomentado apenas pelas demandas simbólicas da contemporaneidade, mas também por disputas estéticas e ideológicas no interior do próprio fazer artístico. O apogeu do pagode romântico não suprimiu os valores comunitários e amadores da execução musical, muito caros ao imaginário do samba, mas, por outro lado, o mercado passou a absorver novos e antigos artistas que já não intimidavam pela falta de compromisso e amadorismo. No mote dessa nova perspectiva, o movimento orgânico que surge protagonizado por jovens na Lapa exalta valores, estéticas, repertórios e temáticas tradicionais PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014) (distanciando-se do projeto modernizador do pagode), porém permite o diálogo com outras influências; se dá em um contexto de roda-show (que mescla o clima informal com o profissionalismo e as grandes estruturas dos espetáculos) e faz uso das novas tecnologias para divulgar seus trabalhos e projetos. Evidentemente, não é possível dissecar toda a multiplicidade dos agentes envolvidos nesse processo. No entanto, através da análise de dois casos exemplares, se recorre a um recurso metodológico de representação, acentuação e abstração para dar conta dessa realidade social. Ao destacar determinadas características e traços distintivos desse segmento, se propõe uma caracterização racionalizada que permita uma conexão de sentido com as práticas estudadas. Em suma, constitui-se uma espécie de tipo ideal. Trata-se de jovens de classe média; brancos em sua maioria; voltados para um repertório clássico do samba; reverenciando os grandes compositores do gênero e apostando em uma formação de banda típica (surdo, pandeiro, cavaquinho e violão). Em um segundo momento, os artistas continuam apostando no reforço da tradição e da autenticidade, porém através de músicas autorais, em um movimento de paradoxal resgate e renovação. Atualmente, tem-se um circuito já consolidado, uma legitimação já construída e endossada por ícones da música popular e, nesse contexto é que se propõe o conceito de roda-show para classificar as apresentações que buscam recriar informalidade, espontaneidade, “malandragem” e improviso, porém em um circuito profissionalizado, complexamente articulado, de grandes estruturas espetaculares. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. 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