36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

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36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
Grupo de Trabalho 35
Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro: normatividade e história
Sobre o elemento monárquico na idéia de Constituição Mista
Dr. Tiago Losso – PPGSP/UFSC
Resumo
A teoria política contemporânea tem sido alimentada de maneira crescente por
formulações alicerçadas no ideário republicano. Teóricos atuais têm sustentado que esta
tradição de pensamento encontra sua gênese nas noções políticas e morais correntes
durante o século final da República romana. Paralelamente à insistência dos republicanos
sobre a existência de uma noção de liberdade tipicamente republicana, a Teoria da
Constituição Mista é amplamente aceita como um elemento da inovação promovida pelos
latinos no âmbito da reflexão política. Neste aspecto, é geralmente ressaltado o equilíbrio
obtido entre os elementos aristocráticos e democráticos, dedicando-se, no entanto, pouca
atenção ao papel do elemento monárquico na teoria.
Minha intenção é realizar uma avaliação dos três primeiros livros da História de Roma,
de Lívio, e dos dois primeiros livros d’A República de Cícero, investigando a
importância da monarquia nos seus respectivos argumentos. Defendo que importância
deste elemento para a ideia de Constituição Mista pode estar sendo subestimado pelos
autores contemporâneos, implicando numa visão empobrecida de um elemento
fundamental da tradição republicana de pensamento político.
Introdução
Nos últimos trinta anos houve um retorno ao estudo dos temas relacionados ao
republicanismo no âmbito da Teoria Política. Em grande medida, este retorno deve-se
aos trabalhos do filósofo político Philip Pettit e do historiador das idéias políticas
Quentin Skinner, eixos de um debate acalorado sobre o conceito de liberdade no âmbito
da teoria política contemporânea. Ambos advogam existir uma noção de liberdade que
não seria adequadamente compreendida como negativa ou positiva, por conter ambos os
elementos, sendo, portanto, percebida e apresentada em termos de “não-dominação”.
(Pettit, 1999; Skinner, 2002) Esta noção, localizável nos escritos de autores associados ao
republicanismo, estaria no âmago das noções políticas e morais compartilhadas pelos
romanos durante a república, teria sido preservada no Digesto, sendo retomada pelos
pensadores da política durante o Renascimento e princípios da modernidade, marcando
por fim toda uma série de autores modernos até o seu ocaso, em princípios do século
XIX, de acordo com a genealogia proposta por Philip Pettit (1999).
A antiga Roma sob a República é tida como o marco inicial da tradição de
pensamento político associado ao republicanismo, tanto em termos institucionais quanto
intelectuais. A idéia de uma constituição mista é ponto fundamental para a teorização
anunciada por Políbio, cristalizada em De Re Publica por Marco Túlio Cicero e
mobilizada em Ab Urbe Condita por Tito Lívio. No entanto, pode ser objetado que o
acesso ao pretenso pensamento republicano clássico não vem sendo feito de maneira
adequada. A definição mesmo dos elementos (e sua importância) que comporiam a
tradição é foco de discussão. Tome-se o caso do Digesto.
Uma primeira distinção deve ser a que o Digesto não pode ser considerado
equivalente ao pensamento republicano clássico, pelo menos no tocante à idéia de
liberdade (Wirszubski, 1968; Maddox, 2002). Mesmo que o Digesto componha o
pensamento republicano clássico, o é apenas em termos jurídicos. Logo, tomá-lo como
fonte é simplificar uma expressão intelectual complexa, não restrita a argumentos
jurídicos. Se o Digesto não é parte integrante do pensamento republicano clássico, deve
ser lido como expressão de outro momento histórico e intelectual.
Além dos termos para definir a tradição republicana, tem-se na variedade de
autores que formariam o ponto inicial do republicanismo um desafio de interpretação.
Entre Salústio, Cícero e Lívio é possível não somente encontrar perspectivas distintas
sobre pontos importantes da teoria política republicana (p. ex. o papel conferido ao povo
na condução do governo), como também visões desconcertantes ao leitor contemporâneo.
O papel do elemento monárquico na idéia de constituição mista é uma chave
para demonstrar a existência de desafios inerentes ao estudo dos antigos autores romanos.
Tome-se o caso de Salústio, mobilizado por Skinner e Pettit para advogar a noção
republicana de liberdade. Podem ser dirigidas objeções a interpretação de Quentin
Skinner sobre a perspectiva de Salústio acerca da liberdade civil, como faz Walker ao
afirmar que poderia ser localizada em escritos de Salústio a sugestão de que os cidadãos
de Roma experienciaram algum nível de liberdade mesmo durante a Monarquia, e seriam
vítimas de uma tirania sob Sula. (Walker, 2006) Os autores contemporâneos estariam a
tratar de uma leitura dos antigos feita pelos modernos, e não dos antigos em si. (Walker,
2006)
A caracterização de idéias republicanas como visceralmente inimigas da
monarquia é um elemento tipicamente moderno que acaba sendo decalcado nos escritos
dos antigos, gerando inclusive a relutância em enquadrar Montesquieu na pretensa
tradição republicana, em grande medida devido a sua evidente simpatia por regimes
monárquicos. (Douglass, 2012) Defendo que isto ignora uma noção compartilhada pelos
romanos sobre as qualidades do período monárquico, e os desdobramentos possíveis para
se pensar o papel do princípio monárquico nas teorias sobre liberdade e formas de
governo. E, relacionado a este papel relevante do elemento monárquico, deve ser
considerado que a expulsão dos reis de Roma não marca senão um lento processo de
montagem institucional que conferirá à constituição de Roma as características louvadas
por Políbio e aceitas como definidoras mesmo do que significa um governo livre entre os
autores romanos antigos.
Utilizar o termo constituição em referência à realidade da Roma antiga é uma
escolha passível de crítica.1 Segundo Straumann, é perfeitamente razoável pensar em
uma constituição romana desde que o conceito seja compreendido como um conjunto de
normas mais enraizadas [entrenched] que outras – logo com menos possibilidade de
alteração - e com influência significativa no governo das instituições através das quais o
poder é exercido. (Straumann, 2011:284) Sendo este ordenamento significativo tanto do
ponto de vista intelectual quanto institucional, interpretar adequadamente seus contornos
é relevante para uma efetiva compreensão dos debates sobre liberdade na teoria política
contemporânea.2 Quentin Skinner é um caso exemplar, com sua insistência em localizar
na Roma antiga a principal influência das formulações da tradição neo-romana de
princípios da modernidade, que lega um corolário teórico que define liberdade em termos
de não-dominação.
Ao acompanhar os debates intelectuais de princípios da modernidade, Skinner
alega obter teoria política secretada de seus estudos históricos, fornecendo aos
contemporâneos um universo de referências mais largo para considerar seus dilemas
políticos particulares. Ao localizar a gênese da tradição republicana na antiga Roma, no
entanto, Skinner parece ignorar a dinâmica de elementos chave da tradição que pretende
historiar. Um ponto que une estes críticos é uma possível incompreensão de Skinner
sobre elementos fundamentais da realidade política e intelectual de Roma nos estertores
da república. Traços constitucionais da Roma republicana são elencados no sentido de
questionar a efetiva relação entre as formulações republicanas, moderna e
1
2
O estágio desta discussão pode ser conferido em Straumann, 2011.
Um argumento pormenorizado defendendo este tipo de preocupação está em Kapust, 2004:379-380.
contemporânea, e a realidade que pretensamente a teria gestado.3 (Ando, 2010; Kapust,
2004; Maddox, 2002; Walker, 2006)
Deixando agora de lado as implicações do retorno aos autores latinos antigos
para teoria política contemporânea, pretendo explorar elementos da constituição mista
nos escritos clássicos do republicanismo através da leitura e interpretação dos três
primeiros livros de Ab Urbe Condita de Tito Lívio e os dois primeiros livros de De Re
Publica, de Marco Túlio Cicero. Justifico o esforço ressaltando a repercussão que ambos
os autores na tradição intelectual ocidental, e sua lógica contribuição para a reflexão
política moderna e contemporânea. O exemplo evidente desta reverberação é Maquiavel
e sua leitura de Lívio. Além da importância como autores tornados clássicos, aponto as
qualidades intrínsecas aos seus escritos, que além de apresentarem respostas para dilemas
políticos, são retratos de um panorama intelectual considerado relevante pela crítica
contemporânea.
Em sua História, Lívio trata de um período rico da formação de Roma: da
chegada de Enéias no reino de Latino até a publicação da Lei das XII Tábuas, passando
pelo crescimento durante a monarquia, a expulsão dos reis, a criação dos Tribunos da
Plebe, o envio da legação à Hélade e a instituição dos Decênviros. Cícero apresenta suas
considerações sobre a coisa pública em De Re Publica, num tratado em forma de diálogo
que emula Platão. Os dois primeiros livros de seu tratado foram escritos antes da
definição do formato definitivo, sendo onde localiza-se a parte mais rica do arrazoado de
Cipião Emiliano Africano, quando são apresentados os principais elementos dos aspectos
morais e políticos pretensamente característicos das idéias típicas na Roma no final da
República, em especial as considerações sobre os diferentes tipos de constituição e a
originalidade da constituição de Roma.
Acredito ser possível apresentar evidências textuais que justifiquem alegar que o
tipo de governo elogiado por estes dois autores romanos era considerado produto dos
primeiros três séculos da história da cidade, através do estabelecimento de instituições
que canalizaram tensões políticas entre diferentes setores sociais, permitindo um
3
Em relação a teoria contemporânea, o argumento é exemplarmente exposto no trecho seguinte: “If virtue
is linked to republican liberty, and if republican liberty may be compatible with the existence of orders or
groups that are paternalistic and tend to disempower the citizenry while leaving them free, then I think we
would do well to rethink the way we describe republican liberty, and ask if it is a shield or a sword. I
suggest that we would do well in asking this question given that what we see in the earliest history of
republicanism seems to be quite different from what contemporary advocates of normative republicanism
would urge liberals to consider.” (Kapust, 2004:401)
equilíbrio político virtuoso e garantidor da liberdade civil. Em suma, uma Constituição
específica. E, ainda, que o elemento monárquico é fundamental nesta engenharia
republicana, num equilíbrio perfeito com os elementos aristocrático e democrático.
A Escolha de Cipião
A gênese e oscilação da “relevância” de uma tradição nomeada modernamente
como republicana podem ser acompanhadas na trajetória não só das letras latinas no
mundo ocidental, como também na circulação dos escritos de Marco Túlio Cícero, o
autor paradigmático da pretensa tradição republicana de reflexão sobre a política.
Seu tratado sobre a coisa pública (De Re Publica) surge após seu afastamento da
vida pública, com o Primeiro Triunvirato. Cicero pretende compor uma nova República,
inspirado em seu “amado Platão”. (Introdução in: Cicero, 1928a:2) A escrita começa em
54, mesmo que a datação possa ser recuada até o seu Consulado (63) ou mesmo antes.
(Idem, nota 2). Evidências seguras indicam, no entanto, que De Re Publica circulava em
Roma em 51. (idem, p. 3) Não apenas De Re Publica, mas toda uma série de escritos
políticos será composta por Cícero neste período, estando entre eles De Legibus e De
Officiis. (Wood, 1991:61)
Da República e Dos Deveres são o centro do pensamento político e social de
Cícero, sendo ainda os únicos do gênero escritos nos estertores da República e os
primeiros de Roma. (Wood, 1991:63) Se Cícero é o autor que inaugura a tradição
republicana de reflexão sobre a política, De Re Publica é sua obra fundamental. No
entanto, só foi lida pelos autores modernos que viveram depois de 1820, quando sua
parte fundamental foi descoberta na Biblioteca do Vaticano. (Wood, 1991:64; Introdução
in: Cicero,1928a:9; Pereira, 2002:153) Até então, apenas o sexto livro do tratado, Sonho
de Cipíão era conhecido pelos modernos.
O diálogo tem lugar durante as férias latinas de 129, e o estilo é uma referência
evidente à República de Platão. O prefácio do próprio Cícero introduz uma série de
personagens do Círculo dos Cipiões, sendo o principal interlocutor Cipião Emiliano
Africano, neto adotivo do Africano vitorioso em Zama, o arquétipo ciceroniano do
melhor romano. General que conquista seu cognome, íntimo do conhecimento grego,
instruído por Políbio, é por suas palavras que Cícero apresentará seu tratado sobre a coisa
pública.
O grego Políbio é fundamental para a elaboração da idéias políticas de Cicero,
propondo premissas que serão acatadas não somente por Cícero, mas por toda sua
geração. Um ponto é a caracterização da política republicana original de Roma como
produto das vicissitudes da cidade imersa na dinâmica do Mediterrâneo Antigo, e não
como uma teorização elaborada posteriormente. (Ballot, 486) O tutor de Cipião Emiliano
credita ainda o sucesso da expansão romana ao equilíbrio obtido pela sua constituição,
fruto de uma mistura entre princípios monárquico, aristocrático e democrático. (Idem,
487-489) A esta caracterização da constituição romana segue-se o estabelecimento do
caráter típico de um romano, exemplificado na figura de seu pupilo, o segundo Cipião
Africano: bravura aliada à moderação, justiça e racionalidade. (Idem: 499) Ao escolher
Cipião Emiliano Africano como o principal interlocutor de seu diálogo sobre a coisa
pública, Cícero está mobilizando Políbio, dele extraindo parte do substrato necessário
para a elaboração de seus argumentos.
Em De Re Publica, Cipião é instado por Lélio a discorrer sobre as artes úteis ao
governo da cidade. (De Re Publica, I,XX) Lélio prossegue afirmando que assim deseja
por ser melhor contar com as impressões de um estadista importante do que com
qualquer outro, e também por ter Cipião conversado sobre tais assuntos com Panécio na
companhia de Políbio, apresentando a constituição de seus antepassados como a melhor
entre todas. (De Re Publica, I,XXI) Cipião aceita o convite, esclarecendo que deve ser
ouvido como alguém que apesar de não ser completamente ignorante sobre as idéias
gregas, nem disposto a dar-lhes sempre preferência, mas como um romano antes de tudo,
instruído mais pela experiência e pelas lições domésticas que pelos livros. (De Re
Publica, I,XXII)
Cipião inicia seus comentários precisando o tema que será abordado: a coisa
pública: “É, pois – prosseguiu o Africano – a República coisa do povo, considerado tal,
não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu
fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum.” (Cicero, 1996:27)4,
definição que será repetida no capítulo seguinte. (De Re Publica, I:XXVI)5 Qualquer
comunidade assentada nestes termos, prossegue, pode ser governada por um homem, por
alguns ou por muitos, nomeando cada um dos tipos governo respectivamente como
4
“Est igitur, inquit Africanus, res publica res populi, populus autem nom omnis hopminum coetus quoquo
modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus.” (De Re
Publica, I,XXV)
5
“(...) omnis res publica, quae, ut dixi, populi res est (...)”.
monarquia, aristocracia ou democracia. Cada uma destas opções parece no mínimo
aceitável, sendo que cada um pode ser ainda superior aos demais, mas todos possuem
condições de manter um governo estável. (De Re Publica, I:XXVI) Desde que em suas
formas normais, pois cada um engendra perigos ao governo, principalmente quando em
suas manifestações degeneradas. (De Re Publica, I:XXVII) No capítulo XXX Lélio
interrompe Cipião, perguntado “(...) qual dessas três formas de governo te parece
preferível?” (Cirero, 1996:29)6
A interpretação da resposta de Cipião ajudará a
compreender o papel que cabe a monarquia na idéia de Constituição Mista conforme
descrita e prescrita por Cicero.
A resposta inicia-se com a consideração de que cada tipo de governo emerge do
caráter de quem governa, e que apenas onde o povo governa existe liberdade. Cipião
sequer considera, por evidente, a liberdade sob a monarquia. Se o povo não pode aspirar
a ocupar magistraturas e participar ativamente do governo, não há liberdade para o
conjunto de cidadãos. Considerando-se que linhas antes Cipião estabelece que se a
liberdade não for a mesma para todos não pode ser assim nomeada, o povo afastado do
governo da coisa pública compromete a liberdade da comunidade. (De Re Publica,
I,XXXI) Segue-se um arrazoado que ocupa todo o capítulo seguinte, apresentando um
defesa da participação popular na condução do governo, impedindo inclusive que
cidadãos ricos ocupem proeminência na tarefa, novamente comprometendo a liberdade
de todos. Sendo toda comunidade política fundada na lei, as garantias legais devem ser
iguais a todos. Mesmo que seja impossível equalizar capacidades individuais ou riqueza,
os direitos legais devem ser iguais entre cidadãos de uma mesma comunidade política:
“For what is a State except an association or partnership in justice?”. (Cicero, 1928:77)7
Os capítulos seguintes seguem sem a resposta, preferindo Cipião prosseguir com
considerações sobre convenientes e inconvenientes de cada tipo de governo. O capítulo
XXXIV começa equiparando uma comunidade que escolhe seus governantes ao acaso à
um barco cujo leme está com uma passageiro sorteado. Quando, então, a comunidade
escolhe não os seus melhores para o governo, mas os mais ricos ou de ilustre nascimento,
têm-se um governo de falsos aristocratas, (De Re Publica, I:XXXIV) assim como é um
6
“(...) ex tribus istis modis rerum publicarum velim scire quod optimum iudices.” (De Re Publica, I,XXX)
“quid est enim civitas nisi iuris societas?” (De Re Publica, I:XXXII) Este estatuto pode ter sido alcançado
em Roma com a Lei Hortência. Sobre o período nomeado do conflito das ordens, e o papel desta lei na
periodização das relações entre patrícios e plebeus, Cf. Kapust, 2004:389.
7
equivoco o uso do termo rei para nomear governantes que antes mereceriam ser
nomeados tiranos. (De Re Publica, I:XXXIII)
O capítulo XXXV apresenta uma nova interrupção de Lélio, insistindo: “Mas,
Cipíão, dessas três formas de governo, qual julgas preferível?” (Cicero, 1996:32)8
Alertando que não aprova nenhuma delas em separado, preferindo um governo que tenha
a participação de todas, Cipião responde: “But if I were compelled to aprove one single
unmixed form, [I might choose] the kingship ... the name of king seems like that of father
to us, since the king provides for the citizens as if they were his own children, and is
more eager to protect them than … to be sustained by the care of one man who is the
most virtuous and most eminent.” (Cicero, 1928:83. Colchetes da edição citada)9
Na seqüência, Cipião apresenta os argumentos de pretensos defensores do
governo de alguns e do governo de muitos, compelindo Lélio a afirmar que a não solução
deste ponto implicaria na impossibilidade de prosseguir a discussão. Cipião então
principia novo argumento. (De Re Publica, I:XXXVI) O primeiro passo: é reconhecido
que os deuses possuem reis e são governados por um só, incutindo nos homens a idéia da
excelência da monarquia. (idem) O testemunho disso seria a existência de reis em Roma
num período não muito recuado da história: “For it they were sensible men and lived at a
period not very remote, who desired to be ruled by kings, then the witnesses I am
bringing forward are neither of very ancient nor uncivilized savages.” (Cicero, 1928:87)10
A defesa da monarquia é coroada, então, com duas questões propostas por Cipião a
Lélio: não é justo sujeitar desejos e paixões ao governo unitário da razão? Se assim o é
no que diz respeito a alma do homem, não seria diferente nas comunidades políticas.
Além disso, a quantas pessoas Lélio confiava a ordenação de seus negócios particulares e
o cuidado da sua casa em Roma? Com a resposta de Lélio indicando que apenas um o
8
“Quid tu, inquit, Scipio? e tribus istis máxime probas?” (De Re Publica, I:XXXV)
Na tradução brasileira: “Se devesse fazer uma escolha pura e simples, meus primeiros elogios seriam para
a monarquia, desde que o título de pai fosse sempre inseparável do de rei, para expressar que o príncipe
vela sobre seus concidadãos como sobre seus filhos, mais cuidadoso de sua felicidade do que da própria
dominação, dispensando uma proteção aos pequenos e fracos, graças ao zelo desse homem esclarecido,
bom e poderoso.” (Cicero, 1996:32. Grifado no original) O trecho chegou até nós fragmentado, conforme
pode ser conferido a seguir: “Sed si unum ac simplex probandum sit, regium probem ...... pri ...... in..... hoc
loco appellatur, occurrit nomen quase patrium Regis, ut ex se natis, ita consulentis suis civibus et eos
conservantis studiosius quam...... entis.... tem.... is.... tibus.... uos sustentari unius optimi et summi viri
diligentia.” (De Re Publica, I:XXXV)
10
Na tradução brasileira: “(...)posto que homens sábios de uma época pouco remota quiseram reis,
encontramos já testemunhos que não podemos tachar de antigos nem de inumanos.” (Cicero, 1996:34) No
original: “si enim et prudentes homines et non veteres reges habere voluerunt, utor neque perantiquis neque
inumanis ac feris tetibus.” (De Re Publica, I:XXXVII)
9
fazia, Cipião retruca: “Why then will you not admit that in the State likewise, the rule of
on man is best, if he be just?” (Cicero, 1928:93)11 Cipião prossegue estabelecendo o
primado de um único comando de governo, louvando reis justos como os governantes
perfeitos. (De Re Publica, 1928:I,XL-XLI) Retomando a defesa de seu tipo preferido de
governo, Cipião passa então a considerar as comoções públicas que costuma agitar
comunidades políticas, mesmo que possibilidade remota em sua constituição preferida.
(idem, XLII)
Um rei pode ser sucedido por um tirano, e a melhor das formas de governo se
torna a pior. A cidade, então, pode ser tomada pelos grandes ou pela multidão, desde que
mantenha o juízo sereno. Ou a multidão pode depor, exilar ou matar um rei justo,
instalando a licença. A paráfrase do livro VIII d´A Republica de Platão encerra-se
narrando então o caminho que engendra o tirano. Em seguida, descreve as diversas
mudanças de governo pelas quais uma comunidade política pode passar, agora
claramente inspirado em raciocínio disponível na História de Políbio: “Thus, the rulling
power of the State, like a ball, is snatched from kings by tyrants, from tyrants by
aristocrats or the people, and from them again by an oligarchical faction or a tyrant, so
that no single form of government ever maintains itself very long.” (Cicero, 1928:103)12
Repetindo que a monarquia é seu tipo de governo simples preferido, Cipião diz
claramente que um governo que surja da mistura de cada uma das formas primárias é
indiscutivelmente a melhor das formas conhecidas. Melhor inclusive que a monarquia:
“For there should be a supreme and Royal element in the State, some Power also ought to
be granted to the leading citizens, and certain matters should be left to the judgment and
desires of the masses.” (Cicero, 1928:105)13 Esta constituição seria a herdada pelos
11
Na tradução brasileira: “Por que, então, não concedes que, na ordem política, o poder de um só é o
melhor, sempre que se inspire na justiça?” (Cicero, 1996:36) No original: “Quin tu igitur concedis idem in
re publica, singolurum dominatus, si modo iusti sint, esse optimos?” (De Re Publica, I:XXXIX)
12
Na tradução brasileira: “O poder é convertido, então, numa bola que vai de um lado para outro, passando
das mãos do rei às do tirano, das dos aristocratas às do povo, sem que a constituição política seja nunca
estável.” (Cicero, 1996:40). No original: “sic tamquam pilam rapiunt inter se rei publicae statum tyranni ab
regibus, ab iis autem príncipes aut populi, a quibus aut factiones aut tiranny, nec diutius umquam tenetur
idem rei publicae modus.” (De Re Publica, I:XLIV) Comparar com: “(...) cada constituição sofre de um
mal congênito e inseparável de si mesma – na monarquia esse mal é a tendência ao despotismo, na
aristocracia é a tendência à oligarquia, e na democracia é a tendência à selvageria e ao império da
violência -; e como foi dito há pouco, é impossível que cada um desses tipos de constituição não tenda com
o tempo a converter-se na sua forma degenerada.” Políbios, História, VI,11.
13
Na tradução brasileira: “Com efeito, prefiro, no Estado, um poder eminente e real, que dê algo à
influência dos grandes e também à vontade da multidão.” (Cicero, 1996:40). No original: “placet enim esse
quiddam in re publica ppraestants et regale, esse aliud aucoritati principum inpartitum ac tributum, esse
quasdam res servatas iudicio voluntatique multitudinis.” (De Re Publica, I:XLV)
romanos de seus antepassados. Cipião então afirma que vai provar sua afirmação
tomando Roma como exemplo, tema do livro seguinte do tratado de Cícero.
Sendo a constituição de Roma produto de sucessivas gerações de cidadãos, e
para bem conhecer o assunto sobre o qual trata agora (a excelência da constituição),
Cipião volta sua atenção para a história da cidade. (De Re Publica, II:I) Após louvar a
escolha do lugar, Cipíão apresenta a construção da comunidade política, chamando a
atenção para o fato de Rômulo ter escolhido os pais para com eles governar, dispondo de
sua autoridade e conselhos, além de respeitar os auspícios oferecidos pelos augures
(idem, II:VIII) arrematando que: “It was after he had adopted this policy that Romulus
first discovered and approved the principle which Lycurgus had discovered at Sparta a
short time before – that a State can be better governed anda guided by the authority o
fone man, that is by the Power of a king, if the influence os the State’s most eminet men
is joined to the ruler’s absolute power.” (Cicero, 1928:125)14 Após lançar os dois pilares
da comunidade política romana, o Senado e os auspícios, Rômulo é arrebatado durante
um eclipse do sol. (De Re Publica, II:X) Cipião passa, então, a considerar a sabedoria dos
antigos romanos, que notaram se periclitante confiar na progênie como justificativa para
ocupar o trono, resolvendo então elegê-lo, dando preferência a virtude e sabedoria na
escolha dos reis. (idem, XII) Ao enumerar os feitos de cada um dos reis que sucedem
Rômulo, Cicero esta colaborando para o estabelecimento de uma narrativa mestra sobra a
história de Roma, que está também exposta na História de Lívio. Ao longo de diversos
reis e gerações de romanos foi estabelecida a melhor de todas as constituições. Lélio
lembra Catão ao concordar com Cipião: “now we have further proof of the accuracy of
Cato’s statement that the foundation of our State was the work neither of one period nor
of one man; for it is quite clear that every king contributed many good an useful
institutions.” (Cicero, 1928:145)15 Ao narrar a sucessão de reis, Cipião indica as
14
Na tradução brasileira: “Isso demonstra que Rômulo pensou o que antes havia pensado Licurgo em
Esparta: que o poder de um só e a potestade régia é, para os Estados, a melhor forma de constituição, se a
ela se acrescentam a autoridade e o apoio dos melhores.” (Cicero, 1996:48). No original: “Quo facto
primum vidit iudicavitque idem, quod Spartae Lycurgus paulo ante viderat, singulari império et potestate
regia tum melius gubernari et regi civitatis, si esset optimi cuisque ad illan vim dominationis adiuncta
autoritas.” (De Re Publica, II:IX)
15
Na tradução brasileira: “Cada vez parece mais certa a frase de Catão: ‘A constituição da República não
foi obra de um homem nem de um tempo’. Claramente se vêem quantas e quais foram, em cada reinado, as
coisas boas.” (Cicero, 1996:54). No original: “Nunc fit illud Catonis certius, nec temporis unius nec
hominis esse constitutionem rei publicae; perspicuum est enim, quanta in singulos reges rerum bonarum et
utilium fiat accessio.” (De Re Publica, II:XXI)
contribuições de cada um para a construção de Roma, e finalmente chega ao rei que
tornou a palavra odiosa aos romanos: Tarquínio, o Soberbo.
Um único rei foi capaz de transformar a melhor das constituições na pior entre
todas. E sua expulsão marca o início da construção da comunidade política livre que
Roma será. As instituições que formarão a res publica romana foram lançadas durante a
monarquia, e agora sem reis, a cidade precisará finalizar o processo. Após a expulsão dos
Tarquínios, prossegue Cipião: “Well then, at the period of which I have been speaking,
the government was so administered by the senate that, though the people were free, few
political acts were performed by them, practically everything being done by the authority
of the senate and in accordance with is established customs, and that the consuls held a
power which, though only of one year’s duration, was truly regal in general character and
in legal sanction.” (Cicero, 1928:167)
Note-se que o poder real é mantido após a expulsão dos reis de Roma. A
comunidade livre será então mantida e incrementada, ao longo de um período formativo
que vai até a publicação da Lei das XII Tábuas. A constituição louvada por Cícero
através da exposição de Cipião não foi, portanto, produto de um gênio legislador ou
estabelecida de supetão. Lançada as suas bases durante a monarquia, a república romana
será produto da história da cidade. Uma história narrada em detalhes por Tito Lívio,
décadas depois do aparecimento d’A República de Cícero. É para a História de Lívio que
agora me volto, tentando relacionar suas impressões com aquelas expressas por Cícero,
tentando estabelecer um quadro satisfatório de referências para aquilatar a importância do
princípio monárquico na constituição mista nos escritos dos antigos romanos.
A Construção de uma Comunidade Política Livre
Sabe-se menos sobre a vida de Tito Lívio do que o conhecido sobre Cícero.
Nascido em 59 em Patavium (a moderna Pádua), Lívio parece ter crescido numa família
aristocrata em uma das mais importantes cidades da Itália de seu tempo, tornada uma
municipalidade de Roma em 49. Sua história de Roma, Ab Urbe Condita (AUC) é
célebre por pelo menos dois motivos. Ocupa um lugar de destaque na lista dos escritos
fundamentais do pensamento político republicano e foi base para a elaboração da obra de
teoria política de mais fôlego escrita por Nicolau Maquiavel. A escrita do livro começou
provavelmente em 27 A.C., e dos 142 livros escritos sobreviveram para consulta dos
contemporâneos apenas alguns. De forma completa os livros I-X, XXI-XXX e XLIXLV. Os demais foram conservados apenas em forma de resumos preparados
posteriormente. Apenas um dos 142 livros está irremediavelmente perdido.16 Meu
interesse aqui é investigar os três primeiros livros de sua história. Pretendo incluí-lo
numa tradição de pensamento típica do Mediterrâneo antigo, especificamente àquela da
qual faz parte Cícero e constituiria um pensamento romano republicano. Isto pode ser
notado na narrativa mestra que orienta a compreensão de ambos os autores sobre o
significado de Roma, sua excelência e dinâmica de crescimento. A mesma narrativa
localizável no Livro II do tratado de Cicero sobre a coisa pública é esmiuçada por Lívio.
A construção da república romana entre a fundação da cidade e a Lei das XII Tábuas,
descrita por Cipião, é retomada por um historiador.
A formação da cidade é encaixada por Lívio na dinâmica histórica do
Mediterrâneo antigo. Rômulo, fundador de Roma e pai de todos os romanos, era
descendente de Enéas, que após a fuga de Tróia chega ao reino de Latino e casa com sua
filha. Gerações adiante, gêmeos da linhagem direta de Enéas são abandonados à morte
pelo tio avô que destrona o legítimo rei. Salvos por uma loba, são então criados de forma
simples, tornando-se ambos vigorosos homens. Em dado momento, devolvem o trono ao
avô e decidem fundar uma nova cidade, já que lideravam uma já razoável quantidade de
homens espalhados pelos campos no entorno de Alba.
Após assassinar o irmão, Rômulo apodera-se sozinho do poder da nova cidade e
torna-se rei. Seguem-se então mais seis reis, até a expulsão dos Tarquínios e o
estabelecimento de uma magistratura para substituir o rei. O primeiro livro da história de
Lívio apresenta um enredo aceito entre os romanos de seu tempo como a mais pura
expressão da verdade, mesmo que com algumas variações. (Pereira, 2002:17-18) Ao
acompanhar os detalhes da Roma sob a monarquia entendo ser possível aquilatar a
importância da monarquia no argumento de Lívio, tanto enquanto um regime que
agregou inicialmente a cidade, quanto em termos de princípio fundamental para o
estabelecimento e funcionamento da constituição mista. Os primeiros atos de Rômulo
são um indício disto.
16
Sobre dados biográficos do autor e data do início da composição da obra, ver Introdução in: Livy, 1919.
Sobre os livros conservados e perdidos, ver Introduction in: Livy, 1919; Introdução in: Lívio, 1989;
Introdução in: Lívio, 2008.
Assim que assume o comando da recém fundada cidade, Rômulo realiza rituais
religiosos e em seguida inicia a construção da comunidade política: “When Romulus had
duly attended to the worship of the gods, he called the people together and gave them the
rules of law, since nothing else but law could unite them into a single body politic.”
(Livy, 1919:31)17 Após o estabelecimento das leis, Rômulo trata de torná-las sagradas
aos olhos da massa que formaria uma cidade: “But these, He was persuaded, would only
appear binding in the eyes of a rustic people in case he should invest his own person with
majesty, by adopting emblems of authority. He therefore put on a more august state in
every way, and especially by the assumption of twelve lictors”. (idem)18
Em seguida, convencendo a multidão de que uma nova raça ali brotaria, tornou a
cidade refúgio de livres e escravos vindos de povos vizinhos, dotando-a de seu primeiro
contingente populacional. Por último, criou um conselho, escolhendo cem cidadãos para
ocupá-lo, dando-lhe o nome de patres.(idem, 33) Elementos considerados necessários
para constituir a comunidade livre que caracterizaria a forma de governo tipicamente
romana, logo republicana, foram assim criados. A comunidade política foi estabelecida
por leis, que adiante serão o esteio da liberdade. Foram conferidos signos para
identificação da população com a comunidade e respeito ao rei, preservados depois na
instituição do consulado. E um conselho é constituído, colaborando com o rei no
governo.
Ao envolver-se na guerra com os Sabinos, resultado do rapto de suas mulheres,
têm-se uma nova seqüência de acontecimentos que devem ser aqui considerados.19
Quando a paz é celebrada com os sabinos seu rei, Tácio, divide o poder com Rômulo.
Daí os romanos passarem a chamar-se quirites, e também a criação de uma nova
instituição política: a divisão da cidade em três tribus por sua vez divididas cada uma em
17
Na tradução brasileira: “Depois de ter realizado as cerimônias religiosas de acordo com o rito [de
Hercules], Rômulo reuniu em assembléia aquele povo que só poderia vir a ser uma nação por liames
jurídicos, e lhe deu leis.” Lìvio, 1989:30. No original: “Rebus divinis rite perpetratis vocataque ad
concilium multitudine, quae coalescere in populi unius corpus nulla re praeterquam legibus poterat, iura
dedit; (...).” (AUC, I:VIII) Notar a importância das leis na definição de res publica dada por Cícero,
conforme citado acima.
18
Na edição brasileira: “Compreendendo que, para torná-las sagradas perante aqueles homes rudes, ele
próprio deveria inspirar-lhes respeito pelas insígnias de sua autoridade, entre outros distintivos fez-se
acompanhar por doze lictores.” (Lívio, 1989:30) No original: “(...) quae ita sancta generi hominum agresti
fore ratus si se ipse venerabilem insignibus imperii fecisset cum cutero habitu se augustiorem, tum maxime
lictoribus duodecim sumptis fecit.” (AUC, I:VIII)
19
Sobre o rapto das Sabinas, ver AUC, I:IX. Sobre a importância da lenda, ver Pereira, 2002:28-29.
dez curias. (AUC, I:XIII) Este um dos primeiros sinais das constantes reformulações de
graus e distinções entre os romanos.
Ao longo dos próximos dois séculos de sua história serão feitos arranjos
institucionais criando e reformando as magistraturas da cidade, e o papel dos reis é
relevante neste processo. A república é sua obra também. Seja nas ações virtuosas dos
bons reis, que instituíram práticas ou normas que posteriormente seriam incorporadas à
cidade livre; ou nas práticas tirânicas de alguns, em especial ao comportamento dos
Tarquínios que finalmente encejaram sua expulsão e tornaram o título de rei odioso aos
romanos. Ele nunca mais será usado. Nem mesmo quando um Império sucede a
República.
Os sete reis de Roma enfeixam as boas e más características do governo de um
só. Vou explorar os significados de três eventos, além da já referida circunstância da
fundação da cidade: o estabelecimento da civilidade promovido por Numa Pomílio (716673 a.C.); o primeiro rei a não contar com o sufrágio para ocupar o trono, Sérvio Túlio
(578-535 a.C.), ao mesmo tempo promotor de reformas políticas fundamentais; e o
reinado de Tarquínio que, além de exemplificar a tirania no pensamento político romano,
criou as circunstâncias que permitiram a extinção da monarquia em Roma.
Ao morrer Rômulo é pranteado pela juventude romana, que após momentos de
medo passa a saldá-lo como deus e pai da cidade, confirmada adiante pela sua aparição a
Próculo Júlio, anunciando sua vontade de Roma se transformasse na capital do mundo.
(AUC, I:XVI) Ao ter que escolher um novo rei criou-se um impasse entre os romanos de
origem sabina e aqueles mais antigos. Apesar desta divergência, todos queriam novo rei,
pois “(...) ainda não haviam provado o doce gosto da liberdade.” (Lívio, 1989:42) A
questão foi resolvida quando o governo foi compartilhado através dos senadores. Foram
divididos em dez decúrias, sendo que cada uma indicaria um representante para governar
durante cinco dias, quando então novo indicado ocuparia o trono. O arranjo criou o termo
interregno, e começou a descontentar a plebe, que agora alegava ter cem senhores ao
invés de um: “[a plebe] Parecia disposta a não tolerar mais que um rei, e um rei escolhido
por ela.” (idem, 43) O Senado aquiesce, reservando-se o direito de referendar a escolha
popular. O povo, satisfeito com a situação, confere ao Senado o direito da escolha.
(AUC, I:XVII) A escolha de Numa Pompílio é autorizada pela sua reconhecida justiça e
religiosidade vence a resistência dos romanos mais antigos, e um sabino reinará em
Roma.
Do ponto de vista político, Numa Pompílio cria e organiza o calendário da
cidade, organiza o território e delimita propriedades. (AUC, I:XIX-XXI) Do ponto de
vista religioso, constrói templos e dota a cidade de uma série de ritos. Estabelece, como
digo acima, critérios de civilidade que elevam os romanos entre os povos respeitáveis da
região. (idem) Ao suceder Rômulo e caracterizar eu governo como pacífico e cultivador
de valores elevados, Numa Pompílio confere aos romanos um caráter intrinsecamente
valoroso, que adiante será expresso no elogio constante entre os escritores da geração de
Cícero e Lívio do mos maiorum, o costume dos antepassados.20 Séculos depois, é neste
quadro referencial próprio que os escritores romanos cultivarão as influências intelectuais
vindas da Hélade.
Desde a instituição das tribos e cúrias Roma é uma monarquia em que o rei não
exerce as prerrogativas de governo sem a participação dos patrícios. No entanto, o
primeiro rei a conquistar trono sem eleições promoverá reformas que modificarão de
forma relevante a dinâmica política de Roma. Criado no palácio real, Sérvio Túlio sucede
Tarquínio Prisco através de um ardil de Tanaquil, esposa do rei.21 Filho de servos, sem
ligação com a família do rei, será a distinção no campo de batalha que granjeará a
autoridade suficiente para pretender realizar “(...) what is by far the most important work
of peace: as Numa had established religious law, so Servius intended that posterity
should celebrate himself as the originator of all distinctions among the citizens, and of
the orders which clearly differentiate the various grades of rank and fortune.” (Livy,
1919:149)22
As reformas seriam feitas sobre o censo, onde patrícios e plebeus
contribuiriam para o erário de acordo com suas rendas, tendo uma respectiva participação
no governo, através das novas tribos divididas em cinco classes e 193 centúrias. (AUC,
I:XLII-XLIII) O estabelecimento de uma participação censitária no governo da cidade
rompe com o privilégio da antiga nobreza. Esta nova organização materializa-se numa
nova assembléia popular, os comitia curiata, formada por patrícios e plebeus. (Petit,
20
Sobre o significado de mos maiorum, ver Pereira, 2002: 357-361. No tratado sobre a velhice, de Cícero,
Catão é a encarnação destes costumes. Ver Cicero, 2008.
21
Sobre as circunstâncias da criação de Sérvio Túlio, ver AUC, I:XXXIX; para as circunstâncias de seu
acesso ao trono ver AUC, I:XLI
22
Na tradução brasileira: “(...) a mais considerável das obras realizadas em tempo de paz. Assim como
Numa foi o fundador de nossas instituições religiosas, a posteridade atribui a Sérvio a divisão da sociedade
em classes, que distingue os diversos graus de dignidade e fortuna.” (Lívio, 1989:78). No original:
“adgrediturque inde ad pacis longe maximum opus, ut quemadmodum Numa divini auctor iuris fuisset, ita
Servium conditorem omnis in civitate discriminis ordinumque quibus inter gradus dignitatis fortunaeque
interlucet, posteri fama ferrent.” (AUC, I:XLII)
2003:39) A monarquia romana estende alguma dose de cidadania a todos os indivíduos
sob seu governo, capacitando a plebe ao envolvimento com os cargos públicos, situação
inexistente antes da reforma.23 (Petit, 2003:37)
O sucessor de Sérvio Túlio teria também um papel relevante a cumprir na
história de Roma. Tornando o título de rei odioso entre os romanos através de um
governo tirânico, Tarquínio24 estará diretamente implicado no fim da monarquia em
Roma. Assumindo o trono através de crimes, Tarquínio estabelecendo a tirania na cidade:
manda assassinar senadores que haviam apoiado Sérvio Túlio, cerca-se de guarda-costas,
reinava sem o sufrágio do povo e sem aprovação dos senadores, torna-se único juiz em
condenações à pena máxima, confisca bens, diminui o número de senadores e não os
consulta para assuntos de governo. (AUC, I:XLIX)
Seu ato tirânico final foi condescender com o filho que viola Lucrécia, a mais
virtuosa das romanas. 25 O crime seria então o pretexto para a expulsão dos reis de Roma,
numa revolta aristocrática liderada por Lúcio Júnio Bruto que, com o punhal utilizado
por Lucrécia para cometer suicídio depois da infâmia nas mãos, exclama: “By this blood,
most chaste until a Prince wronged it, I swear, and I take ypou, gods, to witness, that I
Will pursue Lucius Tarquinius Superbus, and his wicked wife and all his cildrem, whit
sword, with fire, aye with whatsoever violence I may; and that I Will suffer neither them
nor any other to be king in Rome!”. (Livy, 1919:205)26 A cidade é tomada pelo tumulto
quando a notícia do estupro se espalha. O povo amotina-se contra a violência do príncipe,
e jovens aristocratas apóiam Bruto, Lucrécio e Valério. Duzentos e quarenta e quatro
23
Mesmo apontado para direções políticas e institucionais que caracterizariam as evidentes limitações das
prerrogativas da plebe, mesmo com a instituição dos Tribunos da Plebe: “For Livy, the tribunes are initially
a sort of shield, a largely protective weapon — not a sword, a primarily offensive weapon. It is quite
possible for the plebs to be free with only a shield to protect them, and not to have proactive power.”
(Kapust, 2004:393)
24
Cognominado Soberbo por ter negado sepultura ao sogro, Sérvio Túlio, alegando que Rômulo também
não havia sido enterrado. (AUC, I:XLIX)
25
Sobre a caracterização de Lucrécia, ver AUC, I: LVII.
26
Na tradução brasileira: “Por este sangue tão puro antes de ser manchado pelo crime do príncipe, eu juro e
vos tomo como testemunhas, ó deuses, que hei de expulsar Lúcio Tarquínio Soberbo, ele, sua criminosa
esposa e toda sua descendência, pelo ferro, pelo fogo, por todos os meios que estiverem em meu poder.
Nem eles nem outro qualquer há de reinar em Roma.” (Lívio, 1989:99-100). No original: “Per hunc
castissimum ante regiam iniuriam sanguinem iuro, vosque, di, testes facio me L. Tarquinium Superbum
cum scelerata coniuge et omni liberorum stirpe ferro, igni, quacumque denique vi possim, exsecuturum nec
illos nec alim quemquam regnare Romae passurum.” (AUC, I:LIX)
anos depois da sua fundação Roma é libertada, e dois magistrados são eleitos para ocupar
o lugar do rei, Lúcio Júnio Bruto e Lúcio Tarquínio Colatino.27
Inicia-se então novo período da história de Roma. A monarquia é derrubada e o
governo livre que virá em seguida se sustentará em grande medida nas instituições
criadas durante o período monárquico. A liberdade dos romanos começou a ser esboçada
durante o governo dos reis. Os termos utilizados por Lívio para descrever a mudança de
regime político em Roma é uma evidência textual desta assertiva.
Lívio inicia o segundo livro de sua história anunciando que abordará a nova
liberdade experimentada pelo povo romano, suas conquistas em tempo de paz e guerra,
os magistrados eleitos anualmente e leis mais dotadas de mais autoridade que homens.
Uma liberdade ainda mais aprcciada em virtude da tirania instalada pelo último rei.
(AUC, II:I) Acrescentando que “For his predecessors so ruled that there is good reason to
regard them all as successive founders of parts, at least, of the City, which they added to
serve as new homes for the numbers they had themselves recruited.” (Livy, 1919:219)28
Na seqüência, Lívio credita ainda à monarquia um papel aglutinador para a cidade
nascente, afirmando que teria sido prejudicial aos romanos experimentar uma liberdade
prematura. Foi necessária a contenção das agitações entre um povo rude, obtida pelas
insígnias da realeza. A comunidade poderia ter sido destruída se não tivesse contado com
governos calmos e moderados de seus reis, permitindo que Roma chegasse à maturidade
e pudesse então provar “o doce fruto da liberdade.” (AUC: II:I)
Lívio relaciona liberdade com a expulsão do reis desde o livro anterior, mas
apresenta uma explicação precisa para esta caracterização num trecho que apesar de
longo merece aqui ser apresentado integralmente:
Moreover you may reckon the beginning of liberty as prodeeding rather
from the limitation of the consuls’ authority to a year than from any diminution
of their power compared with that which the kings had exercised. All the rights
opf the kings and all their insignia were possessed by the earliest consuls; only
one thing was guarded against – that the terror they inspired should not be
doubled by permitting both to have the rods.” (Livy, 1919:221)29
27
AUC, I:LIX-LX. Lívio comete uma anacronia ao nomear consules os dois novos magistrados. Eles
seriam assim nomeados depois do Decênviros. De início foram nomeados pretores. Cf. Livy, 1919:208,
nota 1.
28
Na edição brasileira: “(...) pois seus antecessores haviam reinado de tal modo que a posteridade
merecidamente os considerou a todos fundadores da cidade, ou, pelo menos, de certos bairros criados para
abrigar a multidão sempre crescente, que era atraída pelos reis. “ (Lívio, 1989:105). No original: “Nam
priores ita regnarunt ut haud immerito omnes deinceps conditores partium certe urbis, quas novas ipsi
sedes ab se auctae multitudinis addiderunt, numeruntur.” (AUC, II:I)
29
Na edição brasileira: “Além do mais, se a origem da liberdade se há de fixar nessa época, foi antes
porque a duração do mandato consular se limitou a um ano e não porque se restringiu sob qualquer aspecto
Bruto é o primeiro a empunhar os fasces. Aproveitando-se do entusiasmo
popular pela recente liberdade, obriga todos os romanos a jurarem jamais aceitar reis em
Roma novamente. (idem) Esta promessa faz com que todos os tarquínios sejam expulsos
de Roma, quando Tarquínio Colatino passa a empunhar os fasces e torna-se suspeito de
querer ocupar um trono em Roma novamente. (AUC, II:II) O povo romano considerava
uma ameaça a nova liberdade a permanência de tarquínios na cidade, e ainda mais com
um deles ocupando a principal magistratura.
A criação de duas magistraturas eleitas anualmente para ocupar o papel do reis é
apenas o primeiro ato para dotar a cidade de magistraturas que pudessem equilibrar o
governo entre diferentes setores sociais. A plebe terá a sua magistratura, e adiante terá o
direito de ocupar qualquer uma outra, inclusive o consulado. A criação dos tribunos da
plebe é um caso paradigmático.
A prisão e escravidão por dívidas foi o princípio de uma agitação popular que
consumiu Roma durante anos. A plebe alegava ser oprimida em sua própria pátria,
quando era obrigada a lutar pela liberdade fora dela. A situação acaba desembocando
numa revolta motivada pela situação abjeta em que um cidadão que havia lutado pela
cidade se encontrava. (AUC, II:XXIII) As dissensões entre plebe e o governo da cidade
acirram-se com as constantes tergiversações de patrícios e cônsules em conferir direitos e
proteção ao povo. (AUC, II:XXVII) Uma conspiração popular leva o conflito ao Senado,
onde duas opiniões sobre como enquadrar a plebe na dinâmica do governo se batem pelo
estabelecimento da linha de ação da cidade em relação ao problema. (AUC, II:XXIX)
Quando a plebe retira-se da cidade parece o fim da comunidade política fundada séculos
antes. Roma é deixada sem proteção contra o inimigo que avizinhava-se. A plebe deixara
a defesa da cidade com os patrícios, arvorados em senhores únicos de Roma. (AUC,
II:XXXII) Para reconciliar plebeus e patrícios e permitir a continuidade da comunidade
política são então criados os tribunis plebis, dpois magistrados invioláveis que não
poderiam ser escolhidos entre patrícios. Seu caráter sacrossanto os capacitaria a proteger
a plebe contra opressão de cônsules e senadores. (AUC, II:XXXIII)
o poder real. Os primeiros cônsules mantiveram todos os direitos e todas as insígnias da realeza. Apenas
procurou-se evitar que ambos os cônsules dispusessem dos faces as mesmo tempo, para não parecerem
duas vezes mais temíveis.” (Lívio, 1989:106) No original: “Libertatis autem originem inde magis quia
annuum imperium consulare factum est quam quod deminutum quicquam sit ex regia potestate, numeres.
Omnia iura, omnia insígnia primi cônsules tenuere; id modum cautum est ne, si ambo faces haberent,
duplicatus terror videretur.” (AUC, II:I)
A criação dos tribunos da plebe é passo fundamental para o estabelecimento de
um governo misto, formado de maneira equilibrada por princípios constitucionais
monárquicos, aristocráticos e democráticos. Para que o tipo de governo que será louvado
por republicanos esteja completamente formado, resta que as leis sejam devidamente
estabelecidas e conhecidas por toda a população. Este é papel que caberá à Lei das XII
tábuas.
As tensões entre patrícios e plebeus acaba exasperando toda a cidade. O
aumento das prerrogativas da plebe incomoda o patriciado, obrigado agora a partilhar as
decisões e acusando tribunos de provocar as prerrogativas de cônsules e senadores. Uma
reação que pretende o retorno da dinâmica política anterior ao estabelecimento dos
tribunos da plebe lida com uma população não disposta a ser novamente escravizada,
situação que seria engendrada pela sua não participação no governo. A situação chega ao
ponto de patrícios e plebeus acordarem a redação de uma nova lei. (AUC, III:XXXI) A
plebe propõe então a indicação de uma comissão mista encarregada de definir os termos
de uma nova legislação, capaz de atender aos interesses dos dois lados, assegurando
assim liberdade a todos. A proposta é de agrado ao patriciado, que no entanto objeta que
a elaboração da legislação ficasse a cargo de patrícios. Como ambos os lados
concordaram com a necessidade de uma legislação, apesar de discordar em como redigila, foi enviada uma legação a Atenas para consultar as leis de Sólon e estudar as
diferentes instituições, costumes e leis das cidades gregas. (AUC, III:XXXI)
Com o retorno dos legados, abre-se a discussão de como proceder à redação das
leis. Nomeiam-se então decênviros, encarregados de redigir as leis, sendo que apenas
patrícios participarão da tarefa, sendo interditada a ab-rogação de parte da legislação
antiga que era de interesse plebeu. (AUC:III:XXXIII) Assim, trezentos e dois anos após a
fundação, Roma passa por nova mudança de governo. Assim como o poder havia
passado dos reis aos cônsules, ele agora era passado dos cônsules aos decênviros. Cada
um revezava-se na administração da justiça, e a harmonia e equidade com que
compartilharam das prerrogativas permitiu a elaboração de dez tábuas com a legislação
que refunda Roma. Redigida com consultas à plebe, a lei das dez tábuas foi considerada
perfeita e aprovada pelas assembléias da cidade, constituindo-se, segundo Lívio, na fonte
de todo o direito público e privado dos romanos.30 (AUC, III:XXXIV) O acréscimo de
duas novas tábuas é p enredo de mais um avanço da tirania, brotando da concentração de
prerrogativas de governo em mãos de poucos.
Ápio Cláudio, sendo popular entre a plebe, havia sido escolhido presidente dos
decênviros (idem), mas viu no pretexto de elaborar mais duas tábuas a possibilidade de
reduzir a cidade à nova servidão. Novos decênviros foram eleitos num processo eleitoral
maculado, gerando uma representação menos respeitável que a do ano anterior. (AUC,
III:XXXV) Ápio tornou-se líder de um grupode cidadãos que aspirava estabelecer um
governo arbitrário em Roma. Os decênviros passaram a comportar-se como dez reis,
aterrorizando patrícios e plebeus. Logo as arbitrariedades recaíram exclusivamente sobre
os plebeus. Corria em Roma o boato de que os decênviros conspiravam para estabelecer
uma tirania perene na cidade. (AUC, III:XXXVI) Os senadores nada fizeram para conter
a sanha tirânica dos decênviros, pois os odiavam tanto quanto à plebe, que culpavam por
ter tal desejo de liberdade que arrastara a cidade ao tumulto e ao controle decenverial.
Apesar das duas tábuas terem sido adicionadas as dez primeiras, não se falava em
eleição. Além disso, a juventude patrícia fazia o papel que antes coube à plebe: protegia
os decênviros, que avançaram sobre os bens e dignidade da plebe com a anuência do
patriciado. (AUC, III:XXXVIII)
Numa espécie de repetição dos eventos que levaram à derrubada da monarquia e
ao estabelecimento dos tribunos da plebe é o desaguar desta situação. Ápio Cláudio
comete o mesmo crime que Sexto Tarquínio: viola uma romana virtuosa. (AUC,
III:XLIV) Uma correia de acontecimentos leva a um novo abandono da cidade pela
plebe, ultrajada novamente pela arrogância e opressão dos patrícios. (AUC, III:LII)
Novamente, legados são enviados à plebe, que exige o retorno das garantias e dos
acordos feitos para sua liberdade. O Senado acata o pleito, os decênviros pedem
demissão e são realizadas eleições para novos tribunos da plebe. (idem) Em seguida são
eleitos novos cônsules (AUC, III:LV), as doze tábuas são apresentadas ao povo e os
decênviros são julgados. (AUC, III:LVI-LVII)
As tensões entre patrícios e plebeus não cessa com estes eventos, mas deste
ponto em diante serão sempre canalizadas por uma série de magistraturas e instituições
alicerçadas em princípios constitucionais monárquicos, aristocráticos e democráticos. A
30
A crítica moderna endossa a visão de Lívio, acrescentando que a lei parece ter sido uma consagração de
antigos costumes, a partir de então dotados de nova força. ( Petit, 2003:45)
engenharia político-institucional convencionalmente nomeada constituição mista estava
montada e funcionará com poucas e irrelevantes modificações até o fim da República. A
comunidade livre romana estava alicerçada em decisões tomadas durante as
circunstâncias da fundação e formação da cidade. A res publica foi um produto da
história dos romanos.
Considerações Finais
A teoria política contemporânea demonstra atualmente um interesse renovado
nos escritos vinculados à tradição republicana de pensamento político. Entre as fontes
para esta consulta, um conjunto de escritores romanos do período final da República e
início do Principado constitui parte relevante, sendo considerados clássicos da tradição.
Cícero e Tito Lívio estão entre os mais importantes clássicos do pensamento republicano.
Apresentei objeções ao modo como a teoria política contemporânea acessa os
clássicos. Sustento que este acesso está criando uma visão tipicamente contemporânea
sobre os significados dos escritos dos antigos romanos, e pouco dizendo sobre os
significados que os próprios autores poderiam ter atribuído aos seus escritos. Parte desta
incompreensão é herdada da crítica moderna, que criou o republicanismo antes
decalcando nos escrito antigos suas próprias idéias e formulações, do que os tomando em
seus próprios termos. O anti-monarquismo é exemplar neste aspecto.
Modernamente o termo república tornou-se equivalente de um regime político
não monárquico. E somente isso. Uma palavra vazia, perto da variedade de sentidos que
lhe foram atribuídas tanto pelos antigos romanos quanto pelos homens do início da
modernidade. A consulta aos dois primeiros livros do tratado de Cícero sobre a coisa
pública e aos três primeiros livros da história de Lívio indica e exemplifica perfeitamente
que mesmo o único significado definidor do republicanismo moderno pode não encontrar
amparo nos escritos romanos antigos.
A monarquia em ambos os autores não é apenas elemento constituinte das idéias
políticas típicas dos romanos, mas fundamental. A monarquia foi um fator agregador
inicial do povo romano, que não poderia aproveitar adiante a liberdade sem a criação
prévia deste amálgama. Os reis de Roma foram sempre considerados pais da cidade,
responsáveis pela construção da comunidade. Com sua expulsão de Roma são mantidas
suas prerrogativas, materializadas na criação de uma magistratura eleita anualmente para
representá-los. Com a criação de uma magistratura para representar os plebeus, somada
ao já existente Senado, Roma estabelece uma dinâmica de equilíbrio institucional que
gera um regime típico de governo. Cada uma das formas puras de governo terá
participação na condução da política em Roma. Isto constituirá o princípio da criação
máxima dos romanos em termos de pensamento político: a Constituição Mista.
Caso realmente exista uma tradição republicana de pensamento político, ela é
produto de diversas gerações intelectuais, esparramadas por dois milênios de história. Se
pretendermos nos nutrir das respostas dadas por outros homens sobre outros problemas
para solucionar nossos próprios dilemas, convém tentar compreender da melhor maneira
possível o dito no passado. Se nos contentarmos em decalcar nossas próprias idéias em
escritos do passado não seremos capazes de compreendê-los. Logo, incapazes de tornálos úteis à nossas comunidades políticas.
Referências
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