priapo: um deus oriental na roma do principado

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PRIAPO: UM DEUS ORIENTAL NA ROMA DO PRINCIPADO
PARRA, Amanda Giacon (UNESP/Assis)
Esta comunicação pretende abordar o tema dos cultos priápicos na Roma
durante o primeiro século. Mostrar o contraponto que as religiões estrangeiras,
como a de Priapo, significaram no Império se comparadas às crenças e ritos
instituídos pelo Estado romano.
Originário da cidade de Lâmpsaco, cidade da Ásia Menor, Priapo foi um
deus bastante conhecido também em várias partes do Mediterrâneo. Simbolizado,
na maioria das vezes, por um membro viril, Priapo começou a ser cultuado por
volta do século IV a.C.
Sobre o nascimento do deus, sabe-se que geralmente ele era identificado
como filho de Afrodite e Dioniso ou ainda como filho de Afrodite e Zeus. Segundo
Grimal (1993), quando Afrodite engravidou, Hera temeu que a criança pudesse ser
bela como a mãe e ter o poder do pai, por isso, Hera tocou o ventre de Afrodite
para que a criança nascesse disforme. Disso resultou Priapo que veio ao mundo
com um falo desproporcional.
Há também uma interpretação evemerista que afirmava que Priapo era um
homem da cidade de Lâmpsaco e que de lá foi expulso devido à sua
monstruosidade. Uma parte do Terceiro Mitógrafo do Vaticano traduzida por
Oliva Neto (2006, p. 69) diz o seguinte:
Priapo surgiu, como relata Sérvio, em Lâmpsaco, cidade do
Helesponto, e por causa da grandeza do membro genital foi
1
expulso da cidade. Depois, porém, mereceu ser recebido no grupo
dos deuses, como divindade dos jardins. Dizem que
justificadamente preside aos jardins, pela fecundidade que lhes
traz, pois como uma parte das terras uma vez por ano gera algum
fruto e outra parte gera outro, alguns jardins nunca estão sem
frutos. Mas também entre as matronas é deus eminente: com o
auxílio da sociedade delas foi incluído entre os deuses.
Por ter possível parentesco com Dioniso, Priapo guarda semelhanças com
Sileno e os Sátiros e tem papel em rituais orgiásticos. Isso mostra a ligação do deus
com atributos como a fecundidade e a abundância (OLIVA NETO, 2006, p. 17).
O deus chegou a ser representado em inúmeros espaços diferentes: portos,
encostas, praias, espaço rural, jardins (OLIVA NETO, 2006, p. 18-19).
Em Roma, Priapo também foi objeto de crença. Há informações de sua
presença no mundo romano já no século III a. C. (OLIVA NETO, 2006, p. 23-24).
Na cidade de Roma não se sabe ao certo quando ingressou, porém é importante
lembrar que durante a idade helenístico-romana, fim do século III a.C, as trocas
culturais com o Oriente foram intensas e que muitos outros cultos de origem
estrangeira além de Priapo desenvolveram-se e modificaram-se em Roma.
Dentre essas crenças estrangeiras que adentraram a sociedade romana têmse os cultos iátricos, os cultos mistéricos, bem como a astrologia e as práticas
mágicas (SCARPI, 2004, p. 163). Além de Priapo, era freqüente o culto em honra a
Cibele e Átis, Ísis, Mithra, Atargatis.
Os cultos estrangeiros, em sua maioria, foram considerados um problema
para os romanos. A chamada por eles, externa superstitio, foi aos poucos
penetrando na sociedade. Mas a maior e mais firme resistência parece ter vindo
mesmo dos dirigentes do Estado romano que por diversas vezes ordenaram a
derrubada de altares aos deuses estrangeiros. Somente por volta do primeiro
século de nossa era é que o poder parece ter se conformado com as crenças
estrangeiras (SCARPI, 2004, p. 165-166).
Priapo escapou à proibição expressa, mas parece nunca ter entrado
definitivamente para as festividades e o calendário rígido composto e indicado
pelo Estado romano.
2
Em Roma, antes da chegada de Priapo havia uma divindade que também
era representada na forma de um membro viril, era Mutunus Tutunus. As
mulheres o cultuavam. Algumas fontes afirmam que sacerdotisas coroavam a
divindade. Essas sacerdotisas, até onde se sabe seriam senhoras casadas que o
faziam em nome das esposas da Urbe. Outro vestígio de um culto ao falo na
religião romana anterior a chegada das divindades estrangeiras é a Penates romana
guardada pelas vestais (GRIMAL, 1991, p. 40-41).
Outra crença no poder mágico do falo é o fascinus. Tratava-se da crença que
os camponeses tinham de que “o falo era um talismã eficaz contra as forças do
mal, os malefícios, tudo o que impede ou contraria o crescimento e o
desenvolvimento feliz das criaturas, homens, animais ou plantas” (GRIMAL, 1991,
P. 42).
Percebe-se, portanto, que de maneira geral, o membro masculino em ereção
era associado, na Antiguidade Clássica, à vida, à fecundidade e à sorte (FUNARI,
2003, P. 319).
Priapo assimilou aos poucos essas antigas divindades e foi transformado
em objeto de culto pelos romanos principalmente no primeiro século. Como
afirma Oliva Neto (2006, p. 24-25):
O culto sacro e profano de que Priapo foi objeto em Roma
abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente
privado. Entretanto, divindade humilde que era, foi
religiosamente muito cultuado entre as ordens sociais mais baixas
(pequenos agricultores e comerciantes) como patrono da
fecundidade das hortas, pomares e, no âmbito da casa, patrono até
do matrimônio. (...) Nos estratos elevados, Priapo, relacionado que
era ao poder catártico e ao riso, foi apropriado como personagem
ridícula pela poesia, fato documentado pela filologia, e como
adorno das casas, fato documentado pelas escavações pompeanas.
Mas não se exclui a possibilidade de ter recebido culto religioso ou
ter feito parte dele entre as ordens menos baixas ou mesmo
elevada, como atesta documentação epigráfica.
Tratando mais especificamente do período do primeiro e início do segundo
século, período também chamado Principado na cidade de Roma, é necessário
pensar em que tradição religiosa Priapo foi inserido. Como era a religião romana
3
tradicional, como e onde era vivida para se pensar o contraponto que significaram
as religiões estrangeiras nesse contexto.
A religião pública em Roma até então era diretamente ligada ao Estado.
Eram os dirigentes que comandavam e determinavam o calendário e os cultos que
deveriam ser executados, pois as funções sacerdotais eram exercidas somente por
pessoas do sexo masculino e que estivessem ligadas à política.
A religião oficial dos romanos era baseada no modelo ético do mos maiorum,
a tradição dos antepassados (SCARPI, 2004, p. 152). Essa tradição era bastante
conservadora e era ela que formava a identidade cultural do povo romano.
Um dos princípios da concepção religiosa dos romanos era a pax deodorum,
que diz respeito ao equilíbrio da cidade, esse se dava a partir de um equilíbrio
entre homens e deuses e suas boas relações. Quando esse equilíbrio era quebrado
era responsabilidade dos homens fazer com que tudo voltasse ao normal.
Roma tinha um calendário rigoroso e bem definido. Os responsáveis pela
religião romana nesse período, eram um número de mais ou menos trezentas ou
quatrocentas pessoas que comandavam uma população de cerca de 4 milhões de
cidadãos do sexo masculino e adultos (SCHEID, 1992, p. 60). Ou seja, por mais
que houvesse um esforço por parte das autoridades, eram poucos sacerdotes para
assistir a muitas pessoas.
Pelo grande número de terras comandadas por Roma no período imperial
criou-se também o culto ao imperador. Esse culto era uma forma de legitimação
devido à grande influencia territorial. Nesse culto, o príncipe de Roma tornava-se
divus, divino e Roma a dea Roma, deusa Roma (SCARPI, 2004, p. 175).
Havia também a religião privada que tratava de cultos ligados à
ancestralidade de cada família, nesses cultos domésticos, cada família escolhia os
deuses de sua preferência para serem cultuados e o responsável por estes cultos
era o paterfamilias.
Um ponto central para se entender o pensamento a respeito da religião para
os romanos é o rito. Os romanos eram centrados no rito, como afirma Scarpi (2004,
p. 154): o mito é de origem grega, o rito é de origem latina.
4
Roma possuía, sem dúvida, uma religião ritualista, ou seja, “a execução do
rito se coloca na base da relação com os deuses” (LINDER e SCHEID, 1993, p. 49) 1.
Ainda segundo esses autores (1993, p. 49): “a aposta fundamental de tal religião
não é a busca de uma relação íntima e pessoal com a divindade, mas sim, o exato
cumprimento dos atos rituais, o ‘saber-fazer’ prático, o conhecimento preciso dos
gestos e das palavras e uma perfeita administração do culto no quadro que é seu, a
comunidade”2.
Para os romanos, crer era fazer, executar corretamente as obrigações
cultuais, nem mais, nem menos3 (LINDER e SCHEID, 1993, p. 50).
A partir dessas considerações, um caminho possível para se analisar o culto
priápico no primeiro século em Roma, em meio à religião oficial é a análise de
algumas partes da obra Satyricon de Petrônio.
O autor representa o culto priápico, as sacerdotisas do deus e os rituais em
sua obra. Levando em consideração a importância da obra literária nos estudos
das sociedades antigas, é possível que se considere fonte para o estudo da religião
a representação de Petrônio acerca da religião de seu período.
Inicialmente, é necessário apresentar alguns pontos do livro Satyricon para
que uma visão mais ampla possa se formar para só depois adentrar aos capítulos
em que Petrônio coloca os rituais.
O romance da Antiguidade escrito por Petrônio, o Satyricon,é considerado
uma fonte bastante proveitosa para os estudos sobre a Roma do primeiro século.
Muitas pesquisas foram feitas levando em conta essa fonte.
Para citar apenas alguns dos trabalhos realizados no Brasil tendo como base
o romance tem-se os trabalhos de Aquati - a dissertação de mestrado, uma tese de
doutoramento e, mais recentemente, sua tradução do romance completo
1
todas as traduções em frânces presentes nessa comunicação foram feitas pela autora. “(...) l’exécution du
rite se trouve à la base des rapports avec les dieux”.
2
“L’enjeu fondamental d’une telle religion n’est pás la recherche d’une relation intime et personnelle avec la
divinité, mais l’exact accomplissement des actes rituels, le savoir-faire pratique, la connaissance precise des
gestes et des paroles, et une parfaite administration du culte dans lê cadre qui est lê sien, la communauté”.
3
“(...) chez les Romains, croire c’était faire, c’était exécuter correctement les obligations cultuelles, ni plus,
ni moins”.
5
diretamente da fonte em latim4. Na dissertação, o autor fez uma tradução do
episódio do banquete de Trimalquião, um dos mais conhecidos e trabalhados pela
historiografia. Já em sua tese, Aquati utilizou a idéia de grotesco para fazer um
estudo da obra completa, mostrando ao longo dos capítulos do romance a
presença de elementos grotescos caracterizando o grotesco literário.
Há também os trabalhos de Feitosa que estudou o corpo, a moral e o amor
no Satyricon, em sua dissertação de mestrado. A autora faz uma análise sobre o
conceito de feminilidade e masculinidade presente no início do Principado
romano, por meio das obras literárias de Ovídio e Petrônio. Feitosa analisa
aspectos físicos, éticos e amorosos.
Faversani estudou os livres pobres em Roma e as relações diretas de poder
que envolviam estes agentes sociais a partir da obra de Petrônio em sua
dissertação de mestrado.
Gonçalves estudou um dos episódios do livro: o banquete de Trimalquião,
os libertos e sua cultura. Esses são apenas alguns exemplos dos estudos feitos nos
últimos anos utilizando o livro Satyricon, isso se dá pela diversidade de temas
tratados em cada um dos episódios do romance.
Em linhas gerais, o Satyricon que se conhece na atualidade é apenas uma
pequena parte do que pode ter sido o romance na Antiguidade. Muitas partes
foram perdidas ao longo do tempo.
Como afirma Ernout (1950, p. XIII- XIV): “Nós estamos longe de possuir a
obra inteira de Petrônio. Pela mistura de prosa e verso, pelos contos e notícias
intercaladas na entrada da trama da ação, o romance oferece uma ampla mina de
intrigantes antologias. Finalmente são extratos isolados que sobreviveram de
formas diversas, enquanto que o original se perdia no esquecimento. Também é
impossível fixar as dimensões e o conteúdo primitivos” 5.
4
Essa é a tradução utilizada em todas as citações do Satyricon que são feitas nessa comunicação.
“Nous sommes loin de posséder l’ouvre entiére de Pétrone. Par le mélange de prose et de vers, par les
contes et nouvelles intercales em hors-d’oeuvre dans la trame de l’action, le roman offrait une ample mine
aux faiseurs d’anthologie. Finalement ce sont des extraits seuls qui ont subsiste sous des formes diverses,
tandis que l’original se perdait dans l’oubli. Aussi, est impossible d’en fixerles dimensions et le contenu
primitifs”.
5
6
Um outro problema relativo ao livro é a incerteza quanto à datação e à
autoria. Além de inúmeros argumentos lingüísticos que podem datar a obra como
pertencente ao século I há um argumento bastante consistente lembrado por
Faversani. Trata-se de uma referência ao “hortus pompeianus” comprado por
Trimalquio. Tal aquisição não faria sentido após 24 de agosto de 79 quando houve
o soterramento da cidade pela erupção do vulcão (FAVERSANI, 1995, p. 23).
Entre vários argumentos, o livro pode ser datado como sendo escrito no
primeiro século. Ernout, um dos estudiosos mais reconhecidos do Satyricon,
concorda com essa datação. Para ele a hipótese seria a mais verossímil é que
Petrônio era um contemporâneo e familiar de Nero, ou seja, aquele que foi
descrito por Tácito6 (ERNOUT, 1950, p. VII).
O tema do romance é incerto. A partir do que se tem da obra, pode-se
propor que trata-se da cólera do deus Priapo em relação à Encolpius. Mas há ainda
outras hipóteses tais como: “Petrônio fazia uma paródia de romances de amor
gregos? As várias teses são defendidas e combatidas com igual ardor, sem que
essa luta erudita resulte em nos trazer uma certeza” (ERNOUT, 1950, p. XIV-XV)7.
No capítulo 139 do romance o narrador, Encolpius, muito possivelmente,
declama um poema que parodia o discurso trágico, segundo Oliva Neto (2006,
p.307), ao incluir-se no rol daqueles que foram perseguidos pela ira de um deus.
No caso de Encolpius a ira é de Priapo, o deus fálico:
Não é só a mim que a divindade e o implacável destino
perseguem. / Anteriormente, o deus de Tirinto, acossado / pela
ira da deusa do Ínaco, suportou o peso do céu. / Diante de Juno,
Pélias padeceu. / Sem saber, Laomedonte suportou as armas. /
Télefo saciou a ira de duas divindades. / Ulisses teme o poderio
de Netuno. / Também me acompanha, / pelas terras e pelas
planícies do encanecido Nereu, / a intensa ira de Priapo do
Helesponto (PETRONIO, 2008, p. 210).
6
“L’hipothèse la plus vraisemblable et la plus genéralement adoptée est celle qui l’assimile au personage
consulaire, contemporain et familier de Néron (...)”.
7
“Pétrone a-t-il voulu faire une parodie des romans d’amour grecs? (…) Ces théses ont été soutenues et
combattues avec une égale ardeur, sans que cette lutte érudite ait abouti à nous apporter une certitude”.
7
Em linhas gerais, o romance conta com vários episódios, nos quais três
jovens, Encolpius, Ascyltus e Giton, passam por aventuras em diversos cenários
como albergues, prostíbulos, etc.
Os episódios escolhidos para serem tratados nessa comunicação são dois: o
primeiro trata da sacerdotisa Quartilla e os rituais priápicos que ela executa; o
outro trata da restituição da virilidade de Encolpius por outra sacerdotisa priápica,
Enotéia. Esse episódio tem início no capítulo 16 e termina no capítulo 26. Trata-se
de um ritual pelo qual passam os três jovens no início do romance, depois de
‘violarem’ o santuário no qual era feito um ritual em honra ao deus.
Daí em diante, os três sofrem todos os vários tipos de violência, inclusive e
principalmente sexual. O episódio é comandado por Quartilla, uma sacerdotisa
priápica que indica quais os castigos que devem ser efetuados nos jovens por
mulheres (uma escrava chamada Psique e uma menina) e ‘bichas’ que
participavam do ritual.
No início do episódio a escrava de Quartilla invade o albergue onde se
hospedavam os três jovens e afirma:
(...) eu sou escrava de Quartilla, cujos rituais sagrados vocês
perturbaram diante da gruta. Pois ela mesma vem e este albergue
e pede licença para falar com vocês. Não se embaracem. Ela nem
os acusa pelo seu erro, nem deseja puni-los. Na verdade, está
admirada: que deus terá trazido jovens tão elegantes a estas
vizinhanças? (PETRONIO, 2008, p. 29).
Depois entra Quartilla e mostrando-se descontrolada afirma que os jovens
cometeram um crime e devem pagar por isso.
Quando se inicia o ritual propriamente dito, a escrava de Quartilla, Psique,
começa a excitar Encolpius, o narrador: “A escrava, que se chamava Psique,
prontamente estendeu uma pequena lona no chão. Ela procurou minhas partes, já
frias de mil mortes” (PETRONIO, 2008, p. 33).
A seguir, a escrava amarrou os jovens. Encólpio tomou um líquido
chamado por elas de satírio (satyrii).
8
Os jovens são levados para outro lugar para que o ritual continue. A essa
altura, os jovens já estavam totalmente impossibilitados de reagir aos caprichos
das mulheres. A partir daí entram em cena também algumas ‘bichas’ que
provocam torturas sexuais nos jovens:
No fim, ainda por cima veio uma bicha enrolada com uma manta
de pelúcia verde-escura, erguida até a cintura...Ora ela nos batia
com a bunda bamboleante, ora nos dava nojo, com os beijos mais
fedorentos, até que Quartilla, segurando uma verga de baleia, e
também com as roupas erguidas até a cintura, mandou libertar
aqueles infelizes (PETRONIO, 2008, p. 34-35).
Possivelmente Encolpius e Ascyltus participam de um rito em honra a
Priapo tendo papel relevante (PETRONIO, 2008, p. 35).
A seguir entram massagistas e recuperam os jovens com banhos de óleo.
Serve-se vinho e todos caem no sono. Foi quando dois sírios entraram para roubar
algumas garrafas e acabaram acordando a todos, o que fez com que recomeçassem
as torturas. Depois de mais algumas cenas de tortura, Quartilla decidiu que
deveriam promover o casamento de Paníquis com Gitão.
Esse fato deixou o narrador bastante surpreso e assustado, pois a menina
tinha idade próxima de sete anos. O narrador diz:
Imediatamente trouxeram uma menina muito bonita e que parecia
ter não mais de sete anos, a mesma que viera antes ao nosso
quarto, na companhia de Quartilla. Todos aplaudiram e apoiaram
as núpcias. Eu fiquei pasmo: nem Gitão- afirmei-, garoto
extremamente recatado, seria capaz de agüentar tal desatino, nem
a garota estava na idade de poder prestar-se ao papel atribuído a
uma mulher (PETRONIO, 2008, p. 39).
Após o casamento e o momento em que o casal vai para o leito acaba o
episódio, pelo menos as partes que nos sobraram dele.
Um primeiro ponto a ser tratado a respeito desse episódio é o ato do
sacerdócio priápico representado por Petrônio como feminino. A esse respeito
sabe-se que a mulher não tinha papel de destaque nos cultos públicos, na religião
oficial do Estado romano.
9
Como afirma Scheid, “(...) as mulheres eram ou excluídas da vida religiosa
pública ou privada, ou rejeitadas para os seus aspectos ‘outros’ e para as margens
(...) e quando detinham responsabilidades religiosas, exerciam-nas de noite, à
porta fechada, ou em santuários suburbanos” (SCHEID, 1990, p. 488).
A opinião pública era de que a mulher era incapaz de uma prática racional
e razoável da religião, de qualquer religião (SCHEID, 1990, p. 493). Importante
observação também é de que os papéis religiosos das mulheres eram apenas um
corolário da sua situação na sociedade (SCHEID, 1990, p. 501).
Portanto, a chegada dos cultos estrangeiros trouxe algumas mudanças na
situação feminina no período. Outras fontes atestam a mesma idéia, de que Priapo
era cultuado por mulheres.
Dentre essas fontes pode-se citar o Segundo Mitógrafo do Vaticano que
afirma: “Priapo é servidor de Líber pai [Baco] e deus da libido. Daí dizer-se que
auxilia os rituais dele, pois sem ‘Ceres e Líber Vênus congela-se’. Alguns dizem
que Priapo é Adônis, filho de Vênus, que é adorado pelas mulheres” (OLIVA
NETO, 2006, p. 69).
Outras fontes vão além e colocam o deus como sendo objeto de veneração
de prostitutas e proxenetas como na Historia de Apolônio de autor anônimo:
(...) a jovem é entregue ao proxeneta, o dinheiro é contado, ele a
leva ao prostíbulo, a introduz no saguão, onde havia um Priapo de
ouro, engastado de pedras preciosas, e lhe diz: ’Társia, venera um
deus potentíssimo’. A jovem pergunta: ‘senhor, então és de
Lâmpsaco?’ o proxeneta diz: ‘Por quê?’. A jovem responde:
‘porque os cidadãos de Lâmpsaco cultuam Priapo’. Ao que o
proxeneta replica: ‘ignoras, infeliz, que vieste parar na casa de um
proxeneta e, ainda por cima, avarento?’. A jovem, ouvindo isto,
tremeu com todo o corpo e, prostrada a seus pés, disse: ‘tem
piedade, senhor, preserva minha virgindade! E, peço, não queiras
prostituir este corpo a título tão torpe’ (OLIVA NETO, 2006, p. 73).
Na Priapea Latina acontece algo parecido. Vale ressaltar que a
Priapéia Latina é um conjunto de poemas cujo gênero de composição é chamado
priapéia, geralmente escrito em forma de epigrama, compostos entre o fim do
século I a.C e o fim do século Id.C que tem autoria muito possivelmente múltipla e
10
desconhecida (OLIVA NETO, 2006, p.96). No poema 40 desse conjunto tem-se o
seguinte:
Primeira entre as meninas de Subura, creio,
Teletusa deixou aquela vida.
Pura, envolve em teu pênis coroas douradas:
as putas o reputam deus supremo (OLIVA NETO, 2006, p. 227)
A partir daí é possível fazer alguns comentários iniciais a respeito da
caracterização que Petrônio fez das sacerdotisas do deus.
Quartilla é bastante autoritária e violenta como afirma Aquati (1997 p. 175)
o que contraria a visão tradicional de mulheres participantes da religião como as
vestais por exemplo, que deveriam ter muitos atributos e virtudes específicas que
diferem enormemente aos mandos e desmandos de Quartilla.
Petrônio, muito possivelmente homem da corte de Nero, descreve então
uma sacerdotisa fora dos parâmetros romanos aceitos até então.
Os rituais presentes no episódio também são bastante diversos dos ritos
oficiais. Concorda-se com Aquati: “os rituais são descritos em termos grotescos”
(1997, p. 176). Os rituais são representados como extremamente violentos.
Ainda segundo Aquati, o episódio é composto por violência, agressividade,
medo, exagero, extravagância, coprologia, promiscuidade, tortura, violação
corporal entre outros aspectos (1997, p. 178).
Sobre os instrumentos dos rituais, pode-se fazer uma observação: dois
objetos a que Petrônio faz referência no episódio, entre eles a verga, utilizada por
Quartilla e os címbalos são usados em rituais a outros deuses também, dentre eles
a deusa Cibele, que se caracteriza também por ser de origem frígia e ter adentrado
a civilização romana em 204 a.C.
Em outro episódio, já na cidade de Crotona, no fim do romance, há a
representação de outra sacerdotisa priápica que busca restabelecer a virilidade de
Encolpius, que foi perdida ao tentar relações com a bela Circe. O episódio tem
início aproximadamente no capítulo 134 e termina no 138.
11
Trata-se de Enótia ou Enotéia uma outra sacerdotisa priápica criada por
Petrônio no episódio em que os personagens estão na cidade de Crotona. Depois
de muitas tentativas de restabelecimento de sua virilidade, Encolpius é levado por
Proselenos, depois de surrá-lo, ao santuário que morava Enotéia, a sacerdotisa do
deus Priapo.
Proselenos fala a Enotéia:
Ó, Enotéia – disse ela-, esse adolescente que você está vendo
nasceu sem estrela; na verdade não pode vender seus talentos nem
a um menino nem a uma menina. Você nunca viu um homem tão
infeliz: o que ele tem é uma correia na água, não um sexo. Em
suma, o que ele tem é uma correia na água, não um sexo. Em
suma, o que você acha que alguém que se levantou da cama de
Circe sem experimentar o gozo?
Depois de ouvir essas coisas, Enotéia sentou-se entre nós, fazendo
um demorado movimento de cabeça:
- Essa doença – disse ela-, sou a única que sei curar. E para que não
pensem que eu estou agindo que nem maluca, peço para que o teu
jovenzinho durma uma noite comigo: ora, se eu não devolverei
aquilo tão duro quanto um chifre...” (PETRONIO, 2008, p. 200).
No caso dessa sacerdotisa, a caracterização é dada em grande medida pelo
ambiente em que ela vive. O narrador o descreve dando mostras de que aquele
ambiente era nojento e imundo. Ele descreve da seguinte maneira a preparação
para os ritos:
Enotéia colocou uma velha mesa no meio do altar, cobriu-a de
brasas vivas e consertou com resina quente uma vasilha já gasta
pelo tempo. Então tornou a fincar na parede marcada pelo fumo
um prego em que estivera pendurada a vasilha de madeira, e que
viera junto quando ela a puxara. Em seguida, envolta num avental
quadrado pôs um enorme caldeirão no fogo e, ao mesmo tempo,
com um gancho, tirou do armário que usava para guardar carne
um saco no qual ficava a fava para o consumo, e uma velhíssima
cabeça de porco, cortada por mil talhos. Então soltou o laço do
saco, espalhou parte dos feijões sobre a mesa e mandou-me
escolher com esmero. Obedeci a essa ordem, e com cuidado
separei com a mão os grãos cobertos por uma casca absolutamente
imunda. Mais ela, acusando-me de preguiçoso, apanhou os grãos
estragados, e descascou as sementes com os dentes de maneira
12
uniforme, cuspindo as cascas no chão, onde ficaram parecendo
moscas (PETRONIO, 2008, p. 201-202).
A seguir, Encolpius caracteriza a sacerdotisa como velha e a cena que se
segue é cômica devido ao desastre da sacerdotisa no decorrer das suas ações: “(...)
devolvia ao armário a meia cabeça com idade praticamente igual à sua, quebrouse a cadeira apodrecida em que subira para ficar mais alta, e a velha, com o peso
que tinha, foi arremessada ao fogo” (PETRONIO, 2008, p. 202-203).
No decorrer do episódio, o personagem, depois de atacado por três gansos
sagrados da sacerdotisa mata-os. É nesse ponto que vem uma das características
do caráter de Enotéia mais marcantes. A velha ao saber do acontecido fica furiosa,
no entanto, após Encolpius ter oferecido moedas de ouro para se desculpar, a
sacerdotisa aceita e se mostra bastante conformada: “- Esquece rapaz, estou
preocupada por tua causa: isso é uma prova de amor, não de maldade. Assim,
daremos um jeito de ninguém saber. Você apenas peça aos deuses que eles
perdoem você” (PETRONIO, 2008, p. 205).
A partir daí, Enotéia inicia os ritos. Ela utiliza vinho, e o bebe puro, utiliza
também algumas formas de previsão com vinho e avelãs, no qual o narrador
afirma não acreditar. Enotéia abre o ganso e pelo fígado do bicho diz o futuro a
Encolpius.
Por fim, com um falo de couro inicia uma série de torturas sexuais com o
jovem até que ele consegue fugir do templo.
Como afirma Aquati (1997, p. 360):
Numa avaliação acerca da presença e do papel do grotesco nesta
parte do episódio de Circe, é preciso pensar nas incongruências
que nela se juntam: sacerdotisas que se arrogam grande poder,
mas que nada podem e vivem em antros miseráveis e em ínfimas
condições; o favorecimento da prática do amor por meio da
violência e de rituais inversivos; eventos humorísticos em meio a
uma desesperante situação de Encólpio; os mais baixos traços o
submundo romano, seja na cultura material quanto na
religiosidade charlatona em que medram — mostra-se novamente
— a hipocrisia e a contradição.
13
Enotéia e seus rituais são desqualificados. Em primeiro lugar, a sacerdotisa
é velha. Esse fato não era comum aos romanos já que as sacerdotisas públicas,
como as vestais ou as flamínias, deveriam ser jovens.
Nesse caso, novamente como em Quartilla, a sacerdotisa não guarda as
virtudes necessárias ao cargo que ocupa. Pelo contrário, é caracterizada pela falta
de virtudes como no momento em que aceita dinheiro, as moedas de ouro, pela
morte dos gansos. Ou ainda, pelo fato de tomar vinho puro, o que era fortemente
proibido às mulheres romanas.
Os elementos que utiliza em seus ritos também são desqualificados pelo
narrador: cabeça de porco velha, feijões imundos e grãos estrados, segurelha
velha, entre outros. E nesse episódio prevalece também a tortura sexual.
Nesse sentido, desenha-se o perfil de outra sacerdotisa nada convencional
se comparada aos cultos públicos comandados pelo Estado romano.
Em meio às críticas direcionadas a vários setores da sociedade romana do
período é possível estabelecer que nos dois episódios brevemente comentados a
religião romana está posta em xeque. Mas qual religião romana? Já que existiu
uma religião pública oficial e vários tipos de crenças e religiosidades à parte
presentes no Império.
Segundo Aquati: “A questão da exposição da hipocrisia relacionada à
religião e à moral liga-se à pintura de um quadro em que a religião se encontra
entregue aos mais desprezíveis grupos da sociedade” (1997, p. 169)
No entanto, mais do que a religião romana como um todo, a crítica parece
direcionada a religião presente em Roma que tinha origem estrangeira. No caso, os
cultos priápicos, ou ainda, pode-se pensar que a crítica está direcionada também
às mulheres que comandavam e executavam os ritos priápicos.
Mal visto pelo Estado romano, os cultos orientais eram alvo de críticas
ainda naquele momento pelas diferenças que guardavam em relação à
religiosidade presente na Roma do mos maiorum, pelos novos elementos que
traziam.
Petrônio, como um homem muito possivelmente relacionado com a corte
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neroniana, pinta a visão de uma parcela da sociedade quando representa em seu
livro elementos da realidade do primeiro século de forma exagerada. Como afirma
Faversani (1995, p.34):
Petrônio tomou a realidade como fonte de motivos para criar sua
trama. (...) para constituir seus personagens e situações (...) tomouos do universo que o circundava. (...) Concentrou, exagerou,
omitiu, rearranjou, justapôs elementos existentes em diversos
personagens e situações tipificados, mas não necessariamente
típicos, para construir os elementos que entram em cena no
romance. Petrônio recriou, remoldou e ironizou os elementos
tomados à realidade.
Nesse caso, o Satyricon permanece como fonte proveitosa para os estudos
da sociedade romana e das concepções religiosas presentes no primeiro século.
Perceber onde estão as ironias, os exageros, os rearranjos, as omissões na obra de
Petrônio continuam sendo um grande desafio.
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