\ CONQUISTA, A ESPANHA ROMANA: COLONIZAÇÃO E DESAGREGAÇÃO MARCOS CÉSAR BORGES DA SILVEIRA* Este artigo enfoca a trajetória histórica da Espanha Romana. Neste sentido, abordamos as causas políticas e econômicas que motivaram a conquista romana da Península Ibérica, o processo de colonização levado a cabo pelo conquistador romano, com ênfase na generalização do modo de produção escravista e das instituições políticas e culturais romanas sobre os povos e o território conquistado. Por outro lado, procuramos delinear, ainda que em linhas gerais, a desagregação da sociedade hispano-romana, processo este transcorrido no contexto da crise final do Império Romano do Ocidente. PALAVRAS-CHAVE: Espanha Romana; conquista; colonização. Para Blasquez (1975), a expansão romana sobre a Península Ibérica correspondeu aos imperativos da 11 Guerra Púnica. Tal acontecimento, transcorrido no final do século 111 a.C., transformou a Península Ibérica em palco de um conflito de grande amplitude histórica, envolvendo Roma e Cartago, as duas grandes potências coloniais da época. A necessidade de cortar o suprimento logístico dos cartagineses, que a essa altura ameaçavam chegar à própria Roma, determinou o desembarque das forças romanas em Ampúrias (218 a.C.), litoral norte mediterrâneo da península. Os romanos, apoiados por vários povos da região ibérica, derrotaram os cartagineses e passaram a dominar o litoral mediterrâneo. Por volta de 195 a.C., os conquistadores começaram o avanço sobre o interior da Península. A resistência promovida por vários povos nativos e o interesse menor de Roma sobre a Península, se comparados ao Mediterrâneo Oriental, explicam o largo período que os romanos levaram para encerrar as conquistas territoriais hispânicas, isto já durante o final do século I a.C. Numa perspectiva que procura transcender os limites da história política, sustentamos que a anexação da Península Ibérica aos domínios de Roma correspondeu a um desdobramento lógico da evolução do modo de Produção escravista durante a fase romana. Até o século IV, a economia romana esteve assentada sobre o modo de produção escravista, cujo surgimento, desenvolvimento e reprodução esteve vinculado à expansão colonial praticada de forma mais ou menos * Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG. Mestre em História - UNISINOS. BIBLQS, Rio Grande, 13: 19·31,2001. 19 1111 contínua. Tal expansão garantia as terras e principalmente a força-detrabalho necessária à economia romana. A reposição do exército de trabalhadores sujeitos ao trabalho compulsório constituía a principal tarefa do estado militar romano, uma notável estrutura de poder aparelhada para atender aos interesses do latifúndio escravista. Segundo Perry Anderson, A via típica da expansão na Antigüidade, em qualquer fase dada, era por isso sempre um avanço "lateral" (conquista geográfica), não econômico. A civilização clássica foi, por conseguinte, de caráter intrinsecamente colonial: a cidade-estado celular reproduzia-se invariavelmente, nas fases de ascensão, pelo povoamento e pela guerra. A pilhagem, o tributo e os escravos eram os objetos centrais do engrandecimento, há um tempo meios e fins da expansão colonial. O poder militar estava mais estreitamente ligado ao crescimento econômico do que talvez em qualquer outro modo de produção, antes ou depois, porque a principal fonte do trabalho escravo eram normalmente os prisioneiros de guerra capturados, enquanto o recrutamento de tropas urbanas livres para a guerra dependia da manutenção da produção doméstica por meio de escravos; os campos de batalha forneciam a força humana para os campos de cereal, e vice-versa, os trabalhadores cativos permitiam a criação de exércitos de cidadãos (Anderson, 1984). Na Península Ibérica, as campanhas militares contra os cartagineses e depois as guerras coloniais no interior do território ofereceram à classe de proprietários um considerável estoque de escravos, que eram utilizados na agricultura, na extração de metais preciosos e nas atividades industriais desenvolvidas na própria Península. Na Hispânia, como nas demais regiões do mundo antigo onde vigorou o modo de produção escravista, o trabalho escravo aparece vinculado às atividades econômicas mais dinâmicas, com destaque para a agricultura e a mineração. No caso da Espanha Romana, suas exportações eram destinadas aos mercados do Mediterrâneo Ocidental, principalmente Roma e outros centros itálicos, e com destaque menor apareciam os mercados do norte da África e também das Gálias. Um ponto significativo no processo de anexação da Península Ibérica ao Império Romano diz respeito à resistência promovida por vários grupos nativos à ofensiva romana. Neste sentido, lusitanos, celtiberos, galaicos, cântabros, entre outros, sustentaram uma resistência armada contra os conquistadores durante um largo período de tempo. Estas lutas estenderam-se por quase duzentos anos, aproximadamente entre 180 a.C., quando começa a expansão romana sobre a região celtibera, até a conquista do litoral cantábrico em 24 a.C. Desde os primeiros contatos com as potências mediterrâneas, os povos da área celta e celtibera - que grosso modo, abrangia o norte, oeste e centro do território peninsular - constituíram-se em fornecedores de mercenários para os exércitos púnicos, gregos e mesmo romanos. Era fato comum a presença de mercenários hispânicos nos exércitos gregos e 20 BIBLOS, Rio Grande, 13: 19-31,2001. cartagineses já no século VI a.C. De acordo com um pesquisador, La existencia de estas mercenarios, durante más de 300 anos, en cantidades considerables cada vez que había ocasión para ello, indica una masa de hombres dispuestos a ganarse Ia vida ai margen de Ias propias estructuras sociales. Podemos sospechar que alguna causa les empujaba a tomar Ia guerra como profesión. Y resulta perfectamente lícito relacionar este fenómeno con otro también conocido a través de múltiples, referencias: el bandolerismo [...] (Tarradell, 1977, p. 119). Segundo Blasquez (1975) e Tarradell (1977), tanto o bandoleirismo difundido entre os povos do interior do território peninsular como a presença de mercenários hispânicos em vários exércitos explicam-se devido à incidência de constrangimentos de caráter econômico e social sobre as populações hispânicas. As desigualdades sociais que afetavam os povos do interior peninsular constituíram as causas responsáveis pela instituição e generalização da rapinagem e das atividades guerreiras entre os antigos hispânicos. Para significativas parcelas sociais, excluídas do acesso à terra e seus frutos, restava a guerra e o bandoleirismo como forma de assegurar a manutenção de suas vidas. Daí entende-se o desenvolvimento de uma notável cultura guerreira entre os povos da Hispânia. Segundo fontes antigas, o nativo, além de bandoleiro, constituía um soldado extremamente adaptado à vida militar. Para Lívio, que visitou a península na época de Catão, os hispânicos constituíam um "pueblo feroz, que pensa que Ia vida sin armas no es digna de ser vivida" (Lívio, apud Blasquez, 1974, p. 96). O sucesso da colonização romana dependia do controle sobre os povos e as riquezas da Península. Tal controle não se esgotava apenas nas áreas sujeitas ao domínio de Roma, mas ia além, exigindo dos conquistadores a pacificação dos grupos oriundos do interior peninsular. Principalmente porque tais grupos realizavam incursões sobre as regiões peninsulares mais prósperas, inclusive as já submetidas a Roma. A ação romana, praticada nos moldes de uma polícia colonial, visava inibir as razias realizadas por bandos armados, provenientes das regiões mais pobres e ainda não sujeitas ao domínio romano, sobre as populações mais prósperas do litoral leste e sul peninsular. A prática da rapinagem, reauzada por vários grupos hispânicos, não escapou às observações de varios cronistas do mundo antigo. Nas palavras de um deles, Existe una costumbre muy propia de los iberos, principalmente de los lusitanos, y es que cuando alcanzan Ia edad adulta, aquellos que están más apurados de recursos, pero sobresalen por el vigor de sus cuerpos y su denuedo, proveyéndose de valor, y de armas, se reúnen en Ias asperezas de los montes; allí forman bandas numerosas que recurren Iberia, acumulando riquezas con el robo y ello 10 hacen con el más completo desprecio de todo (Posidonio apud Tarradell, 1977, p. 119). BIBLOS, Rio Grande, 13: 19-31,2001. __•.• 0 .8C'S~ 21 I I! Neste contexto, resistir ao conquistador romano apresentava-se como um desdobramento necessário frente à instauração de uma ordem social que ameaçava o modo de vida de vários grupos nativos, sobretudo aqueles que, premidos pela carência de recursos, tinham nas razias periódicas uma forma de garantir a sua reprodução enquanto grupo social. Assim, povos com uma longa trajetória histórica, na qual as atividades mercenárias e bandoleiras tinham seu lugar, entraram em choque com uma das frentes da expansão romana. Por outro lado, a experiência adquirida com as razias proporcionava aos nativos os meios necessários para desenvolver uma guerra de guerrilhas contra Roma. Neste sentido, o ambiente peninsular, onde não faltavam florestas densas e territórios montanhosos, facilitava as incursões realizadas por bandos armados contra as forças romanas. Para os romanos, além da "pacificação" da península, momento necessário para viabilizar a exploração do território, pesava também o interesse sobre as reservas metalíferas do interior. Desde a Idade do Bronze já era conhecido o potencial metalífero da Península Ibérica, tanto de metais preciosos, o ouro e a prata, como também os chamados metais industriais, como o ferro e o cobre. De acordo com Rostovtzeff (1961), foram as ricas reservas de metais, a capacidade cerealífera da terra e o potencial guerreiro dos povos peninsulares que levaram os cartagineses a aumentarem suas possessões na Espanha com vistas a transformar a península numa base em sua luta contra Roma. O fato de a Espanha ter sido uma terra extraordinariamente rica em metais preciosos e industriais, segundo os padrões antigos, contribuiu para o avanço das legiões romanas sobre o interior peninsular. Ademais, tal avanço foi seguido de perto por uma significativa migração de romanos e itálicos para a Hispânia. Segundo Blasquez (1975), Hispânia foi o distrito mineiro romano mais rico até o Principado, bem como o primeiro a ser explorado de forma sistemática. A riqueza mineral desta província explica a intensa colonização a que foi submetida durante o período republicano, inclusive a notável difusão do padrão de sociabilidade e a cultura romana no litoral mediterrâneo e no sul peninsular. A importância econômica da Hispânia para Roma pode ser percebida concretamente na presença militar romana nas regiões metalíferas da península. Nestas áreas evidenciava-se a necessidade de o Estado controlar de perto as minas, evitando assim a evasão fiscal: "Muctios autores opinan que Ia presencia en legio (Léon) de Ia única legión de guarnición permanente en Hispania - Ia legio X Gemina Felix - se explica precisamente porque el Estado quería asegurar Ia zona dei oro contra cualquier posible contingencia (Tarradell, 1977, p. 153). 22 BIBLOS, Rio Grande, 13: 19'31, 2001. As áreas da Península Ibérica conquistadas e ocupadas pelos romanos corresponderam à quase totalidade do território oenmsuiar, porém nos territórios montanhosos localizados ao norte da península algumas tribos notabilizaram-se pela resistência, de modo que foi menor a influência romana nesta região. Tampouco a absorção dos nativos pelo mundo romano pode ser estendida a todas as áreas conquistadas. A romanização da península correspondeu principalmente às áreas urbanizadas e àquelas de agricultura de exportação. À margem destas cidades e das áreas rurais caracterizadas pela presença das vil/as, a organização social arcaica sofreu um longo processo de desgaste e somente aos poucos passou a assimilar instituições e práticas culturais romanas, todavia mantendo sempre um forte conteúdo residual, oriundo das antigas formas sociais e estoques culturais anteriores à presença romana. Esta realidade é marcante nas regiões noroeste e norte da península. Nestas áreas os nativos encontravam-se num processo de romanização muito mais lento, se comparado a outras regiões peninsulares. No início do Principado, os povos localizados no norte peninsular, afastados do litoral mediterrâneo, davam seus primeiros sinais de romanização, geralmente sinais externos e de importância reduzida como o uso de toga e a adoção de alguns hábitos romanos. A agricultura e a exploração das reservas minerais eram as principais fontes de riqueza da Hispânia. Estas atividades econômicas estavam nas mãos de nativos romanizados e de imigrantes romanos e itálicos. Estes agentes formavam uma classe de proprietários que vivia nas cidades litorâneas ou bem-servidas de vias fluviais. A proximidade com o mar era importante porque garantia a articulação da produção hispânica aos mercados mediterrâneos. A colonização romana da Península Ibérica modificou as antigas relações de produção e trabalho. Tal ruptura pode ser percebida na nova relação cidade/campo que passou a vigorar na península. O antigo modo de vida aldeão passou a sofrer um progressivo desgaste até reduzir-se a um fenômeno residual próprio de áreas localizadas à margem da colonização romana. A nova unidade produtiva no campo era a vil/a romana. Nestas propriedades efetivava-se uma agricultura de exportação voltada para os mercados do mundo antigo, com destaque para os produtos ligados à chamada tríade mediterrânea (oliva, vinhas e cereais). A produção rural encontrava seu contraponto na vida urbana. Na ~enínsula Ibérica, seguia-se o ideal romano, que consistia em ser cidadão, Isto é, viver na cidade, embora as bases do poder e as riquezas estivessem no campo. O vínculo que ligava o produtor rural imediato ao apropriado r urbano do seu produto era o ato universal e comercial da compra de mercadorias realizada nas cidades, onde o tráfico escravo tinha seus próprios mercados (Anderson, 1984). BlBLOS, Rio Grande, 13: 19.31,2001. ?~ A generalização da urbanização acompanhou de perto as mudanças que incidiram sobre o campo com a colonização romana. Antes do advento do domínio romano, eram poucas as cidades que podiam realmente receber este nome. Com exceção de algumas colônias gregas, como Rodes e Ampúrias, ao norte, e cidades fenícias e/ou fenício-púnicas, como Gadir e Cartago Nova ao sul, o que existia era um sem-número de aldeias, embora algumas bem povoadas. Cidades como Córdoba, Sevilha, Barcelona e Lisboa, para citar apenas algumas bem conhecidas, são produtos da colonização romana. Além do surgimento de colônias romanas e municípios de direito romano ou latino, o processo de urbanização da Hispânia incidiu sobre antigos centros nativos que se converteram em cidades com estrutura e estilo urbanístico romano, inclusive contando com acréscimo populacional. Novas cidades surgiram do deslocamento e acomodação dos povos subjugados por Roma. Antigas aldeias, fortificadas e estabelecidas nos altos dos montes, foram abandonadas, dando lugar a cidades abertas em terrenos baixos. Em alguns casos, populações inteiras foram transplantadas para sítios distantes de seus antigos territórios. O extraordinário florescimento urbano na Península só pode ser explicado com a introdução e generalização do modo de produção escravista no território ibérico. No período em tela, a escravatura era a mola econômica que ligava a cidade e o campo, e isto sempre em benefício da cidade (Anderson, 1984). Nas cidades romanizadas, os eqüestres e decuriões - categorias sociais imediatamente abaixo dos senadores - constituíam uma oligarquia capaz de reproduzir-se enquanto classe dominante graças à exploração das minas e da agricultura com base no trabalho escravo. A opulência de alguns centros urbanos denotava o poder de articulação destes agentes. Durante a chamada época dos Antônios, a suntuosidade de algumas cidades hispânicas expressava bem a riqueza e o poder dos grupos dominantes. Além dos cavaleiros e dos decuriões, os chamados senadores também integravam a classe dominante da sociedade hispano-romana; aliás, os senadores, em matéria de riquezas e propriedades, ocupavam o primeiro plano na topografia social. Os senadores eram aqueles que possuíam grandes fortunas; para fazer parte da ordem era necessário amealhar no mínimo um milhão de sestércios. No entanto, a tendência deste grupo foi apartar-se da vida urbana da província. O hispano-romano que lograva alçar-se ao senado romano passava a concentrar sua vida no centro do Império, inclusive realizando inversões de capitais acumulados na Hispânia em Roma ou na Península Itálica. A referida tendência dos senadores a afastarem-se da vida política e social das cidades hispânicas foi reforçada durante o período denominado Baixo Império. Neste momento conturbado da História Romana e, em especial, de suas províncias ocidentais, o afastamento das cidades significava para os senadores, bem como para as demais frações da classe dominante, manter distância dos impostos abusivos, da direção de cidades em dificuldades econômicas e das ameaças bárbaras. Nas cidades romanizadas as classes dominantes falavam o latim, vestiam togas, cultuavam divindades romanas, apresentavam costumes romanos como o gosto pelo vinho, espetáculos teatrais, circo e lutas de gladiadores, mesmo a arquitetura e a decoração assinalam a integração da península ao mundo romano.' No plano jurídico-político, a romanização da Península Ibérica pode ser acompanhada pela lenta mas progressiva extensão do direito romano ou latino às cidades da Hispânia. No período que se seguiu à conquista, algumas cidades hispânicas do litoral mediterrâneo mantiveram o seu antigo status de aliadas (soch). Outras cidades que apoiaram Roma durante a guerra contra Cartago recebiam o direito latino (ius /atil). Contudo, foi no período das chamadas guerras sociais, principalmente sob César, que muitas cidades hispânicas receberam o referido benefício. Sob o domínio de César também surgiram várias colônias formadas por cidadãos romanos e aliados, principalmente veteranos do exército romano. Esta política foi seguida, embora variando em intensidade, pelos chefes de estado romanos que sucederam o ditador. No entanto, a generalização do direito romano ou latino para a totalidade da Hispânia só completou-se no reinado de Caracalla, já no início do século 111 d.C. No conjunto das classes dominadas destacava-se a plebe rural e urbana. Estes atores sociais não possuíam riquezas, porém gozavam da liberdade formal. Neste amplo segmento encontramos desde o camponês arrendatário até os artesãos organizados em companhias, bem como a maior parte dos libertos. Na base econômica da sociedade, gerando o sobretrabalho que permitia a reprodução das instituições e práticas sociais e a manutenção das classes dominantes estavam os escravos. Assim, do ponto de vista da produção do excedente, a sociedade hispano-romana era escravista, isto é, a produção da riqueza nessa sociedade estava baseada na exploração do trabalho escravo. A atividade mineradora constitui o exemplo mais significativo da escravidão nessa província romana, isto tanto pelo número de escravos empregados, como pelo tratamento dispensado aos cativos. Sabemos que, somente nas minas de Cartago Nova, durante o século I a.C., trabalhavam cerca de 40 mil escravos hispânicos (Políbio apud Blasquez, 1975, p. 159). . A condição do escravo na sociedade hispano-romana não era diferente de outras regiões do mundo antigo onde vigorou o modo de produção escravista. Aliás, as minas espanholas eram famosas em função das péssimas condições de trabalho e do grau de brutalização do trabalhador cativo. 1 24 BIBLOS. Rio Grande, 13: 19.31,2001. A figura do Imperador foi cultuada em Hispânia já a partir do Principado BIBlOS, Rio Grande, de Augusto. 13: 19.31,2001. 25 lt;~:·t\· B,8L1U Biblioteca d~ r;:;.í~r\eh㧠Humanas ·~"'h=~ o status jurídico do escravo não ia além da condição conferida ao animal. Na verdade o escravo era encarado como um animal falante, um instrumentum vocale. Mesmo depois, com a generalização do credo cristão na Península Ibérica - a partir do século IV d.C. - os religiosos encontraram grande dificuldade em diminuir ou abrandar o uso indiscriminado da violência contra os cativos. Os libertos constituem uma categoria social cuja existência decorre diretamente da instituição da escravidão. Tal grupo correspondia aos escravos que conseguiram pagar pela sua liberdade ou por alguma razão receberam a alforria de seus senhores. A existência dos libertos nos permite iluminar melhor aspectos centrais da economia e da sociedade em exame. Os diferentes lugares ocupados pelos libertos na topografia social, inclusive alguns ocupando postos privilegiados, aponta a presença de uma determinada mobilidade social na sociedade hispano-romana. Tal fato nos permite inferir sobre o dinamismo da vida urbana nos principais centros peninsulares, uma vez que atividades como a manufatura, o comércio e as finanças freqüentemente aparecem associadas aos libertos (Finley, 1984, p. 115). De outro lado, o grande número de libertos nos permite perceber de forma concreta a generalização da instituição da escravidão nessa sociedade, fato que, aliás, é sustentado por vários pesquisadores que se dedicam ao estudo da Antigüidade Clássica. Conforme Tarradell (1977), estudos de inscrições em túmulos da época romana permitem avaliar a presença de um número significativo de libertos na sociedade hispano-romana, contingente muito superior ao referente aos homens livres. Isso revela a intensidade da escravidão nessa província romana, afinal maior que o contingente de libertos era o de escravos. Como as fontes sobre os cativos são escassas - grande parte dos escravos não tinham direito a qualquer tipo de registro escrito, nem ao menos uma pedra escrita sobre suas covas -, o estudo da população de libertos torna-se essencial para entendermos a dinâmica da escravidão. Não é demais salientar que o mesmo tipo de análise, a partir dos enterramentos de libertos, serviu para elucidar a generalização da escravidão em Roma. Nesta cidade, numerosas pedras tumulares revelam 26 BIBLOS. Rio Grande. 13: 19·31.2001. m:d!Jf.ªtiâQ c;:; UFPí. uma preponderância de libertos (ex-escravos) sobre (Finley, 1984, p. 127). A organização política nas cidades romanizadas obedecia ao padrão de organização ditado pela cidade-mãe, Roma. Até o Alto Império, o acesso aos principais cargos políticos nas cidades hispânicas era bastante disputado pelas classes dominantes. Eram sobretudo os proprietários de terras que ocupavam os principais cargos públicos nos centros hispano-romanos. A ordem dos eqüestres, geralmente em número de 100, correspondia, em nível local, ao senado romano. A mesma correspondência existia no que se refere à figura do cônsul romano. Neste caso, extraíam-se da ordem dos eqüestres dois cidadãos para cada colônia romana (duumvin) e quatro para cada município (quadrumvin). Os eleitos exerciam suas funções na alta administração da cidade, controlavam os censos e, é claro, os impostos destinados a Roma. Mesmo os cargos medianos e religiosos guardavam correspondência com a organização política de Roma. Assim como em Roma, a participação política e a concorrência para ocupar cargos de prestígio e poder ocupava boa parte da vida das classes dominantes hispânicas. Nas cidades romanizadas da Hispânia os candidatos a cargos públicos ofereciam obras e espetáculos para os cidadãos em troca de votos. Assim, a vida política e a cultura do espetáculo também tiveram destaque nas cidades hispano-romanas; atrações como festivais de circo e lutas de gladiadores eram promovidas pelas elites urbanas com o fito de receberem apoio político e os votos de seus concidadãos. Esta organização societal mantém-se até o século 111 d.C., quando a Península sofre de modo intenso a crise política, social e econômica que afeta todo o Império Romano. Da chamada anarquia militar passa-se às invasões bárbaras, quando várias levas de povos germanos penetram de norte a sul da península, promovendo destruição e desorganizando ainda mais a sociedade hispano-romana. Francos e alamanos saqueiam cidades e áreas rurais menos protegidas da Península. Nesta conjuntura, muitas cidades são abandonadas, e os grupos ligados ao comércio de exportação acabam sendo os grandes perdedores. Os senadores reforçam a sua tendência ao afastamento da vida urbana e retiram-se definitivamente para seus latifúndios (fundI), nos quais procuravam imprimir um novo modo de vida, caracterizado pela busca de auto-suficiência. Um processo análogo ocorreu com os cavaleiros e decuriões, que abandonam suas antigas atividades e passam a constituir senhorios. A relativa recuperação do Império Romano é assinalada tanto pela expulsão dos bárbaros para além do limes romano, como por uma reestruturação interna do Império. Tal rearranjo incidiu sobre o mundo romano em todos o seu âmbito político, econômico, social e cultural. Abre-se assim ~ma nova fase histórica no Ocidente, o chamado Baixo Império Romano, cuja Importância está no fato de prefigurar em vários aspectos a Idade Média. Los trabajadores de Ias minas hacen ricos a sus duefíos, porque los rendimientos rebasan el límite de 10 creíble. Los mineros, bajo tierra, en Ias galerías día y noche van consumiéndose y muchos mueren por Ia excesiva dureza dei trabajo. No tienen casi ni respiro ni descanso en sus trabajos, sino que los capataces, a fuerza de golpes, les obligan a aguantar sus males, y así no vale nada su vida, que pierden en condiciones tan miserables. Algunos, por su vigor corporal y fortaleza de ánimo, soportan sus padecimientos largo tiempo, pues es preferible Ia muerte a vivir, dada tan miserable situación (Diodoro, apud Blasquez e Tovar, 1974). I (fi h BIBLOS. Rio Grande. 13: 19·31.2001. 27 Em nível político-administrativo, merece destaque a divisão do Império em duas grandes áreas, o Oriente e o Ocidente, que passaram a ser governados com chefes diferentes. Outra medida digna de nota diz respeito ao aumento da máquina burocrática e militar em virtude da ameaça dos bárbaros sobre as fronteiras do Império. t O reforço da presença militar romana nos limites do Império exiqiu uma maior arrecadação por parte do Estado junto aos seus súditos. O aumento das tropas nas fronteiras do Império levou o Estado Romano a impor uma política fiscal severa, cujo resultado foi o empobrecimento da sociedade e a evasão de recursos. A cidade, que havia sido a expressão máxima da grandeza e prosperidade do mundo romano, não se recuperou após as invasões do século 111 d.e. Na Península Ibérica, muitas cidades destruídas pelas razias bárbaras foram abandonadas, e as que foram reconstruídas não voltaram a ter a mesma importância econômica. Dentre as cidades que resistiram à destruição, a redução dos sítios urbanos expressou bem a crise que incidiu sobre a cidade hispano-romana. Antigas áreas urbanas foram abandonadas, surgiram muralhas onde antes eram bairros movimentados. Foi o fim da cidade aberta, sinônimo de segurança que marcou o mundo antigo em sua fase de esplendor e pujança. Não se trata apenas de uma cidade encerrada por um esquema defensivo que obedece a necessidades de tipo militar, mas a própria vida urbana, antes tão cara às elites, não exerceu mais qualquer atração sobre as classes dominantes. O peso dos impostos e a insegurança da época obrigam ricos e pobres a fugirem para o campo. Os grandes proprietários preferiam viver junto às suas terras, onde mantinham seus próprios efetivos militares. Nas suas propriedades, receberam pessoas que abandonaram as cidades, bem como pequenos proprietários que entregaram suas terras em troca de proteção. [...) Ia gran densidad de pequenas casas de campo de los siglos I ai III abandonadas a partir de esta fecha, se sustituye una villa única, que debía englobar Ias tierras de todas [...) Ias desaparecidas. Es el caso de Ia zona de Villar dei Arzobispo, en Ia parte central dei País Valenciano. En Ias regiones donde el latifundismo ya tenía una larga tradición, como Castilla o Andalucía, el paso ai nuevo sistema comportó menos cambias de distribución de tierras, pero el esquema es paralelo (Tarradell, 1977, p. 167). A crise iniciada no século 111 d.e. e agravada pela política fiscal do Estado Romano nos períodos subseqüentes afetou sobremaneira o comércio de exportação, que entrou em colapso e ficou reduzido aos pequenos mercados de tipo local e comarcal. A queda da produção para exportação leva ao abandono do trabalho escravo, que já vinha em crise desde a "Pex de Augusto". o resultado foi o reforço do processo de ruralização da Hispânia, aliás, tendência comum a todo o Ocidente. 28 BIBlOS. Rio Grande, 13: 19.31,2001. À medida que a economia de exportação demonstrava sinais de cansaço, a instituição da escravidão sofreu um progressivo enfraquecimento, que, em contrapartida, redundou num aumento substancial do colonato. Alguns autores enfatizam o papel do cristianismo no declínio da escravidão na Antigüidade, o que costuma ser rebatido por outros pesquisadores do tema (Finley, 1984, Ohlweiler, 1990). Na Espanha, existem indícios sobre a presença de "Igrejas" (comunidades cristãs) desde as primeiras décadas que se seguiram à morte de Jesus Cristo, porém a transformação do credo cristão em religião dominante só ocorreu a partir do século IV d.e. É nesse momento que a ideologia cristã e a ação dos religiosos deve ter favorecido a transição do sistema de escravidão para o colonato. No entanto, devemos limitar a influência do cristianismo na crise da escravidão no mundo antigo. Sabemos que o cristianismo difundido na península já estava bastante depurado de seu caráter primitivo e revolucionárío". Pelo contrário, o cristianismo que vigorou como religião dominante a partir do século IV d.e. na Península Ibérica estava perfeitamente ajustado aos interesses das classes proprietárias e do Estado Romano. No que se refere à questão da escravidão, as autoridades religiosas limitavam-se a reconhecer a humanidade dos cativos, seu direito à salvação, e censurar os atos de violência por parte dos senhores. A Igreja postulava um relacionamento do tipo moral entre o senhor e o escravo, cabendo ao primeiro comportar-se comedidamente em relação ao cativo e ao segundo aceitar a sua condição de propriedade. Portanto, a Igreja, na medida em que sistematizava as relações senhor-cativo, acabava justificando e endossando a instituição da escravidão. A partir de meados do século 111 d.e., a classe dos terra tenentes passou a constituir-se basicamente por cristãos, enquanto os camponeses permaneceram na sua maioria paqãos". Ao mesmo tempo que os grupos dominantes selavam sua aliança com a Igreja, os pobres livres e escravos evoluíam para uma maior homogeneidade. Ao longo do período aberto com as invasões dos francos e alamanos Ocorreu uma aproximação dos pobres livres com os escravos. Melhorou a situação do escravo com o fim de antigas instituições, como o direito de vida e morte sobre os cativos e o açoite; de outro lado, degradou-se em vários aspectos a situação do camponês livre, que se viu forçado, em troca de segurança, a sujeitar-se ao jugo de um senhor. A explicação destas mudanças deve-se a fatores mais de ordem material do que espiritual. Na verdade a falência da cidade e da pequena 2 A existência de alguns grupos minoritários heréticos, como os priscilianistas, que defendiam uma vida comunitária, sem hierarquias e desigualdades sociais, não altera substancialmente o ~uadro apresentado. A palavra pagão tem sua origem etimológica campo, isto é do pagus. no vocábulo, paganus referente ao habitante do BIBLOS, Rio Grande, 13: 19-31,2001. 29 propriedade assegurou aos grandes proprietários uma oferta de mão-deobra barata e abundante. Um contingente significativo de homens pobres livres do campo e da cidade passaram a depender dos grandes proprietários. Este contingente heterogêneo (artesãos, pequenos proprietários, arrendatários, homens pobres livres e libertos) passou a constituir uma classe camponesa sujeita a um alto grau de exploração. A falência do comércio de exportação e a existência de uma classe produtora circunscrita aos domínios do latifúndio inviabilizaram o tráfico de escravos. Os cativos tornaram-se mais raros e caros, tanto devido às distâncias das regiões "abastecedoras", como às dificuldades de abastecimento criadas pelo caos social. A partir do século IV d.e., a Península Ibérica já não comporta a estrutura social herdada do Alto Império Romano; trata-se de uma sociedade composta basicamente por duas classes, os terratenientes e os campesinos. Esta nova configuração, ao contrário da antiga estrutura social, atinge um caráter geral, abarcando todo o território ibérico. Segundo um pesquisador do tema, "Esta nueva estructura económica y social rígida cubría Ia totalidad de Ia Península Ibérica, como se desprende de Ia aparición de lujosas villae rústicas en todas Ias regiones, e incluso de su abundancia en zonas donde Ia vida urbana no había florecido antes" (Blasquez, 1975, p. 17). Esta estrutura social marcada pela polarização entre ricos proprietários e pobres campesinos revelou-se explosiva com as invasões bárbaras do século V d.e. Nesse momento, conjuntamente com as invasões bárbaras, estouraram levantes de escravos e camponeses em toda a Península Ibérica. As invasões bárbaras, potencializadas pelas revoltas bagaudas, tornaram impossível para as forças romanas o controle do território peninsular. A amplitude dos conflitos e a fraqueza do Estado Romano mergulharam a sociedade hispano-romana num período de anarquia social. Os visigodos emergiram como vencedores de um processo de enfrentamento que durou mais de um século, e envolveu hispânicos, francos, alanos, suevos, vândalos e o próprio Império Romano do Oriente. No entanto, o Estado fundado por Leovigildo em 576, a monarquia de Toledo, não logrou alterar as bases sociais e econômicas legadas pelo Baixo Império Romano; antes disso, radicalizou as forças centrífugas herdadas do período de crise e desagregação da sociedade hispanoromana. Não é à toa que os campesinos e judeus, classe e grupo mais explorados pela aristocracia hispano-goda, colaboraram com os árabes no momento em que estes investiram contra o desmantelado Reino Visigodo. A Monarquia Visigoda não foi capaz de opor uma resistência significativa à investida árabe. Em 711, diante de um poderoso conquistador alimentado pelo desejo de riquezas e convencido da proteção divina, a Espanha simplesmente capitulou. ':ln BIBlOS. Rio Grande. 13: 19.31.2001. BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Perry. O modo de produção escravista. produção na antigüidade. São Paulo: Global, 1984. In: PINKY, Jaime (org.). Modos de BLASQUEZ, José Maria. Ciclos y temas de Ia historia de Espana. Madrid: Istmo, 1975. t. 1-2: romanización. ta BLASQUEZ, CRAWFORD, J. M.; TOVAR, A. Historia de Ia Hispania Michael. FINLEY, M. Amos e escravos. São Paulo: Global, 1984. In: PINSKY, Jaime OHLWEILER, Aberto, 1990. e a filosofia no mundo Otto. A religião TARRADELL, Miguel. Espana antigua. social e económica. Barcelona, 1977. ROSTOVTZEFF, BIBLas. Rio Grande. Romana. Madrid: Alianza, 1975. La república romana. Madrid, Taurus, 1988. (org.). Modos de produção greco-romano. na antigüidade. Porto' Alegre: Mercado In: VIVES, Vicens (org.). Historia de Espana y América: M. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. 13: 19-31.2001. 31