O SAXOFONE NA MÚSICA DE RADAMÉS GNATTALI por MARCO

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O SAXOFONE NA MÚSICA DE RADAMÉS GNATTALI
por
MARCO TÚLIO DE PAULA PINTO
Dissertação submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e
Artes da UNIRIO, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do
Professor Dr. Luiz Otávio Braga
Rio de Janeiro, abril de 2005
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Ficha Catalográfica
Página de aprovação
Dedico este trabalho a minha esposa
Marinete
E a meus filhos
Dafne e Cícero
-iii-
AGRADECIMENTOS
A meus pais, minha esposa e meus filhos, Aída Gnattali, Alceo Bocchino, Carlos Alberto
Figueiredo, Carlos Malta, Dale Underwood, Débora de Paula Moreira, Dilson Florencio,
Estela Caldi, Ingrid Barancoski, Jayme Vignoli, José Rua, Helen Rodrigues, Leo Gandelman,
Luiz Otavio Braga, Marcos Lucas, Marcos Nogueira, Nelson Macedo, Nicole Lerch, Paulo
Moura, Paulo Passos, Paulo Sergio Santos, Raquel de Paula Moreira, Rodrigo Capistrano,
Rildo Hora, Roberto Gnattali, Ruth Serrão, Salomea Gandelman, Sara Cohen, Zé Menezes, e
a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.
-iv-
PINTO, Marco Túlio de Paula . O Saxofone na Música de Radamés Gnattali 2005.
Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de
Letras e Artes, Universidade do Rio de Janeiro
RESUMO
Esta dissertação aborda o repertório para saxofone composto por Radamés Gnattali (19061988). O trabalho inclui levantamento das principais obras disponíveis, com maior atenção
nas duas peças de maiores dimensões: a Brasiliana nº 7 para saxofone tenor e piano, e o
Concertino para saxofone alto e orquestra. Os procedimentos usados na pesquisa incluíram a
consulta a acervos, entrevistas com intérpretes e pessoas ligadas ao compositor e sua obra, a
análise formal das obras de maiores dimensões e uma investigação sobre os reflexos da
participação do compositor no circuito musical comercial, em especial a Rádio Nacional, em
sua produção de concerto. Os resultados da pesquisa sugerem direcionamentos para a
interpretação de tal repertório, onde se combinam e se fundem elementos da música clássica e
da música popular folclórica e urbana.
.
Palavras chave: Saxofone – Gnattali - Práticas Interpretativas
-v-
PINTO, Marco Túlio de Paula . The Saxophone in Radamés Gnattali’s Music 2005. Master
Thesis (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e
Artes, Universidade do Rio de Janeiro
ABSTRACT
This research approaches the composed repertoire for saxophone by Radamés Gnattali (19061988). It includes survey of the main available pieces, with higher attention on the two works
of larger dimensions: the Brasiliana nº 7 for Tenor Saxophone and piano, and the Concertino
for Alto Saxophone and Orchestra. The procedures used in the research had included
consultation to collections, interviews with interpreters and people related to the composer
and his work. Other facts were also taken into consideration, as the formal analysis of the
compositions of larger dimensions and a study on the consequences of the composer’s
participation in commercial musical circuit, especially at Rádio Nacional, and how it affected
his concert music. The results of this research suggest ways to interpret this repertoire, by
understanding where the elements of classical music join together with the elements of
popular folk and urban music.
Keywords: Saxophone – Gnattali - Performance Practices
-vi-
SUMÁRIO
página
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS ..................................................................................viii
LISTA DE FIGURAS .........................................................................................................viii
LISTA DE TABELAS ........................................................................................................viii
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................1
CAPÍTULO 1- ALGUNS CONCEITOS ................................................................................6
1.1 – Falando sobre música
1.2 – Música Clássica – as dificuldades de conceituação
1.3 – Sobre Música Popular, Folclore, Nacionalismo, o rural versus o urbano
CAPÍTULO 2 – O SAXOFONE...........................................................................................21
2.1 – Histórico
2.2 – Mule e Rascher – dois mitos na história do saxofone
2.3 - Estilo clássico x estilo popular
2.4 - O Saxofone no Brasil
CAPÍTULO 3 - O RÁDIO, O DISCO: O CONVÍVIO COM A INDÚSTRIA CULTURAL .32
3.1 – Radamés e a Indústria Cultural
3.2 - A Indústria Cultural sob a perspectiva Adorniana
3.3 - Outra visão – O pensamento de Morin
3.4 - Uma análise centrada – Umberto Eco
3.5 - Radamés e o Rádio – a “Era de Ouro”.
CAPÍTULO 4 - AS OBRAS DE RADAMÉS GNATTALI PARA SAXOFONE..................54
4.1 – Os critérios para a elaboração da lista
4.2 – A relação das obras
CAPÍTULO 5 - A BRASILIANA NO. 7 PARA SAXOFONE TENOR E PIANO................65
5.1 - Apresentação
5.2 - Sandoval Dias
5.3 - Uma breve análise
5.4 - Com a palavra os intérpretes
5.5 - Uma comparação entre duas versões e algumas considerações pessoais
CAPÍTULO 6- O CONCERTINO PARA SAXOFONE ALTO EM MI BEMOL E
ORQUESTRA .....................................................................................................................88
6.1 – Informações Preliminares
6.2 – Análise da obra
6.3 – O Concertino e seus intérpretes
-vii-
6.4 – As duas versões do Terceiro Movimento.
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 111
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 114
ANEXOS ........................................................................................................................... 119
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
exemplo musical 1 - Choro “Remexendo” ............................................................................ 55
exemplo musical 2 - Valsa "Caminho da Saudade"............................................................... 57
exemplo musical 3 - choro "Bate Papo"................................................................................58
exemplo musical 4 - Valsa Triste..........................................................................................60
exemplo musical 5a - Devaneio............................................................................................61
exemplo musical 5b - Devaneio............................................................................................... 62
exemplo musical 6 - esquema rítmico "marchinha" ..............................................................92
exemplo musical 7 - célula rítmica de bossa nova.................................................................93
exemplo musical 8 - início do 3o. movimento (7/8) ............................................................ 105
exemplo musical 9 - início do 3o. movimento (3/4) ............................................................ 106
LISTA DE FIGURAS
figura 1 - Saxofones originais de Adolphe Sax, expostos no National Music Museum, na
Universidade de Dakota do Sul (E.U.A)........................................................................ 22
figura 2- primeira página do manuscrito do Concertino (7/8).............................................. 107
figura 3 - 1a. página do Concertino (3/4) ............................................................................ 108
figura 4 - página 2 do Concertino (v. 3/4) - em destaque logotipo da Rede Globo............... 108
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- esquema formal do 1o. mov. da Brasiliana no. 7...................................................69
Tabela 2- esquema formal do 2o. mov. da Brasiliana no. 7...................................................73
Tabela 3- esquema formal do 3o. mov. da Brasiliana no. 7...................................................75
Tabela 4 - esquema formal do 1o. movimento do Concertino para saxofone alto .................91
Tabela 5 - esquema formal do 2o. movimento do Concertino para saxofone alto .................95
Tabela 6 - esquema formal do 3o. movimento do Concertino para saxofone alto .................97
-viii-
INTRODUÇÃO
Em 1988 o Brasil perdia um de seus mais completos artistas. Radamés Gnattali (19061988) teve uma longa carreira e uma extensa lista de trabalhos prestados tanto na música de
concerto quanto na música popular. Exímio pianista, poderia ter se tornado um dos mais
importantes concertistas do século XX no Brasil. Quis a vida entretanto que dedicasse a maior
parte de sua carreira à arte de compor e arranjar. Sem preconceitos quanto a estilos musicais
sua obra transcende classificações. O mestre sempre teve a mesma fluência no trato com a
música popular e a clássica, tendo composto para as mais diversas formações. Escreveu obras
para orquestra, concertos para diversos instrumentos, quartetos, trios, duos, canções. Sua
produção de concerto inclui cerca de 280 obras. Na música popular foi o mais importante
arranjador da Rádio Nacional e tem uma discografia extensa, ao lado dos mais importantes
artistas, tendo composto mais de 6 mil arranjos.
Radamés
escreveu
diversas
obras
de
concerto
para
instrumentos
não
convencionalmente utilizados na música clássica, como acordeon, harmônica de boca (gaita),
guitarra elétrica e outros. O saxofone não pode ser enquadrado exatamente nessa categoria,
uma vez que seu repertório apresenta farto material na música de câmara e na música
sinfônica, como integrante da orquestra, ou como solista. Entretanto, principalmente aqui no
Brasil, esta é uma faceta menos conhecida do instrumento, uma vez que é associado
principalmente às formas populares da música.
O presente trabalho enfoca a interpretação e análise da obra de Radamés Gnattali
escrita para saxofone nas diversas formações. Concentraremos nossos esforços na construção
de um ideal interpretativo. De uma maneira geral as partituras não são ricas em detalhes,
dando ao intérprete uma liberdade para suas escolhas interpretativas. Este fato, somado à
2
abundância de elementos provenientes da música popular geram questionamentos, tais como
‘qual a abordagem interpretativa que se deve adotar?’; ‘em que medida os elementos da
música popular afetam a construção da interpretação?’; ‘seria mais adequado um approach
sonoro mais próximo da música popular?’ ; ou pelo contrário, ‘seria preferível uma intenção
interpretativa voltada a escola clássica do instrumento?’; ou ainda, ‘seria interessante
encontrar um meio-termo entre os dois extremos?’. Não é nossa intenção tratar do assunto de
uma maneira singularista (Krauz, 1993), imaginando uma única interpretação admissível. Este
trabalho se esforça em poder estabelecer um “leque” de opções válidas aos intérpretes.
Alguns trabalhos acadêmicos tem sido escritos enfocando segmentos da obra de
Radamés Gnattali. Entre eles podemos citar: Canaud (1991), que analisa a importância do
conhecimento da música popular urbana carioca na interpretação da obra para piano de
Gnattali; e Wiese (1995), que aborda sua produção violonística. Dialogaremos com estes
trabalhos avaliando os pontos em comum com a nossa pesquisa, bem como apontando os
aspectos característicos da escrita para saxofone. A biografia do compositor, escrita por
Barbosa e Devos (1985) constitui-se em importante fonte de informação.
O contato de Radamés Gnattali com a Indústria Cultural, mais especificamente o
rádio e a indústria fonográfica, provocou reflexos em sua produção de concerto. Por isso fazse necessária uma análise de sua atuação no mercado musical brasileiro. Assim, abordaremos
o tema Indústria Cultural, na visão de alguns autores que estudaram o fenômeno, suas
características globais e particularidades do caso brasileiro. Estabeleceremos o confronto entre
as idéias de autores como Adorno, Eco, Morin, Ortiz e outros.
A discussão sobre música popular, música de concerto, os conceitos de folclórico,
urbano, nacional, nacionalismo, é campo propício para o confronto entre as idéias de Mário de
Andrade, Chauí, Wisnik, Squeff e outros. Aspectos históricos do desenvolvimento do
saxofone, sua criação, a resistência à sua participação na música orquestral, sua
3
popularização, suas possibilidades interpretativas. Estes e outros tópicos serão discutidos.
Para tal embasamento faremos uso de autores como Marcel Perrin, Leon Kochnitzky, Sigurd
Rascher, Paul Cohen e outros que discutem tais assuntos.
Este trabalho reúne elementos que podem trazer subsídios a saxofonistas que desejem
trabalhar a obra de Radamés Gnattali e contribui para o conhecimento de uma parcela
importante da produção de um dos nossos principais compositores, que infelizmente é muito
pouco divulgada.
O primeiro passo foi levantamento das obras conhecidas, através da consulta a
acervos. Desta consulta chegamos à constatação de que as duas peças mais complexas e mais
extensas são a Brasiliana no. 7 e o Concertino. Por isso a elas será dada maior atenção.
Entretanto não se pode menosprezar o valor das obras mais curtas, nem mesmo aquelas de um
direcionamento mais nitidamente popular. Na música de Radamés é muito difícil estabelecer
o limite entre erudito e popular. As obras de concerto estão repletas de citações e referências à
música popular, principalmente a música urbana do Rio de Janeiro, podendo ainda ser
encontrados alguns elementos de música folclórica. Em contrapartida seus choros e valsas,
sambas, etc. apresentam contrapontos e harmonias complexas que refletem claramente essa
perfeita simbiose. Assim, as pequenas obras podem nos fornecer elementos valiosos para a
compreensão das formas mais extensas.
Os procedimentos utilizados na pesquisa incluíram a contextualização das obras, a
análise estrutural e formal das peças; a consulta comparativa a gravações, estabelecendo
parâmetros interpretativos; a realização de entrevistas estruturadas e não-estruturadas com
intérpretes e/ou pessoas ligadas ao compositor e ao momento histórico da criação das peças;
uma investigação sobre a atuação de Radamés Gnattali no mercado radiofônico e fonográfico
e as conseqüências dessa experiência. Uma análise do modo como absorveu a música
praticada no cotidiano musical, utilizando esse material em sua obra de maneira ampliada e
4
elaborada; uma investigação sobre aspectos históricos do saxofone na música brasileira: sua
introdução, utilização, artistas importantes, etc. ; a análise de aspectos técnicos do instrumento
na execução da obra: tessituras, vibrato, etc.
Assim, no primeiro capítulo discutiremos alguns dos conceitos utilizados neste
trabalho. A utilização de termos como erudito, clássico, popular, folclore, nacional, urbano,
rural, entre outros, será objeto de reflexão.
O capítulo dois se destinará a apresentar o saxofone, instrumento para o qual foram
escritas as obras analisadas. Abordaremos suas características, aspectos históricos, sua
utilização na música de concerto e na música popular. Será abordada ainda a sua utilização na
música brasileira, desde sua introdução até sua consolidação como instrumento importante.
Intérpretes representativos serão relacionados.
No capítulo três, faremos um recorte focalizando o convívio de Radamés no trabalho
com a música de consumo, a música carioca urbana, que forneceu vasto material para sua
produção “clássica”. Uma atenção será dada ao trabalho na Rádio Nacional, cuja história se
confunde com a do compositor e que abrange cronologicamente o repertório avaliado.
No capítulo quatro serão apresentadas as obras conhecidas para o instrumento, com
informações preliminares sobre datas, intérpretes, gravações, características e localização,
com exceção das duas obras de maior porte. Estas serão analisadas detalhadamente nos
capítulos subseqüentes.
O capítulo cinco se destina a um estudo aprofundado da Brasiliana no. 7 para
saxofone tenor e piano. Serão avaliados aspectos históricos, formais e estruturais, e
interpretativos. Aos procedimentos analíticos somam-se os depoimentos de intérpretes
consagrados, para a construção de um ideal interpretativo.
5
Por fim, no capítulo seis, aplicaremos um procedimento análogo ao do capítulo
anterior, ao Concertino para saxofone alto e orquestra. Daremos destaque à polêmica
envolvendo as duas versões para o terceiro movimento.
CAPÍTULO 1- ALGUNS CONCEITOS
1.1 – Falando sobre música
Falar sobre música geralmente é uma tarefa árdua para os músicos. A fluência técnica
destes muitas vezes não encontra uma correspondente habilidade verbal. Dedos ágeis no sobee-desce de escalas e arpejos atrapalham-se diante de um teclado de computador para escrever
umas poucas linhas sobre música. A dificuldade se inicia na própria definição de o que é
música. Como definir esta vibração que invade nossos ouvidos de maneira incontrolável,
desencadeando um turbilhão de sensações e emoções? Como traduzir em palavras essa
energia que nos impele e arremete de modo irresistível ao mundo dos sons? Como explicar
esta arte intangível sem o inevitável uso de metáforas?
A música está presente a maior parte do tempo em nosso cotidiano, seja em salas de
concerto, seja em elevadores, cinema, TV, rádio, brincadeiras de criança. É difícil imaginar
um mundo sem sua presença. Exceto para aqueles que por alguma razão tenham a
incapacidade física de ouvir, é impossível deixar de ser bombardeado constantemente por
sons e ruídos. O sentido da audição não pode ser “desligado”. Desta forma estamos expostos
às vibrações sonoras 24 horas por dia. Mesmo durante o sono, enquanto nossa percepção
encontra-se enfraquecida o som pode ser considerado um elo que nos liga ao mundo da
consciência. Em geral um som ou ruído de grande intensidade é capaz de despertar a maioria
das pessoas em sono profundo.
Em algum momento nos primórdios da história os homens descobriram que o som
produzido pelo choque de pedras, paus, ossos ou pelo vento passando através das folhas e
juncos, poderia ajudar a criar um elo psíquico que os deixasse em sintonia em seus primitivos
rituais tribais . Somos naturalmente afetados pelo pulso da música, pulso da vida. Isto pode
ser um fator cultural, resultado da assimilação da herança de gerações e gerações. Mas e os
7
bebês, que antes de serem influenciados por qualquer convenção social, antes de aprenderem
a falar, ou mesmo andar, são irremediavelmente tocados pelo balanço pulsante de qualquer
canção? No ventre materno o feto ouve os batimentos cardíacos da mãe. Para Wisnik (1989)
esta relação íntima prematura com o pulso cria laços profundos e definitivos. Os efeitos do
som sobre nosso estado de espírito são incontestáveis. “O som tem um poder mediador,
hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível”
(Wisnik,1989, p. 28). E é interessante salientar todo o conjunto de compensações e filtragens
que nosso cérebro, é obrigado a fazer, uma vez que nossos ouvidos são bombardeados por
ondas sonoras de todos os comprimentos e intensidades. Quando um instrumento emite um
som irradia ondas em várias direções. Essas ondas chegam aos nossos ouvidos de diversas
maneiras simultâneas, diretamente, refletidas em objetos e paredes. A própria distância física
entre nossos dois ouvidos causa pequenas defasagens que são no entanto compensadas. São
tantas variáveis a ser controladas que o fato de sermos capazes de administrar esse caos
vibratório, transformando-o num sinal inteligível e em mensagem compreensível é por si
próprio notável.
Inicialmente a música teve um caráter ritual e funcional, estando ligada a eventos
religiosos e sociais. O culto aos deuses, as cerimônias tribais de iniciação. Para muitas
sociedades é inconcebível a música com fins exclusivos de prazer estético, mesmo nos tempos
atuais. Para outras, como a nossa, foi-se gradativamente descobrindo a possibilidade da
música como a arte independente. O som pelo som. Hanslick defende uma expressão
independente não só de uma funcionalidade, mas principalmente de um vínculo a um
sentimento ou estado de espírito.
“Se nos perguntam, então, o que deve ser exprimido com esse material sonoro,
respondemos: idéias musicais. Mas uma idéia musical perfeitamente expressa já é um
belo independente, é uma finalidade em si mesma, e não só um meio ou um material para
a representação de sentimentos e idéias” (Hanslik, 1992, p. 62) .
8
Em nossa cultura, convivem lado a lado estas duas faces. Uma música voltada para o
ritual, o cerimonial, o funcional, incluídos nessa categoria os hinos cívicos e religiosos, os
jingles, a música para dança; e uma música concebida para fins puramente estéticos. Muitas
vezes os limites se confundem e uma única obra pode reunir as características citadas de uma
funcionalidade com a validade estética. É o caso, por exemplo, das missas e ofícios, que
foram compostos para o serviço religioso, e que muitas vezes são contemplados em salas de
concerto.
Somos invadidos por música de toda espécie. Música para contemplar, para dançar,
para rezar. Música ruim, música boa. Uma miríade de gêneros e estilos. E é inegável a
influência que ela exerce sobre nosso estado de espírito.
1.2 – Música Clássica – as dificuldades de conceituação
O tema de nossa pesquisa envolve uma série de conceitos e definições. A música de
Radamés Gnattali transita livremente por estilos diversos, resultado de sua multíplice carreira.
Está portanto relacionada diretamente a terminologias como clássico, erudito, popular,
folclore, rural, urbano, nacional, etc. . No presente capítulo faremos uma reflexão sobre como
esses termos vêm sido utilizados e como se enquadram em nosso trabalho.
A tentativa de se denominar uma arte musical distinta da manifestação cultural
espontânea vinda do povo esbarra num problema imediato: encontrar um termo que tenha um
significado completo e definitivo. Nestrovski (2000) identifica o problema em um saboroso
livro dedicado ao público infanto-juvenil. Qualquer definição que possa ser aplicada nunca
atingirá em sua plenitude o significado pretendido. Além disso a maior parte dos termos
utilizados para identificar tal arte não-popular carregam em maior ou menor teor um certo
preconceito. O conceito mais comumente utilizado é o de música clássica. O dicionário de
Música Zahar traz o seguinte significado para o termo: “1. Música “séria”, por oposição à
9
música popular, música folclórica, música ligeira ou de jazz”. A própria definição traz à tona
alguns dos conceitos que discutiremos mais adiante. Nestrovski considera o termo estático,
“parece um monumento”(op. cit., p. 9). Além disso termo clássico também pode ser utilizado
em alusão à música do período que vai aproximadamente de 1750 a 1830, em especial a
composta por Mozart, Haydn e Beethoven, o que dá um significado mais estreito, excluindo
toda produção musical produzida fora desse período.
Um conceito muito utilizado é o de música erudita. Erudito vem do latim erudítus,
que quer dizer 'que obteve instrução’, conhecedor, sábio. Erudição, por sua vez, significa
conhecimento ou cultura adquiridos especialmente através da leitura. Remete portanto a uma
arte lapidada, trabalhada, burilada através de uma rotina ferrenha de estudos. Isto, por si já
traz uma imprecisão, uma vez que o aprimoramento em diversos estilos considerados
populares, como o Choro e o jazz, requer uma equivalente disciplina. O termo carrega ainda
um ranço elitista e pedante, ao evidenciar a cisão entre uma cultura “superior” e uma oriunda
do povo. As camadas mais baixas da população não tem acesso aos bens culturais, ficando
portanto em posição de inferioridade.
Há pouco foi citada a expressão música séria. Se considerarmos o significado de
sério, como austero, grave, ‘o que não é alegre’, fazemos referência ao sentimento ou estado
de espírito provocado ou estimulado pela música. Tal poder ou propriedade não é entretanto
exclusivo das músicas clássicas. Sério pode ainda assumir o sentido de algo a que se aplicou
cuidado, ou uma coisa de grande importância. Novamente aqui o preconceito prevalece. Não
serão as músicas populares concebidas com zelo ou esmero? Não é ela digna de importância?
O maestro Alceo Bocchino fala em música “mais elaborada” (depoimento pessoal
em 11/08/2003). Ficamos aqui presos a uma valoração de complexidade, que mais uma vez
leva à confusão e à imprecisão. Há um alto nível de elaboração na polifonia dos pigmeus, no
contraponto dos chorões, no improviso dos jazzistas. Em contrapartida podemos citar a
10
simplicidade de um Satie ou dos minimalistas. Uma hierarquização de complexidade e
elaboração portanto não é um critério adequado para a definição de um estilo ou gênero.
Mário de Andrade (1962) referia-se à uma música artística, concebida com fins
estéticos. Opunha-se dessa forma à música comercial, com objetivos econômicos. Mas o
termo é impreciso por excluir, por tabela, a música popular folclórica que o autor considerava
devesse ser a matéria prima de uma música nacional. Artístico é aquilo que foi executado com
arte. Arte pode ser uma habilidade adquirida, mas pode também ser uma habilidade natural.
Nada existe mais autêntico que a arte popular e a música manifestada espontaneamente das
tradições populares sem a menor sombra de dúvida merece ser classificada como artística.
Obviamente não era a intenção do autor desconsiderar a música folclórica, já que considerava
o folclore um dos alicerces para a construção de uma música nacional autêntica. O fato,
entretanto, reforça a dificuldade que temos em encontrar um termo que defina com exatidão
essa música não-popular. Termos como música de concerto (Quanta música popular se
apresenta nas salas de concerto!) ou Grande Música (também carregado de preconceito) e
tantos outros são incapazes de definir precisa e amplamente o significado deste tipo de
música. Embora não nos sintamos pessoalmente incomodados com as conotações que alguns
destes termos possam assumir, concordamos com Nestrovski, que considera que talvez o
menos incorreto seja mesmo utilizar o termo música clássica, adotado num sentido mais
amplo.
1.3 – Sobre Música Popular, Folclore, Nacionalismo, o rural versus o urbano
Dois conceitos assumem importância destacada no decorrer de nossa pesquisa. o
conceito de música popular e o de folclore. Muitas vezes seus significados se confundem, se
complementam, mas podem também entrar em conflito. Num sentido amplo, música popular
é aquela que não pode ser enquadrada na categoria de música clássica, como definido no
tópico anterior. Sob essa designação reúne-se um vasto leque de manifestações musicais e o
11
termo é por essa razão excessivamente genérico. O conceito de folclore, por sua vez está
relacionado geralmente com uma cultura popular, através de costumes, lendas, manifestações
artísticas, sendo transmitido e preservado pela tradição oral. Para Barbero
Folklore capta antes de tudo um movimento de separação e coexistência entre dois
‘mundos’ culturais: o rural, configurado pela oralidade, as crenças e a arte ingênua, e o
urbano, configurado pela escritura, a secularização e a arte refinada: quer dizer nomeia a
dimensão do tempo na cultura das práticas entre tradições e modernidade, sua oposição e
às vezes sua mistura. (Barbero, 2001, p.40-41)
Já nesse momento podemos apreender a idéia de uma música popular englobando,
encampando uma música folclórica. Ou, em outros termos, a música folclórica toma parte de
um “todo” popular, representa uma parcela de seu conteúdo. Podemos captar também o
confronto entre os “mundos” rural e urbano.
O pensamento de Antonio Gramsci fornece a Chauí o ponto de partida para sua análise
sobre o nacional e o popular na cultura. Da síntese promovida pela autora para o pensamento
gramsciano, podemos extrair uma definição para o “popular”. Segundo a autora,
na perspectiva gramsciana, o popular na cultura significa, portanto, a transfiguração
expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja
interpretação pelo artista e pelo povo coincidem. Essa transfiguração pode ser realizada
tanto pelos intelectuais ‘que se identificam com o povo’ quanto por aqueles que saem do
próprio povo, na qualidade de seus intelectuais orgânicos. (Chauí, 1983, p. 17).
O trabalho de Chauí excede em muito as intenções desta pesquisa. A autora investiga
as origens históricas e implicações políticas e sociais do nacional e do popular na cultura.
Partindo de Gramsci e sua crítica ao totalitarismo fascista, sua reflexão destaca a ascensão do
sentimento nacionalista ocorrido na Europa, desencadeado pela Revolução Francesa e
acentuado principalmente pelas revoluções nacionais de 1848. Confronta esse sentimento com
os ideais do marxismo, que considera tanto povo quanto nação abstrações políticas. Traça
ainda paralelos entre a situação européia e o caso brasileiro. Longe de tentar embrenhar num
assunto tão complexo e cujas bases teóricas vão muito além das pretensões deste trabalho, sua
12
leitura serve para evidenciar um movimento que deixou seus efeitos na música: o
nacionalismo.
Montserrat Guibernaut refere-se a nacionalismo como “sentimento de pertencer a uma
comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de
vida, e têm a vontade de decidir sobre o seu destino político comum” (1997, p. 56). A autora
distingue dois tipos básicos de nacionalismo, um incutido pelo estado, através de seus
governantes; e um tipo de nacionalismo presente nas nações sem estado, inseridas (à força na
maioria das vezes) em estados maiores, como é o caso do povo basco, em relação à Espanha.
Daí emerge o conceito de nação, que a autora refere-se como “grupo humano
consciente de formar uma comunidade e de partilhar uma cultura comum, ligado a um
território claramente demarcado, tendo um passado e um projeto comuns e a exigência do
direito de governar” (idem, ibidem). A este conceito contrapõe-se o de estado nacional,
“um tipo de estado que possui o monopólio do que afiirma ser o uso legítimo da força
dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo
por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns,
revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os (idem, ibidem)
Desta forma, enquanto nação assume uma acepção de um sentimento imanente de um
grupo de indivíduos, no estado nacional, esse sentimento muitas vezes é construído, de cima
para baixo, imposto pela vontade dos governantes.
O sentimento nacionalista surgiu em parte como um mecanismo de defesa perante a
tentação dos estados maiores e mais poderosos em apoderar-se dos mais fracos. A autora
vislumbra a possibilidade de um mundo sem nacionalismos, como sinal de uma maior
tolerância com uma pluridade cultural por parte da comunidade internacional, ou ainda que a
cultura passe por um bem-sucedido processo de homogeneização.
Mas, quais as conseqüências de tal sentimento na música? Segundo Squeff,” a arte, ou
no caso, a música, é talvez o desdobramento sensível mais importante de todos os períodos
13
históricos. Não é possível detectar aspectos de determinadas épocas no nível do seu “sentir”,
se não pela arte e mais precisamente pela música”. (1982, p.15). Desta forma, a explosão do
sentimento nacionalista no século XIX teve naturalmente seus reflexos na música,
prolongando-se esse efeito século XX adentro. Assim, compositores como Smetana, Grieg,
Albeniz e outros trataram de retratar em sua obra elementos característicos de seus países,
como resposta à hegemonia da música alemã. No Brasil o movimento teve Alberto
Nepomuceno como um dos precursores e consolidou-se principalmente após a “Semana de
Arte Moderna, 1922”.
A cartilha nacionalista pregava a adesão ao uso do folclore, entendido como
manifestação autêntica do sentimento nacional, como fonte inspiradora para os compositores
clássicos. A música clássica nacionalista deveria se apoiar sobre o bom, ingênuo e puro
homem do campo, sobre a perpetuação de suas tradições transmitidas oralmente de tempos
imemoriais, ainda que estilizada. Da mesma forma combatia a crescente ascensão da música
popular urbana, considerada vulgar, bem, como da música clássica concebida nos moldes
compositivos europeus ou estrangeiros, e também a vanguarda. Wisnik define assim os pilares
do pensamento nacionalista:
(...) a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justamente na tentativa de
estabelecer um cordão sanitário-defensivo que separasse a boa música (resultante da
aliança da tradição erudita nacionalista com o folclore) da música má (a popular urbana
comercial e a erudita europeizante, quando esta quisesse passar por música brasileira, ou
quando de vanguarda radical) (Wisnik, 1982, p. 134, grifos dele)
Estava estabelecido portanto o confronto entre a música rural e a música urbana. O
folclore como guardião de um sentimento genuíno de pureza e autenticidade nacional. A
legítima fonte inspiradora para a música artística O urbano, pelo contrário, representava o
povo vulgar, sem educação, a malta a ser contida. O crítico Luiz Heitor diria:
acho perigosa a confusão que às vezes se faz, no Brasil, englobando sob o rótulo de
música popular não o fundo musical anônimo, de que a música artística se utiliza, para
tonificar-se, mas a música sem classificação, baixa e comercial, que prolifera em todos os
14
países do mundo, sem que por isso tenha direito a ocupar um lugar na história da arte.
(apud Wisnik, 1982, p. 132)
Que esse pensamento reflete um temor perante a indústria cultural, é fato. Quanto a
esta discutiremos mais detalhadamente no capítulo 3. Entretanto reflete também o preconceito
perante uma manifestação cultural que não só é dotada de validade, como tornou-se uma das
maiores representatividades da música brasileira no cenário internacional.
O confronto entre rural e urbano fica evidenciado na dialética entre modalismo e
tonalismo: o campo caracterizado pelo mundo modal, a cidade representada pelo tonalismo
herdado das tradições européias. Embora os nacionalistas tenham elegido o folclore como
fonte inspiradora, não raras vezes sua estilização vai se aproximar das práticas tonais.
Segundo Squeff o folclore sempre foi observado sob o prisma “cosmopolita” e que “a música,
enquanto forma organizada foi sempre uma música urbana” (1982, p. 55)
Villa-Lobos (1887-1959), o maior compositor brasileiro do século XX (quiçá de todos
os tempos) e expoente máximo do nacionalismo, por sua vez, embora chegasse a ter
defendido o folclore como matriz para a composição erudita de cunho nacional, não foi de
fato um folclorista. Sua maior fonte de inspiração foi a música popular urbana carioca. O
Choro e as modinhas da cidade, o ambiente musical no qual estava inserido.
Em 1928 Mário de Andrade escreveu o Ensaio sobre a Música Brasileira. Essa obra
paradigmática serviu como base para gerações de compositores. No Ensaio pode-se notar uma
preocupação em definir o que seria a música de caráter nacionalista, bem como um repúdio à
música que não se enquadre sob esse modelo. O texto funciona como um “guia prático para o
compositor nacionalista”. Condena o exotismo, ou seja, a utilização dos elementos para a
mera obtenção de efeitos pictóricos. Da mesma forma combate a unilateralidade, concebida
como o aproveitamento isolado das fontes geradoras de uma cultura popular. Isto é um ponto
interessante do texto. O autor tem a noção da cultura popular formada através da combinação
de diversos elementos distintos: o elemento europeu, seja português, seja posteriormente no
15
imigrante, o ameríndio, o africano. Isolar qualquer que seja desses elementos, não
corresponderia em criar uma música nacional, segundo o autor. Mesmo elementos
estrangeiros atuais (para a época) são considerados por Andrade. Além das influências
consideradas por ele digeridas, como o tango, a habanera, a valsa, a polca, a mazurca o
scottish, o autor cita a infiltração do jazz no maxixe, a qual não recrimina, e a “expansão da
melodia chorona do tango” (Andrade, 1972, p. 26), a qual não não vê com bons olhos.
Embora o texto siga o viés nacionalista de adoção sistemática do folclore como fonte
primária, não podemos deixar de destacar o seguinte trecho:
Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de estudo ou de
base. Mas por outro lado não deve cair num exclusivismo reacionário que é pelo menos
inútil. A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela
deformação e adaptação dele. Não pela repulsa (Idem, ibidem)
Seria esta pois uma forma inventiva de resistência à dominação cultural estrangeira. O
compositor segue sua exposição abordando os aspectos que considera necessários para uma
composição pretensamente nacional sob o prisma dos tópicos ritmo, melodia, polifonia,
instrumentação e forma.
A respeito do ritmo suas atenções se concentram sobre a síncope, suas sutilezas de
interpretação, a imprecisão da notação musical em registrá-la. Cita também o confronto entre
a natureza mesurada da música herdada principalmente dos portugueses com o caráter rítmico
mais ligado à prosódia das manifestações americanas e africanas.
O problema central envolvendo a melodia reside na força expressiva. O emprego de
melodias tiradas do folclore, ou mesmo a criação de melodias originais imitando o estilo
popular-folclórico, segundo alguns compositores, enfraqueceria a expressividade contida na
música. Andrade questiona se de fato a música popular seria inexpressiva. Para o autor, os
sentimentos são melhor transmitidos pela palavra. Assim, as artes que fazem uso desta são as
“psicológicas por natureza”. (id, ibid, p. 40). Artes como a dança e a pintura são ainda capazes
16
de transmitir parcialmente estas características. A música não. Seu efeito é puramente
dinamogênico. Desta forma considerava que a música popular não podia deixar de ser
considerada expressiva, uma vez que “ nasce de necessidades essenciais” (idem, ibidem, p.
41). Para Andrade o dilema sentido pelos compositores brasileiros se devia a uma “falha de
cultura” (desproporção no interesse entre as obras estrangeiras e nacionais), a uma “fatalidade
de educação” (absorção das normas e características compositivas adquirida pelo estudo da
música européia) e “ignorância estética” (na realidade o dilema apresentado pelos
compositores não existe, sendo fruto de “vaidade individualista” (id, ibid, p. 42-43). Embora
reconhecendo uma certa perda de expressividade individual, Andrade minimiza os efeitos
desta na obra como um todo.
O termo polifonia aparece num sentido inexato, uma vez que o autor se refere no texto
basicamente a procedimentos harmônicos. Para Andrade essa característica era pouco
“nacionalisadora”[sic], uma vez que considerava os procedimentos harmônicos populares
(folclóricos) “pobres por demais” (idem, ibid, p.49). Essa afirmação traz em si um preconceito
inconsciente. De qualquer modo, o autor não vislumbrava uma alternativa “original” para o
tradicional esquema tonal europeu, baseado em superposição de terças. Qualquer tentativa de
criar-se um novo sistema teria um caráter individualista e não representaria um espírito
nacional. Tal sistema, além disso, coincidiria com a “atonalidade” e “pluritonalidade” já em
voga na música européia.
Quanto à instrumentação, Mário avaliava as possibilidades de instrumentação
utilizando instrumentos nacionais típicos (se é que isso possa ser realmente considerado
nacional, haja visto a infinidade de procedências para os instrumentos aqui utilizados). O
autor enfatizava o modo peculiar do canto anasalado freqüentemente encontrado nas
manifestações populares, e uma maneira de tocar igualmente original apresentado pelos
instrumentistas. O importante na sua concepção, falando em obras sinfônicas, não seria a
17
utilização de uma orquestra típica, já que considerava as dificuldades ou mesmo a
impossibilidade de reunir músicos para tais instrumentos que fossem aptos a atender as
“dificuldades eruditas da cooparticipação orquestral” (id, ibid, p. 59). Pelo contrário, o que
mais importava é captar a maneira particular de tocar do estilo popular, adaptando aos
instrumentos “mais viáveis sinfonicamente” (idem, ibidem), embora considerasse que por
vezes essa “transposição” (id., ibid.) viesse a descaracterizar os instrumentos. Defendia
também uma orquestra em que os instrumentos típicos poderiam ser acrescentados
valorizando a caracterização.
Por último, quanto à forma, o autor apontava a diversidade do canto nacional como
base para a criação formal. Num discurso didático-institucionalizante defendia a disseminação
do canto coral por seu valor social. “O coro unanimisa os indivíduos” (id., ibid., p. 65). Na
música instrumental destacava a presença de formas “embrionárias”. A grande variedade de
danças populares poderia muito bem ser aproveitada na concepção de suítes em que Ponteio,
Cateretê, Coco, Samba e outros substituíssem as tradicionais danças européias. Em
substituição às grandes formas tradicionais, tais quais Sonata e Tocata, a que considerava
desvirtuadas, sugeria construções como “Chimarrita, Aboio e Louvação” (idem, ibid, p. 69),
ou seja títulos que fizessem alusão ao populário nacional. Em resumo, uma adequação à
realidade nacional-folclórica.
Por fim, clama por uma maior atenção ao estudo do folclore, fornecendo subsídios
para a “composição artística”. O texto é carregado por um sentido evolucionista. Sua
concepção das fases (tese, sentimento e inconsciência nacional) pelas quais os indivíduos e a
arte, em culturas como a nossa deveria obrigatoriamente passar, reflete muito bem esse
posicionamento. Mário tinha uma noção de estágio cultural, uma meta a ser atingida. Em
vários momentos, termos como “arte socialmente primitiva” (id, ibid, p. 18), “aperfeiçoar”
(id, ibid, p. 57) e “desenvolvimento artístico” (id, ibid.) reforçam essa idéia evolucionista. De
18
qualquer forma, sintetiza o pensamento nacionalista, como citamos anteriormente, influenciou
gerações de compositores, e forneceu as bases para procedimentos compositivos que
perduram até os tempos atuais. Como lembra Squeff,
Alguns nacionalistas de hoje não raro fazem uma música que só tem a ver com um
conceito específico de música nacional. Nacional é o exótico, isto é, tudo que recebe o
alvará da indústria cultural multinacional. Tal nacionalismo excluiria, a priori, todas as
realidades amplas de um país inclusive pelo fato de que a maioria da população brasileira
vive hoje nas cidades, onde o pathos e o ethos têm uma conotação diferente de tudo o que
se entendeu sobre nacional até agora. (Squeff,, 1982, p. 17-18)
Mas, se por um lado o movimento nacionalista primou pela defesa do elemento
folclórico - rural como fonte legítima para a criação musical de cunho nacionalista, em certo
detrimento do elemento urbano, por outro, no campo da música popular, entendida como a
música praticada no circuito comercial, de consumo, iremos notar um processo inverso. Frota
faz uma análise do cenário musical carioca (e por irradiação nacional) dos anos 20-30, e de
um grupo de artista a que se refere como a “geração Noel Rosa” (2003, p. 25). Este grupo de
artistas presenciou o surgimento e consolidação da indústria cultural no Brasil, principalmente
através do rádio e do disco. Também nesse período ocorre o que o autor chama de “invenção
urbana do samba como símbolo nacional” (id., ibid., p. 141). Para Frota, o conceito de samba
enquanto símbolo nacional de nossa música popular foi socialmente construído. Através de
um processo complexo promovido em parte pela indústria cultural, parte pelo Estado, o samba
foi inventado como símbolo nacional. E durante esse processo foi extirpado um componente
importante de sua origem. É do senso comum atribuir esta origem ao componente africano, o
que é em parte muito justo. Entretanto o elemento “autóctone e mestiço” foi praticamente
excluído. Embora na virada do século XX o samba chegasse a ser considerado por autores
como Silvio Romero como de origem “ameríndia”, durante sua “invenção” como símbolo
nacional, passou a ser considerado como um gênero exclusivamente afro-brasileiro em suas
origens. Para o autor, todas as manifestações culturais urbanas têm no fundo uma gênese o
componente folclórico-rural. O “arcabouço autóctone e mestiço” que foi subtraído do samba
19
teria lhe acrescentado um “sabor brasileiro muito mais totalizante e representativo do ponto de
vista étnico” (idem, p. 145). Longe de querer entrar nas profundas implicações sociais
abordadas no texto de Frota, os argumentos acima se prestam a exemplificar a maneira como
o fenômeno afetou as relações da música comercial com o folclore.
Interessante portanto verificar as diferenças de posicionamento num mesmo período
histórico. Os nacionalistas primando pela busca de uma identidade nacional através do
folclore, do Brasil rural, deixando de lado o componente urbano que fugia a seu controle.
Segundo Wisnik
O pulular irrequieto da música urbana espirrou fora do programa nacionalista porque ele
exprime o contemporâneo em pleno processo inacabado, mais dificilmente redutível às
idealizações acadêmicas de cunho retrospectivo ou prospectivo. (Wisnik, 1982, p. 148)
Já o mercado musical, seja por dominação, seja por uma necessidade de modernização
investiu num projeto que alijava o componente folclórico-rural. Esse procedimento, como
afirma Frota serviu para fomentar uma visão preconceituosa quanto a esses elementos.
Ao não se dar crédito de confiança à história folclórico-rural de gêneros musicais
geralmente conhecidos como urbanos, vai-se a meu ver aumentando sobremaneira o grau
de preconceito e descompasso a que a história pregressa dos gêneros musicais urbanos
(“tradicionais”, como o samba) é submetida nas grandes cidades – apenas como coisa de
matuto; caipira que não merece maiores atenções, tal como toda e qualquer música
folclórica que ainda hoje sobreviva a despeito e até mesmo por causa de toda essa riqueza
musical etnicamente transformada. (Frota, 2003, p. 165).
O confronto urbano x rural é muito bem ilustrado em Bye Bye Brasil (Carlos Diegues,
1980). O filme narra as aventuras da caravana “Rolidei” pelo interior do Brasil. Retrata um
país em transformação, em que as tradições culturais são devoradas pela modernidade. As
“espinhas de peixe”, ou antenas de TV no telhado das casas representavam para os artistas
mambembes sinais de que o progresso já chegara àquela localidade, obrigando-os a entrar
cada vez mais pelo interior do país. Na sua peregrinação vai se revelando a luta de dois
Brasis; um rural, tradicional, folclórico agonizante perante um Brasil, voraz, moderno,
urbano. Haveria lugar para a convivência desses dois Brasis? Acreditamos que sim, embora a
tendência seja o mundo folclórico-rural ser cada vez mais engolido pelas modernidades.
20
Em nossa opinião a música nacionalista cumpriu seu papel ao resgatar e preservar
elementos tradicionais da cultura popular folclórica. O erro foi menosprezar o componente
urbano, talvez até como mecanismo de defesa perante o avanço da cultura de massa, não
compreendendo que esses elementos também fazem parte da nossa cultura, para o bem ou
para o mal. Somos uma “colcha de retalhos musicais costurada com o fio meio invisível da
indústria cultural centralizada do eixo Rio de Janeiro - São Paulo.” (Frota, 2003, p. 146). O
Brasil, esse país de dimensões continentais, reúne uma diversidade cultural tão grande,
formada por matrizes de origens muito distintas.
Ao iniciarmos este capítulo propusemo-nos a debater alguns dos conceitos de
importância para compreendermos a música de Radamés Gnattali. Assim, discutimos sobre
música clássica, erudita, popular, folclórica, nacionalismo. Cabe aqui abordar mais um
aspecto, não tão musical, mas que sentimos presente em toda essa discussão sobre música: o
preconceito. Não no sentido de julgamento pré-concebido, mas em sua pior acepção, ou seja,
no sentido de intolerância, de rejeição ao que é diferente. Preconceito racial, religioso,
cultural. O preconceito que levanta o muro existente entre música clássica e música popular.
O preconceito que leva os músicos “clássicos” a considerarem os músicos “populares”
ignorantes, iletrados. O mesmo preconceito que leva estes a considerarem aqueles “duros”,
sem “jogo-de-cintura”, sem swing. O preconceito que leva a absurdos como placas de acrílico
separando metais e cordas em algumas orquestras.
A música de Radamés Gnattali se estabeleceu num meio-caminho entre a música
clássica e a música popular. Utilizou-se do folclore em suas composições, como mandava a
“cartilha” nacionalista. Entretanto usou de fartas doses da música urbana, comercial, que lhe
era familiar pelo seu trabalho junto ao rádio e à indústria fonográfica. Por vezes foi vítima de
preconceito por ambos os lados. Ora era considerado “sofisticado demais” para a música
popular, ora considerado “vulgar” pelos adeptos da música clássica.
CAPÍTULO 2 – O SAXOFONE
Se o Violino é o rei dos instrumentos de cordas, o
saxofone é o mais comovente, o mais cativante, o mais
agradável de ouvir dos instrumentos de sopro e palheta.
Eugene Bozza1
2.1 – Histórico
O início do prefácio de Bozza para o livro de Perrin sintetiza as capacidades
expressivas deste instrumento, um dos mais conhecidos entre o grande público, que devido a
sua versatilidade é utilizado em diversos gêneros musicais. O saxofone tem uma natureza
híbrida. Embora seja construído em metal, seu processo de produção do som faz com que
seja mais bem classificado na família das madeiras. O instrumento utiliza-se de uma palheta
simples, similar às utilizadas em clarinetes. Ao contrário destes, seu corpo tem um formato
cônico, que aproxima suas características acústicas às do oboé. O seu dedilhado, bastante
simplificado, é bastante semelhante ao empregado em flautas. Esse conjunto de
características lhe permite uma grande gama de nuances sonoras. O instrumento une a força
dos metais à agilidade dos instrumentos de madeira. O saxofone tem um papel destacado na
história do jazz, gênero no qual, devido a sua maior potência sonora, foi gradativamente
assumindo o lugar do clarinete. Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, John
Coltrane, Cannonball Aderley, Sonny Rollins, Dexter Gordon, e uma lista interminável de
instrumentistas contribuíram com seu talento para a direta associação com o gênero musical.
Todavia, o saxofone não ficou restrito ao jazz. Ele é amplamente utilizado nas mais diversas
formas de música popular: choro, rock, bossa nova, funk, música pop, etc.
Um lado talvez menos conhecido do grande público é seu uso na música clássica,
como instrumento solista, na música de câmara e como integrante da orquestra sinfônica. O
1
“(Si le Violon est le roi des instrumentes à cordes, le Saxophone est le plus émouvant, le plus prenant, le plus
agréable à entendre des instruments à vent et à anche - .tradução nossa) . Bozza, Eugene in Perrin Marcel – Le
Saxophone – son histoire, sa tecnique et son utilisation dans l’orquestre. 1955 – Paris – Editions Fischbacher
22
instrumento deve seu nome a seu inventor. Antoine Joseph Sax (1814-1894), que ficou
conhecido como Adolphe, notabilizou-se como inventor e construtor de instrumentos.
Nascido em Dinant, na Bélgica, aprendeu o ofício com seu pai, Charles Joseph Sax. Entre
suas contribuições podemos citar a criação dos saxhorns, o aperfeiçoamento do clarinetebaixo, nos moldes em que o conhecemos atualmente, além obviamente da criação da família
dos saxofones. Seu trabalho revolucionou a estrutura das bandas militares e Sax obteve em
sua época muito sucesso. Devido a isso sua vida foi marcada pela disputa e pela inveja de
concorrentes, que sabotavam e boicotavam seus instrumentos.
figura 1 - Saxofones originais de Adolphe Sax, expostos no National Music Museum, na Universidade de
Dakota do Sul (E.U.A)
Um ponto que gera confusão é a definição da data de criação do saxofone. Sax obteve
a patente para o instrumento em 28 de junho de 1846. Entretanto, depoimentos e documentos
comprovam seu surgimento em data anterior, provavelmente entre 1841 e 1842. O
compositor Hector Berlioz, amigo e incentivador de Sax, em artigo de 12 de junho de 1842,
publicado no Paris Journal de Debates, no qual discute a contribuição dos melhoramentos
trazidos por Adolphe Sax, traz uma descrição do saxofone:
23
“[...] O saxofone, assim chamado por causa de seu inventor, é um instrumento com
dezenove chaves, cuja forma é um tanto similiar à do ophicleide. Sua boquilha, ao
contrário dos instrumentos de metal é similar à do clarinete-baixo2. Assim o saxofone
encabeça um novo grupo de instrumentos, de metal com palheta. Tem uma extensão de
três oitavas iniciando no si bemol abaixo da pauta (clave de fá); seu dedilhado é
aproximado da flauta ou da segunda oitava do clarinete. Seu som é de tal rara qualidade,
que de meu conhecimento, não há instrumento grave hoje em uso que possa ser
comparado ao saxofone. É cheio, suave, vibrante, extremamente poderoso, e fácil de
diminuir em intensidade.[...]”3
Berlioz referia-se em seu artigo ao saxofone baixo, que foi o primeiro instrumento a
ser construído e utilizado. Posteriormente surgiram os instrumentos mais agudos da família.
Adolphe Sax idealizou duas famílias completas de instrumentos, uma para utilização em
bandas e a outra para ser utilizada em orquestras sinfônicas. Os instrumentos idealizados eram
os seguintes:
Família si bemol/mi bemol (bandas)
Família dó/fá (orquestras)
Sopranino em mi bemol
Sopranino em fá
Soprano em si bemol
Soprano em dó
Alto em mi bemol
Alto em fá
Tenor em si bemol
Tenor em dó
Barítono em mi bemol
Barítono em fá
Baixo em si bemol
Baixo em dó
Contrabaixo em mi bemol
Contrabaixo em fá
Contudo, nem todos os instrumentos idealizados chegaram a ser construídos. Enquanto
a família destinada a bandas militares permanece em uso até hoje (pelo menos parte dela), os
2
Na língua portuguesa utilizamos dois vocábulos: boquilha para designar o aparato utilizado em instrumentos da
família das madeiras, e bocal para designar o utilizado pelos metais.
3
. “The Saxophone (Le Saxophon), named after its inventor, is a brass instrument with nineteen keys, whose
shape is rather similar to that of the ophicleide. Its mouthpiece, unlike those of most brass instruments, is similar
to the mouthpiece of the bass-clarinet. Thus the Saxophone becomes the head of a new group, that of the brass
instruments with reed. It has a compass of three octaves beginning from the lower B flat under the staff (bass
clef); ots fingering is akin to that of the flute or the socond part of the clarinet. Its sound is of such rare quality
that, to my knowledge, there is not a bass instrument in use nowadays that could be comparad to saxophone. Its
ful, soft, vibrating, extremely powerful, and easy to lower in intensity.” BERLIOZ, Hector in KOCHNITZKY,
Léon (1964) Tradução nossa do inglês.
24
instrumentos da família dó/fá praticamente desapareceram ou sequer existiram. Os
instrumentos geralmente usados atualmente são o soprano em si bemol, o alto em mi bemol, o
tenor em si bemol e o barítono em mi bemol. Em algumas ocasiões, como em grandes bandas
sinfônicas aparece o uso do saxofone baixo em si bemol. O saxofone alto é o instrumento que
tem um maior repertório como solista e na música de câmara.
O saxofone não teve aceitação imediata na música orquestral. Até hoje a maioria das
orquestras não mantém saxofonistas em seus quadros fixos, sendo as partes desses
instrumentos executadas ou por clarinetistas, ou por músicos eventualmente contratados.
Apesar disto, há na literatura de orquestra inúmeras obras utilizando um ou mais saxofones.
Ronkin e Fraskotti (1978) catalogaram mais de 2.500 peças. Algumas das mais belas páginas
da música sinfônica fizeram uso da sonoridade diferenciada dos saxofones. Bizet
(L’arlésiene), Ravel (Bolero e sua orquestração para Quadros de uma exposição, de
Moussorgsky), Richard Strauss (Sinfonia Doméstica), Prokofiev (Romeu e Julieta), VillaLobos (Floresta do Amazonas, Bachianas no. 2, Choros no. 10), Milhaud (A Criação do
Mundo), são alguns exemplos de compositores que usaram o instrumento em suas obra
orquestral.
2.2 – Mule e Rascher – dois mitos na história do saxofone
Não obstante a resistência à sua aceitação como instrumento habitual na orquestra,
muitas obras foram escritas utilizando-o como instrumento solista. Vários instrumentistas
destacaram-se como concertistas, mas dois nomes são de fundamental importância para a
história do saxofone: Marcel Mule e Sigurd Rascher. A contribuição de ambos para a
consolidação do instrumento no meio clássico e a sua elevação ao status de instrumento
“sério” é inestimável.
Marcel Mule (1901-2001) é um dos principais pilares da escola francesa do saxofone.
Villa-Lobos dedicou a ele sua Fantasia para saxofone soprano e orquestra (1938), uma das
25
obras mais conhecidas do repertório concertante para saxofone. Mule assumiu em 1942 o
posto de professor de saxofone no Conservatório de Paris, cargo que fora ocupado
originalmente por Adolphe Sax entre 1857 e 1870. Lá permaneceu até sua aposentadoria, em
1968. Várias gerações de saxofonistas foram influenciadas por sua excelência técnica e sua
sonoridade inconfundível. Destacou-se como solista, apresentando-se com diversas orquestras
na Europa. Em 1958 foi convidado para uma tournée de doze concertos nos Estados Unidos
com a Boston Symphony Orchestra. No mesmo ano recebeu, em reconhecimento a seus
trabalhos, o título de Cavaleiro da Legião de Honra, a mais alta homenagem para um cidadão
francês. Criou em 1928 o Quarteto de Saxofone de Paris, que mais tarde passaria a se chamar
Quarteto Marcel Mule. Este grupo teve uma carreira bem-sucedida, apresentando-se por toda
a Europa.
Mule obteve sobretudo um profundo respeito e admiração por seus colegas e alunos,
que se referiam a ele como Le Maitre .
Sigurd Rascher (1907-2001) nasceu na Alemanha. Matriculou-se em 1930 na
Musikhochschule em Stuttgart, como clarinetista. Entre 1934 e 1938 deu aulas no Real
Conservatório Dinamarquês, em 1938 lecionou também no conservatório de Malmö, Suécia.
Em 1939 realizou concerto com a Filarmônica de Nova York, tendo sido o primeiro
saxofonista a atuar como solista junto a essa orquestra. A partir de 1941 mudou-se para os
Estados Unidos, onde dedicou sua a vida à carreira de concertista de professor. Algumas das
mais importantes obras escritas para saxofone, como o Concerto para Saxofone e Orquestra
de Cordas, de Glazounov e O Concertino da Camera, de Jacques Ibert foram dedicadas a
Rascher. O saxofonista também é reconhecido por seu domínio no registro superagudo do
instrumento4.
4
O saxofone tem uma extensão normal de 2 oitavas e meia, do si bemol 2 até o fá 5 (fá# nos instrumentos mais
modernos). Através de dedilhados específicos e controle da série harmônica é possível ampliar-se a extensão
normal em mais de uma oitava. Rascher especializou-se nesse registro mais alto, tendo publicado um trabalho
sobre o assunto: Top Tones for the Saxophone (1941, 3ª. Ed. 1977)
26
A contribuição destes dois artistas foi decisiva para a aceitação e consolidação do
saxofone como instrumento solista, em pé de igualdade com as demais madeiras.
2.3 - Estilo clássico x estilo popular
Embora os ouvidos da maioria das pessoas esteja mais familiarizada com o som mais
agressivo e estridente utilizado freqüentemente pelos saxofonistas populares, devemos
ressaltar que originalmente as características tímbricas do instrumento eram outras e que a
sonoridade tida como normal não deixa de ser uma deturpação de suas propriedades iniciais.
O saxofone fez muito sucesso nos grupos de jazz porque unia a agilidade do clarinete a uma
maior potência sonora . Por esse motivo foi gradativamente assumindo o lugar desta e se
tornou um dos principais instrumentos utilizados no gênero. A medida em que as orquestras
de dança foram aumentando de tamanho e conseqüentemente de volume sonoro, os
saxofonistas sentiram a necessidade de mudanças que os permitissem acompanhar esse
aumento da intensidade do som. Essas mudanças se deram principalmente no formato das
boquilhas, que passaram a ter uma câmara mais estreita e uma abertura maior. Com isso o
som do instrumento nesse estilo foi se tornando mais estridente e metálico, com prejuízo
entretanto na execução de grandes intervalos. Desenvolveu-se também uma maneira mais
despojada de tocar, com novos efeitos e inflexões.
Estabeleceram-se portanto duas grandes escolas, uma voltada para a música clássica, e
uma outra baseada no jazz, valorizando a improvisação. A forte influência que a disseminação
da música comercial feita nos Estados Unidos para o resto do mundo foi determinante na
formação de um referencial sonoro para uma grande parcela dos saxofonistas no Brasil.
Em geral os músicos optam por uma ou outra escola, embora seja cada vez mais
freqüente que transitem entre os dois estilos. Por exemplo, o curso de saxofone da UFRJ tem
um currículo baseado na escola clássica. Entretanto como prática de conjunto os alunos
participam de uma big band, a UFRJazz Ensemble. Desta forma têm acesso a um leque amplo
27
de tendências musicais e uma formação mais completa. Rascher (1972) não se opunha ao fato
do intérprete se interessar por diferentes estilos musicais e sugeria:
O intérprete que gosta de tocar música de diferentes tipos – e porque não deveria gostar?
– poderia querer usar duas boquilhas: uma com a câmara estreita para o som agressivo
freqüentemente requerido na música de dança, e uma com a câmara original, larga e
arredondada, para o som “clássico”, apropriado para uma sonata. Configurações
parecidas facilitarão esta dualidade.5
2.4 - O Saxofone no Brasil
Em países como França e Estados Unidos encontramos uma forte tradição no ensino
do saxofone. O Conservatório de Paris criou o curso em 1857, tendo como professor o próprio
Adolphe Sax. Foi interrompido em 1871 e restabelecido em 1942 sob a orientação de Mule.
Além dos trabalhos de Mule, a literatura francesa oferece farto material didático e um
repertório extenso para saxofone.
Nos Estados Unidos vamos encontrar uma escola igualmente consolidada, não só no
estilo jazzístico, mas também no estilo clássico. Ao contrário do que se possa pensar nem só
de jazz vive o saxofone americano. Grandes instrumentistas, entre os quais podemos citar
Larry Teal, Eugene Rosseau, Donald Sinta, Lyn Klock e Dale Underwood, dedicaram-se à
musica de concerto.
Aqui no Brasil o que sempre encontramos foi uma carência de material didático e uma
deficiência no ensino do instrumento. Os poucos métodos publicados no país são de maneira
geral inconsistentes. Somente nas últimas décadas do século XX pudemos observar o
aparecimento dos cursos de bacharelado. O saxofone foi por muito tempo relegado à uma
condição marginal. A despeito disto podemos observar na história da música brasileira um
grande número de músicos geniais que fizeram uso do sax como meio de expressão. Como
observado por Soares (2000), há uma carência de referências bibliográficas sobre a história do
saxofone em nosso país, o que impede, por exemplo, de se precisar exatamente a entrada no
5
”The player who likes to play music of different types – and why shouldn’t he – might want to use two
mouthpieces: the one with a narrow chamber for the aggressive sound, so often wanted in dance music: and the
one with the original, wide, round chamber for the “classical” sound, proper for a Sonata. Similar lays will
facilitate such duality”. (tradução nossa)
28
país. Isto daria ensejo a uma pesquisa envolvendo tais aspectos. Com os poucos dados de que
dispomos podemos afirmar que o instrumento chegou ao Brasil ainda no século XIX e tem
uma tradição fortemente vinculada com as bandas de música e principalmente com o choro.
Um dos pioneiros como solista de saxofone foi Viriato Figueira da Silva (1851-1883), grande
mestre do choro. Algumas de suas obras sobrevivem até hoje. Anacleto de Medeiros (18661907) foi figura central na estruturação da música popular brasileira, criador e organizador de
diversas bandas, inclusive a Banda do Corpo de Bombeiros, a qual teve seu status elevado sob
sua direção. Embora tocasse vários instrumentos, tinha uma predileção pelo saxofone
soprano.
Seguindo na linha do tempo encontramos diversos saxofonistas que tiveram uma
carreira destacada, na sua maioria ligados ao choro, mas freqüentemente recebendo a
influência do jazz, dentre os quais relacionaremos alguns, a título de ilustração. Luiz
Americano (1900-1960) tem uma extensa discografia e um grande número de composições
relevantes no Choro. Além do saxofone tocava também clarinete. Integrou com Radamés
Gnattali e Luciano Perrone o Trio Carioca e foi um dos músicos mais atuantes em estúdio.
Abel Ferreira (1915-1980) também é um dos nomes mais importantes da história da
música instrumental brasileira, em especial o Choro. Além do clarinete, instrumento ao qual
costuma ser identificado, tocou também saxofone alto e tenor. sua discografia é igualmente
extensa, seja liderando seus próprios grupos, seja acompanhando artistas da música popular,
como Francisco Alves, Orlando Silva, Marlene, Emilinha Borba, entre outros. Sua carreira
inclui ainda tournées internacionais por Europa, Estados Unidos e América do Sul.
Sebastião de Barros, o K-Chimbinho (1917-1980), integrou as mais importantes
orquestras, como a Orquestra Tabajara, a orquestra de Napoleão Tavares, e a Orquestra
Sinfônica Nacional, da Rádio MEC, além de seus próprios grupos, nas mais diversas
29
formações. Atuou nas principais rádios e gravadoras. Estudou harmonia e contraponto com
Koellreuter.
Paulo Moura (1933) é hoje um dos mais importantes músicos em atividade na música
brasileira. Seu estilo é caracterizado pela combinação de elementos das linguagens do jazz, do
choro e da gafieira. Em sua carreira vitoriosa recebeu vários prêmios, como o Grammy
Latino, na categoria de Melhor Disco de Música Regional e o prêmio Sharp. Sua discografia
extensa inclui desde duos camerísticos a gravações com orquestras sinfônicas. Trabalhou
como arranjador com os nomes mais importantes da música popular brasileira. Integrou ainda
a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 1959 gravou um LP
denominado Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali, juntamente com o compositor.
Victor Assis Brasil (1945-1981) teve sua carreira ligada mais diretamente ao jazz,
sendo referência entre os cultivadores do gênero no Brasil. Foi premiado em concursos e
festivais de jazz na Europa. Em 1969, foi para os Estados Unidos da América, para estudar na
Berklee School of Music. Recentemente tem sido realizado um trabalho de recuperação de
suas obras, através de seus manuscritos, em arranjos para grandes e pequenas formações.
Parte desse material foi apresentado pela UFRJazz Ensemble no Rio de Janeiro. É
considerado um pioneiro na moderna música instrumental brasileira.
Não podemos ainda nos esquecer do mestre Pixinguinha (1897-1973), a maior figura
do choro e um dos mais importantes compositores e artistas de toda a música brasileira.
Exímio flautista, com certeza um dos melhores na nossa música, Pixinguinha às vezes trocava
a flauta pelo saxofone tenor, tendo em 1946 passado a se dedicar exclusivamente a este.
Estes são apenas alguns exemplos de músicos que fizeram uso do saxofone como meio
de expressão. Tantos outros se destacaram ou ainda se destacam no domínio do instrumento,
como Sandoval Dias, Zé Bodega, Aurino Ferreira, Juarez Araújo, Nivaldo Ornelas, Leo
Gandelman, para citar apenas alguns, nascidos ou radicados no Rio de Janeiro. Como
30
dissemos anteriormente são músicos com carreiras direcionadas principalmente para a música
popular, com algumas incursões na música clássica.
Uma exceção à essa tendência foi Ladário Teixeira (1895-1964). Os dados biográficos
deste artista são esparsos, mas ao que parece, o músico, cego de nascença, tornou-se um
virtuose no instrumento, com tournées pela Europa e Estados Unidos. O saxofonista foi
conhecido por sua habilidade em ampliar a extensão normal do instrumento. A companhia
Selmer, tradicional fabricante de saxofones, criou um modelo exclusivo, com as adaptações
por ele sugeridas. Segundo Paulo Moura (depoimento pessoal em 13/5/2004, Rio de Janeiro),
o contato de Radamés Gnattali com esse músico pode ter inspirado o compositor na criação
das obras para saxofone.
Deve-se ainda mencionar o trabalho de Dilson Florêncio, professor de saxofone da
Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. O músico tem dedicado sua
carreira ao estilo clássico do instrumento. Estudou no Conservatório de Paris sob a orientação
de Daniel Deffayet. Florêncio tem atuado como solista junto às principais orquestras do
Brasil, bem como ministrado cursos e oficinas em vários festivais. Criou e integrou o
Quarteto de Saxofones MinasSax (hoje denominado Monte Pascoal).
Os argumentos apresentados anteriormente nos levam a algumas reflexões. Como
vimos, embora o saxofone seja relacionado intimamente com o jazz, vimos que sua utilização
na música clássica, e mesmo na música brasileira, através do choro, se deu muito antes de sua
ascensão no estilo originário da América. Constatamos a existência de duas escolas, uma
voltada para a música de concerto e a outra enraizada no jazz. Pudemos ainda perceber a
presença de uma “escola” informal, baseada na troca de informações e na experiência
profissional, da qual tomou parte a maior parte das primeiras gerações dos saxofonistas
brasileiros. Este conjunto de aspectos é importante para se interpretar a obra para saxofone de
Radamés Gnattali. A característica mais marcante de sua música é a aproximação entre os
31
estilos popular e clássico. Alguém poderia alegar que a maior referência que o compositor
tinha do saxofone era o convívio com os músicos com quem travava contato diário em seu
trabalho no disco e no rádio e portanto o jeito “popular” de se tocar seria o mais apropriado
para a leitura de suas obras. Entretanto, nos parece que compositores como Gnattali e GuerraPeixe, que tinham um pé na música popular e outro na música clássica, gostavam de trazer
esses músicos para o lado da música de concerto, mostrando outras possibilidades
interpretativas. A situação limítrofe em que se encontra a produção Gnattaliana exige do
intérprete um conhecimento amplo. Ao concluir pela necessidade do conhecimento da música
popular urbana carioca para a interpretação da música de Radamés para piano, Canaud (1991)
aponta uma direção. Porém é necessário que se desenvolva um raciocínio na direção inversa.
Especificamente no caso dos saxofonistas, que em sua maioria vêm de uma escola informal
ou baseada no jazz e na música popular, é desejável o conhecimento de aspectos da escola
clássica do instrumento. A música de Gnattali é repleta de aspectos característicos da música
popular: choro, maxixe, samba-canção, bossa nova, jazz, etc. Todavia, apresenta elementos e
técnicas característicos da música de concerto: domínio das grandes formas, contrapontos,
harmonias intrincadas. Um conhecimento mais amplo das diversas escolas do saxofone pode
trazer ao intérprete recursos que lhe permitam combinar tais elementos de música popular e
de concerto captando mais intensamente a atmosfera das composições de Gnattali. Estamos
aqui nos referindo a suas composições de maior porte, a Brasiliana no. 7 e o Concertino, que
têm um caráter mais concertante, embora mesmo as obras de orientação mais nitidamente
popular possam ter uma interpretação mais camerística. A riqueza da música de Gnattali está
justamente no leque de opções interpretativas que oferece ao músico.
CAPÍTULO 3 - O RÁDIO, O DISCO: O CONVÍVIO COM A INDÚSTRIA
CULTURAL
3.1 – Radamés e a Indústria Cultural
Ao analisar a trajetória musical de Radamés Gnattali, podemos detectar os reflexos de
sua convivência com o mercado e a indústria cultural. Radamés foi um dos mais importantes
arranjadores da história da música popular brasileira. Sua produção nessa área é espantosa,
tendo realizado mais de 6.000 arranjos durante sua carreira.
Praticamente todos os grandes nomes da canção brasileira trabalharam com ele. A
imensa experiência com a música popular, como maestro, arranjador e compositor, deixou
marcas em sua produção voltada para a música de concerto. Radamés assimilou toda a
informação adquirida na sua vasta experiência profissional, trabalhando-a livremente em sua
composição, a ponto de ser considerado pelos mais puristas de jazzista e americanizado. O
objetivo deste capítulo é refletir sobre as relações de Gnattali com o mercado musical,
sobretudo o radiofônico e fonográfico, e as conseqüências desse convívio em sua produção
musical.
Diversos autores têm discutido a indústria cultural nas últimas décadas. Faremos aqui,
para delimitar nosso universo de pesquisa, uma síntese do pensamento de alguns deles. As
idéias de Adorno, por mais aristocráticas que possam parecer, nos servem de ponto de partida
para análise. Suas asserções, à primeira vista apocalípticas, ou às vezes preconceituosas
causam a repulsa dos adeptos da música popular, da qual julgam ter o autor uma visão crítica
negativa. Entretanto muitos dos resultados de suas análises se confirmaram e a situação atual
do mercado musical comprova em grande parte o teor de seu pensamento. Sua influência é tão
forte que é impossível se falar em cultura de massa sem ser afetado por seu legado, mesmo
que seja para discordar de algumas de suas conclusões.
33
Mais próximos do nosso tempo, outros autores têm uma visão menos ácida da cultura
de massa, conseguindo ver aspectos positivos na indústria cultural. Em nosso trabalho
abordaremos especialmente a visão do francês Edgar Morin e do italiano Humberto Eco.
Após debatermos o fenômeno indústria cultural, veremos como Radamés Gnattali se
inseriu no contexto do mercado musical. Avaliaremos como Radamés absorveu elementos da
música praticada em seu trabalho na rádio e no disco, utilizando esse material em sua música
de concerto. Veremos também o modo como ocorreu o processo inverso, ou seja, como sua
bagagem, sua competência e genialidade podem ter levado ao universo radiofônico e
fonográfico incrementos qualitativos. Situaremos nossa análise no período da Rádio Nacional
(de 1936 ao início da década de 1960), por ser este o mais representativo e no qual sua
participação no mercado foi mais incidente.
3.2 - A Indústria Cultural na perspectiva Adorniana
O termo Indústria Cultural foi provavelmente utilizado em 1947, pelo próprio Adorno,
no livro Dialektik der Aufklärung, escrito conjuntamente com Horkheimer. Adorno sempre foi
um duro opositor da Indústria Cultural. O termo foi cunhado, em oposição à cultura de massa,
pois este teria a conotação de uma cultura surgida das massas e para as massas. A indústria
cultural impunha seus produtos à massa, exercendo uma função mistificadora, fazendo esta
pensar ser o centro do sistema, quando na realidade não passa de um acessório.
“O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o
sujeito dessa indústria, mas seu objeto. O termo mass media, que se introduziu para
designar a indústria cultural, desvia, desde logo, a ênfase para aquilo que é inofensivo.
Não se trata nem das massas em primeiro lugar, nem das técnicas de comunicação como
tais, mas do espírito que lhes é insuflado, a saber a voz de seu senhor. (Adorno, 1994, p.
93)
Adorno tinha grande desconfiança quanto à atuação da Indústria Cultural. Segundo seu
raciocínio esta seria uma ferramenta para alienação e controle das massas. Assim, embora
dando ao consumidor uma falsa sensação de liberdade de escolhas, na realidade seria relegado
ao papel de uma engrenagem de um sistema. A indústria cultural destruía a autonomia da arte,
34
embora ele reconhecesse que esta nunca a tivesse alcançado plenamente. Referindo-se à aura,
conceito utilizado por Benjamim, Adorno afirmava que a indústria cultural servia-se desta
“em estado de decomposição, como um círculo de névoa” (Idem, p. 95).
Assim, a indústria cultural, relegando as obras de arte ao status de mercadoria,
comercializada com o mero objetivo de lucro, desenvolvia um perverso sistema de
manipulação e mistificação das massas. Ao mesmo tempo que vendia sempre os mesmos
produtos, passava a ilusão de os estar criando, novos e diferenciados. A imutabilidade era uma
das características de sua estrutura.
O que na indústria cultural se apresenta como um progresso, o insistentemente novo que
ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a mudança de indumentária de um
sempre semelhante; em toda parte a mudança encobre um esqueleto no qual houve tão
poucas mudanças como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou ascendência
sobre a cultura. (Idem, idem, p. 123)
A indústria cultural promoveria então um convite à conformação às regras do sistema.
Estas regras eram ditadas por interesses poderosos, corroendo a individualidade e destruindo o
discernimento dos homens.
Referindo-se diretamente à música popular, os efeitos das diretrizes da indústria
cultural eram sentidos num processo de estandardização das canções. Desta maneira o
resultado sonoro pareceria sempre familiar, facilitando a aceitação do ouvinte. Neste
procedimento enquadrar-se-iam, por exemplo, a duração padrão de 32 compassos da parte
temática, bem como da amplitude de uma nona da melodia. Entretanto, para atender a
demanda do público por produtos sempre diferenciados, a indústria cultural desenvolveu um
processo de pseudo-individuação, cuja função seria manter os indivíduos “enquadrados,
fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por ele, pré-digerido
(Idem,id.,p. 123).
Para a assimilação de suas canções estandardizadas, a indústria cultural promoveria
um gigantesco mecanismo de divulgação e promoção, bombardeando e massacrando os
35
ouvintes, quebrando a resistência à aceitação de suas trivialidades. Julgava Adorno que os
promotores da cultura de massa alegavam oferecer às massas o que estas queriam. Na
realidade eles moldavam a consciência do público para que este pensasse estar querendo tais
produtos, mas que de fato lhe eram impingidos. Para fugir da realidade estressante do dia-adia, o público buscaria diversões que lhe trouxesse algum alívio de sua dura rotina. A música
popular leva ao relaxamento por não exigir esforço para a compreensão, de vez que é
padronizada e pré-digerida.
Segundo Puterman (1994), o pensamento de Adorno conjugava três aspectos: a defesa
da criatividade das massas; a idéia de que outrora existira uma arte popular autêntica e o
horror do modelo personalizado pelo nazismo. Com certeza, o horror do nazismo influenciou
o pensamento de Adorno e Horkheimer. O grande capital financiava a expansão industrial
nazista, e em sua visão a indústria cultural apresentava a mesma rigidez do nazi-fascismo.
“É preciso lembrar, novamente, que seu raciocínio estava profundamente embebido nas
particularidades do momento histórico em que vivia, e seu grito de revolta se dirigia às
férreas estruturas da indústria capitalista, da qual a pior prova era o desenvolvimento
industrial da Alemanha sob o nazismo.” (Putterman, 1994, p.95)
Contudo, embora seu posicionamento seja por vezes considerado radical, não podemos
deixar de notar que, ainda nos dias de hoje, muitos dos procedimentos descritos por Adorno
fazem parte do cotidiano da chamada música de mercado, embora em sua época acreditasse
que “o que existia era um período passageiro” (Idem, idem, 17) . O lucro acima de tudo move
grande parte desse mercado. Toda sorte de lixo é imposta ao ouvinte, num massacre sonoro,
que realmente termina por minar, na maioria dos casos, seu discernimento e sua
individualidade. Quanto menos possa o ouvinte diferenciar tais produtos, maior é a facilidade
de sua aceitação. A indústria cultural permanece uma grande máquina com inescrupulosos
interesses comerciais. Um grande número de produtos de valor estético no mínimo duvidoso é
36
imposto à população. Infelizmente a maior parte desta sucumbe aos desígnios dessa máquina
e consome tais produtos indiscriminadamente.
Portanto, apesar da acidez e de uma postura que soa às vezes elitista, somos obrigados
a concordar com Adorno em grande parte de suas asserções. A nosso ver seu erro está
justamente no absolutismo de suas declarações, não separando o joio do trigo. É interessante
notar como os mesmos exemplos que ele usa para descrever as trivialidades, muitas vezes são
hoje considerados clássicos da música popular. Dentro da indústria cultural há sim como
objetivo primeiro o lucro. Entretanto não podemos deixar de notar a existência de várias
correntes, com variados níveis de equilíbrio entre preocupações comerciais e valores
artísticos. Logicamente a maioria esmagadora encontra-se na corrente comercial do produto
com pouco ou mesmo nenhum valor estético. Entretanto no seio desta mesma indústria
cultural existe uma miríade de compositores e intérpretes que conseguem em maior ou menor
grau conciliar os interesses econômicos com uma real expressão artística. Historicamente a
música popular brasileira nos fornece inúmeros exemplos de músicos aos quais se pode
indubitavelmente atribuir o estatuto artístico: Noel Rosa, Pixinguinha, Tom Jobim, Chico
Buarque, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Jackson do Pandeiro, e tantos outros, numa lista
interminável. Radamés Gnattali teve um papel destacado na história da música popular
brasileira. Como poderemos verificar mais à frente, seu talento e competência deram suporte
para a criação de algumas das mais belas páginas de nossa música.
3.3 - Outra visão – O pensamento de Morin
Outros autores analisam a cultura de massa de maneira diferente. Entre estes
certamente se alinha o francês Edgar Morin. Este não considera a cultura de massa, e sua
natureza industrial, um elemento necessariamente nocivo, mas uma forma de cultura válida e
representativa do século XX.
37
Morin situa temporalmente o surgimento da cultura de massa no final da Segunda
Grande Guerra. A cultura vinda do cinema, do rádio, da televisão se desenvolve ao lado das
culturas existentes. Ela se insere no contexto cultural, entrando em concorrências com outras
culturas. Sua abrangência assim é sintetizada por Morin:
“Embora não sendo a única cultura do século XX, é a corrente verdadeiramente maciça e
nova deste século. Nascida nos Estados Unidos, já se aclimatou à Europa Ocidental.
Alguns de seus elementos se espalharam por todo o globo. Ela é cosmopolita por vocação
e planetária por extensão. Ela nos coloca os problemas da primeira cultura universal da
humanidade.” (Morin, 1977, p. 16)
O surgimento da cultura de massa provocou uma reação por parte da crítica
intelectual, seja de direita, seja de esquerda. A direita a enxerga como barbarismo plebeu, e a
esquerda a considera alienante. Sem julgar o mérito, Morin identifica essa resistência
intelectual.
Morin define seu método de abordagem como autocrítico e da totalidade. Para ele é
preciso estar ciente da interatividade entre setores e a participação do objeto, ou seja, é preciso
se integrar ao universo da cultura de massa para criticá-la. O observador deve estar atento ao
complexo sistema de relações do sistema, não se contentando em isolar um ou outro setor.
A indústria cultural, de certo modo, traz de volta o antigo coletivismo do trabalho
artístico. A divisão do trabalho segue os moldes de produção industrial (linha de produção).
Isto pode ser sentido em maior ou menor grau em todas as suas manifestações. A estrutura de
concentração técnica e burocrática, que é característica da indústria cultural, gera em si uma
situação paradoxal. Ao mesmo tempo em que sua estrutura gera uma tendência à
padronização e despersonalização do produto cultural, a natureza da estrutura sempre reclama
por um produto novo e individualizado. A dialética entre padronização e individualização
tende assim a se estabelecer num ponto médio.
A cultura de massa tem como aspecto positivo o intercâmbio entre classes sociais. A
cultura tradicional tratava de delimitar os limites de classe. Foi o cinema o primeiro a reunir
38
em seus circuitos classes sociais diferentes. Como seu objetivo é atingir um público cada vez
mais amplo, esta trabalha no sentido de uma homogeneização dos gostos. Ela tem uma
tendência cosmopolizante. Adapta temas locais e os transforma em cosmopolitas.
Morin discorda de Adorno no sentido de ser a cultura de massas realmente imposta a
essas massas, como acreditava o filósofo alemão. Em substituição acredita que ela seja o
resultado de uma complexa dialética entre produção e consumo, inserida na dialética da
sociedade. Também vislumbra no universo da cultura de massa espaço para a manifestação
artística, ou seja, embora na sua natureza esteja presente uma tendência ao conformismo e à
homogeneização, a criatividade e a resistência intelectual podem se manifestar.
“E é por isso, que ao mesmo tempo que fabrica e padroniza, o sistema também permite
que o cinema seja uma arte. No próprio seio da produção em série, há jogos para adultos,
jornais de crianças, canções da moda, folhetins, comics, os ‘Signe Furax’ e os ‘SuperCrétin de la Terre’, ricos em fantasia, humor ou poesia”. (Idem, idem, p. 49)
Entre os dois extremos, criação e padronização, existe uma corrente cultural média
onde se atrofia o ímpeto criativo, mas também se promove um apuramento dos padrões mais
grosseiros.
Aos aristocratas nostálgicos, Morin afirma não ter havido uma “idade de ouro” antes
da indústria cultural. Os mesmos processos de conformismo reinavam antes de seu
aparecimento. Assim, a cultura de massa carrega em si características já existentes. Sua
natureza globalizante e tecnológica amplificou seus efeitos.
Morin também avalia o papel da cultura de massa no lazer do homem moderno. Este
conquistou o maior acesso a um tempo livre, sendo este preenchido não pela vida familiar
tradicional nem pelas relações sociais costumeiras, mas pela cultura de massa. Ela mobiliza o
lazer, “orienta a busca da saúde individual durante o lazer e, ainda mais, acultua o lazer que se
torna o estilo de vida” (idem, ibidem, p. 69). Seus aspectos negativos, que levam a evasão e
passividade foram criticados pelos intelectuais, mas levam sem dúvida uma parcela da
39
sociedade ao “esboço informe de uma busca no sentido de assumir a condição humana”
(idem, ibidem, p. 76).
3.4 - Uma análise centrada – Umberto Eco
Um posicionamento particularmente interessante é o do italiano Umberto Eco. No
ensaio Cultura de Massa e Níveis de Cultura, publicado em seu Apocalípticos e Integrados, o
autor apresenta um balanço entre aspectos negativos e positivos da cultura de entretenimento,
bem como apresenta propostas de pesquisa que colaborem no sentido de que os meios de
comunicação em massa possam de fato transmitir valores culturais autênticos.
Inicialmente Eco lembra que a crítica à cultura de massa deve mesmo ser rigorosa, ter
uma atitude firme condenando os aspectos negativos de sua natureza. Entretanto, esse
julgamento deve ser feito com bases na sociedade atual. Um erro não raro por parte da crítica
é a adoção de um pensamento nostálgico, tentando avaliar o fenômeno cultural de acordo com
um modelo que de fato já não existe. É importante que a crítica tenha assim uma atitude
construtiva, sem se deixar levar pelo caminho fácil do saudosismo. As primeiras discussões
sobre o problema, como propostas por pensadores como Nietzche e Ortega y Gasset, são no
fundo carregadas de um pensamento aristocrático que vê com desconfiança a democratização
do acesso a bens culturais.
A crítica de Dwight MacDonald fornece as bases para o desenvolvimento do
raciocínio proposto por Eco. O pensador americano fez parte do grupo de radicals que tinham
a desconfiança num poder intelectual que pudesse deixar as massas sujeitas à manipulação,
abrindo campo para o autoritarismo. O equilíbrio das posições de MacDonald levam Eco a
fazer uso delas como ponto de partida para suas asserções. O pensador americano partia da
divisão em três níveis culturais. A uma cultura superior, uma arte de elite, se oporia uma
40
cultura de massa, por ele denominada masscult, representada por exemplo pelas estórias em
quadrinhos e a música gastronômica e uma cultura média, burguesa, a qual denominava
midcult, representadas por obras que parecem ter as características de uma cultura mais
elevada, mas que no fundo traduzem-se em paródias ou falsificações desta. MacDonald não
condenava o masscult, por veicular bens de baixo ou nenhum valor estético, mas execrava o
midcult por usurpar as inovações da vanguarda e banalizá-las.
Eco lamenta a atitude de grande parte da crítica atual (embora reconheça que existem
aqueles que pensem em sentido contrário) que consideram a ruptura entre a cultura superior e
a cultura de entretenimento como definitiva. O próprio MacDonald, que inicialmente defendia
a possibilidade da ascenção das massas às instâncias superiores da cultura, passou a
considerar irreversível a separação entre as culturas. Para Eco, o problema fundamental seria
permitir que todos pudessem ter acesso a bens culturais. Desta forma, aponta um caminho a
ser seguido, embora reconheça a dificuldade das barreiras a serem vencidas, já que envolvem
uma série de operações não apenas no campo cultural mas também no campo da política.
Eco faz um levantamento dos aspectos positivos e negativos da cultura de massa. Sua
crítica é equilibrada, questionando se os pontos levantados acusadores esgotam a
problemática da cultura de massa, ao mesmo tempo em que condena o discurso simplista,
apologista, vindo de dentro do sistema, por parte dos defensores desta.
Os aspectos negativos apontados pela crítica, como relacionados por Eco (1993, p. 4043), encontram-se aqui, de maneira resumida:
a) Os mass media especificam-se segundo médias de gosto. Evitam soluções
originais.
b) Homogeneizando, destroem as características de cada grupo.
41
c) Dirigem-se a um público que não pode manifestar exigência, apenas sofrer suas
propostas, já que não tem consciência de si próprio como grupo social.
d) Tendem a favorecer o gosto exigente em promover o gosto existente sem
promover renovações de sensibilidade. Desenvolvem funções meramente
conservadoras.
e) tendem a provocar emoções intensas e não mediatas.
f) Estão sujeitos à lei da oferta e da procura; pior, pela ação da publicidade sugerem
ao público o que este deve desejar.
g) Nivelam e condensam os produtos de cultura superior, a fim de não provocar
nenhum esforço ao fruidor.
h) Os produtos de cultura superior são colocados numa situação de nivelamento junto
a produtos de entretenimento.
i) Encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo.
j) Entorpecem toda consciência histórica mediante a uma imensa informação sobre o
presente.
k) São estudados para empenharem unicamente o nível superficial da atenção.
Reduzem as obras de arte a mero bens de consumo.
l) Impõem mitos de fácil universalidade, criam tipos prontamente reconhecíveis.
Reduzem a individualidade de nossas experiências e de nossas imagens.
m) Funcionam como uma reafirmação contínua do que já pensamos, desenvolvendo
uma ação conservadora.
n) Desenvolvem-se sob o signo do conformismo. Favorecem projeções orientadas
para modelos oficiais.
42
o) São característicos de uma sociedade democrática em sua superfície, mas que no
fundo é paternalista. Ao invés de crescerem espontaneamente, de baixo para cima,
são de fato impostos pelo sistema.
Do mesmo modo, Eco aponta suas características positivas, baseado nos escritos de
estudiosos que longe de assumirem o discurso simplista e de estarem compromissados com os
interesses do sistema, mesmo assim conseguem detectar tais aspectos. Resumidamente são
estes os pontos levantados por Eco (Idem, idem, p. 44-48):
a) A cultura de massa não é típica de um regime capitalista, podendo ser percebida na
China, ou na extinta, URSS, onde todos seus defeitos típicos estão ou estiveram
presentes.
b) Não substituiu a cultura superior. Simplesmente se difundiu a massas que não
tinham acesso a bens culturais. O prejuízo da consciência histórica é recebido por
uma parcela que na realidade estava alijada de qualquer informação.
c) Os mass media distribuem maciça e indiscriminadamente elementos de
informação. Entretanto é inegável que isso acaba gerando formação, resolvendo-se
em mutação qualitativa.
d) A difusão de produtos de entretenimento negativos não pode ser considerada um
sinal de decadência dos costumes, tendo apenas substituído o papel executado em
tempos remotos pelas lutas de gladiadores e similares manifestações consideradas
negativas, mas que são inerentes à natureza humana.
e) A homogeneização do gosto desenvolveria funções de descongestionamento anticolonialista em muitas partes do mundo, eliminando diferenças sociais e
unificando sentimentos nacionais.
f) Promove a democratização do acesso a bens culturais, reduzindo o seu custo.
43
g) O efeito de embotamento das capacidades receptivas, provocado por sua ampla
difusão é de fato um fenômeno comum a todas as épocas. Apenas teve seus efeitos
amplificados. Mesmo as críticas à cultura de massa acabam sofrendo esses efeitos,
uma vez que divulgados em veículos de grande circulação, acabam sendo
convertidos em bens de consumo.
h) Se os mass media não sugerem critérios de discriminação às informações
oferecidas, sensibilizam o homem face ao mundo.
i) Não é verdade que os meios de massa sejam conservadores. Constituem um
conjunto de novas linguagens, promovendo renovação estilística.
O principal erro dos defensores da cultura de massa, segundo Eco, é a presunção de
que o simples fato de veicular artigos culturais a torne necessariamente uma coisa boa.
Esquecem-se de que a indústria cultural é movida por interesses econômicos, regida portanto
por um conjunto de leis de mercado. O objetivo central é o lucro, o que acaba criando uma
relação paternalista de produtor x consumidor. Eco ressalta ainda que essa relação pode se
manter mesmo num regime diverso [socialista], em que o poder econômico é simplesmente
substituído por um poder político, com o intuito de controle das massas. Ou seja, a cultura de
massa tem uma natureza industrial, portanto segue todas as diretrizes de qualquer atividade
industrial.
Já o erro dos “apocalíptico-aristocráticos” reside justamente em considerar a cultura de
massa má devido a essa natureza industrial, “ministrando uma cultura subtraída ao
condicionamento industrial” (idem, ibidem, p. 49).
A questão central, segundo o autor, não é necessariamente discutir se a cultura de
massa é boa ou má, mas, uma vez que sua existência é um fato consumado, definir que tipo de
ação cultural seria necessária para que possa realmente veicular valores culturais. Portanto,
44
ele convoca os homens de cultura para que adotem uma intervenção mais efetiva nesse
sentido. A indústria cultural atende a poderosos interesses econômicos. O lucro é seu
primordial objetivo. A atitude mais comum da classe intelectual é o silêncio, como forma de
protesto ao sistema, mantendo-se fora de suas engrenagens. Pelo contrário, os intelectuais
deveriam intervir nos mecanismos da cultura de massa a fim de gerar mudanças, ainda que
parciais, que permitissem alterar a relação paternalista entre produtor e consumidor. Desse
modo, ainda que não se tenha de fato uma cultura realmente feita pelas massas, pelo menos
podemos ter fatores mediadores que façam com que a relação produtor x consumidor deixe de
ser paternalista, passando a dialética.
Eco propõe uma revisão dos 3 níveis de cultura, para que não tenham conotações que
os tornam, na sua opinião, tabus perigosos. Dessa forma os três níveis não representam uma
divisão de classes. Nada pode impedir uma pessoa das chamadas classes superiores de
apreciar uma obra característica do masscult. Os três níveis também não representam
diferentes graus de complexidade, ou seja, somente as obras mais complexas ou difíceis
seriam classificadas como high. Por isto mesmo os níveis não representam diferentes níveis
de validade estética. Pode haver obras dotadas das características que a classifiquem junto à
vanguarda, e que no entanto sejam consideradas feias, sem que por isso percam sua condição
ou status. O inverso também pode ocorrer: uma obra destinada a um público vastíssimo e que
devido a sua originalidade seja totalmente dotada de validade estética. Por fim, a passagem de
estilemas de um nível superior a uma instância inferior não significa necessariamente que
estes tenham sido consumidos. Pode haver uma evolução do gosto coletivo.
Eco acredita que a classificação em níveis se dá no nível da fruição. Todos nós
podemos oscilar entre apreciar em momentos distintos tanto à mais autêntica obra de arte
quanto à maior banalidade proposta pela indústria de entretenimento. O que é realmente
necessário é fazer com que todos os cidadãos, independentemente de sua classe social possam
45
ter acesso a um maior número de bens culturais, tendo portanto a possibilidade de fazer seus
próprios julgamentos. O modelo que aí está peca justamente por essa exclusão. Além do mais
ao invés de simplesmente repudiar, por exemplo, uma música de entretenimento pela sua
nulidade estética, é preferível pensar numa música em que os interesses comerciais possam
ser mantidos sob controle e que o produto final apresente um mínimo de conteúdo artístico.
Desta maneira defende que os 3 níveis de cultura se complementem:
Portanto, só aceitando a visão dos vários níveis como complementares e todos eles
fruíveis pala mesma comunidade de fruidores, é que se pode abrir caminho para uma
melhoria cultural dos mass media (Idem, idem, p. 59).
Eco tem a consciência de que este é um processo complicado e que as mudanças não
devem ocorrer de maneira pacífica e institucionalizada, mas como resultado de uma violenta
“tensão dialética”. Apresenta por fim algumas propostas de pesquisa que podem auxiliar uma
discussão para o problema. São elas:
1.
Uma pesquisa técnico-retórica sobre as linguagens típicas dos meios de
massa e sobre as novidades formais introduzidas.[...]
2.
Uma pesquisa crítica sobe as modalidades e os êxitos da passagem de
estilemas do nível superior ao médio. [...]
3.
Uma análise estético-psicológico-sociológica de como as diferenciações da
atitude fruitiva influem no valor do produto fruído. [...]
4.
Uma análise crítico-sociológica dos casos em que novidades formais,
embora dignas, agem como simples artifícios retóricos para veicularem um
sistema de valores que nada têm a ver com elas. [...] (idem, idem, 62-67)
Gostando ou não, a cultura de massa, ou indústria cultural, ou mass media, ou
qualquer que seja sua designação, é uma realidade de nosso tempo. Os avanços tecnológicos
se multiplicam com uma velocidade cada vez mais espantosa. Sua presença na sociedade
moderna é inegável e inevitável. Se a indústria cultural tem seu lado nefasto, o que é
irrefutável, e funciona como manipuladora e alienadora, atendendo a poderosos interesses
econômicos, cabe aos homens de cultura ludibriar o sistema e, como sugere Eco, trabalhar no
sentido que ela também divulgue valores culturais autênticos. Permitir ao homem comum ter
acesso a bens culturais e fazer suas escolhas. Acreditamos que de fato isto possa acontecer. A
46
longa carreira de Radamés Gnattali junto ao mercado radiofônico e fonográfico, como
veremos a seguir, é uma prova disto.
3.5 - Radamés e o Rádio – a “Era de Ouro”.
Quando Morin analisa a cultura de massa afirma não ter havido antes dela uma “idade
de ouro” anterior à sua existência. Contudo ao confrontar o cenário do atual estágio do
mercado cultural no Brasil com o passado, o que percebemos é que na realidade houve uma
grande reconfiguração. Nas décadas de 40, 50 e mesmo 60 o mercado musical brasileiro
fervilhava. As grandes rádios tinham suas orquestras, seus casts de artistas e a produção
musical trabalhava a todo o vapor. O multi-instrumentista Zé Menezes, parceiro e amigo de
Radamés, nos dá um panorama da época:
[...] A Mayrink Veiga era naquela época a segunda emissora do Rio de Janeiro. Foi no
tempo da música propriamente dita. Na realidade qualquer rádio de interior tinha seu
regional, seu cast maior ou menor, às vezes meio amadoristicamente, mas tinha o seu
cast, sua orquestrinha. No Rio de Janeiro e São Paulo nem se fala, qualquer casa tinha
sua orquestra, seu grupo bom. Tinha os cassinos. Era a época da música mesmo. O Brasil
parecia país de primeiro mundo. (Entrevista concedida em 12-08-2003, Guapi-Mirim-RJ.
A conjuntura econômica, a trajetória política do país e os avanços tecnológicos
tiveram influência no estágio atual da indústria cultural brasileira. Remanescentes daquele
período freqüentemente deixam transparecer esse sentimento de retrocesso, embora possamos
perceber uma certa nostalgia. Na opinião de Menezes os anos 50 representaram uma era de
ouro na música brasileira, com espaço para o trabalho dos músicos nas mais variadas áreas.
Este cenário teria mudado por diversas razões, entre as quais ele aponta os avanços
tecnológicos .
Na minha opinião é o seguinte: nós regredimos de uma maneira assustadora. Eu lamento
que nós estivemos tão bem. Os anos 50 foram anos de ouro da música brasileira. [...]Hoje
em dia, o que tem de enganador por aí não está no gibi, porque a própria tecnologia fez
com que as pessoas se acomodassem. (Idem)
47
Na realidade, o que Menezes define como anos de ouro da música popular brasileira é
conseqüência de um processo deflagrado nas décadas de 1920 a 1930. A Geração Noel Rosa,
de acordo com Wander Nunes Frota (2003), presenciou o surgimento de uma indústria
fonográfica e radiofônica poderosa, que forneceu o modelo para as décadas subseqüentes e
consolidou o estabelecimento da indústria cultural no Brasil. Situando essa época de ouro, nos
anos 20-30, aponta a criação da orquestração brasileira como um fator decisivo para o
desenvolvimento da atividade musical no Rio de Janeiro, na metade da década de 1920.
Embora considerando Pixinguinha como personagem central do surgimento dessa
orquestração brasileira, Frota reconhece a importância de nomes como Radamés Gnattali,
Eduardo Souto et al. como figuras destacadas em sua criação, tendo “um pé mais firme na
música erudita e outro na popular” (Frota, 2003, p. 72), ao contrário de Pixinguinha, mais
ligado à música popular, mais especificamente o Choro.
Ao analisarmos a participação de Radamés Gnattali dentro da indústria cultural temos
que levar em consideração que ao contrário do que dizia Adorno, havia sim espaço para uma
manifestação artística autêntica. Ao lado dos programas de auditório, com cantores e
variedades, muitas primeiras audições de compositores brasileiros fizeram parte da
programação da Rádio Nacional. Isto não quer dizer que não houvesse já naquela época um
direcionamento do trabalho musical a uma simplificação atendendo a interesses comerciais.
Menezes nos exemplifica esse processo:
A ambição comercial sempre existiu, haja visto que quando comecei a gravar, naquele
tempo a gente se preocupava muito com técnica e as fábricas queriam uma coisa
comercial, para vender. [...]. A exemplo disto, quando o Garoto, o Menezes, o Laurindo
gravavam técnica, chegou o Waldir Azevedo e “estourou” com Delicado e Brasileirinho.
O cara da Odeon chamou o Garoto e falou: -‘Garoto, você tem que baixar a bola e gravar
coisa mais simples pra vender, porque você vê o Waldir, por exemplo, gravou o Delicado
e estourou’. O que fez o Garoto? Começou gravando o Baião Caçula, que vendeu “pra
danado”, fez São Paulo Quatrocentão, com a qual ele ganhou algum dinheiro, porque até
então não tinha ganhado nada. Então o Zé Menezes gravou “De papo pro ar”,
conquistando a fama.
48
Entretanto, Menezes conclui: “Pelo menos naquele tempo a gente podia fazer a música
boa”.
O maestro Alceu Bocchino, grande representante de nossa música e que também teve
uma participação efetiva no circuito comercial de rádio, disco e TV nos dá sua visão das
atuais diretrizes do mercado musical:
... Isto é conseqüência da situação, eu não diria brasileira, mas mundial, um materialismo
terrível. Quando o cidadão sobrepõe os interesses materiais às suas qualidades
intelectuais, incluindo sentimento, inteligência e caráter, é uma infelicidade. Então a
tendência é o domínio das massas através do dinheiro e do poder. (depoimento pessoal
em 11/08/2003, Rio de Janeiro-RJ)
Assim, embora movido por interesses mercadológicos, o rádio e a indústria
fonográfica daquele período forneciam aos artistas algum espaço para conciliarem sua
criatividade aos apelos comerciais do sistema6.
O objetivo inicial de Radamés Gnattali era seguir a carreira de concertista. Suas
primeiras incursões no Rio de Janeiro abriram perspectivas que lhe permitiram vislumbrar
uma carreira como pianista. Entretanto não pôde levar à frente o sonho de se dedicar à vida de
solista. Um dos fatores decisivos na mudança de trajetória foi a não realização do concurso
para professor no Instituto Nacional de Música, atual Escola de Música da UFRJ, em 1931.
Gnattali aguardava tal concurso, pois vislumbrava nesse cargo os proventos que lhe
garantiriam a estabilidade e segurança financeira que o permitiriam dedicar-se ao estudo do
piano. Infelizmente, Getulio Vargas optou pela nomeação de dez integrantes, ficando o
compositor preterido.
A música popular tornou-se meio de vida, primeiramente como instrumentista e logo a
seguir como compositor, regente e arranjador. A história da Rádio Nacional se confunde com
a de Gnattali. O compositor trabalhou na emissora por trinta anos, desde a sua fundação.
6
Não se pode esquecer que aquele era o momento de estabelecimento das bases do rádio e da indústria
fonográfica. A adaptação das matrizes estrangeiras à realidade nacional contou de certo com a criatividade de
músicos, compositores e arranjadores para o estabelecimento de seus padrões.
49
Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que Radamés Gnattali foi o maior arranjador da
música popular brasileira. Sua produção é absolutamente espantosa. Bocchino nos dá uma
idéia de seus talentos:
[...]Ele tinha extrema facilidade para compor, para orquestrar então era uma velocidade
incrível, em questão de meia hora, quinze minutos para fazer um arranjo. [...] Radamés
era um músico de múltiplos talentos. Ele era tão bom na música popular quanto na
música, vamos dizer, mal chamada de erudita, eu digo da música melhor, mais elaborada.
Ele gravou comigo muita coisa.[...] Eu nunca me lembro que o Radamés tivesse borrado
ou raspado alguma nota (Idem)
Na época do rádio produzia-se música em ritmo industrial. Os arranjadores eram
obrigados a escrever quase diariamente novos arranjos para atender à frenética demanda do
mercado. Bocchino nos dá uma idéia do volume de trabalho exigido, ao nos revelar seus
apuros ao ingressar no mercado musical.:
Quando eu vim do Paraná, eu levava um mês para escrever um arranjo. Uma peça minha,
pequena, eu levava um mês para instrumentar. Quando cheguei a São Paulo, tinha que
escrever um arranjo por dia. Eu passava o dia e noite a escrever. Eu sei o pão que comi.
Radamés destacava-se pela sua produtividade, mas também por sua criatividade. Suas
técnicas inovadoras, ao lado de simplicidade foram a sua marca registrada, como lembra
Bocchino:
[...] Quando a gente orquestrava, no início, tinha certos princípios que a gente queria
obedecer. Aí a gente pegava uma instrumentação do Radamés, não tinha nada daquilo, e
funcionava lindamente [...].(Idem)
A partir da idéia do baterista Luciano Perrone, amigo e parceiro por muitos anos
surgiu uma maneira diferente de arranjar, na qual a orquestra passava a ter também funções
rítmicas, antes delegadas somente aos instrumentos de percussão. Radamés inovou também
utilizando uma “base” formada por dois violões e cavaquinho, ao lado do contrabaixo e
instrumentos de percussão, ao contrário do que era usual naquela época, de se utilizar um
grupo influenciado pelas orquestras americanas, formado por piano, baixo, bateria e guitarra.
Assim, a fama de Radamés Gnattali foi se espalhando e ele se tornou o mais respeitado e
venerado maestro da era do rádio. Este longo relacionamento afetou diretamente a sua
50
produção na chamada música de concerto. Radamés absorveu toda a sua experiência na
música popular e usou como fonte inspiradora para grande parte de sua produção erudita. Por
isso recebeu diversas críticas dos mais puristas, que o acusavam de jazzista. Alceu Bocchino
confessa ele próprio ter criticado o amigo:
Eu mesmo, no início, quando ainda não tinha o conhecimento da obra dele, o critiquei.
Mas depois que travei contato maior, percebi que ele tinha uma intuição, em certos
momentos até genial, de captar as coisas. Ele vivia o ambiente realmente onde morava, o
Rio de Janeiro. Era a vida dele. Desde o barzinho do chopp, compreendeu? Até o Teatro
Municipal. Ele era um cidadão autêntico.[...] (Idem)
A naturalidade com que Radamés Gnattali transitava livremente entre as esferas
musicais, e a sua utilização de material da música urbana, comercial, de consumo, nunca foi
totalmente apreendida por parte da classe musical e intelectual, que não conseguia captar seu
modo simples de aplicar tais maneiras, de modo direto, nas suas obras destinadas a concerto.
A opinião de Neves (1991) reflete esse posicionamento . Mesmo em nosso tempo Radamés
não escapa das farpas injustas de parte da crítica. No recém-lançado “Dicionário Cravo Albin
da Música Popular Brasileira”7, ao consultarmos o verbete a respeito de Guerra-Peixe, na
seção “Crítica”, encontramos o trecho a seguir:
Procurou estilizar o frevo, o maracatu, o cabocolinho e o xangô e passou anos a fio em
estações de rádio e televisão, manejando orquestrações de todo o gênero, sem se deixar
contaminar (grifo nosso) pelo jazz, o que ocorreu com Radamés Gnattali.
De fato, trata-se sem dúvida de uma visão muito preconceituosa. Radamés não fez
nada mais que absorver os elementos da música em voga e utilizá-los com maestria em sua
produção seja popular seja erudita. Radamés não tinha preconceito quanto a estilos e a música
fluía dele naturalmente. Sua maneira de orquestrar sempre foi inovadora e alguns dos maiores
clássicos da música brasileira são marcados de maneira definitiva e incontestável pela
contribuição de seus arranjos. A introdução rítmica dos saxofones para a “Aquarela do Brasil”
7
Disponível em http://www.dicionariompb.com.br
51
é um exemplo claríssimo disto8. Quanto ao fato de ser acusado de jazzista, o próprio Radamés
se defende:
O acorde americano, como ficou conhecido o acorde de nona, agradou muito o público e,
se também era utilizado no jazz, era porque os compositores de jazz ouviam Ravel e
Debussy. Aqui ninguém nunca tinha ouvido o tal acorde em outro lugar a não ser em
música americana, e vieram as críticas. Mas o povo não se deixou levar e assimilou muito
bem a novidade.9
Na música do século XX é muito marcante a transmigração de elementos estilísticos.
Assim, ao mesmo tempo em que os compositores e músicos de jazz foram buscar inspiração
nos impressionistas para seus incrementos harmônicos, a música de concerto encontra no jazz
uma fonte muito rica de materiais temáticos. Compositores como Stravinsky e Bernstein são
exemplos claros disto. Mesmo admitindo haver sim na obra de Gnattali alguma influência do
jazz, não podemos ver isso como uma coisa negativa. Apenas reflete o meio musical no qual
estava imerso e sua visão abrangente e sem preconceitos da música. O jazz, mas também o
choro, o baião, o maxixe, o samba e tantos outros elementos foram por ele trabalhados e
combinam-se harmoniosamente. A bossa-nova, que é internacionalmente reconhecida como
um dos mais representativos estilos da música brasileira, é formada basicamente da união do
samba carioca com o idioma harmônico do jazz.
Radamés foi um inovador. Escreveu diversos concertos para instrumentos muitas
vezes não convencionais na música de concerto, dedicados para seus amigos, na maior parte
das vezes oriundos da música popular. Assim ele adequava o conteúdo das obras ao estilo de
cada intérprete. Zé Menezes descreve assim o processo:
O Radamés escutava o cara tocar e ele fazia sob medida, dentro daquilo pra pessoa. O
Fumagali tocava com a gente na Rádio Nacional, harpa, e ele cismou de fazer um
concerto para ele. Mas fez dentro das características do cara. Ele procurava facilitar para
que o cara fizesse exatamente aquilo que ele já estava acostumado. Ele fazia pro
8
Conforme depoimento do compositor, a introdução de “Aquarela do Brasil” não seria de fato de sua autoria,
mas sim do próprio Ari Barroso. Entretanto coube ao maestro a utilização da famosa melodia no grupo de
saxofones e não nos contrabaixos como sugerira Barroso.
9
Gnatalli, Radamés, in BRESSON, Bruno Cartier. Uma história que conta como os violinos chegaram aos
arranjos do samba. O Estado de S. Paulo. 19.03.1979. p.26
52
Chiquinho, ele tocando dentro daqueles moldes dele. E assim com o Jacob (Bittencourt),
o Edu (da Gaita) e assim por diante. (depoimento pessoal, 12/08/2003, Guapi-Mirim-RJ)
Desta forma, sua vasta experiência na música de consumo, o dia-a-dia do trabalho na
rádio e no disco e o ritmo industrial de produção influíram diretamente na produção de sua
música “mais elaborada”, como diria Bocchino. O caminho inverso também pode ser
percebido. Radamés aplicou todo o seu conhecimento, todo o seu preparo adquirido na música
erudita a serviço de seu trabalho na música comercial . Tudo feito com muito esmero e sem
preciosismos. Em sua obra nada é gratuito, conforme afirma Bocchino:
[...] então você vê essa capacidade que ele tinha de fazer a música popular ou mesmo a
erudita, botando um virtuosismo, que não é um virtuosismo banal. Porque os pianistas de
musica popular, no nosso tempo a gente falava nas “passarinhadas”, né? Eram escalinhas,
acordes, as “passarinhadas” no piano. No Radamés não. Ali estava a música mais pura,
aquele conceito de música pura que a gente tem.(depoimento pessoal, 11/08/2003, Rio de
Janeiro)
Radamés reinou absoluto nos trinta anos em que trabalhou na Rádio Nacional. Teve
diversos programas, alguns ficaram no ar durante décadas. Trabalhou com todos os maiores
artistas da canção brasileira. Na indústria fonográfica não foi diferente. São incontáveis os
exemplos de sua atuação neste setor. De acordo com o relato de Menezes,
Radamés criou o Quarteto Continental. Esse quarteto continental..., nós gravamos..., só
se gravava naquela época com esse quarteto. Todo cantor, toda cantora, todos que você
possa imaginar, gravavam com esse grupo (Depoimento pessoal, 12/08/2003, GuapiMirim-RJ)
O grupo, formado inicialmente por Radamés Gnattali, no piano, Zé Menezes na
guitarra, Vidal, no contrabaixo e Luciano Perrone, na bateria, recebeu posteriormente
Chiquinho do Acordeon, passando a se denominar Quinteto Radamés. Este grupo, reforçado
por Aída, irmã de Radamés, tornou-se uma das mais importantes formações instrumentais da
música brasileira, tendo feito na década de 1960 uma excursão de grande sucesso pela
Europa.
53
Com a decadência da Rádio Nacional, na década de 1960, Radamés perde seu grande
veículo de expressão na música popular. Embora tenha trabalhado na televisão, o compositor
se queixava da falta de espaço para a criação devido aos interesses comerciais.
A obra de Radamés Gnattali dilui as fronteiras entre o popular e o erudito. Ele
transitava naturalmente entre gêneros diversos e sua contribuição para a música brasileira foi
de fundamental importância. Seja nas salas de concerto, seja nos auditórios das rádios, seja
nos discos de música popular, seja nas trilhas para cinema, seu talento foi uma pedra
fundamental. Radamés certa vez afirmou “Amo a música popular, mas, se pudesse,
trabalharia exclusivamente sobre a música erudita”10. Mesmo tendo sido levado por razões
financeiras a exercer grande parte de sua carreira no campo da música popular, sempre o fez
com muito prazer, e tratou de aplicar a essa música o mesmo talento e competência, sendo
personagem destacada de algumas das mais belas páginas da música brasileira. Sua postura
sem preconceitos aproximou músicos de gêneros e estilos historicamente separados.
Promoveu um intercâmbio de estilemas, para usar um termo utilizado por Eco, entre a música
popular e erudita, unindo o que há de melhor nos dois gêneros: criatividade, o “molho”, jogo
de cintura e perfeição técnica. E se tornou com certeza um dos mais importantes nomes da
música brasileira no século XX, embora o preconceito, o elitismo e a desinformação de parte
da crítica cultural tanto fizessem por subestimar sua obra.
10
In BARBOSA, Valdinha e DEVOS, Anne Marie, 1984, p. 62-63
CAPÍTULO 4 - AS OBRAS DE RADAMÉS GNATTALI PARA SAXOFONE
4.1 – Os critérios para a elaboração da lista
No presente capítulo apresentaremos as obras para saxofone encontradas em nossa
pesquisa. As duas obras de maior porte, a Brasiliana no. 7 para saxofone tenor e piano e o
Concertino para saxofone alto e orquestra serão objeto de uma análise mais aprofundada nos
capítulos subseqüentes. Por este motivo não estarão aqui relacionadas.
Com exceção das duas obras mencionadas acima, a produção Gnattaliana para
saxofone concentra-se no campo da música popular, embora a natureza multifacetada de sua
produção possa muitas vezes levar a uma classificação equivocada, como fica evidenciado no
catálogo de obras elaborado por Barbosa e Devos.
Dois critérios foram seguidos para a elaboração da relação das obras:
1) Existência da partitura - Algumas obras se perderam sem terem sido editadas, não
existindo sequer rascunho da música. Estarão relacionadas apenas as obras às quais o
intérprete possa ter acesso.
2) Existência de Edição (ou manuscrito) onde seja mencionada a utilização do
saxofone - O compositor freqüentemente apresentou mais de uma versão para muitas de suas
obras, arranjadas para diferentes formações instrumentais. É o caso, por exemplo, do Choro
Bate-Papo, gravado originalmente por Radamés, ao piano, e por Zé Bodega, no saxofone
tenor. Anos mais tarde o compositor faria uma versão desta obra para seu quinteto, do qual
tomavam parte Zé Menezes (guitarra), Chiquinho do Acordeom, Vidal (contrabaixo) e
Luciano Perrone (bateria). Entretanto, como a partitura original prevê a utilização do
saxofone, a obra aparece relacionada.
55
4.2 – A relação das obras
Apresentaremos a seguir a relação das obras para saxofone. Incluiremos excertos dos
primeiros compassos de cada obra, bem como um breve histórico e algumas de suas
características.
exemplo musical 1 - Choro Remexendo
56
Remechendo [sic] – Choro composto em 1943, para quarteto de saxofones (2 altos e 2
tenores), com acompanhamento de piano. Foi gravado em disco 78 rpm no. 15.039 pela
Continental e editado por E. S. Mangione. Tem a estrutura tradicional do choro em três partes,
com esquema ABBACA, precedido por uma pequena introdução de quatro compassos
executada pelo piano. O grupo de saxofones trabalha com textura homofônica, ao estilo das
orquestras jazzísticas. Não obstante o uso extensivo de acordes de sextas e nonas,
característicos na condução das vozes desses grupos instrumentais, as progressões harmônicas
utilizadas nesta obra não se distanciam muito daquelas utilizadas no choro tradicional,
baseadas em encadeamentos do tipo I - IIm - V7 – I, com a utilização de dominantes
secundários e eventualmente empréstimo modal. O próprio esquema do giro tonal (a seção A
na tonalidade de ré maior, a seção B no tom relativo menor e a seção C no tom da
subdominante) é característico do estilo, podendo ser encontrados diversos exemplos de
choros que adotam procedimento semelhante. Outro fato a se ressaltar é que na parte do piano
contém, na seção A e no início da seção B, a notação precisa da “levada” rítmica. A partir
desse ponto o compositor indica apenas os acordes utilizados, deixando por conta do
executante a realização baseada no modelo por ele sugerido. A obra foi gravada novamente
em 1996, pelo quarteto de Saxofone Minas Sax, liderado por Dilson Florêncio, professor da
UFMG, em adaptação para o quarteto clássico de saxofones: soprano, alto tenor e barítono.
No lado B do disco consta um outro choro, Assim é melhor, também para quarteto de
saxofones, que no entanto está desaparecido.
57
exemplo musical 2 - Valsa Caminho da Saudade
Caminho da Saudade – Valsa para saxofone tenor e piano. Foi gravada em 1949 em
disco 78 rpm no. 16.543 pelo compositor e por Zé Bodega ao saxofone. Segue o formato
tradicional das valsas populares brasileiras, obedecendo o esquema AABA, precedida por
introdução de quatro compassos. Foi editada em 1957 pela Editora Bandeirante. A partitura
inclui parte para contrabaixo. Encontra-se no arquivo musical da Biblioteca Nacional, no Rio
de Janeiro. Na seção A, na tonalidade de ré menor, o saxofone fica responsável pela condução
da melodia. Já a seção B, com andamento mais rápido escrita no tom homônimo maior, tem
em sua maior parte o piano executando essa função, realizando o saxofone o papel acessório
com contracantos e comentários.
58
exemplo musical 3 - choro Bate Papo
Bate-Papo – Choro para saxofone tenor e piano (1949). Esta obra foi gravada
juntamente com a valsa Caminho da Saudade, tendo sido igualmente editada por Editora
Bandeirante Ltda (1957). Faz parte também do acervo da Biblioteca Nacional. As duas obras
foram anos mais tarde rearranjadas e regravadas por Radamés e seu Quinteto. O choro tem
estrutura de duas partes AABBA precedida de uma introdução de quatro compassos e
concluindo com uma Coda, com uma ponte conduzindo o retorno entre as seções B e A. A
obra tem uma harmonia bastante sofisticada. Notável também é o diálogo entre os dois
instrumentos, daí seu título.
59
Na época em que começou a trabalhar na Rádio Nacional, o saxofonista e clarinetista
Paulo Moura, impressionado pela composição Bate-Papo, que fizera bastante sucesso,
solicitou a Radamés Gnattali que escrevesse alguma obra para que tocassem juntos, porque,
segundo ele “precisava da bênção do mestre Radamés” (depoimento pessoal em 13/05/2004,
Rio de Janeiro). O compositor prontamente atendeu e escreveu Romance. Um dia na rádio,
antes de começar o trabalho, o compositor chamou o saxofonista para ensaiar a música.
Passava na hora o diretor do programa, que também era diretor da gravadora Continental e
este gostou do resultado. Surgiu daí um projeto que resultou na gravação de um long-play
com Paulo Moura e Radamés Gnattali juntos. Completavam o grupo, Baden Powell, no
violão, Vidal, no contrabaixo e Trinca, na bateria. Infelizmente, somente três das composições
integrantes do trabalho encontram-se preservadas na Biblioteca Nacional, em fotocópia de
manuscrito do compositor: Valsa Triste, Devaneio e Monotonia. As demais composições,
Carioca, Sempre a Sonhar, Penumbra e Romance, estão desaparecidas. Segundo o
saxofonista, existe a possibilidade de que este material esteja em posse da família do pianista
Tenório Jr., destacado instrumentista do período da bossa nova, que foi vítima dos militares
na Argentina. Paulo Moura cedeu ao pianista as partituras de que dispunha, para que as
estudasse. Os músicos tinham um projeto de tocar as obras de Gnattali. O trágico destino de
Tenório Jr. impediu que o trabalho se concretizasse, bem como ocasionou o extravio das
obras. Relacionaremos e comentaremos pois as obras que se encontram nos arquivos da
Biblioteca Nacional.
60
exemplo musical 4 - Valsa Triste
Valsa Triste - É uma das composições mais conhecidas de Radamés Gnattali para
saxofone. A obra é um dos exemplos mais claros dos tênues limites da música do compositor.
Concebida como integrante de uma gravação onde predominam as formas populares da
música, aparece no entanto, no catálogo elaborado por Barbosa e Devos, na produção de
Gnattali para a música clássica. Um outro fato reforça essa característica da obra. A valsa é
uma das peças obrigatórias no teste de habilidade específica para o curso de graduação em
saxofone da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, cujo currículo é
basicamente voltado para a escola clássica do instrumento.
A obra tem uma forma ternária, do tipo ABA, com contraste de andamento entre as
seções (lento-rápido-lento). É interessante notar as indicações de tempo usadas pelo autor na
61
partitura: Lento para as seções inicial e final, e Um pouco mais, para a seção intermediária.
Quando nos propusemos a interpretar tal peça, sem a referência da gravação, tínhamos em
mente um andamento inicial de semínima = 80, aproximadamente. Na mudança de
andamento, o termo “Pouco Mais” sugeria um aumento não tão acentuado. Embora ao
interpretar a obra nossa experiência e intuição musical nos sugerisse a possibilidade de tocar
em ritmo mais acelerado, tentamos conter e adequar nossa interpretação ao indicado na
partitura. Tempos depois, ao ouvirmos a gravação, constatamos que no lugar onde ele
indicava “pouco mais” na realidade queria “bem mais” ou “muito mais”, já que o andamento
é quase o triplo do anterior. Assim se ao contrário de respeitar a indicação da partitura (ou
interpretá-la como tal), tivéssemos de fato nos deixado levar pela intuição e pelo feeling,
teríamos nos aproximado mais do realmente intencionado pelo autor.
Este fato serve para ilustrar que em alguns casos a indicação da partitura pode e deve
ser discutida. Mesmo quando há indicação metronômica precisa, há momentos na hora da
realização da obra em que o intérprete sente ser melhor discordar de tal marcação. Cabe ao
intérprete decidir em que momentos ele vai seguir literalmente o texto, e em que momentos as
suas próprias decisões nortearão sua performance. Esta deve ser uma decisão responsável,
equilibrada e se possível, justificada. A partitura inclui a parte do contrabaixo.
exemplo musical 5a - Devaneio
62
exemplo musical 5b - Devaneio
Devaneio (fox) – O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira destaca a
importância das danças estrangeiras na história de nossa música. A introdução da valsa, da
polca, da schottisch, da mazurca e outras, na primeira metade do século XIX, forneceu as
matrizes para a criação de diversos ritmos nacionais. De maneira análoga o fox–trot
americano, introduzido na década de 1920, fez muito sucesso. Podemos encontrar inúmeras
gravações de foxes, não só canções, mas também muita música instrumental. Nazareth,
Pixinguinha e Eduardo Souto estão entre compositores que escreveram obras no gênero.
Esta composição apresenta uma pequena introdução no piano, uma seção A onde o
saxofone exerce o papel central de solista, uma seção B, onde prevalece o diálogo entre piano
e saxofone, e um retorno a seção A, um pouco modificada e ampliada. No final da obra, o
saxofone conclui com um fraseado mais livre, com ares de uma pequena cadenza. A presença
de elementos de jazz é clara. Guitarra, baixo e bateria tem um papel de sustentação harmônica
63
e rítmica, estando a parte da guitarra escrita em notação de cifras. Não existe parte para a
bateria, tendo sido tocada “de bossa”11.
exemplo musical 6- Monotonia
Monotonia – Este samba-canção apresenta um esquema formal semelhante à obra
descrita anteriormente. Encontramos uma introdução de quatro compassos executada pelo
piano que contém o motivo principal da peça , formado pela alternância de duas notas, o que
11
Jargão largamente utilizado pelos músicos populares, referindo-se ao ato de tocar sem o auxílio de uma parte
escrita.
64
nos pode levar a imaginar se não seria devido a essa recorrência que o compositor denominou
a obra.
exemplo musical 7 - motivo principal de Monotonia
Após a introdução a obra apresenta uma seção A de 32 compassos, com o saxofone
desempenhando o papel central de solista. A despeito do uso abundante de acordes com nonas
e décimas terceiras, o encadeamento harmônico é bem simples situando-se no campo tonal de
fá maior. A seguir uma seção B, mais curta (10 compassos) , onde piano e saxofone dialogam.
Podemos perceber aqui um momento em que o compositor se aproxima da linguagem da
música clássica, afastando-se da “levada” tradicional da música popular. Esta passagem
modulante conduz ao retorno da seção inicial, agora na tonalidade de ré maior, um tanto
quanto ampliada, sendo conduzida pelo piano. De volta à tonalidade original o saxofone
retoma seu papel de condutor e conclui a obra. Como na obra anterior os demais instrumentos
têm uma função de apoio.
Como comentamos anteriormente, tratam-se de composições concebidas no estilo
popular. Entretanto, nada impede que o músico dedicado à escola clássica do saxofone inclua
em seu repertório essas obras, que tocam o público de imediato, e que podem funcionar muito
bem em salas de concerto.
Não poderíamos encerrar o presente capítulo sem mencionar a associação entre
Radamés Gnattali e Luiz Americano, clarinetista, saxofonista, compositor, e figura destacada
na história da música popular brasileira, que juntos gravaram em 1934 duas composições de
Radamés: Serenata do Joá e Vilma. Juntamente com o baterista Luciano Perrone, formaram o
Trio Carioca, de breve duração, mas que gravou outras duas composições: Recordando e
Cabuloso.
CAPÍTULO 5 - A BRASILIANA NO. 7 PARA SAXOFONE TENOR E PIANO
5.1 - Apresentação
A música de Radamés Gnattali transcendeu barreiras. Como ressalta Vasco Mariz
(2000), embora o autor tenha tentado traçar uma linha divisória em sua produção musical,
entre erudita e popular, esses limites, na maioria das vezes são difusos e a linha divisória é tão
tênue que fica difícil classificar o gênero de muitas de suas composições, se é que há alguma
validade nisso. O que interessa é que Radamés promoveu a comunhão dos sólidos
conhecimentos adquiridos de sua formação de pianista clássico, com a experiência da vida
profissional na área popular, seja como músico, compositor ou arranjador, e nos deixou um
legado no qual esses elementos se harmonizam, uma obra rica e variada, onde popular,
erudito, urbano, rural se fundem. Radamés Gnattali foi taxado de jazzista pelos puristas.
Embora o compositor sempre negasse tal influência, é inegável a presença de elementos da
música americana em suas obras. Isso não é necessariamente uma coisa negativa. Em
entrevista o produtor e músico Rildo Hora nos fez a seguinte declaração: “(...)Então como ele
[Radamés Gnattali] compôs demais na área popular, isso aparecia no trabalho dele. Não
acho isso negativo, até interessante, lembra o Gershwin.” (depoimento pessoal em
24/06/2003, Rio de Janeiro), Radamés Gnattali, absorveu uma quantidade enorme de
informações, e devolveu-as misturadas, combinadas, trabalhadas, elaboradas, num resultado
fantástico, no qual a brasilidade é um fator predominante.
A Brasiliana no. 7, para saxofone tenor e piano, é um exemplo claro dessa fusão de
elementos. Integrante do ciclo que reúne algumas das mais importante das composições de
Gnattali, foi composta em 1956, para o saxofonista Sandoval Dias, tendo sido gravada por
Sandoval e o autor em 1957. No mesmo long-play consta também o registro da Brasiliana no.
8, para dois pianos, realizado por Radamés e sua irmã Aída. Sua partitura faz parte do acervo
66
da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. A Brasiliana 7 traz todos os componentes citados
anteriormente. Está presente a música urbana carioca, através do choro e do samba-canção.
Está presente a música nordestina, caracterizada pelo baião e pelo uso do modo mixolídio .
Também estão presentes elementos da música americana, pelas harmonias e texturas dos
acompanhamentos, bem como todos aqueles elementos da escola clássica do piano. O
objetivo do presente capítulo é olhar de perto a obra, fornecendo subsídios para uma maior
compreensão, seja por parte dos intérpretes, ou mesmo para apreciação musical. Neste
sentido, faremos uma breve análise formal, discutiremos as impressões de artistas que tiveram
contato com a peça e por fim comentaremos duas versões gravadas da obra, a gravação de
1957, realizada por Sandoval Dias e Radamés Gnattali, e o registro datado de 1998, por
Carlos Malta e Estela Caldi.
5.2 - Sandoval Dias
Radamés Gnattali escreveu diversas obras para os músicos, geralmente da área
popular, com os quais conviveu e trabalhou. Assim foi com Iberê Gomes Grosso, Edu da
Gaita, Zé Menezes, Paulo Moura, Jacob do Bandolim, entre outros.
Portanto, é um bom caminho para se chegar a um melhor conhecimento de tais obras,
conhecer um pouco sobre os intérpretes aos quais as peças foram dedicadas. Embora não haja
anotação na partitura, todos os depoimentos colhidos comprovam o fato da obra ter sido
realmente dedicada a Sandoval Dias. Portanto, um levantamento preliminar sobre sua
trajetória musical se faz necessária. Devido à escassez de dados que pudessem ilustrar sua
atuação no mercado musical, obtivemos as informações a seguir através de depoimentos de
amigos, familiares e personalidades do meio musical.
Sandoval Dias (1906-1993) foi um músico com grande atuação no mercado musical
carioca. Trabalhou por 20 anos na Rádio Nacional, ao lado de todos os grandes músicos e
67
maestros da época: Radamés, Chiquinho do Acordeon, Léo Perachi, Lírio Panicali, GuerraPeixe, Zé Menezes, Altamiro Carrilho, e tantos outros. Mais tarde transferiu-se para a Rádio
MEC, tocando clarinete-baixo na Orquestra Sinfônica Nacional e atuando também como
solista no saxofone. Uma sonoridade apurada sempre foi sua característica marcante. Atuou
ativamente no mercado fonográfico, tendo gravado com os maiores nomes da música popular
brasileira. Como contratado da gravadora Philips, tem uma discografia formada por 12 longplays instrumentais. Após sua aposentadoria na Orquestra Sinfônica Nacional, dedicou-se ao
trabalho com bandas de música, em Cordeiro-RJ, Nova Friburgo-RJ e com a Banda Civil da
Cidade do Rio de Janeiro. Alguns depoimentos de amigos e músicos nos dão a idéia de seu
perfil:
No tempo em que eu trabalhei com o Sandoval, foi grande o proveito que tive. Não
tenho nem como classificar. Ele foi excelente músico, todos nós sabemos disto. Eu tomei
conhecimento de uma revista na França em que ele foi citado como um dos maiores
saxofonistas. Ele foi um dos músicos mais importantes de sua época, atuando na música
popular e clássica.
JAIR NOVAES – flautista
Grande músico, completo. Eu o substituí na Orquestra Napoleão Tavares além de ter
trabalhado com ele na Banda Civil do Rio de Janeiro.
ANTONIO LUIZ MIRANDA JUNIOR – saxofonista
Sandoval teve uma importância muito grande no início de meus estudos musicais. Ele
fazia com que a gente se empolgasse quando sentasse na estante. Ele dizia sempre assim:
‘Estude, hein? Procure estudar porque senão não dá!’. Então sempre que tinha umas
obrigações para saxofone, antes de passar ele trazia um rascunho daquele trecho pra gente
preparar. Então a participação dele na minha vida foi muito grande. Não só pra mim mas
pra Banda [da Guarda Municipal do Rio de Janeiro]. A Banda ganhou muito na época em
que ele regeu. Como instrumentista ele foi uma sumidade. Eu não conheci outro
saxofonista do cacife dele. Um som muito redondo, muito volumoso.
RICARDO PEREIRA – saxofonista
Tive dois tipos de contato com o Sandoval. Um como fã ardoroso e o outro quando entrei
para a Banda Civil da Cidade do Rio de Janeiro, hoje Banda da Guarda Municipal. O
primeiro contato foi muito prazeroso, porque eu gostava de sintonizar a Rádio Nacional
para ouvir o Sandoval tocar em vários grupos. E quando eu entrei para a Banda Civil eu
tive contato pessoal com ele, como músico, o que me alegrou mais ainda. Aí eu fiquei
vendo realmente a potencialidade dele, como músico e arranjador e como maestro. Eu
tirava aquele som antigo, muito subtone12, e ele me dizia: - ‘Não. O som do instrumento é
natural. Você tem que tirar natural. O grave você vai acostumando, até que sai o som do
instrumento, como tem que ser’. Ele era um grande músico, uma grande pessoa, e simples
à beça.
RUBENS DA CUNHA – clarinetista e saxofonista
12
técnica utilizada para a obtenção do registro grave do saxofone através de mudança na embocadura.,
resultando numa sonoridade opaca e com ruídos de chiado na palheta.
68
Sandoval, a meu ver, foi um dos mais competentes músicos e tocou seu instrumento, o
saxofone, com muita dignidade, tendo sido um músico queridíssimo e festejado por todos
os colegas, por sua retidão de caráter, competência e simpatia.
ALTAMIRO CARRILHO - flautista
Sandoval era uma pessoa maravilhosa, sereno, além de ser um grande músico, atuante em
orquestras e no mercado de gravações. Ele se destacava por seu som bonito e aveludado,
tocava soprano e clarone. Eu o substituí na Orquestra Sinfônica Nacional quando ele se
aposentou.
BIJU. Saxofonista
Pelo que pudemos levantar Sandoval sempre foi um músico preocupado com a
sonoridade do instrumento sendo este um aspecto relevado por muitos dos entrevistados. Era
uma pessoa serena e demonstrou em toda a sua carreira um grande amor pela música, seja
popular ou clássica. O contato com a música de concerto, só fez por apurar e refinar esta
característica de seu modo de tocar, que sempre primou pela pureza sonora e clareza nas
articulações.
5.3 - Uma breve análise
A peça é composta de três movimentos, numa seqüência rápido-lento-rápido, embora,
como veremos a seguir essa disposição não seja tão ortodoxa. Embora a partitura original, que
se encontra na Biblioteca Nacional (em cópia xerox), não traga subtítulos aos movimentos da
obra, estes estão contidos na gravação original de 1957. Assim temos: I – Variação sobre um
tema de viola, II – Samba-Canção e III – Choro. Estas denominações, principalmente do
segundo e terceiro movimentos não deixam dúvidas quanto aos elementos da música popular
empregados na concepção da obra. Como já ressaltamos anteriormente, Radamés foi um dos
mais importantes arranjadores da época de ouro do rádio brasileiro e sua história se confunde
com a Rádio Nacional, onde trabalhou por mais de 30 anos. Encontramos freqüentemente as
matrizes populares emergindo em maior ou menor grau na sua produção no campo da música
clássica. A recíproca é verdadeira na medida que seus choros, valsas, foxes, etc. refletem a
absorção de elementos vindos de sua sólida formação de pianista clássico (no sentido mais
amplo do termo). É interessante confrontar o procedimento compositivo de Gnattali com
69
outro grande compositor que também teve uma atuação destacada no mercado radiofônico e
fonográfico. Guerra-Peixe, passou ao largo de sua imensa produção nesse campo e, em sua
fase nacionalista, foi buscar inspiração através de uma sistemática pesquisa do folclore, do
qual fez uso adaptando-o e estilizando-o. Radamés, embora também tenha recorrido a temas
folclóricos em suas obras, absorveu com naturalidade o dialeto da música popular urbana, e o
utilizou fartas doses desse material em sua produção. Canaud (1991), conclui que o
conhecimento da música popular urbana do Brasil é de suma importância para a compreensão
e interpretação das obras de Radamés Gnattali, com o que concordamos.
A Brasiliana 7 tem, portanto todas essas matrizes da música popular. Tem uma
estrutura tonal, embora como veremos adiante nem sempre com as resoluções mais usuais
nesse sistema musical.
I – Variação sobre um tema de viola.
Tabela 1- esquema formal do 1o. mov. da Brasiliana no. 7
Seção
Intro
A
B
A1
Intro’
A2
B1
A3
Intro”
codeta
compassos
1-4
5 -31
32-43
44-68
69-76
77-79
100-114
115-136
137-140
141-146
A presença marcante do ritmo de baião, que confere a este movimento um sabor
nordestino, sugere que o tema de viola mencionado no título refira-se à viola caipira,
instrumento muito utilizado nas manifestações regionais e folclóricas. Sua estrutura é muito
simples, baseada em dois temas curtos.
70
Ao invés de enquadrar o trecho num esquema formal clássico, tentaremos focalizar
pontos que achamos determinantes para sua compreensão. O movimento se inicia com 4
compassos introdutórios de piano. A princípio definiríamos esta seção como introdução.
Entretanto como ela se repete algumas vezes, transposta ou não, e vai ter também um papel
conclusivo, a utilização deste termo não parece muito precisa, uma vez que ele tem uma
conotação de início, princípio. Ainda assim, mesmo em suas recorrências ela mantém um
caráter introdutório às subseções seguintes. Simplificando sua estrutura veremos que se trata
de uma escala descendente de Mi bemol maior, a primeira e principal tonalidade na qual se
baseia o movimento. Mais importante, temos aqui uma projeção do acorde de mi bemol,
através de um encadeamento I-IV-V. Vale a pena ressaltar a respiração no acorde do IV grau,
através da fermata, e a ausência da terça no acorde do V grau, o que não invalida sua função
tonal. Inicia-se aí uma nova seção em compasso 2/4 (comp. 5 a 31) , a qual, para nos
organizarmos, chamaremos de A. O ritmo de baião é o primeiro elemento da música popular a
ser utilizado. A presença da sétima menor nos 4 primeiros compassos traz um sabor de música
nordestina, o que implicaria no uso de escala mixolídia. Não é esta a intenção do compositor,
no entanto, uma vez que a partir do compasso 9, a sétima maior, característica da escala
diatônica, reaparece, preparando o campo para a primeira intervenção do saxofone. Entretanto
poderemos perceber em vários momentos no decorrer deste movimento uma ambigüidade
entre a tonalidade maior e o modo mixolídio. Sua melodia é claramente derivada daquela
utilizada nos compassos introdutórios. Os dois primeiros compassos ao serem simplificados
revelam ser a reprodução literal da linha principal do primeiro compasso da peça.
Harmonicamente temos uma recorrência de encadeamentos I-V (sobretônica), que pode ser
traduzido simplesmente como o prolongamento do I grau, como pano de fundo para a linhas
melódica do saxofone, que tem um caráter quase improvisatório, e que ao chegar ao
adensamento rítmico dos compassos 21 e 22, se encaminha para o IV grau. No compasso 27
71
verificamos o mesmo encadeamento que conduziu ao início da seção, em andamento lento.
Desta vez porém o saxofone traça um contorno melódico que resolve na tônica, sob a qual o
piano prolonga a célula rítmica de baião por mais 4 compassos, quando um rallentando
conduzirá à próxima seção. O giro harmônico que vimos aqui é idêntico ao da introdução.
Assim não podemos deixar de ver esta seção como uma versão ampliada da seção
introdutória.
A próxima seção B (32 a 43), revela grande contraste com a anterior. Em andamento
mais lento, de início o piano exerce a função de acompanhamento em arpejos à melodia do
saxofone, embora esta não deixe de ser derivada do motivo anterior. Há uma grande
sofisticação harmônica, com o emprego de progressões cromáticas sobre notas pedais.
Interessante notar é o giro tonal utilizado. Partindo de dó maior, ele reproduz o motivo de dois
compassos apresentado em lá maior, prolongando no entanto a frase e resolvendo em Mi
maior, no compasso 37. A partir daí o piano assume o papel narrativo enquanto o saxofone
tece comentários. A partir de progressões de terças maiores (ou seja MI- Lá bemol (sol #) –
Dó) retorna ao ponto de partida (dó maior), onde o sax retoma o discurso. Note-se que nos
limitamos aos acordes estruturais, que caracterizam um apoio tonal.
No compasso 44 retorna a seção A (44 a 68), porém alguns aspectos diferenciais são
relevantes. Para fins de referencia denominemo-la A1. A tonalidade é transposta para dó
maior. Aqui o caráter mixolídio é reforçado. O saxofone assume um papel contrapontístico,
com figuras rítmicas baseadas na célula original do baião apresentada anteriormente. O piano,
por sua vez, tem uma textura homofônica apresentando sua melodia em blocos de acordes. A
partir do compasso 56 há a transposição para sol maior/mixolídio. Os quatro compassos finais
da seção (65-68) trazem uma sensação de instabilidade tonal, com a presença de um acorde de
quartas e segundas sobre ré bemol.
72
A próxima subseção (69 a 76) é a primeira recorrência dos compassos introdutórios.
Há uma reprodução destes, entretanto transpostos à tonalidade de Dó maior. Além disso há
uma ampliação da seção original, com a participação do saxofone, apresentando grande
ornamentação na melodia. No entanto, é apenas uma repetição do movimento harmônico IIV-V, não obstante o uso do cromatismo na harmonização.
A seguir uma recorrência do A, a que denominaremos A2 ( 77 a 99). Aqui o diferencial
é a tonalidade, que se estabiliza em si bemol no compasso 81, e a linha melódica do saxofone,
que é mais cromática, ao passo que na sua primeira intervenção esta era mais diatônica.
A próxima ocorrência de B (100-114), ou seja, B1, apresenta estrutura muito similar a
sua primeira aparição. Há a presença de dois compassos preparatórios, como a criar uma
atmosfera para a entrada do saxofone. Os detalhes ficam por conta das intervenções
contrapontísticas deste , cada vez mais elaboradas, a ponto de assumirem um caráter de quasi
cadenza no compasso 110. O giro tonal também é outro. Ele parte de Si bemol, passando por
Ré , Mi, Fá, Lá, estabilizando-se em ré maior no compasso 111. A frase que encerra a sessão,
diferentemente de sua primeira aparição é de um teor fortemente conclusivo.
A próxima seção A3 (115-136) é um retorno ao A1. transposto ao tom de Ré maior
(mixolídio). Entretanto, ao chegarmos ao compasso 127, ao invés do esperado transporte ao
tom de Lá, temos um retorno a Sol, como fora apresentado no A1 original. Há uma resolução
um tanto abrupta em Si maior, embora a seqüência Sol – Si – Mi bemol (na próxima seção,
por enarmonia = Ré #), reflita aquela progressão de terças maiores apontadas na primeira
aparição B.
Concluindo, temos o retorno da introdução (147-140). No tom original, apresenta-se
quase idêntica à sua primeira ocorrência, com exceção do dó agudo adicionado ao arpejo do
piano na fermata, e da utilização da frase do saxofone para concluir a seção, num processo
quase de colagem. Os seis últimos compassos do primeiro movimento exercem um papel de
73
codeta, reafirmando o pulso do baião e ainda aquele sabor nordestino, através da sétima
menor. As duas notas finais, reforçam uma intenção tonal (V-I). As sucessivas transposições
de oitavas ascendentes, bem como a conclusão dos baixos do piano, conferem a esta codeta
um ar de graça e leveza.
É um tipo rondó, em que todos os elementos, refrão e estrofes, retornam variados. Este
movimento é marcado pelo contraste nos andamentos das seções que o constituem, alternando
entre momentos caracterizados por uma pulsação constante baseada no ritmo do baião,
momentos em que embora o tempo seja mais lento, temos ainda uma clara noção de pulso.
Conectando estes elementos, temos fragmentos cuja principal característica é uma sensação
de relaxamento na pulsação, com uma maior liberdade na agógica. A natureza fragmentada
deste movimento fornece campo para um amplo leque de interpretações , na medida em que
os músicos sublinhem ou minimizem o contraste nas mudanças de tempo.
II – Samba-Canção
Tabela 2- esquema formal do 2o. mov. da Brasiliana no. 7
Seção
Introdução
A
compassos
1-2
3-25
Elemento de ligação
B
25-26
27-46
A’
47-65
subseção
compassos
a1 (1º. antecedente)
a2 (2º. antecedente
a3 (conseqüente)
3-10
11-18
19-25.1
b1
b2
a’1 (1º. antecedente)
a’2 (2º. antecedente)
a’3 (conseqüente)
27-36
37-46
47-54
55-65.1
65-72
No segundo movimento da Brasiliana 7 aparecem de forma flagrante os reflexos da
extensa carreira de Radamés Gnattali como arranjador na música popular urbana. Apesar de
negar a influência do jazz em sua música, é clara a presença das harmonias e das conduções
74
de vozes típicas usualmente encontradas no gênero americano. Isso não desqualifica a sua
música. Apenas, como este era um vocabulário usado cotidianamente em seu trabalho, é
natural que ele se refletisse na sua música de concerto, ou em parte dela. Talvez o saxofone,
como instrumento amplamente utilizado no jazz, tenha contribuído para acentuar, ou
caracterizar o uso de tal linguagem, nesta peça13.
Este movimento apresenta uma forma ternária, no tradicional ABA’. A primeira seção
apresenta a regularidade típica da canção popular. Após uma introdução do piano, de dois
compassos, que além de apresentar o motivo principal, trata de ratificar a tonalidade com a
apresentação das funções tônica e dominante em Dó maior, dá-se a entrada do saxofone. O
piano assume papel de condução harmônica e rítmica. Neste movimento, as relações tonais
são mais simples, apesar de toda sofisticação inerente ao uso extensivo de tensões nos
acordes. Podemos realizar dentro desta primeira seção uma subdivisão, que se resume no
movimento tônica – dominante – tônica. Assim temos um primeiro período, regular de 8
compassos (3-10), na região da tônica, em contraposição a este um novo período, também
regular na região da dominante, embora fazendo uso de uma condução harmônica usando
acordes de empréstimo do homônimo menor, como recurso para o retorno ao tom principal.
Ambos não tem um sentido conclusivo, podendo ser então compreendidos como primeiro e
segundo antecedentes. A esperada conclusão, se dá através de um período, que diferentemente
dos anteriores, tem uma estrutura um tanto mais irregular, dada a fusão de unidades rítmicas
menores, e obviamente seu caráter definitivamente conclusivo, reforçado pela cadência plagal
do compasso 24-25.1, procedimento muito usual na música popular.
Após uma intervenção do piano (25-26), conduzindo à tonalidade de Mi bemol maior,
inicia-se a seção B deste movimento (27-46). Embora o material sonoro seja ainda derivado
13
O pianista clássico que deseja ter um contato com a técnica popular do piano, deveria fazer uma leitura da obra
de Radamés, seja popular, seja erudita. Ele escreve em notação convencional as “levadas”, as conduções de
vozes, tal como faria um pianista popular.
75
do motivo principal, a mudança na textura, através dos arpejos do piano, e um caráter de
recitativo na linha do saxofone, promove o distanciamento da fonte popular. Estruturalmente
a seção pode ser assim compreendida: duas grandes subseções de 10 compassos cada. Estas,
por sua vez, apresentam uma subdivisão em duas fases: um período regular de 6 compassos,
que se encerra no “recitativo” do saxofone, e uma fase transitória de 4 compassos. A segunda
subseção é apresentada transposta um semitom acima, e sua fase transitória, gradativamente
traz de volta a pulsação e atmosfera de samba-canção. O retorno à seção A’ se dá de maneira
bem similar à sua primeira apresentação, com exceção de uma maior elaboração e
ornamentação da melodia do saxofone, além de um prolongamento na estrutura da subseção
na área da dominante até o compasso 65.1, que passa a ter um caráter de cadenza. A partir
deste ponto o compositor abandona a textura original e encerra o movimento com uma
pequena subseção marcada pela dialética entre saxofone e piano. No penúltimo compasso, a
escala ascendente em blocos de acordes reforça o estilo popular do piano.
III – Choro
Tabela 3- esquema formal do 3o. mov. da Brasiliana no. 7
Seção
Introdução
compassos
1-29
A
30-45
B
46-87
C
87-115
D
Seção
A (bis)
115-119
compassos
120-135
E
136-160
subseção
fase 1 (piano)
fase 2 (cad.sax
fase 3
a1 (antecedente)
a2 (conseqüente)
b1
b2
b3
“intro”
c1
c2
c1 ’
compassos
1-6
7-17
18-29
30-38
39-46
46-56.1
56.1-70.1
70.1-87.1
87-90
91-102.3
102.3-107
107-115
subseção
a1 (antecedente)
a2 (conseqüente)
e1
e2
compassos
120-127
128-135
136-143.1
143.2-160
76
A’
161-197
a’1
a’2 (ampliado)
161-168
169-197
O último movimento da Brasiliana 7, de maneira análoga ao segundo movimento, vai
fazer uso de diversos elementos característicos do choro urbano carioca. A estrutura deste
movimento é um tanto quanto mais elaborada que os predecessores. O diálogo entre saxofone
e piano é intensificado, o que imediatamente nos reporta ao choro Bate-Papo, gravado por
Radamés e Zé Bodega. Nessa obra estão presentes a harmonia sofisticada e sobretudo o amplo
diálogo entre os dois instrumentos, daí seu título. Assim, partindo do mesmo princípio, o
choro da Brasiliana sublinha o caráter dramático e dialético da peça, com as intervenções
alternadas dos instrumentos.
Estruturalmente temos de início uma seção introdutória (1-29). Harmonicamente mais
complexa, não descreveremos passo-a-passo o giro tonal, mas apenas aspectos mais
relevantes. Podemos pensar nesta seção como um elo entre o movimento anterior e o choro
propriamente dito, que surgirá na seção seguinte. Os 6 compassos iniciais executados pelo
piano, em accelerando, anunciam uma pequena cadenza do saxofone (7-17). Após sua
intervenção virtuosística, o instrumento de sopro passa a exercer uma função de
acompanhamento, sublinhando as harmonias da linha melódica executada pelo piano. Muito
significativa é a presença do fraseado na região grave do piano, num procedimento
estilisticamente característico dos contrapontos dos bordões dos violões nas rodas de choro.
Apesar de sua complexidade, com uso de diversos cromatismos, a harmonia pode ser
resumida como o prolongamento do acorde de dó maior, sobre o qual se apoiará grande parte
do movimento, embora esse senso tonal seja constantemente enfraquecido.
Podemos considerar a próxima seção A (30-45) como sendo a seção principal, devido
a sua recorrência. Adorno, ao analisar a música popular, detecta o processo de standardização,
ou seja, padronização a que a canção popular se sujeita. Uma rápida análise do repertório
77
tradicional do cancioneiro popular seja ele americano ou brasileiro, revela um sem-número de
canções obedecendo a uma mesma quadratura (estruturas de 32 compassos, formato AABA,
etc.). Esta seção obedece rigorosamente a uma quadratura, pois temos um trecho de 16
compassos, dividido em dois períodos regulares. Não nos parece um aprisionamento à forma,
uma vez que ele tratará de subseqüentemente, ampliar, diluir esta simetria. Trata-se então de
um ponto de partida, reflexo de sua experiência com a música de mercado. Apesar da
sofisticação harmônica que possa haver, este é o momento de maior estabilidade tonal do
movimento.
A seguir temos uma grande seção com caráter de desenvolvimento, a que
denominaremos B (46-87). Há uma intensificação do diálogo entre os instrumentos, um
enfraquecimento das relações harmônicas, no sentido de não se estabelecer uma tonalidade
preponderante. Podemos dividir esta seção em três blocos, o primeiro começando no
compasso 46 e terminando no ré grave do piano no início do compasso 56, uma nova
subseção partindo daí até o início do 70, onde por elisão se articula o início da última
subseção que se estenderá até o compasso 87, onde também por elisão se iniciará uma nova
seção C. Essa chegada é anunciada pela mudança da textura e presença do rallentando e
diminuendo que se iniciam no compasso 82.
A nova seção gera um grande contraste, devido à mudança de compasso, andamento e
textura. Ocorre uma maior estabilidade tonal (Ré maior). Temos 4 compassos iniciais somente
com o piano, onde é confirmada a nova tonalidade, bem como estabelecida a atmosfera . A
partir daí podemos pensar em organizar a seção numa pequena forma ternária. A primeira
subseção c1, fortemente estável, abrange os compassos 91 a 102.3. Nesta, o papel do piano
basicamente é dar sustentação rítmico-harmônica ao discurso do saxofone. A próxima
subseção c2 (102.3-107) é harmonicamente mais instável com a alternância dos dois
instrumentos na condução da trama. Além disso há uma maior assimetria na construção das
78
frases. O adensamento na linha melódica do saxofone conduz ao retorno da primeira subseção
c1’(107-115), novamente estável e que elide com a próxima seção D, que se trata de um
pequeno trecho de 5 compassos cuja função é trazer à tona a ambiência do choro e
reintroduzir a seção A, cuja reapresentação desta seção se dá de maneira canônica, apenas
sem o ritornello.
A partir do compasso 136, tem início uma nova seção E. Nela temos uma primeira
subseção d1 (136-143) onde o piano conduz a melodia e o saxofone dá suporte harmônico. A
partir de 143.2 temos uma segunda subseção d2 onde o saxofone reassume seu papel
narrativo. Um jogo contrapontístico e deslocamentos rítmicos enfraquecem a associação com
o choro tradicional.
Em 161 teremos ainda uma última apresentação da seção A(‘), que tem sua última
frase ampliada a partir do compasso 191, num processo de complexos encadeamentos
harmônicos, alternâncias de texturas, mas que no fim vão retornar à tonalidade de dó maior.
No entanto, ele enfraquecerá uma última vez o sentido harmônico, ao sobrepor duas
tonalidades. A melodia do saxofone, a partir do compasso 409, encontra-se em sol maior
(embora pudéssemos pensar em um modo lídio sobre a nota dó). A ambigüidade é reforçada
pela ausência da terça nos densos acordes que finalizam a peça.
5.4 - Com a palavra os intérpretes
A partir de agora passaremos a destacar o ponto de vista dos intérpretes, suas
impressões, sua identificação com a música de Radamés Gnattali. Procuramos então artistas
que gravaram ou tocam a peça e obtivemos seus depoimentos. Carlos Malta, saxofonista, e
Estela Caldi, pianista, que participaram das gravações por ocasião de 10 anos de falecimento
de Radamés; Sara Cohen, pianista, e Paulo Passos, clarinetista e saxofonista, cujo conceituado
79
duo instrumental inclui a Brasiliana 7 em seu repertório habitual. A todos foram feitas as
seguintes perguntas:
1) Como foi seu contato com a Brasiliana no. 7 de Radamés Gnattali?
2) Na música de Radamés Gnattali, os elementos da música de concerto e da música
popular se fundem e combinam. Como isso influencia sua performance? Com qual
approach você aborda a construção de sua versão da obra?
3) Conhece ou toca outra obra de Radamés Gnattali? Quais seriam pontos em comum
entre essas peças e a Brasiliana 7?
4) Por fim, quais as impressões deixadas em você pela Brasiliana 7?
Suas impressões são uma ferramenta útil para se atingir o conhecimento da música,
captar sua atmosfera e compreender o modo como a combinação de estilos e matizes sonoros
são interpretados por artistas de diversos campos de atuação.
CARLOS MALTA - saxofonista
1. Fui convidado prá interpretar esta obra quando da comemoração dos 10 anos de
morte de Radamés, num projeto no CCBB, onde teria a então Orquestra de Cordas
Brasileiras14 - violões, bandolins, cavacos, etc.(transcrição feita por Henrique Cazes). Recebi
a parte de solista e um cassete com gravação do Radamés e Sandoval (“pra” quem a peça foi
dedicada). A história que o Henrique me contou : Sandoval não sabia improvisar, mas era um
exímio saxofonista. Radamés fez a peça e ele decorou tudo e quando tocavam, parecia que ele
e Sandoval estavam tocando de "bossa".
2. Esta pequena história dá a direção de todo o contexto da obra. Tem elementos de
várias vertentes musicais. Desde o baião inicial, o segundo movimento em samba canção e o
terceiro em forma de choro, elementos até jazzísticos principalmente do segundo, ao lado de
14
Na realidade, tratava-se da Camerata da Universidade Gama Filho e a transcrição era de Marcílio Lopes.
80
inserts de sonata e trechos de dificuldade e virtuosismo mostram o vasto espectro sonoro que
é bem a praia de Radamés, que vivia no limiar entre clássico e popular. Eu também vivo neste
mesmo ambiente sonoro. Tenho influências dos vários estilos e formas de tocar. Isso deixoume bem a vontade “pra” interpretar esta obra de maneira pessoal, e minha versão agradou
muito a todos que ouviram este concerto, do qual também participava Paulo Moura, que tocou
o Concertino para Sax alto, acompanhado pela mesma OCB15.
3. Já toquei o Concertino com a Orquestra Jazz Sinfônica de SP e com a Orquestra de
Brasília. As semelhanças são muitas: elementos fraseológicos brasileiros, música nordestina,
algum jazz, fraseado clássico, passagens para o solista que mais lembram um improviso. Tudo
isso traduz a atmosfera Gnatalliana.
4. É uma peça que dá prazer de tocar. O fio condutor é muito inspirador e parece
realmente um solo, um improviso quando se toca com piano, um diálogo de alto nível musical
que exige dos executantes , mas que ao mesmo tempo dão um impulso no sentido do interesse
pelo que virá nos próximos compassos. Só lamento ele não ter deixado mais peças como estas
prá nós, saxofonistas.
ESTELA CALDI - pianista
1. Fui convidada pelo Roberto Gnattali a participar da gravação de um dos três CD que
foram feitos em homenagem a Radamés. O músico com quem tive o privilégio de tocar foi
Carlos Malta. Aprendi a peça em menos de uma semana, me dedicando a estudá-la umas
cinco horas por dia, uma vez que, além de difícil, a obra está manuscrita e a escrita muito
15
De fato, Paulo Sérgio Santos participou daquele projeto como regente e solista, à frente da Camerata Gama
Filho.
81
tênue, de modo que na fotocópia se torna quase ininteligível. Isto representou um verdadeiro
obstáculo para uma leitura rápida e correta. Tínhamos que gravar na semana seguinte após ter
tomado meu primeiro contato com a obra, e ainda precisava ensaiar com o saxofonista.
Felizmente, em se tratando de um músico de tamanha competência e musicalidade como é o
Carlos Malta, ensaiar foi um verdadeiro prazer e um imenso aprendizado. Foi muito fácil
entender através de um parceiro tão eloqüente as possíveis idéias que se encontravam nas
entrelinhas.
2. Não sei qual é a sua definição de “elementos de música de concerto”, mas posso
dizer, com convicção, que meu preparo como pianista que tocou muitas e muitas obras de
gêneros e estilos diferentes, me ajudou a resolver questões de abordagem pianística que
solicitaram vigor, agilidade, leveza, e um ouvido muito atento ao discurso do saxofone para
administrar com coerência sonoridades, inflexões e uma aparente idéia de improviso em
algumas partes da obra. Com certeza, ter um músico tão completo do lado, com uma
experiência na música popular indiscutível, facilitou a compreensão da obra como um todo.
3. Conheço a Toccata de Radamés Gnattali que já foi estudada e tocada por dois
alunos meus. Eu mesma nunca toquei. Quanto às outras obras, só as que estão nos CD, mas
nunca tive a partitura nas mãos. Não saberia dizer quais os pontos em comum entre essas
peças e a Brasiliana Nº 7.
4. As impressões deixadas em mim pela Brasiliana Nº 7, são as de uma obra muito
bem construída do ponto de vista formal, de um extremo brilhantismo, escrita por um
compositor que dominava o piano muitíssimo bem (no sentido de tocá-lo muito bem) e que
conhecia a fundo os recursos desse instrumento assim como os do saxofone. Nada parece ser
gratuito ou fora de lugar, comportando uma textura que valoriza de uma maneira muito
eficiente o diálogo entre os dois instrumentos.
82
SARA COHEN – PIANISTA
1. Foi através do Paulo Passos que me passou a partitura/manuscrito para fazermos
uma leitura e a incorporamos em nosso repertório.
2. Sim. Os elementos de música de concerto estão, no que se refere ao piano,
justamente no tratamento do instrumento: poderíamos dizer que ele é virtuosístico, no sentido
de que um pianista sem formação erudita teria muitas dificuldades para realizar a obra. Da
música popular, vejo o tratamento harmônico e rítmico (com as "levadas" principalmente),
que determinam acentos e inflexões não grafadas, típicas da linguagem popular. Acredito que
a minha experiência com música popular através do violão, do tamborim e do pandeiro,
ajudem a perceber e realizar um pouco dessa ginga, bem como tocar essas obras ampliam o
universo harmônico e rítmico do músico formado na tradição erudita. O grande desafio dessas
obras é portanto achar um amálgama entre essas coisas, quer dizer, encontrar a “ginga” do
popular sem exageros e ao mesmo tempo realizar as sonoridade e inflexões filigranadas do
mundo erudito.
3. Já toquei a Tocatta, as valsas e o Canhoto para piano solo, bem como a valsa
Graciosa para piano a quatro mãos. Tudo o que foi dito vale também para essas obras.
4. Foi interessante a experiência de tocar com o Paulo Passos e o Marco Túlio, dois
músicos que em alguns momentos fazem leituras bem diferentes da Brasiliana. O que me leva
a pensar que essa mistura feita pelo Radamés abre uma possibilidade de interpretações
bastante interessantes de serem exploradas. De qualquer forma, sempre digo que é muito
gostoso tocar a Brasiliana.
PAULO PASSOS – CLARINETISTA E SAXOFONISTA
83
1. Fiz uma pequena pesquisa na Biblioteca Nacional, à procura de obras do Radamés
para clarinete ou sax. Na época, eles só encontraram a parte do sax da Brasiliana. Tive que
conseguir a parte de piano com um colega, algumas semanas depois. Adorei a peça e ainda
mais por ser escrita para sax tenor. Eu queria justamente uma peça com sax tenor para incluir
no meu CD com a pianista Sara Cohen.
2. Meus estudos sempre foram direcionados para a música de concerto e, desde muito
cedo, para a música brasileira contemporânea. Mas eu sempre gostei e pratiquei música
popular. Comecei em Banda (daquelas que tocam no coreto das praças) e já toquei em muitos
bailes carnavalescos, onde eu era responsável pela escolha do repertório: antigos e bonitos
sambas, marchinhas e marchas-rancho. Gosto de ouvir e cantar o repertório de Francisco
Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva. Também gosto do choro, e gravei o CD "A Música
Popular de Guerra-Peixe", que inclui choros das décadas de 30 e 40, além de alguns sambas e
marchinhas, logicamente compostos por Guerra- Peixe.
3. Já toquei a Valsa Triste, para sax-alto e piano. Aí também está o sabor popular.
Gosto da parte central, mas não considero uma música tão bem elaborada quanto a Brasiliana.
4. A Brasiliana 7 leva-nos ao sertão (primeiro movimento), à sensualidade (segundo
movimento e parte lenta do terceiro) e à alegria e espontaneidade tão comuns ao nosso povo.
Isso tudo com a técnica e sensibilidade do mestre Radamés, que jamais trilha caminhos
óbvios.
Obtivemos pois, através do depoimento de artistas diversos, elementos para montar
um mosaico, onde certos aspectos são mais relevantes para este ou aquele artista. A
diversidade de elementos e matrizes na construção da peça, característica marcante em toda a
obra de Radamés Gnattali, permite diferentes abordagens, o que se traduz numa música
sempre viva e dinâmica. Um ponto a se destacar é o confronto entre as idéias de Malta e
Cohen. O saxofonista, mais ligado às formas de música popular, valoriza sobretudo a
84
originalidade e a criatividade na sua interpretação da obra. Tanto que sua interpretação é
propositalmente direcionada no sentido contrário à de Sandoval Dias, a qual teve acesso por
ocasião da preparação para seu registro da Brasiliana. Cohen, embora reconhecendo a
importância de se captar a atmosfera da música popular, gênese de grande parte do material, e
valorize o conhecimento da música popular para realizar tal repertório, se esforça em
encontrar um ponto de equilíbrio, onde os elementos da música popular e de concerto se
integrem.
5.5 - Uma comparação entre duas versões e algumas considerações pessoais
Na seção anterior tivemos o depoimento de diversos artistas e suas impressões
particulares a respeito da obra. A partir de agora faremos um breve comentário de duas
gravações conhecidas da obra. A primeira, datada de 1957 e realizada por Radamés e
Sandoval Dias. A segunda, realizada por Estela Caldi e Carlos Malta, data de 1998.
Concentraremos nossa atenção na interpretação dos saxofonistas, uma vez que aí residem os
principais pontos de diferenciação entre as duas gravações. Não se trata de uma avaliação
qualitativa entre as versões. A decisão por um determinado approach é individual e a
diversidade dos elementos que formam o todo da peça dão margem a leituras diferenciadas.
Lester questiona, ao confrontar performances e análises se “devemos acreditar que uma
performance é certa e outra errada? (1995,p.210). Ainda, afirma:
a realidade da performance obriga a imaginar que escolhas devem ser feitas entre
approaches alternativos - pelo menos para uma versão particular. Escolher entre as várias
possibilidades é uma parte importante de qualquer tipo de interpretação, seja em análise
seja em performance. Mas, ao contrário do caminho geralmente tomado pelas análises, as
decisões da performance sugerem que muitas (embora certamente não todas) escolhas
possíveis não são tão ‘certas’ ou ‘erradas’, simplesmente diferentes, levando a várias
perspectivas.16(1995, p.211)
16
(...) The reality of performance forces one to realise that choices must be made among alternative approaches
to any given issue – at least for a particular rendition. Making choices among various possibilities is an important
part of any sort of interpretation, both in analysis and in performance. But in contrast to the way in which
analytical decisions are often regarded, performance decisions suggest that many (though certainly not all)
possible choice are not so much ‘right or ‘wrong as simply diffrent, leading to varying perspectives. (tradução
nossa)
85
Deste modo, não cabe aqui comparar qualitativamente a performance de artistas
diferentes, mas tão somente mostrar as possibilidades interpretativas com as quais a peça pode
ser abordada.
De início notamos uma diferença na concepção de tratamento do material musical.
Embora tenha sido também um músico da área popular, Sandoval dá à peça um tratamento
mais camerístico com uma interpretação voltada ao estilo clássico. A proximidade com
Radamés pode ter sido determinante neste direcionamento. Mesmo sendo a peça, como a
maioria de sua obra, repleta de fragmentos e mesmo de reproduções literais de células
melódico-ritmo-harmônicas do dialeto popular, parece-nos que o compositor não tinha a
intenção de que esta fosse realizada de maneira tão livre. A interpretação de Sandoval segue
esta linha. As articulações e entonações são mais precisas e há uma fidelidade à partitura,
embora a partitura arquivada na Biblioteca Nacional, não traga rigor no trato de articulações,
ligaduras e outros detalhes. Radamés dava liberdade aos intérpretes para fazerem suas
escolhas. Mesmo assim, com alguma diferença nesses pequenos detalhes, Sandoval, de um
modo geral limita-se a tocar os contornos melódicos criados por Gnattali.
A interpretação de Carlos Malta tem um direcionamento oposto. O saxofonista tem
uma visão muito mais livre da peça. Sua interpretação tem um sabor mais jazzístico, com
glissandi , pitch bends e outras inflexões características deste gênero musical. Além disto,
especialmente no segundo movimento e na seção lenta do terceiro, ele toma uma liberdade
maior no tratamento da melodia, que passa a ser livremente ornamentada, ao lado de uma
mudança acentuada na agógica.
Uma grande diferença pode ser notada na cadenza do saxofone no início do terceiro
movimento. Malta executa o trecho todo em legato, valorizando a velocidade e o virtuosismo.
Sandoval valoriza a articulação, tocando o trecho em stacatto. Esta era uma das características
marcantes em sua maneira de tocar.
86
Outro aspecto que chama também a atenção refere-se ao tratamento sonoro do
saxofone, principalmente em relação ao uso do vibrato. Sandoval Dias utiliza-se amplamente
deste recurso, ao passo que Carlos Malta toca com pouco ou nenhum vibrato. É preciso notar
que mais de 40 anos separam as duas gravações e portanto é natural que músicos de gerações
diferentes tenham pois concepções sonoras diferenciadas.
As duas gravações apontam, portanto, possíveis caminhos para uma abordagem
interpretativa. Pode-se optar por uma maior proximidade com a música clássica, ou buscar
uma afinidade maior com a música popular. Músicos de uma formação mais tradicional ou
acadêmica poderiam se alinhar mais com a primeira opção. Aqueles vindos do campo popular
podem preferir a segunda. Ou ainda poderíamos buscar o meio-termo, estabelecendo-se num
ponto que não torne clara a linha divisória entre popular e erudito. É justamente neste ponto
de equilíbrio que tentamos balizar a nossa interpretação da obra. As matrizes de música
popular, sobretudo da música urbana carioca, mas também uma grande parcela de música
folclórica, podem sugerir caminhos interpretativos a serem seguidos. A vivência e experiência
na música popular é uma ferramenta útil para a realização de uma interpretação, como
constataram em seus trabalhos Canaud (1991) e Silva (1996). Entretanto, esforçamo-nos para
não deixar esses elementos aflorarem de maneira tão explícita. Procuramos combinar o
“molho” e o “balanço” característicos do jeito popular, com uma preocupação no refinamento
sonoro, e uma maior fidelidade ao texto musical. A produção de Radamés Gnattali nos dá
inúmeros exemplos da fusão de elementos. Embora o compositor tenha tentado separar as
coisas, até hoje fica difícil uma classificação de sua obra. Isto não importa, como não importa
tentar imaginar qual seria a versão mais correta da Brasiliana 7. São maneiras diferentes de
enxergar uma mesma obra. Como dissemos anteriormente, Radamés transitava livremente nos
dois estilos, popular e erudito. Tratava a música como um todo, sem preconceitos.
Acreditamos que sua concepção da peça estivesse mais próxima da música de concerto,
87
apesar das fontes inspiradoras oriundas da música popular. Ainda assim, não acreditamos que
o velho Radamés censuraria uma interpretação mais livre de sua obra.
Nela estão presentes elementos marcantes da obra do compositor. Podemos sentir o
equilíbrio formal, o virtuosismo, as matrizes populares, os sólidos conhecimentos adquiridos
com a formação clássica. Uma peça vibrante e que tem uma receptividade imediata do
público. Em seu domínio da técnica de composição Gnattali nos ofereceu uma obra
balanceada, onde cada passagem tem sua razão de ser. Como afirma Estela Caldi, “nada é
gratuito”.
Assim, a Brasiliana no. 7, embora tenha um caráter virtuosístico, exigindo dedicação e
competência dos intérpretes, transmite sempre ao ouvinte uma sensação de fluidez, pureza e
simplicidade. A comunicabilidade com o público é imediata, sem contudo soar popularesco.
CAPÍTULO 6- O CONCERTINO PARA SAXOFONE ALTO EM MI BEMOL E
ORQUESTRA
6.1 – Informações Preliminares
No presente capítulo iremos dedicar nossa atenção à outra obra de maiores dimensões
escrita por Gnattali para saxofone solista. O Concertino para saxofone alto e orquestra foi
composto em 1964, ano em que o compositor também escreveu o Concerto Carioca no. 2,
para piano, contrabaixo, bateria e orquestra, e a suíte Retratos, para bandolim, orquestra de
cordas e conjunto regional, dedicada a Jacob Bittencourt (Jacob do Bandolim). Ao contrário
da Brasiliana no. 7, que se tornou uma obra muito conhecida, não só por integrar um dos
ciclos mais importantes da produção Gnattaliana, mas também por ter sido registrada em
gravação fonográfica em 1957, o Concertino, caiu até certo ponto em esquecimento, tendo
sua estréia ocorrido somente em 14 de novembro 1987, no encerramento da VII Bienal de
Música Brasileira Contemporânea, na Sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro, tendo como
solista Dilson Florêncio junto à Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência de Roberto
Duarte. Posteriormente a obra veio a ser gravada, em 1998, pela Camerata da Universidade
Gama Filho, tendo como regente e solista Paulo Sergio Santos, em projeto coordenado pelo
professor Roberto Gnattali, em ocasião do 10º aniversário da morte do compositor. Em 1999
um novo registro em disco foi feito pela Orquestra Sinfônica Paulista, sob a regência de Dario
Sotelo, tendo como solista o saxofonista norte-americano Dale Underwood.
O grande lapso de tempo entre a criação e a redescoberta desta obra, trouxe algumas
dificuldades à pesquisa. A primeira se refere à dedicatória do Concertino. Como comentamos
anteriormente, Radamés homenageava seus amigos músicos, dedicando-lhes suas obras para
instrumento solista. Entretanto, nem sempre deixava anotações nas partituras comprovando
tais dedicatórias. Temos então que confiar nos depoimentos das pessoas que presenciaram o
momento da criação das obras. No caso da Brasiliana no. 7, além do registro fonográfico,
89
obtivemos o depoimento de pessoas como Nelson Macedo, compositor e Aída Gnattali,
pianista e irmã do compositor, que confirmam a obra de fato ter sido escrita para Sandoval
Dias. No caso do Concertino é diferente. Os 23 anos que separaram sua criação de sua estréia
contribuíram para que os detalhes ficassem perdidos nas memórias das testemunhas
remanescentes. Segundo Florêncio a partitura original estava em poder de Sandoval, o qual
conhecera em 1986 (Depoimento pessoal em 23/04/2004, Belo Horizonte). O fato da música
ter estado nas mãos de Sandoval poderia levar à suposição de que a obra teria sido dedicada
também a ele. Entretanto o músico dedicou-se principalmente aos saxofones tenor e soprano,
tendo inclusive escrito uma transcrição da parte do solista para este instrumento. Portanto é
pouco provável que Gnattali dedicasse a ele uma obra escrita para saxofone alto.
O contato entre Radamés Gnattali e Paulo Moura na Rádio Nacional e a gravação do
LP Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali, em 1959 poderia sugerir ter sido a esse músico
dedicado o Concertino. O próprio músico afirma que esta obra deveria ter sido a ele dedicada,
mas entretanto acabou sendo dedicada ao saxofonista norte-americano Paul Winter.
Mais ou menos nessa época, veio ao Brasil o saxofonista Paul Winter. Depois que
gravamos o disco com o Radamés, conversamos sobre a possibilidade de ele fazer um
concerto. Ele estava preparando esse concerto para mim. Ele deveria ser dedicado a mim,
mas quando olhei na partitura, ele tinha dedicado ao outro Paulo, o Paul Winter.
(Depoimento pessoal em 13/05/2004, Rio de Janeiro).
Apesar do depoimento de Moura, não foi possível localizar partitura em que conste tal
dedicatória. De fato o saxofonista americano teve em meados da década de 1960 um contato
mais estreito com o Brasil e a música brasileira. Gravou com artistas como Carlos Lyra, Luiz
Bonfá, Roberto Menescal e Luiz Eça. Entretanto, na biografia constante de sua home page,
não faz nenhuma alusão a algum contato com Radamés Gnattali. Ora, o fato de um dos mais
importantes compositores e arranjadores brasileiros da época, de certo seria digno de registro
em seu currículo. Desta forma não dispomos de dados que comprovem as declarações de
Moura.
90
Outro ponto que levanta controvérsias é a existência de duas versões para o terceiro
movimento da obra, uma em compasso 7/8 e outra em 3/4. A questão será devidamente
discutida em uma seção deste capítulo.
6.2 – Análise da obra
O Concertino para saxofone alto e Orquestra não foge às características gerais da
música de Gnattali. Nesta obra podemos perceber a presença farta de materiais de música
popular, seja urbana, seja folclórica. A escrita para o instrumento solista é muito idiomática.
O âmbito da melodia do solista fica entre dó sustenido 3 e mi 517, situando-se numa região
cômoda para o saxofonista. As linhas melódicas valorizam as capacidades expressivas do
instrumento. Embora a linha virtuosística possa sugerir dificuldades técnicas, não
encontramos grandes problemas a serem resolvidos no decorrer da obra. O fraseado é muito
fluente e não traz grandes armadilhas para o executante, estando portanto de acordo com o
procedimento habitual do compositor, que moldava suas composições ao modo particular com
que cada instrumentista tocava, como já foi mencionado anteriormente. O depoimento de Luiz
Otávio Braga dá a exata dimensão de como se dava o processo:
...quando resolveu escrever o Concerto para bandolim e cordas, dedicado a Joel
Nascimento, este passou, durante alguns dias, e a pedido do maestro, horas a fio, tocando
sob seu olhar atento. Dizia ele, Radamés, que , quando compunha, durante todo o
processo, a performance (virtual ) do músico jamais o abandonava. (BRAGA, Luiz
Otávio In:WIESE Filho, Bartolomeu – 1990 ,pp. 97-98 )
Assim, embora não tenha sido possível afirmar com exatidão a quem o Concertino foi
dedicado, constatamos que a obra explora bem as possibilidades técnicas e a capacidade
expressiva do instrumento.
A obra é construída no tradicional formato em três movimentos, na seqüência rápidolento-rápido, embora no primeiro e terceiro movimentos encontremos variações de andamento
17
Sons escritos. Na realidade o saxofone alto, instrumento transpositor, soa uma sexta maior abaixo do notado
na pauta.
91
entre suas seções. Os movimentos são os seguintes: I – Allegro spirituoso, II – Saudoso e III –
Vivo. A obra, de uma maneira geral, tem um sentido tonal, embora este sistema seja
constantemente obscurecido, havendo momentos em que o compositor emprega estruturas
modais (principalmente quando se utiliza de material folclórico) ou mesmo abandona
totalmente o tonalismo.
I – Alegro spirituoso
Tabela 4 - esquema formal do 1o. movimento do Concertino para saxofone alto
seção
Introdução (Cadenza)
Exposição
Desenvolvimento
compassos subseção compassos
1-54
55-123
124-225
Recapitulação (resumida) 226-297
1º grupo
55-97.1
transição
97.3-106
2º grupo
107-123
S1
124-160.1
S2
160.1-203
S3
204-225
1º grupo
226-268.1
Coda
268.1-297
O primeiro movimento obedece à forma-sonata e tem como característica relevante a
utilização de elementos da música popular urbana. O compositor inicia este movimento com
uma cadenza do solista (comp. 1 a 54). Embora com caráter de livre improvisação, o pulso se
torna um elemento marcante, já que a seção é construída respeitando a métrica do compasso
2/4. A presença do compasso binário reforça as matrizes populares na concepção da obra,
dada a presença abundante desta fórmula de compasso na música popular brasileira, seja
folclórica, seja urbana. Além de sua função de introdução, esta cadenza representa uma
antecipação do desenvolvimento, já que será reapresentada parcialmente no decorrer dessa
seção. Nos últimos 8 compassos desta introdução o saxofone toca trinados em uma linha
melódica descendente que repousa sobre a nota sol, dominante do tom de dó maior, que
92
consideraremos o principal, apesar de o compositor transitar livremente por várias
tonalidades. A entrada da orquestra nos quatro últimos compassos harmonizando a nota sol
com acordes alterados e com décima primeira aumentada anuncia o início da exposição. A
entrada das madeiras dá ainda o esquema rítmico do acompanhamento que vai ser usado na
maior parte do 1º grupo temático da seção que se inicia. De fato a célula rítmica do
acompanhamento da orquestra (ex.1), lembrando uma marchinha de carnaval, é o primeiro
exemplo das matrizes populares , que vão ser vastamente usadas no decorrer da obra.
exemplo musical 6 - esquema rítmico "marchinha"
Este grupo tem uma textura de melodia acompanhada e é formado por um período
duplo. O antecedente (55-72) parte da tonalidade de dó maior e tem uma natureza modulante,
cadenciando na dominante de ré maior, tonalidade em que inicia o conseqüente (73 a 97.1).
Por 14 compassos este período será uma reapresentação literal do antecedente transposta uma
segunda maior acima. A partir do compasso 87 o compositor modifica a estrutura original
ampliando a frase e abandonando o esquema rítmico da marchinha, que é substituído por um
acompanhamento em frases cromáticas descendentes em legato pela trompa, violas e cellos.
O compositor conclui o 1º grupo com uma recorrência da célula da marchinha sobre o acorde
de dó maior.
A transição (97-106), executada pela orquestra é constituída por uma linha melódica
desenhada pela trompa enquanto os demais instrumentos desmontam a célula rítmica básica.
Nos quatro últimos compassos uma seqüência modulante de arpejos em pizzicato pelas violas
e cellos conduzem ao tom de mi bemol maior, sobre o qual iniciará o 2º grupo temático (107123). O contraste em relação ao 1º grupo é conseguido através de uma mudança no tempo e
93
na textura. Em andamento mais lento, podemos perceber uma sustentação rítmica inspirada no
samba-canção, que é desempenhada pelas cordas. Interessante destacar o diálogo entre oboé,
flauta e clarinete, que antecedem a entrada do solista e com ele interagem. Nos últimos quatro
compassos desta seção (120-123) as cordas em pizzicato, logo em seguida auxiliadas pelas
madeiras, realizam um acompanhamento claramente inspirado na célula rítmica do
acompanhamento de aro de caixa típico da bossa nova18. Célula que, por sinal, também é
encontrado na “batida” da marcha-rancho. Este acompanhamento não só pontua esta seção,
como prepara o terreno para o início do desenvolvimento.
exemplo musical 7 - célula rítmica de bossa nova
A primeira fase desta nova seção trabalhará o material apresentado no 1º grupo
temático. Há uma predominância da célula da marchinha, que é executada pela trompa. Há
uma inversão do procedimento adotado pelo compositor na exposição. Naquele momento o
tema era formado por dois períodos sendo o segundo transposto uma segunda acima. Aqui o
que ocorre é justamente o contrário, estando o segundo período transposto uma segunda
abaixo. Além disso percebemos uma maior simetria nos períodos, tendo ambos a duração de
16 compassos. A seqüência de semicolcheias sobre o acorde de sol maior marca o final desta
subseção.
A cadenza que iniciou este movimento passa agora a ser reapresentada, de uma
maneira transformada. Inicialmente o compositor utiliza o material dos compassos 11 a 15
ligeiramente modificado e transposto um semitom abaixo. Logo a seguir o compositor
18
Esse trecho nos levou a uma referência imediata ao trabalho de Canaud (1991), onde a pesquisadora defende o
conhecimento da música popular urbana carioca como subsídio para uma interpretação da obra pianística de
Radamés Gnattali. De fato, durante ensaios usando uma redução para piano, a pianista, de formação clássica,
demonstrou dificuldades na realização do ritmo citado, sem que parecesse mecânico, forçado. E esta “levada” é
facilmente executada pelos músicos habituados ao dialeto popular da música.
94
reapresenta quase literalmente os 16 compassos finais da cadenza original. A orquestra, sem a
participação do solista, passa então a trabalhar o material dos compassos iniciais da cadenza
original. Em resumo, o compositor a reconstrói, modificando, condensando e invertendo a
ordem de seus elementos. Nos últimos 6 compassos desta subseção (198 -203) uma linha
melódica apresentada por fagote e oboé, com forte sabor nordestino faz a ligação com a
próxima fase do desenvolvimento.
O 2º grupo temático serve de base para este trecho. Embora o compositor adote
progressões harmônicas distintas não é difícil estabelecer a conexão com o material
originalmente exposto. A pulsação rítmica de samba-canção serve de fundo para a linha
melódica do solista, que aparece um tanto quanto mais elaborada. Nos quatro últimos
compassos (214-217) temos uma nova ocorrência da célula de bossa nova que encerrou a
exposição.
A recapitulação se dá de maneira reduzida, sendo formada somente pelo 1º grupo
temático e uma coda. O compositor prepara a volta do tema inicial com 8 compassos onde o
ostinato da trompa retoma o clima de marchinha. Flauta e clarinete em oitavas completam
essa ambiência, com sua intervenção nos compassos 221 a 224. A reapresentação do 1º grupo
temático se dá de maneira canônica até compasso 263. A partir deste ponto a linha melódica
do solista é modificada e o tempo se acelera até a elisão com a coda (268.1). Esta é construída
basicamente com a alternância entre as intervenções da orquestra em acordes tensos (comp.
268-270 e 277-282) e desenhos melódicos do solista em tercinas baseadas no 1º grupo
temático. A partir do compasso 283.2 a orquestra executa um pedal sobre a nota dó
sublinhando o fraseado do saxofone, que se junta a esta em uníssono nos dois últimos
compassos do movimento. Este prolongamento reforça a idéia da tonalidade de dó maior
como a principal, apesar de toda liberdade harmônica que o compositor adota a maior parte do
tempo.
95
Vale ainda notar o uso abundante de acordes com décimas terceiras (ex. comp. 58),
nonas aumentadas (ex. com. 64) e outras dissonâncias, tão características da música popular
urbana praticada naquele momento histórico (1964). Interessante que a utilização de uma
melodia com forte caráter regional, remetendo à música nordestina, o que à primeira vista
pode parecer um elemento fora do contexto, na realidade funciona como um agente de
unidade, uma vez que antecipa materiais que vão ser amplamente aplicados no terceiro
movimento, como poderemos conferir mais adiante.
II – Saudoso
Tabela 5 - esquema formal do 2o. movimento do Concertino para saxofone alto
seção
A
elemento de ligação
B
C
A’
codeta
compassos
1 - 9.1
9.2 - 11.3
11.4 - 19.3
19.4 – 29.2
29.3 – 38.2
38.2 - 40
No segundo movimento do Concertino, o compositor se distancia da utilização direta
de materiais característicos da música popular. Na realidade estes elementos continuam
presentes, porém se apresentam de uma maneira mais difusa, contrastando com o
aproveitamento mais literal da temática popular que podemos perceber na maior parte da obra
para saxofone. Sua característica principal é a utilização de uma harmonia tensa onde
predominam acordes de nona aumentada e o uso de cromatismo.
Este é um movimento curto, formado por apenas 40 compassos. Podemos perceber
basicamente uma textura de melodia acompanhada, com eventuais intervenções da orquestra
que nos ajudam a realizar uma divisão da obra em seções. Na seção A (comp. 1 - 9.1) as
cordas, em notas longas fornecem o pano de fundo para a melodia de grande lirismo do
saxofone. Os contrabaixos contrastam tocando em pizzicato nos tempos fracos dos
96
compassos. O tema apresentado pelo saxofone é construído na forma de um período regular.
(2-9.1). Uma pequena intervenção da orquestra (9.2 - 11.3), onde se destacam clarinete e
trompa, faz a ligação com a próxima seção. A seção B apresenta um acompanhamento mais
sincopado, baseado na célula rítmica do samba-canção, realizado pelas cordas com o auxílio
de flauta e oboé. Notamos um adensamento da textura pela variação da dinâmica em
crescendo, bem como a entrada dos demais instrumentos, atingindo o clímax no compasso 16.
A partir deste ponto o esvaziamento da textura confere à linha melódica do saxofone um
caráter de recitativo.
No início da terceira seção C (19.4 – 29.2) temos uma curta intervenção melódica do
oboé, que é complementada pelo retorno do solista. A partir do compasso 26 seu contorno
melódico, em frase na qual predominam as sextinas, conduz ao reaparecimento do tema
inicial A’ (29.3 – 38.2).
Em sua nova ocorrência a seção inicial apresenta algumas modificações. A frase do
saxofone, que tinha início tético, passa a ser anacrúsica. Podemos perceber também pequenas
alterações na textura do acompanhamento das cordas, com um contrabaixo mais sincopado e a
utilização do efeito tremolo. A frase recebe ainda uma ampliação, passando a ter 9 compassos.
Por elisão temos o início de uma pequena codeta que não apenas conclui o trecho musical,
mas principalmente promove a ligação com o próximo movimento que se inicia
imediatamente. Embora o compositor tenha evitado constantemente estabelecer uma
tonalidade predominante (de fato ele só se apóia sobre uma tríade perfeita sobre mi bemol no
início da codeta (38.2), podemos observar em diversos pontos no decorrer deste movimento
um constante apoio sobre acordes dominantes sobre a nota dó, embora com o uso de nonas
aumentadas ou décimas primeiras aumentadas. Isto pode ser notado nas meias-cadências das
seções A e A’ (comp. 5 e 32), bem como no final das seções intermediárias (comp. 16 e 28).
Somando-se o fato da codeta mover-se do acorde de mi bemol maior para uma tríade invertida
97
de fá maior na conclusão do movimento, podemos conceber este movimento como uma
dominante de fá maior, tonalidade principal do terceiro movimento, embora, como poderemos
perceber mais adiante, este tenha um caráter mais modal. Deste modo, o segundo movimento
do Concertino, a despeito de toda a sofisticação harmônica, funciona essencialmente como
uma grande dominante, ligando as partes extremas da obra.
III – Movido
Tabela 6 - esquema formal do 3o. movimento do Concertino para saxofone alto
seção
A1
B1
A2
C1
D1
E1
C2
A3
C3
F
D2
E2
C4
B1(bis)
A1 (bis)
Coda
compassos
1 – 22
23 – 38.2
38.3 – 48
49 – 69
70 – 79
80 – 89
90 – 101
102 – 138.1
138.2 -141
142 – 156.1
156 – 166.1
166 – 175
176 – 205
206- 221.2
221.3 - 242.1
242.1 – 247.1
Utilizamos para a nossa análise a versão em 7/8 do terceiro movimento, a qual
estamos mais familiarizados e consideramos esteticamente mais interessante. Vale notar a
princípio dois pontos que conectam este movimento ao primeiro movimento da Brasiliana no.
7 . Em ambas as obras o compositor faz o uso de temáticas nordestinas, embora mais
acentuadamente no Concertino. Poderemos notar o uso freqüente do modo mixolídio, bem
como da escala nordestina. A utilização de uma forma rondó com o aparecimento variado dos
elementos também pode ser percebida em ambas as obras.
98
O movimento começa de maneira contígua ao precedente. Em sua primeira seção A1
(1 – 22) temos inicialmente dois compassos onde cordas dão a marcação sincopada do
compasso alternado 7/8. O solista entra na anacruse do compasso 3 apresentando o tema
principal, um período regular de 10 compassos, que é apresentado duas vezes, sendo na
segunda o acompanhamento reforçado pela participação das madeiras. A partir do compasso
23, inicia-se uma seção B1 ( 23 – 38.2), marcada por um caráter mais virtuosístico. Um efeito
de accelerando é obtido com a utilização progressiva de figuras rítmicas menores (colcheia –
tercina – semicolcheia) culminando numa frase cromática descendente. Após uma rápida
intervenção da orquestra ( comp. 33-34) o solista prepara a volta do tema principal, na seção
A2 (38.3 – 48). Em sua nova ocorrência este será apresentado apenas uma vez e terá uma
resolução excepcional fazendo a ligação com a seção C1 (49 – 69).
A nova seção pode ser desmembrada em 3 fases. A primeira (49 – 51), muito curta,
em compasso 3/4, caracterizada pela intervenção dos violinos, tem um sentido de introdução
para a fase principal da seção (52 – 63), onde flauta e clarinete conduzem um tema que será
utilizado diversas vezes no decorrer do movimento, de maneira ora ampliada, modificada ou
reduzida. Uma terceira fase (64 – 69) conduzida pelo solista assume o papel de transição à
próxima seção D1 (70 – 79), cuja característica mais relevante é a marcação do ritmo de baião
realizada por clarinete e fagote. Tem uma estrutura semelhante à seção A1, ou seja, dois
compassos dando a marcação rítmica, e a linha do solista apresentada na forma de uma frase
regular, aqui no caso, com 8 compassos. Contrastando com este trecho temos uma seção E1
(80 – 89) em andamento Lento, como um lamento sertanejo, através de uma melancólica
melodia conduzida pelo saxofone.
A partir do compasso 90 o compositor passa a reaproveitar materiais já expostos nas
seções anteriores. Desta forma a seção C2 (90 – 101) é baseada na fase central de C1,
transposta uma segunda acima e ampliada. Interessante é o uso da sol # no compasso 91. Já
99
que a melodia é baseada no modo mixolídio o mais natural seria o uso da sétima abaixada,
como na sua primeira ocorrência. À primeira vista poderia se pensar num erro da partitura.
Entretanto, a consulta aos manuscritos do compositor de que dispomos (nas duas versões)
confirmam a sua real intenção de utilizar a nota da maneira como está, criando uma
ambigüidade entre o modo maior e o mixolídio. O tema principal retorna na seção A3 (102138.1), ampliado, modificado. O diferencial aqui fica por conta de uma variação na linha
melódica original, a presença do acompanhamento cromático descendente que é realizado na
ordem por fagote, violas e cellos e madeiras. A partir do compasso 124 com anacruse, o
compositor retoma o tema original ampliando sua última frase, com o aproveitamento de
material claramente inspirado na seção B1.
O procedimento de combinar os materiais previamente expostos é utilizado pelo
compositor logo a seguir. Após uma curta intervenção do fagote (138.2 -141), inicia-se uma
seção F na qual a linha do solista é baseada na seção B1,, ao passo que o material da orquestra
baseia-se no tema principal, exposto em A1, modificado para se adequar ao compasso
quaternário.
A seção subseqüente D2 (156 – 166.1), é uma reapresentação do baião transposto uma
segunda maior acima e com a linha melódica do solista ligeiramente modificada. Uma nova
apresentação do Lento ocorre na seção E2 (166-175), sendo entretanto nesta ocorrência
conduzida pela orquestra, com destaque para flauta e oboé.
A seção C4 aproxima-se do formato que lhe deu a origem, ou seja, tem uma fase
introdutória em compasso 3/4 (176-179) e uma fase central, cujo motivo aqui é apresentado
primeiramente pelo saxofone, e uma segunda vez transposto uma segunda maior acima,
levado pelos primeiros violinos mais flauta e oboé, num jogo contrapontístico com o solista.
A conclusão da linha melódica dos instrumentinos é prolongada, projetando-se dentro da
seção subseqüente.
100
Com exceção do prolongamento citado, que dilui os limites entre as seções, a
reapresentação da seção B1 se dá de maneira canônica. Também o retorno do tema principal se
dá de forma muito semelhante à sua primeira aparição, com variações na dinâmica e na
orquestração de sua conclusão imprimindo um caráter mais grandioso e apoteótico. Uma coda
(242.1-247-1) contribuirá para a confirmação desse clima. A linha melódica do solista nos
compassos 142 e 143 reforça a situação de ambigüidade entre um sentido modal e tonal.
Assim, pudemos constatar que o compositor fez neste movimento o uso de diversos
elementos temáticos, que ele combina livremente, fragmentando, ampliando, modificando e
reordenando. Ao olharmos a obra como um todo percebemos uma síntese das fontes de
inspiração do compositor, ou seja, a música urbana carioca, bem caracterizada no primeiro
movimento, sua formação clássica, que percebemos por seu domínio das grandes formas, bem
como pelo clima impressionista do segundo movimento, e as fontes folclóricas que afloram
abundantemente no terceiro movimento. Obra de um compositor já maduro que não teve
preconceitos de reunir fontes tão heterogêneas numa mesma obra.
6.3 – O Concertino e seus intérpretes
Nos últimos anos o Concertino vem sendo redescoberto por alguns intérpretes. A
partir de agora relacionaremos alguns desses artistas e suas experiências com a música de
Gnattali.
Dilson Florêncio foi o responsável pela estréia do Concertino, em novembro de 1987,
durante a VII Bienal de Música Brasileira Contemporânea. Seu contato inicial com a obra se
deu através de Sandoval Dias, a quem conhecera em 1986 e que estava em posse da partitura
original. Após a estréia da obra, Florêncio entregou o manuscrito original à FUNARTE, tendo
mantido consigo cópia xerográfica. Não foi possível a localização da música junto a essa
Instituição.
101
Dilson Florêncio considera que a música não deve ser tocada para músicos e sim para
o público. Desta forma, destaca a acessibilidade da música de Gnattali, que tem uma
comunicação imediata com o público, ao contrário da maioria da música contemporânea, que
muitas vezes é de difícil compreensão e assimilação. O músico condena o estabelecimento de
uma barreira isolando a música popular da música clássica. Para ele, a técnica do saxofone é
uma só, qualquer que seja o tipo de música que vai se tocar, embora reconheça que hajam
inflexões características de cada estilo. Embora dedique-se exclusivamente à música clássica,
o músico afirma que “só existe música boa e música ruim” (depoimento pessoal em
23/04/2003, Belo Horizonte). Para Florêncio é importante para o intérprete emocionar o seu
público.
Muitas vezes o cara tocar todas as notinhas não quer dizer nada. O cara tem que
emocionar. Se eu vou tocar uma coisa para alguém gostar eu tenho que mostrar: “Olha
como isto é bonito!”. Você tem que se convencer para convencer os outros. Eu acho que
tem que parar com esse negócio de música erudita, música popular. Acho que tem que ser
bem feitas as duas. A técnica de uma se usa na outra. É claro que se tem umas inflexões
diferentes, mas a técnica é a mesma. (idem)
Esse posicionamento alinha-se com as idéias de Gnattali, que sempre trabalhou com
grande fluência nos mais diversos estilos musicais.
Sobre o Concertino, Florêncio destaca o fato de ser uma obra que não apresenta
grandes dificuldades técnicas, e ser muito bem escrita, agradando tanto ao público quanto ao
executante, já que é uma peça agradável de se tocar.
Paulo Sergio Santos, clarinetista e saxofonista tem uma carreira dividida entre a
música de câmara e a música popular em especial o choro. Foi por muitos anos músico da
Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e integrou o Quinteto VillaLobos. Na realidade o músico se considera realmente um clarinetista que eventualmente toca
saxofone, por exigências profissionais. Foi regente da extinta Camerata da Universidade
Gama Filho, grupo que abrigava em sua formação um quinteto de sopros, um grupo
102
regional19 e um quinteto de cordas. Para um grupamento de formação sui generis contava com
o apoio de músicos arranjadores como Jayme Vignoli, Josimar Carneiro e Marcílio Lopes,
que atuavam na própria camerata, para adaptações e arranjos. Seu repertório era formado
basicamente por música brasileira. Sua gravação do Concertino teve Marcílio Lopes como
arranjador.
Santos considera a obra de Radamés Gnattali comparável à de grandes compositores
brasileiros, como Guerra-Peixe, Villa-Lobos, Mignone, Marlos Nobre, Camargo Guarnieri,
Oswaldo Lacerda. Aponta como questão relevante a livre utilização de material popular em
suas composições. Para o clarinetista o compositor pagou um preço por isto, uma vez que
parte da crítica consideraria que “determinadas coisas dele soariam vulgares” (Depoimento
pessoal em 19/03/2004, Rio de Janeiro). Destaca como ponto positivo a concepção das obras
baseando-se no estilo particular de cada músico, uma que a participação do intérprete é um
fator decisivo na criação musical:
“(...)Porque ele era assim. Escreveu para o Rafael, para o Joel. Escrevia para o músico, o
que eu sinto como um sinal de inteligência. Por que ele queria o Rafael tocando. Porque
ele queria o jeito do Rafael. Ele sabia que o Rafael iria tocar a música dele de uma
maneira interessante. É muito difícil colocar a essência daquilo que você faz no papel. O
compositor sempre fica dependente do que o intérprete faz. E pode gostar ou não. Mas
quando ele escreve para “o cara” é muito difícil ele não gostar, porque ele já gosta tanto
do cara, tudo o que ele faz ele gosta.”(idem)
O clarinetista considera nosso sistema de notação musical limitado, o que tem um
aspecto positivo, já que permite diversas leituras de uma mesma composição. Quando um
compositor decide especificar os mínimos detalhes em dinâmicas, articulações e outros efeitos
cria uma situação insuportável para o músico, que fica preso, amarrado. Para Santos a
variedade de interpretações é comparável à ampliação de uma fotografia. A partitura é o
negativo. Cabe ao intérprete ampliá-lo, acentuando as cores que achar mais interessantes.
19
Formação característica do choro incluindo geralmente bandolim, cavaquinho, violões de seis e sete cordas,
percussão, podendo incluir sopros.
103
O saxofonista norte-americano Dale Underwood é um dos mais importantes solistas da
atualidade no estilo clássico. Em sua carreira tem realizado apresentações pelos Estados
Unidos, bem como países como Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Suécia, Cuba,
México e Canadá, entre outros. É professor de saxofone na George Mason University e na
University of Maryland. Foi um dos fundadores do Saxophone Journal, uma das mais
importantes publicações sobre o instrumento em todo o mundo. Mais de 30 obras foram a ele
dedicadas.
Nos últimos anos Underwood tem vindo freqüentemente ao Brasil, principalmente
através de seu contato com o Conservatório de Tatuí, onde tem ministrado cursos, palestras e
workshops. Um resultado direto desse intercâmbio foi a gravação de um CD intitulado Obras
Brasileiras para Saxofone e Orquestra, com a Orquestra Sinfônica Paulista, vinculada àquela
instituição de ensino. Nesse disco, além do Concertino de Gnattali, constam a Fantasia para
Saxofone de Villa-Lobos, além de 3 obras compostas em Tatuí especialmente para
Underwood. Posteriormente apresentou o Concertino junto à OSB, no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro.
O saxofonista destaca a utilização de uma grande variedade de materiais, resultando
numa obra rica e diversificada, onde várias referências sonoras se combinam e se fundem.
Leo Gandelman é a primeira referência em saxofone para o grande público. Seu
trabalho é voltado para a música popular, mesclando ritmos brasileiros, como samba e baião
ao jazz, funk e rock. Entretanto sua formação musical está ligada à música de concerto, mais
especificamente à música barroca, com a qual travou contato por muitos anos, tocando
flautas-doces. Posteriormente, encontrou no saxofone um veículo para realizar uma música
onde poderia valorizar a criatividade e a improvisação.
Em tempos recentes Gandelman tem feito algumas incursões na música clássica,
atuando como solista junto a orquestras no Brasil e no exterior. Seu primeiro contato com o
104
Concertino se deu através da apresentação de Dale Underwood com a Orquestra Sinfônica
Brasileira, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Gandelman, a partir de então, passou a
incluir a obra de Gnattali em seus concertos, tendo apresentado a obra, com a mesma OSB,
em Nova Iorque, nos Estados Unidos, e com a OSESP, em São Paulo, entre outras. Além do
Concertino, o saxofonista tem tocado a Fantasia para Saxofone Soprano e Orquestra, de
Villa-Lobos. O músico destaca alguns pontos de proximidade entre as duas obras:
Eu senti uma estrutura muito parecida, no sentido que o primeiro andamento é bem
mexido, animado. O segundo andamento entra bem lento e com um tom de música
impressionista francesa e o último andamento o “cara” mandou em 7. Quando eu toquei o
Radamés eu pensei: “Pô, o Radamés também escreveu em 7. Parece que o esqueleto é
parecido. (Depoimento pessoal em 10/03/2004, Rio de Janeiro)
Um dado pode ser acrescentado: Em ambas as obras a transição do segundo para o
terceiro movimento se dá de maneira contínua.
Indagado sobre o approach utilizado na interpretação de obras como o Concertino,
Gandelman concorda com Dilson Florêncio no não-estabelecimento de uma barreira
separando a música popular da música clássica:
Mas eu acho que não existe nesse ponto, com relação a essa obra esse tipo de
diferenciação. Acho que a ginga faz parte se o intérprete tem ginga. Quem não tem, não
tem. Por exemplo: Se você pegar a Fantasia do Villa-Lobos tocada pelo John Harle. O
cara toca com a sinfônica de Londres de uma maneira assim... germânica. Villa-Lobos
não é isso. O brasileiro não vai tocar assim. Uma orquestra brasileira não vai tocar assim.
Ninguém mudou uma vírgula, mas a forma de encarar uma quiáltera no Brasil é diferente
no Brasil e na Inglaterra. A forma de encarar uma colcheia pontuada mais uma
semicolcheia, é diferente do que é no Brasil e na Alemanha. Você pode elevar isso a mil
potências, porque vem de aspectos culturais. Eu acho que o intérprete está livre para ser
ele numa peça, desde que seja fiel ao texto. Desde que não modifique a duração de
notas... Desde que não modifique o texto ele está livre para tocar à sua maneira. Da
mesma forma que a orquestra também tem que ser como ela é. A OSESP vai soar
diferente da Sinfônica de Londres. Tocando certinho tudo bonitinho, no mesmo
andamento. Vai soar diferente. Não tem jeito. Sabe porquê? Por causa do sotaque. Cada
um tem o seu. O Rio de Janeiro fala diferente de São Paulo. Acho que cada um tem que
tocar da sua própria maneira. Não adianta eu querer tocar igual ao Paulo Sérgio, que não
teria graça. (Idem)
105
6.4 – As duas versões do Terceiro Movimento.
Um dos aspectos mais intrigantes sobre esta obra é a existência de duas versões para o
terceiro movimento. Nossa primeira referência ao Concertino se deu através de uma cópia
manuscrita da parte do solista, realizada pelo professor Dilson Florêncio e da gravação de
Dale Underwood e a Orquestra Sinfônica Paulista. Em ambas as fontes o terceiro movimento
começa em compasso 7/8.
Na fase inicial de nossa pesquisa entramos em contato com o prof. Roberto Gnattali,
que realizava projeto de digitalização da obra de Radamés. Na ocasião, Gnattali nos
apresentou a gravação de Paulo Sergio Santos e a Camerata da UGF. O material contrastava
com as referências que tínhamos da obra não só pela presença de instrumentos típicos do
Choro, uma vez que se tratava de um arranjo de Marcílio Lopes, mas principalmente pelo fato
de o terceiro movimento, nessa gravação, começar com um compasso 3/4.
exemplo musical 8 - início do 3o. movimento (7/8)
106
exemplo musical 9 - início do 3o. movimento (3/4)
Na época não tínhamos à disposição os originais de Radamés Gnattali que
comprovassem a autenticidade da versão 7/8. Por outro lado esta tinha sido apresentada em
1987 por Dilson Florêncio na Bienal (informação não disponível naquele momento). Havia
também a gravação de Dale Underwood. Qual seria então a fonte do material apresentado por
esses artistas? Segundo informações do Prof. Roberto Gnattali, o formato original do
Concertino seria baseado no compasso de 3/4, constando dos arquivos apenas um esboço
citando a versão em 7/8. A resposta veio através do prof. Dilson Florêncio. Conforme
mencionado anteriormente, o manuscrito da versão 7/8 estava com Sandoval Dias, que
chegou até a fazer uma transcrição para o saxofone soprano.
107
figura 2- primeira página do manuscrito do Concertino (7/8)
108
figura 3 - 1a. página do Concertino (3/4)
figura 4 - página 2 do Concertino (v. 3/4) - em destaque logotipo da Rede Globo
Após ter acesso aos manuscritos de ambas as versões, pudemos comprovar serem
ambas autênticas, através do reconhecimento da caligrafia por músicos como Luiz Otávio
Braga, Aída Gnattali e Nelson Macedo. Restam entretanto 2 questões: 1) - Qual das duas
versões teria surgido primeiro? 2) – O que teria levado o compositor a escrever de duas
maneiras diferentes o 3º movimento? Tais perguntas são de difícil resposta. Como citamos
anteriormente, o Concertino é uma obra que ficou esquecida por muitos anos e os detalhes
109
que envolvem sua criação ficaram perdidos na memória de músicos e pessoas do convívio de
Radamés. Ficamos assim restritos ao campo das hipóteses. A equipe do Conservatório de
Tatuí teve acesso ao manuscrito da versão, fornecido por Dilson Florêncio. No original deste
há uma rasura na data de composição, o que levou a uma informação incorreta, tanto na
partitura computadorizada, realizada naquela instituição, quanto no encarte que acompanha o
CD com a gravação de Underwood. Ambos documentos referem-se a essa data como 1954,
sendo a data correta a verificada no manuscrito da versão em 3/4, ou seja, 1964. Esta
informação poderia dar margem a uma hipótese: não teria sido de fato o Concertino criado em
1954, na versão 7/8 e depois revisado dez anos mais tarde, assumindo o compasso 3/4 no 3º.
movimento? Isto seria plausível. Entretanto ao olharmos o manuscrito da versão em 3/4
podemos perceber em intervalos mais ou menos regulares de quatro em quatro páginas a
presença de um logotipo da Rede Globo de Televisão (figura 3). Ocorre que este logotipo
passou a ser utilizado apenas a partir de 197520, o que nos leva a deduzir que a cópia foi feita
a partir dessa data. Ao que parece Gnattali fez uso das grandes páginas destinadas aos arranjos
para grande orquestra na emissora cortadas para se adequarem à formação instrumental do
Concertino. Dessa forma não podemos com os dados disponíveis precisar qual das duas
versões teria surgido primeiro.
Leo Gandeman sugere uma hipótese para a existência das duas versões. Segundo seu
depoimento Gnattali “ pode ter escrito em 3/4 e depois descoberto que poderia ‘suingar’”
mais se ele botasse um 7/8” (depoimento pessoal, em 10/03/2004, Rio de Janeiro). Por outro
lado, o depoimento de artistas como Paulo Moura e Nelson Macedo, apontam em direção
contrária. A primeira versão seria em 7/8 e mais tarde, para talvez dar um caráter mais
popular à obra, o compositor teria reescrito no compasso ternário. Realmente, sentimos que a
versão em 3 soa como uma simplificação à assimetria do compasso 7/8. Embora não seja de
20
Informação obtida em <http://www.telehistoria.com.br/canais/emissoras/globo_galeria.htm.> Acesso em 22 de
novembro de 2004.
110
difícil execução, esta pulsação irregular pudesse talvez trazer algum problema para algum
saxofonista mais acostumado com o batimento mais simétrico que predominava na música de
consumo da época, como aliás, predomina até nos nossos dias. Entretanto isto pode apenas
refletir uma opinião pessoal, uma vez que o nosso primeiro contato com a obra foi através da
versão em 7/8. Conforme depoimento pessoal de Luiz Otávio Braga, não era da natureza de
Radamés Gnattali esse procedimento de simplificação, até mesmo porque ele sempre teve à
sua disposição os melhores instrumentistas e não haveria motivo para se pensar em “facilitar
as coisas”.
Embora consideremos a versão em 7/8 mais interessante, justamente por sua pulsação
assimétrica, não podemos deixar de ver a outra versão como uma opção válida. O próprio
compositor, ao reescrever a obra, mais de dez anos após a sua criação, com a mudança de
compasso, ratifica sua validade. Acreditamos que a intenção do compositor não tenha sido de
fato optar por uma ou outra versão. Pelo contrário, preferiu deixar em aberto esta escolha.
Impossibilitados de afirmar com precisão os motivos que tenham levado o compositor
a conceber o terceiro movimento do Concertino de duas maneiras distintas somos levados a
concordar com D. Aída Gnattali, que do alto da simplicidade e da experiência de seus 93 anos
nos afirmou: “As duas versões estão aí. Você escolhe a que gostar mais”. (depoimento pessoal
em 19/05/2004, Rio de Janeiro).
CONCLUSÃO
Ao nos aproximamos do final deste trabalho, refletimos sobre quais conclusões podem
ser tiradas de nossa investida. A proposta inicial era apresentar uma parcela da produção de
Radamés Gnattali que é menos conhecida, a música para saxofone, e construir um ideal
interpretativo. Desta forma fizemos um levantamento das obras onde pudemos verificar a
existência de duas obras de maior porte, a Brasiliana no. 7 para saxofone tenor e piano e o
Concertino para saxofone alto e orquestra, além de outras de menores dimensões. Não se
trata de uma produção muito extensa, mas bastante representativa.
Discutimos sobre música clássica, popular, folclórica, e os desdobramentos da
interpenetração das culturas erudita e popular, aspectos importantes para se compreender a
música de Gnattali. Apresentamos também um resumo da história do saxofone com ênfase na
existência de duas escolas, uma erudita e uma ligada ao jazz, bem como uma escola informal
brasileira.
Tivemos a oportunidade de verificar duas das características mais marcantes do estilo
de Gnattali. A primeira refere-se ao fato de o compositor, em sua vitoriosa carreira, conciliar
os conhecimentos de sua formação clássica com a experiência adquirida na música popular,
no trabalho do dia-a-dia. Verificamos principalmente os reflexos do contato diuturno com a
indústria cultural e a música de consumo em sua obra. Radamés fez um nacionalismo à sua
maneira. Não seguiu a cartilha nacionalista, que pregava utilização da música folclórica como
matriz, em detrimento da música popular urbana. Gnattali inspirou-se tanto no mundo rural,
folclórico, quanto utilizou-se de fartas porções inspiradas na música popular urbana, em
especial, a carioca. Não teve preconceitos em reunir muitas vezes numa mesma obra
elementos díspares, o que o levou muitas vezes a ser mal compreendido e visto com
preconceito. Os limites entre popular e erudito nem sempre ficaram claros em sua obra e parte
112
da crítica não conseguiu captar a maneira com que transitava naturalmente entre distintas
esferas musicais. A outra característica que pudemos verificar ser relevante em sua obra, em
especial nas obras para instrumentos solistas, foi a preocupação em escrever dentro do estilo
particular de cada intérprete, o que resultou sempre numa escrita muito idiomática.
Ao analisar as obras para saxofone constatamos que estas se enquadram plenamente
nas características descritas. As obras refletem os estilos pessoais dos músicos para os quais
foram compostas: Zé Bodega, Sandoval Dias, Paulo Moura. Mesmo o Concertino, obra que
não foi possível precisar a que artista teria sido dedicada, revela em sua escrita idiomática
para o instrumento solista ter sido concebida de acordo com esse procedimento compositivo.
As obras demonstram também a idéia de quão sutis são os limites que separam sua produção
popular e clássica, devido à diversidade dos elementos utilizados. Nas obras de grande porte
notamos a presença constante de elementos oriundos da música popular, seja urbana, seja
folclórica, ao lado de um grande domínio das grandes formas. Nas obras curtas, mais voltadas
para a sua produção no campo da música popular, podemos também perceber a presença de
reflexos de sua formação de pianista clássico.
Assim, diante das características levantadas, chegamos a um ponto crucial de nossa
pesquisa: determinar de que maneira seria melhor interpretada a obra para saxofone de
Radamés Gnattali. Acreditamos que uma música que reúne elementos tão variados e que não
raras vezes enturva as fronteiras entre clássico e popular, exige um conhecimento amplo de
vários estilos para a sua compreensão e interpretação. Em especial nas obras de maior porte,
mais claramente direcionadas às salas de concerto, acreditamos que uma interpretação
adequada deve se basear no estilo clássico do instrumento, valorizando um refinamento
sonoro, uma articulação precisa. Entretanto não se deve nunca esquecer a matriz popular das
obras e buscar justamente nessas fontes, do samba, das marchinhas, do baião, do samba
canção, do choro, subsídios para uma interpretação válida. Obviamente, as conclusões a que
113
chegamos neste sentido são em muito fruto de nossa formação acadêmica, bacharel em
saxofone, somada à experiência profissional ligada em grande parte ao estilo popular.
Acreditamos que da mesma maneira que Radamés Gnattali transitou livremente entre os
estilos, devemos aplicar à nossa interpretação um equilíbrio entre os elementos da música
clássica e da popular, valorizando o que estas têm de melhor. Juntar a elegância ao “molho”, o
refinamento à malandragem, o samba à sonata. Daí que o ideal interpretativo, para as obras de
Radamés Gnattali não significa apresentar uma única e definitiva maneira de interpretar tais
obras. É mais que saudável que existam vários pontos de vista, sem evitar o conflito. A
riqueza de cada interpretação está justamente em sua unicidade, fruto de coerência em
conciliar as diversidades.
Acreditamos poder ter colaborado para a valorização de obras que deveriam ser mais
divulgadas, e evidenciar a produção de um de nossos mais importantes e profícuos
compositores, cuja obra merece ser preservada.
Muitas perguntas ficaram sem resposta, principalmente no tocante ao Concertino, sua
história e suas duas versões. Esperamos que nosso trabalho dê ensejo a outras pesquisas e que
no futuro, dispondo de novos dados tais questões possam ser enfim solucionadas .
114
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199.007.120.
PAULO MOURA e RADAMÉS GNATTALI. Paulo Moura Interpreta Radamés
Gnattali. Rio de Janeiro, 1959. 1 Cd ( 35 min 14 s) BR- 863011033-2
Radamés Gnattali. Radamés Gnattali.Rio de Janeiro, 1998 Opus Eventos/CEEE-RS. 3
CD’s ( 3 h 30 min 30 s). GNATT 01-03).
RADAMÉS GNATTALI e SANDOVAL DIAS. Brasiliana no. 7. Rio de Janeiro, 1957.
RGE 6104 2
Partituras
GNATTALI, Radamés. Remechendo – Rio de Janeiro: E. S. Mangione, 1943. 5 partes
_______________. Brasiliana nº 7 para saxofone tenor e piano. 1 Partitura (26 p.) +
parte. Cópia xerográfica de Manuscrito. Biblioteca Nacional.
________________. Caminho da Saudade. São Paulo: Bandeirante Editora Musical
Ltda, 1957. 3 partes.
_______________. Bate-Papo. São Paulo: Bandeirante Editora Musical Ltda, 1957. 3
partes.
_______________. Valsa Triste. 1 partitura (4 p.). Cópia xerográfica de manuscrito.
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro.
_______________. Monotonia. 1 partitura (3 p.). Cópia xerográfica de manuscrito.
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro.
118
_______________. Devaneio. 1 partitura (3 p.) + partes. Cópia xerográfica de
manuscrito. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro.
________________. Concertino para Saxofone Alto e Orquestra (versão 3/4). 1
partitura (68 p.) . Cópia xerográfica de manuscrito. Acervo Radamés Gnattali. Rio de
Janeiro.
_______________. Concertino para Saxofone Alto e Orquestra (versão 7/8). 1 partitura
(42 p.). Acervo pessoal Dilson Florêncio. Belo Horizonte-MG.
ANEXOS
Partituras
Brasiliana nº 7 para saxofone tenor e piano
(digitalizada por Marco Túlio de Paula Pinto)
Concertino para saxofone alto e orquestra (versão 7/8)
(digitalizada por José Rua e revisada por Marco Túlio de Paula Pinto)
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