OS PRONOMES POSSESSIVOS EM PORTUGUÊS: UMA REFLEXÃO SOBRE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA NO ENSINO FUNDAMENTAL Marly Rocha Medeiros de Vargas (CELE/UFRN) [email protected] Marco Antonio Martins (UFRN) [email protected] INTRODUÇÃO Em meio às diversas abordagens que vêm orientando as questões gramaticais no contexto do ensino da língua, ainda prevalecem as que vinculam o bom ensino – entendido como aquele que gera resultados satisfatórios – a um conjunto de normas/recomendações imutáveis, descontextualizadas, ratificando o caráter convencional dessa abordagem. Passam como indiferentes, portanto, os aspectos socioculturais inerentes aos falantes/usuários da língua matriculados nas escolas, notadamente – para efeito desta pesquisa – os que pertencem ao nível fundamental do ensino público. Nesse contexto, insere-se o tratamento dispensado pelas gramáticas tradicionais (GTs), bem como pelo livro didático de português (LDP), às questões sobre o sistema pronominal dos possessivos em português, cujas concepções, em geral, se repetem em sala de aula, reproduzindo uma visão de ensino fundada em regras prescritivas, cujas recomendações silenciam o lugar das variações linguísticas constituídas nas trocas socioculturais, segundo o uso concreto que cada falante faz da língua. Considerando tais questões, o presente trabalho tem por objetivo apresentar um diagnóstico do ensino de Língua Portuguesa, no que diz respeito ao sistema pronominal dos possessivos em português. Apresentaremos uma revisão das definições e paradigmas assumidos pelas Gramáticas de Almeida (1985), de Bechara (2009) e de Cunha e Cintra (2009), bem como pelo Livro Didático de Língua Portuguesa (LDP) do 6º ano do ensino fundamental, dos autores Cereja e Magalhães (2009), adotado em muitas escolas da Rede Municipal de Ensino de Natal/RN. Trata-se de uma análise confrontual, conduzida por uma ótica crítico-reflexiva, pautada no pressuposto de que a variação, na língua, impõe e configura a necessária reinterpretação e consequente reformulação de normas, dessa feita “calcadas na realidade linguística brasileira, diversificada social e culturalmente, cujas vozes materializam, dentre outros fatores, as origens socioeconômicas, graus de escolaridade, gênero e idade dos falantes”, assim traduzindo uma correlação de aspectos situados nos planos linguístico e ou extralinguístico (CALLOU e LOPES, 2003, p. 63). Noutros termos, o indivíduo, pela sua forma de falar, se identifica como pertencente, ou não, a determinada comunidade e a determinado grupo social (GÖRSKI;COELHO, 2009, p.77).Com esse entendimento, e norteados pela teoria sociolinguística variacionista, segundo estudos realizados por Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Lopes (2009), dentre outros, a pesquisa foi empreendida. Para tal, assumimos uma concepção de Língua (e consequentemente de ensino de Língua materna) que advoga uma pedagogia sensível e de valorização aos saberes linguísticos dos alunos, a qual supõe a criação de ambientes escolares significativamente promissores de aprendizagens, com participação social, modos de falar e rotinas comunicativas inerentes à sua cultura (BORTONI-RICARDO, 2005). E isso é patente nas mudanças decorrentes das situações reais de uso, devendo ser atentamente considerados no conjunto de saberes que competem, à escola, ensinar. Igualmente, foram considerados, neste trabalho, os conteúdos expostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNs), publicados na década de 1990, dentre os quais está o de uma concepção de língua condicionada e determinada histórica e culturalmente, e, portanto, sujeita a variações e mudanças, refletindo formas de expressão e falares que atendem a diferentes propósitos comunicativos. Desse modo, o estudo tem como pressuposto o princípio de que a variação, na língua, impõe a necessária reinterpretação e consequente reformulação de normas, dessa feita calcada na realidade linguística brasileira, diversificada social e culturalmente, cujas vozes materializam, dentre outros fatores, as origens socioeconômicas, graus de escolaridade, gênero e idade dos falantes. O trabalho está disposto em quatro seções. A primeira reúne a descrição do que as gramáticas eleitas para o estudo trazem como definição e paradigma em relação ao sistema dos pronomes possessivos. Na segunda, discorre-se sobre língua, diversidade, variação, escola e ensino, na base de cuja relação se situa a reinterpretação do “erro” gramatical, dessa feita configurado pelas as variações ocorridas nos campos geográfico, social e estilístico, ocasionadas pela diversidade de interações, segundo as necessidades de ajuste nos processos de comunicação e contexto de situação. Significa que elas são inerentes à fala e à própria comunidade de fala e está relacionada aos diferentes papeis sociais exercidos por cada um dos participantes. Por sua vez, a terceira seção trata da pluralidade de variações e o sistema dos possessivos em português, mostrando que o fenômeno da variação, no que se refere a esse sistema, se deve à inserção das formas “você” e “a gente” no quadro de pronomes do português brasileiro, tendo isso, tendo isso têm provocado alterações que vêm repercutindo gramaticalmente nos diferentes níveis da língua. Por sua vez, e a título de conclusão, a quarta seção consta do tratamento adotado pelo livro didático em relação ao sistema dos possessivos, tomando por base o que expõem as GTs e o que propõem os estudiosos da sociolinguística variacionista, tendo como objetivo constituir-se em objeto de reflexão e discussões sobre a abordagem do sistema dos possessivos no contexto da sociolinguística variacionista, e suas repercussões no ensino de língua portuguesa. 1. Paradigmas e definições vigentes nas gramáticas tradicionais em relação aos pronomes possessivos em português O levantamento dos paradigmas e das definições expostos nas gramáticas analisadas sobre o sistema pronominal – no qual se inserem os possessivos – evidenciou uma abordagem de ensino pautado em um padrão normativo tradicional da língua, prevalecendo as nomenclaturas e regras prescritivas, não se registrando, portanto, focos de discussões acerca das novas formas de uso desses pronomes, considerando o português falado no Brasil. Nessa perspectiva, as definições de Almeida (1985), Bechara (2009) e Cunha e Cintra (2009) confluem, quando concebem o pronome possessivo como aquele que indica ideia de posse segundo a pessoa gramatical a que se refere e em função da qual as referências são estabelecidas. É o possessivo no duplo papel: um de indicar a coisa possuída e, outro, de indicar a pessoa gramatical possuidora, assim flexionando-se em gênero e número. Significa que se tratarmos a pessoa com que falamos por “vós”, deveremos empregar, para indicar seres pertencentes a essa pessoa, os possessivos “vosso (a), vossos (as)”; se a tratarmos por “tu”, deveremos empregar os possessivos “teu”, “tua”, “teus”, “tuas”; é a prescrição de que não se deve “misturar” as formas de tratamento nos processos de comunicação, seja verbal oral, seja verbal escrito. Semelhante postura é recomendada ao emprego dos pronomes oblíquos. Por exemplo, à forma “te” corresponderá o possessivo “teu”; às formas “o”, “a”, “lhe” corresponderão às formas possessivas “seu”, “sua”, o que se estende também em relação às formas “Senhor”, “Vossa Senhoria” e “você”. Sobre essa questão, registra-se um contrassenso, quando a prescrição não condiz com o emprego do possessivo em relação às citadas formas. Outra observação feita ao pronome possessivo, na ótica tradicional, é o fato de ele se situar em referência a um possuidor de sentido indefinido. Significa que se esse possessivo se referir a uma pessoa de sentido indefinido, expresso ou sugerido pelo significado da oração, prevalecerá o emprego do pronome de terceira pessoa, como ocorre no exemplo a seguir. (1) “... É verdade que a gente, às vezes, tem cá as suas birras – disse ele com ar de quem queria”. (BECHARA, p.185). Porém, se o falante se insere no termo ou na expressão indefinida, será empregado o possessivo de primeira pessoa do plural, conforme mostra o exemplo (2). (2) “... a gente compreende como estas cousas acontecem em nossas vidas (op. cit., 185). Saliente-se que no português brasileiro registra-se, em princípio, a coocorrência, no sistema pronominal, das formas “a gente” e “nós”, como decorrência do traço de indeterminação do substantivo “gente”, dado o caráter generalizador que o reveste (LOPES, 2009). Tal expressão, entretanto, pode contemplar tanto o caráter genérico quanto o mais restrito, específico – segundo o grau/nível de (de)marcação do sujeito, independentemente que o possessivo apresente comportamento semelhante. Ao lado de tais prescrições, as gramáticas são unânimes em focar os possessivos na perspectiva funcional e morfossemântica, reunindo questões sobre concordância em relação ao substantivo, a posição do pronome adjetivo possessivo, o emprego ambíguo do possessivo de terceira pessoa, o reforço dos possessivos, os valores dos possessivos, seus valores afetivos, o “nosso” de modéstia e de majestade, o “vosso” de cerimônia, a substantivação dos possessivos e o emprego dos possessivos pelo pronome oblíquo tônico. Para efeito dos objetivos deste trabalho, recuperaremos casos que focalizem o fenômeno da variação em relação a esses pronomes, como decorrência da migração de pronomes pessoais de terceira pessoa para a segunda pessoa, em função do que o sistema dos possessivos igualmente foi afetado. Eis, em síntese, como se apresenta o modelo tradicional do sistema dos possessivos em português. UM POSSUIDOR 1ª pessoa – eu masc./fem. 2ª pessoa – tu masc./fem. VÁRIOS POSSUIDORES Meu/minha Meus/minhas Nosso/nossa Nossos/nossas Teu/tua Teus/tuas Vosso/vossa Vossos/vossas 3ª pessoa – ele/ela Seu/sua Seus/suas Seu/sua Seus/suas masc./fem. Quadro 1. Fonte de pesquisa: Nova Gramática do Português Contemporâneo – Cunha & Cintra (2009) Reportando-nos ao quadro acima, constatamos que, apesar dos novos conhecimentos propostos pela (socio)linguística, as gramáticas tradicionais ainda se mantêm preservando, sobre os pronomes, uma linha de abordagem não condizente com as novas formas de comunicação efetivas dos falantes da língua portuguesa. Uma das evidências nesse aspecto é a indiferença a certas formas variantes de uso dos pronomes pessoais de segunda pessoa tu/você, entre os pronomes de primeira pessoa do plural nós/a gente, bem como os pronomes possessivos de segunda pessoa do singular teu/seu e os de terceira pessoa do singular seu/dele/dela. Um desses casos respeita ao emprego ambíguo do possessivo de terceira pessoa, nas formas seu/sua, seus/suas, em referência ao possuidor da terceira pessoa do singular, ou da terceira do plural, seja este possuidor masculino e ou feminino. Para os gramáticos, o fato de o possessivo concordar unicamente com o substantivo denotador do objeto possuído provoca, não raro, dúvidas em relação a esse possuidor. Nesse caso, a ambiguidade pode ser evitada pela possibilidade de se precisar a pessoa do possuidor com a substituição de seus(s), sua(s), pelas formas dele(s), dela(s), de você(s), do(s) senhor(es), da(s) senhora(s), e demais expressões de tratamento. Veja-se o exemplo (3). (3) “...Em casual encontro com Júlia, Pedro fez comentários sobre os seus exames. Note-se a diferença ao substituirmos seus por dele/dela/deles: “... Em casual encontro com Júlia, Pedro fez comentários sobre os exames dele/dela/deles. Tal ressalva, fruto da repercussão das variações e mudanças que se vêm operacionalizando no sistema pronominal do português, é posta pelos autores sob a ótica de uma observação, destituída, portanto, de referências a tais fenômenos. Sobre essa questão, Lopes (2009, p. 104) afirma tratar-se de “uma estratégia possessiva de 3ª pessoa para evitar a ambiguidade do possessivo “seu”, que atende às duas pessoas (2ª e 3ª)”. Trata-se da forma de realização do possessivo nas formas pronominais de terceira pessoa (seu/sua), segundo o deslocamento dessas formas para a segunda pessoa, assim gerando a forma genitiva dele/dela. 2. Língua, diversidade, variação, escola e ensino Conforme já visto, os realizados no campo da linguística e, mais especificamente, da relação entre os estudos linguísticos e o ensino de português trazem em seu universo questões relativas ao sistema pronominal, numa perspectiva diversa do que apresentam as versões convencionais de ensino nessa área, no que respeita ao enfoque da gramática tradicional. São os estudos focados na sociolinguística variacionista, configurados nos pensamentos de estudiosos, como Bortoni-Ricardo (2004; 2005); Lopes (2009); Gorski e Coelho (2009); Duarte (2009); Arduin e Coelho (2005); Callou e Lopes (2009), cuja abordagem privilegia a diversidade/heterogeneidade na língua, a exemplo do que ocorre nas próprias relações sociais, estas extensivas aos ambientes escolares. Particularizando essa temática no contexto da relação entre variação linguística e ensino de gramática constata-se, com Görski e Coelho (2009), que as variações ocorrem nos campos geográfico, social e estilístico, ocasionadas pela diversidade de interações, segundo as necessidades de ajuste nos processos de comunicação e contexto de situação. Significa que a variação é inerente à fala e à própria comunidade de fala e está relacionada aos diferentes papeis sociais exercidos por cada um dos participantes. Ao abordar a norma padrão – como gramática normativa – as autoras lembram que a tal acepção está vinculada à noção de regra, cuja prescrição, se não seguida, implica em erro para o qual se paga uma pena. Nesse sentido as autoras lembram que, no âmbito dos estudos linguísticos, norma diz respeito à língua em funcionamento nas mais diferentes situações comunicativas. Para as autoras (apud Faraco, 2002, p. 39), trata-se de [...] um conjunto de usos e atitudes (valores socioculturais agregados às formas) comuns a determinados grupos sociais, que funciona como um elemento de identificação de cada grupo. [Nesse sentido], em sociedades diversificadas como a nossa existem, então, várias normas: a norma linguística dos pescadores de determinada região, a norma linguística das comunidades rurais, a norma linguística dos moradores do morro, e assim por diante. Conforme afirmar as próprias autoras, um estudo sistematizado desses falares geraria regras descritivas – logo formuladas a partir do uso linguístico – ao contrário do que ocorre com a gramática normativa tradicional, cujo emprego da regra ocorre numa perspectiva prescritiva. Significa que “diferentes comunidades de fala apresentam diferentes normas linguísticas, variedades, ou dialetos” (p.79). Sobre essa questão, os Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa (PCNs), ao referir-se aos anos iniciais do ensino fundamental, argumentam que se deveria considerar que apesar de a língua portuguesa constituir-se em idioma oficial, o nosso é um país fundado num plurilinguismo (tupi-guarani, português, italiano, alemão), que se estende à esfera da própria língua portuguesa, caso se tome a língua falada como parâmetro (GÖRSKI E COELHO, 2009). Ocorre que as abordagens do ensino da língua portuguesa ainda reproduzem modelos convencionais conforme os quais prevalecem as formas-padrão dominantes, regidas pelas noções de certo e de errado (op. cit., p. 74). Assim sendo, se indagaria: que ensino queremos para nosso aluno, desde que lhe possibilite a formação de habilidades e competências linguísticocomunicativas satisfatórias e eficazes? Responder a essa questão significa considerar as relações entre ensino, aprendizagem, língua e gramática, num contexto sócio-histórico e cultural dado. Voltando aos PCNs, trata-se de postular um ensino que privilegie as práticas sociais, logo em função das situações reais de interação e, sobretudo, adotando uma postura antipreconceituosa em relação aos usos variáveis da língua, respeitando a diversidade representada na heterogeneidade que caracteriza as origens socioeconômicas e culturais do alunado nas escolas. Eis que aí cabe à escola exercer seu verdadeiro papel de agente social mediadora na formação do indivíduo enquanto um ser autônomo, dotado de potencialidades e possibilidades, sujeito de sua linguagem, porque historicamente situado. Nesse aspecto, portanto, eles se nivelam: sujeito e língua estão/são susceptíveis de intervenções/condicionantes que os levam a sofrer variações e mudanças no espaço e no tempo, em resposta à dinâmica motivada pela própria flexibilização de que o sistema linguístico é contemplado. Tal flexibilização, cumpre dizer, é inerente a todas as instâncias do sistema, fazendo-se presente nas mais diversas situações comunicativas do nosso dia a dia e regulada pelos domínios que se dão nas práticas sociais, a exemplo de igrejas, escola, trabalho, nos lares, clubes, dentre outras (BORTONI-RICARDO, 2005. cit. p. 78). 3. Pluralidade de variações e o sistema dos possessivos em uso no português brasileiro Particularizando a relação entre a variação e o sistema pronominal em português – no qual se inserem os possessivos – faz-se interessante lembrar que ainda hoje se mantém, segundo mostram as GTs e os manuais escolares, o paradigma dos pronomes pessoais sujeito convencionalmente configurado nas formas/representações eu, tu, ele, nós, vós eles, respectivamente. Entretanto, no conjunto desse sistema já se registram mudanças no português brasileiro – a exemplo do desaparecimento do uso oral e escrito do pronome vós – independentemente da região do país, contrariamente ao que ocorre em relação ao seu correlato do singular tu, cujo uso retrata a força do dialeto ao qual esse pronome é culturalmente vinculado. Não é o caso da forma você segundo Menon (1995), mesmo que essa ratifique uma realidade na maior parte do Brasil. O quadro abaixo sintetiza a situação atual dos paradigmas pronominais em uso no português brasileiro (PB), dentre o qual os possessivos: PRONOMES PESSOAIS PRONOMES OBLÍQUOS POSSESSIVOS me, mim, comigo meu/minha tu/você te, ti,consigo/lhe,se,o, a, com você ele/ela o, a, lhe, se, si, consigo, com ele/ com ela teu/tua/seu/sua de você seu/sua/dele(a) nós/a gente nós, conosco, com nós/se, com a gente nosso(a)/da gente vocês lhes, se, os, as, com vocês seu(s)/sua(s)/ de vocês eu eles/elas Os, as, lhes, se, si, consigo, com ele(s), seu(s)/sua(s)/deles(as) com ela(s) Quadro 2. Fonte: Görski e Coelho (2005) Numa análise confrontual, a tomar-se por base os quadros (1) e (2), constata-se nesse último que as mudanças decorrentes da inserção das novas formas ao sistema pronominal dos pessoais têm impulsionado/incrementado possibilidades de reinterpretação e consequentes reestruturações tanto no sistema de pronomes que exercem função de complemento quanto no sistema de possessivos. Tais alterações certamente respondem ao caráter diverso, múltiplo e dinâmico de que a língua se reveste, constituída que é no conjunto das vozes que a legitimam socialmente. Ao contrário do que apresentam as gramáticas tradicionais e manuais escolares, registram-se, à luz da sociolinguística, formas consideradas variantes, cuja valoração social e estilística confere-lhes o estatuto de marcadores. É o caso, aliás, tanto dos pronomes pessoais de segunda pessoa tu (usado para interlocutor íntimo/familiar) e você (interlocutor desconhecido; mais distante, formal, respeitoso) como dos possessivos de segunda pessoa teu (usado entre pessoas íntimas/familiares e seu (usado entre pessoas desconhecidas e menos familiares). São formas que igualmente concorrem diferentemente em determinados registros:enquanto as formas tu/teu são aplicadas a situações mais informais, você/seu são usados em situações de maior grau de formalidade. Detendo-nos no fenômeno da variação e mudança, aplicado ao sistema dos possessivos em português, num contexto de pluralidade de formas, constata-se que a introdução das formas você (de segunda pessoa) e a gente (de terceira pessoa) no Português Brasileiro (PB) terminam por condicionar o encaixamento de mudança, ou, mudanças em cadeia (GÖRSKI E COELHO, op. cit). É transposição das formas oblíquas de terceira pessoa (o, a, lhe, se) e das possessivas seu(s), sua(s) operadas pelo pronome você, conforme, respectivamente, mostram os exemplos: (4) “...Eu lhe/o encontrei no shopping”. (lhe/o = você) e “... Max, seu filho Daniel esteve aqui e deixou este presente para você” (seu empregado com a mesma referência de você, gerando uma homonímia de formas – ambiguidade – , conforme afirmam Görski e Coelho (op. cit., p. 87). Nesse aspecto, vale ressaltar, a exemplo do que mostram as GTs, que essa ampliação do uso referencial dos possessivos – de terceira para segunda pessoa – pode ocasionar ambiguidade, como no caso “... O filho da minha vizinha trouxe um livro de presente para sua irmã. Ainda no contexto da variação desses possessivos, convém destacar os elementos que os condicionam. Pesquisa realizada por Arduin e Coelho (2005), notadamente na fala da região Sul do Brasil, mostra que os fatores que condicionam tal uso decorrem de variações resultantes de elementos vinculados à região (cidades gaúchas e catarinenses), que, segundo as autoras, foram estratificadas de acordo com as variáveis sociais de sexo, idade, escolaridade e região. Conforme se percebe pelo exemplo citado – e ratificado por Arduin e Coelho (op. cit.), analisar a variação estilística dos pronomes possessivos teu/seu implica em que se considere igualmente, a correlação das formas de tratamento e dos pronomes pessoais tu e você. Nessa correlação, a autora mostra que há variação entre os pronomes pessoais de segunda pessoa tu/você, cujo uso é na maioria das vezes estilisticamente marcado. Quanto à hipótese da marca de identidade regional para o uso dos pronomes pessoais de segunda pessoa (tu/você) não se aplica aos possessivos de segunda pessoa, visto que em alguns dialetos brasileiros o pronome você se constitui em forma exclusiva, a exemplo de Curitiba, ainda que o possessivo teu pareça ser usado como forma íntima, mesmo assim. Na verdade, a variação dos possessivos teu e seu já foi objeto de estudo em algumas regiões, indicando inclusive semelhanças entre os resultados das pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e na Paraíba, onde as formas de representação dos possessivos de segunda pessoa nos dialetos carioca e pessoense são as mesmas utilizadas nos dialetos gaúcho e catarinense. Para as citadas autoras, é a confirmação de que o que rege a variação dos possessivos teu/seu são as questões de poder e solidariedade entre os interlocutores. Desse modo, a variação dos possessivos de segunda pessoa teu/seu é estilisticamente motivada, vez que nas relações assimétricas de inferior para superior se usa a forma seu, indicando maior distanciamento e forma de respeito; nas relações assimétricas de superior para inferior é utilizada a forma teu possivelmente para demonstrar poder; e nas relações simétricas de igual para igual é usada a forma próxima e solidária teu. Portanto, quanto à variação dos pronomes possessivos de segunda pessoa, na fala da região sul, e ao seu estágio atual, se percebe que subjacentemente à variação meu/teu, há bastantes implicações estilísticas, o que sugere existir, por parte dos falantes, a plena consciência das consequentes decorrências oriundas do uso de diferentes variantes. 4. O livro didático, as GTs e o sistema pronominal do possessivo em português O livro didático adotado como objeto de estudo deste trabalho tem como autores Cereja e Magalhães. A coleção é uma publicação da Atual Editora, datada de 2009, se constitui de 04 exemplares destinados ao ensino fundamental, tendo sido adotada pela rede municipal de ensino de Natal. Trata-se de uma coleção eleita/autorizada pelo Ministério de Educação – por meio do Programa Nacional do Livro Didático/PNLD/FNDE, com vigência prevista para até 2013, encontrando-se em sua 5ª edição reformulada. Conforme nossos objetivos, procedemos ao registro do tratamento adotado por esse livro didático em relação aos pronomes possessivos do português – definições e paradigmas – no confronto com as prescrições feitas pelas gramáticas tradicionais, tendo por base os estudos acerca desse sistema no português em uso (PB), na tentativa de constatar igualmente a abordagem do ensino de língua portuguesa. A fim de situar o conteúdo no contexto estrutural do livro em estudo, constatou-se que o item correspondente ao pronome possessivo se limita ao volume destinado ao 6º ano, e se insere no capítulo I da unidade 4, no conjunto dos conteúdos curriculares que compõem o manual. Procedendo-se à análise, constatou-se que a abordagem predominante no manual reproduz a organização da gramática tradicional, quando o conteúdo se pauta em nomenclaturas, classificações e prescrições de regras. Nessa perspectiva, os autores apresentam dois quadros configuradores do sistema pronominal: um dos pronomes pessoais retos e oblíquos (quadro 3 abaixo) e outro (quadro 4), no qual apresentam os pronomes pessoais retos e os possessivos, ambos de acordo com a visão tradicional de ensino, logo isentos de inovações quanto à composição dos sujeitos a eles pertencentes. O enunciado que antecipa a apresentação do quadro, segundo o livro didático, é: “eis os pronomes pessoais da nossa língua” (CEREJA e MAGALHÃES, 2009, p. 190). Pronomes Pessoais 1ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular 3ª pessoa do singular Retos eu tu ele(a) Oblíquos me, mim, comigo te, ti, contigo o, a,lhe, se, si, consigo 1ª pessoa do plural nós nos, conosco 2ª pessoa do plural vós vos, convosco 3ª pessoa do plural eles(as) os, as, lhes, se, si, consigo Quadro 3. Fonte: Cereja & Magalhães (2009) Conforme se vê, o quadro (3) não apresenta as formas pronominais já inseridas no português em uso no Brasil, a exemplo de “você(s)”, e “a gente”, o que ratifica a visão tradicional dos autores em relação às abordagens inovadoras em relação ao ensino de gramática da língua portuguesa. Igualmente, trata os pronomes “nós” e “vós” como formas plurais correspondentes aos pronomes pessoais “eu” e “tu”, formas essas equivocadas (LOPES, 2009). Na verdade, o livro faz apenas menção a tal aspecto, sob a configuração suplementar intitulada contraponto, igualmente equivocada, quando trata “você” como pronome de tratamento, na tradicional função de terceira pessoa, cujo emprego na oração, se vinculado ao possessivo, deve manter os moldes estritamente convencionais, a exemplo de “vocês sabem como sinto sua falta”. Outro registro mantém semelhante posição em relação à perspectiva tradicional da gramática: as formas “vossa senhoria”, “vossa excelência”, cujas prescrições se repetem, inclusive em relação à substituição do “vosso” por “seu”/”sua”. Pronomes pessoais retos eu tu ele nós vós eles Pronomes possessivos meu, meus, minha, minhas teu, teus, tua, tuas seu, seus, sua, suas nosso, nossos, nossa, nossas vosso, vossos, vossa, vossas seu, seus, sua, suas Quadro 4. Fonte: Cereja & Magalhães (2009) O quadro acima reitera a visão convencional de ensino por parte do livro didático analisado, quando trata do possessivo sob o aspecto eminentemente normativo à luz da tradição. Sobre essa questão registra-se a ocorrência de dois casos, conforme os exemplos “... Mas, se eu te picar com o meu veneno...” (1) e “...apaixonado pela beleza da moça, o rapaz pediu à moça que se casasse com o rapaz” (2). Quanto a (1), os autores questionam sobre o sentido que a palavra meu acrescenta à palavra veneno. Já em relação a (2), os autores mostram que desdobrada a frase, de acordo com a norma padrão, resultaria em “...apaixonado por sua beleza, o rapaz lhe pediu que se casasse com ele. O objetivo, nesse caso, foi mostrar a função de pronome substantivo e ou pronome adjetivo, que a exemplo de “...meu veneno”, pode transmitir noção de posse, de quantidade indeterminada, de localização espacial ou temporal, etc. (op. cit. p. 188). Ratificando a perspectiva tradicional de abordagem da língua, o manual traz exercícios estruturais, cujos enunciados são dispostos no seguinte formato: 1 - As frases a seguir apresentam ambiguidade, isto é, duplo sentido, em razão do emprego inadequado de pronomes. Explique em que consistem essas ambiguidades e reescreva as frases, deixando-as com um só sentido. - As crianças se feriram com os cacos de vidro. - Pedrina mandou um telegrama para sua amiga assim que soube que ela fora aprovada no concurso. 2 - O poema é construído a partir de dois tipos de pronomes da língua portuguesa. Como se classificam esses pronomes? 3 - Na frase a seguir, alguns pronomes estão empregados em desacordo com a variedade padrão. Reescreva as frases, empregando tais pronomes de acordo com essa variedade: - O livro não está comigo; emprestei ele para minha prima. - Você não vai acreditar no que aconteceu, mas prometo contar tudo - Preciso falar consigo ainda hoje (p. 199) O levantamento feito mostra a ausência de focalização à heterogeneidade com fundamento, ou base para a(s) mudança (s) linguísticas. Pelo que se constata, os autores utilizam textos veiculadores de linguagens que sugerem a variação, porém não exploram tal conteúdo à luz da teoria que lhe dá suporte: a sociolinguística variacionista. Desse modo, o texto não passa de pretexto para apresentação do tema a ser estudado, senão igualmente para servir aos exercícios estruturais de gramática-padrão da língua portuguesa. Tomando-se por base os exercícios mencionados, aguardava-se que os autores sugerissem, ao longo do conteúdo curricular exposto no manual, que o que aconteceu com os possessivos – bem como aos pronomes oblíquos átonos – em termos de remanejamento/redimensionamento semântico-discursivo se deve à inserção de “você” e “a gente” no quadro de pronomes do português brasileiro, tendo isso têm provocado alterações que vêm repercutindo gramaticalmente nos diferentes níveis da língua. Outra decorrência do redimensionamento do paradigma pronominal em uso no PB, devida à variação e mudança em relação à segunda pessoa, é a reformulação do paradigma verbal, passando de seis para três formas básicas de conjugação verbal: “eu canto”; “tu, você, ele, ela, a gente canta”; “vocês, eles, elas”cantam (LOPES, 2009). Igualmente, quando a segunda pessoa passa a se realizar de duas maneiras: admitindo a terminação de plural (-s) para o tempo presente do modo indicativo, assim mantendo o padrão normativo tradicional na língua e, o outro, apresentando o morfema zero de pessoa: tu/você canta”; tu cantas”. No caso da migração de “você” de terceira pessoa para segunda pessoa não apenas provocou, mas condicionou o rearranjo do possessivo “seu” e variantes, passando esse a desempenhar a função de segunda e terceira pessoas. Sendo assim, para evitar ambiguidade, a forma “dele” tem sido utilizada como estratégia de possessivo de terceira pessoa (LOPES, 2009). De fato a revolução reside nas novas possibilidades combinatórias usuais por parte do falante, cuja voz, seguindo a tradição linguístico-cultural entre nós, ainda não se fez ouvida a contento. Reiterando o que foi dito, constata-se a ausência de reflexão, por parte dos autores estudados – gramáticos e livro didático – em relação à abordagem sobre variação e mudança linguística e suas implicações no contexto do ensino da língua portuguesa, tendo como parâmetro os pressupostos orientadores da sociolinguística. No geral, registram-se pontos de semelhança entre a exposição/as concepções dos autores, desde a organização e a estrutura da gramática, cujo conteúdo curricular ratifica uma visão ainda convencional de ensino e aprendizagem da língua, amparada na norma padrão, nas definições/nomenclaturas, e poucas sugestões de abertura a problematizações e reflexões. O fenômeno da variação, no que se refere ao sistema pronominal do português, decorre do fato de que a língua se realiza em meio às relações sociais entre sujeitos cujos falares são/estão atrelados a histórias de vida e culturas diversas. É a heterogeneidade, ou a mutabilidade como lastro tanto para essa variação quanto para a mudança, segundo os processos de ordem interna e ou externa operados na própria língua, por seus usuários, seja na perspectiva sincrônica, seja na perspectiva diacrônica. Desse processo participa o sistema pronominal dos possessivos, cujas variações e consequentes mudanças refletem os novos olhares da linguística sobre os usos efetivos da língua pelos seus falantes, contrariamente ao que prescrevem as Gramáticas Tradicionais (GTs) da Língua Portuguesa, cujas propostas – não obstante evoquem sugestões de avanço – ainda atestam uma abordagem convencional da língua, numa perspectiva descontextualizada, a-histórica, homogênea, abstrata. Com base no exposto, sugere-se que não se deixe de apresentar o que ora se evidencia como avanço na área dos estudos sociolinguísticos variacionistas aplicados ao ensino de língua portuguesa, assim como se devem mencionar os conteúdos nessa área, que já se encontram em desuso, obsoletos. Trata-se de apresentar, aos alunos, os paradigmas pronominais hoje em destaque, de modo trazê-los atualizados, contextualizados em seu tempo; um tempo caracterizado por uma dinâmica velocidade, cujo alcance se expande a todos os setores da sociedade, e, em meio a essa, às possibilidades de variação decorrentes do uso efetivo da língua, segundo a diversidade constituída por seus falantes. Significa dizer que ao lado do quadro prescritivo de uso da língua deve conviver o quadro descritivo desse uso, no confronto dos quais os alunos situarão sua realidade linguística e sociocultural, nelas e com elas se reconhecendo enquanto seres complexos, diversos, autônomos, sujeitos de direitos de dizeres, portanto legítimos cidadãos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, N. M. de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. Ed. São Paulo: Saraiva, 1977. ARDUIN, J. ; COELHO, I. L. A variação dos possessivos teu e seu e suas implicações estilísticas. In: A variação dos pronomes possessivos de segunda pessoa do singular teu/seu na região sul do Brasil. Florianópolis: universidade Federal de Santa Catarina, 2005. Dissertação de mestrado. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática da Língua Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? A sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. _____. 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