DIALOGICIDADE INTERCULTURAL SOBRE A FORMAÇÃO DO EDUCADOR MUSICAL Maria Zenilda Costa - UFC O estudo tem em vista o compartilhamento de saberes acerca das concepções de prática e de competência para os estudos sobre a formação de educadores musicais, apresentando os aspectos principais das reflexões intersubjetivas realizadas entre sujeitos de campos distintos de conhecimento a respeito do PPP (Projeto Político Pedagógico) do curso de Música de uma IES. Os atores participantes desse diálogo transdisciplinar são professores e pesquisadores de ambas as áreas, sendo que, aqueles da Música, participaram ativamente da reelaboração do Projeto Político Pedagógico do referido curso juntamente com alguns professores da área pedagógica. A iniciativa de promover esse encontro intersubjetivo partiu de pesquisadores em educação, interessados em compreender as diferentes reverberações a respeito da competência pedagógica e da epistemologia da prática que nortearam as diretrizes orientadoras para a reelaboração dos projetos pedagógicos dos cursos de graduação e para a formação dos professores em contextos situados. Este estudo integra uma investigação mais ampla do grupo de pesquisa saber e prática social do educador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, com o seguinte título: Pedagogia por competência e epistemologia da prática: implicações para a teoria e práxis nas instituições formadoras de professores para a educação básica, coordenada pelo Prof. Dr. Jacques Therrien. As investigações desenvolvidas por este grupo estiveram voltadas para o conhecimento da cultura docente em situações reais de prática, na perspectiva da cognição situada e ergonomia do trabalho docente (Damasceno e Therrien, 2000; Therrien & Loiola 2001; Therrien, Loiola e Sousa, 2003). Mais recentemente situamos o foco das investigações nos projetos de formação para a docência nos mais diferentes campos de conhecimentos, no intuito de apreender as distintas concepções acerca dos saberes e da competência docente com base na epistemologia da prática, considerando as repercussões das diretrizes para as reformas curriculares nos diferentes campos das licenciaturas. No campo específico da formação do educador musical, os estudos colaborativos e a ação comunicativa são elementos articuladores do referencial teórico-metodológico (Pimenta, 2001; Boufleuer, 2001; Martinazzo, 2004), fomentando o diálogo entre as diferentes áreas, observando os diferentes conflitos e colorações dadas ao conhecimento 2 pedagógico no campo da educação musical e suas implicações curriculares, especificamente para a formação de professores. Somam-se a essas abordagens as contribuições freirianas para esse diálogo inter/multicultural (Souza, 2002) no intuito de apreender a competência dialógico-intersubjetiva em múltiplas nuanças de formação do arte-educador e seu papel na escola atual. Nessa perspectiva colaborativa de investigar os projetos pedagógicos das licenciaturas, a coleta e análise dos dados aconteceram de modo coletivo, trazendo os atores envolvidos para compartilhar as diferentes compreensões das categorias delineadas no estudo que, consequentemente foram ampliando seus significados por meio da interculturalidade promovida pela aproximação conceitual e prática dos campos musical e pedagógico. Nesse caso, propomos aos professores uma reflexão coletiva, com o fim de estabelecer um diálogo interpretativo das diferentes categorias que norteiam as reformas dos projetos pedagógicos nos cursos de licenciatura e como esses conceitos são compreendidos nos campos da educação e da música. A seguir o que se encontra entre parêntesis fora as citações de autores, é a abreviatura dos nomes de professores que participaram do colóquio realizado entre especialistas da música e da educação. Arte-educação e educação musical, relação teoria e prática, prática musical e prática pedagógica, saberes musicais e saberes da docência, especialidade técnica e competência pedagógica foram algumas temáticas discutidas, quando múltiplos significados se interpuseram no intuito de compreender os variados elementos necessários para a formação do educador musical na complexa estrutura acadêmica configurada na dicotomia bacharelado e licenciatura. Partimos do pressuposto da necessidade da construção de uma competência dialógica entre os campos específicos e o pedagógico a fim de estabelecer colóquios interculturais a respeito das atuais demandas da formação docente, nesse caso do educador musical. A noção de competência foge à concepção técnico-instrumental, compreendendo que é a prática reflexiva envolvendo diferentes especialistas que favorece a construção de políticas curriculares condizentes aos contextos complexos da educação contemporânea. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO CURSO DE MÚSICA EM ESTUDO O Projeto Político Pedagógico do curso de Música foi reestruturado em 2002, atendendo as exigências da nova LDB 9.394/96 e dos pareceres e resoluções (CNE/CP 3 009/2001; CNE/CES 0146/2002; CNE/CP 1/2002) que se seguiram para orientar a reformulação dos projetos pedagógicos dos cursos de graduação e a formação de professores. O curso de Música está organizado em duas modalidades: licenciatura plena para Educação Musical e bacharelado em Música com habilitação. Criado em meados de 1977, constituía parte do então Departamento de Artes, instituído a partir da LDB 5.692/71 que elegera a prática da Educação Artística em detrimento das linguagens específicas das artes, imprimindo um caráter superficial e inconsistente a esse modo generalista de lidar com arte na educação. Nesse contexto, o corpo docente era constituído por docentes de várias áreas: além da Música havia professores de Teatro e Artes Plásticas que atualmente estão aposentados. Por conta dessa estrutura que se estabeleceu na perspectiva da Educação Artística, o grupo de pesquisa constituído por professores desse curso se cadastrou no CNPq como Grupo de Pesquisa em Arte e Música, com o fim de abranger as demais linguagens artísticas presentes no departamento. O atual PPP substitui o Departamento de Artes pelo Curso de Música, resgatando a coerência da prática artística da universidade que sempre priorizou a Música. A tradição do ensino de música no Brasil no formato europeu é outro aspecto que tem determinado o modelo do curso de música com implicação direta quanto a formação de educadores musicais. Os conservatórios concebiam a educação musical como formação de profissionais instrumentistas intérpretes, pautada na racionalidade técnica. O referido curso tem suas origens no conservatório. Na visão de uma das fundadoras do curso, a estrutura acadêmica é bem recente. O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, uma das primeiras políticas para a formação de educadores musicais criada por Villa Lobos, formava professores de música para ensinar nas escolas do Ensino Básico; um curso técnico. A Lei 5.692/71 abortou essa iniciativa, deixando um vazio na formação de educadores musicais; carência longe de ser superada pela implantação das licenciaturas no modelo acadêmico. Desse modo, o bacharelado na área de música é um curso que habilita para o instrumento, o canto ou a composição, guardando ainda os resquícios do modelo europeu. O antigo curso de Canto Orfeônico passou a se chamar Licenciatura em Música. Quem era nossa clientela? pessoas de classe média, as mulheres que tinham dotes, talentos, que as famílias estimulavam até enquanto casavam. Com o curso de licenciatura, essa clientela se 4 ampliou para pessoas que já eram profissionais de ensino, mas também para jovens principalmente de classe média baixa que passaram a frequentar o curso de licenciatura (ERB). Com o passar do tempo, o conservatório deixou de oferecer a formação propedêutica de base como preparação para a inserção na universidade. Por outro lado, a escola pública formal, afora a iniciativa de Villa Lobos, não tem oferecido espaço para a formação musical na sua política curricular nem tão pouco profissionais que exerçam a tarefa de reconstruí-la. Desse modo, a clientela que entra na universidade aprende música na rua, espontaneamente. Suas experiências musicais são de cunho social e informal. Essa nova clientela não quer ser professor. São jovens instrumentistas empíricos que querem aprender música, mas não querem ensinar. Segundo a coordenadora, não apresentam condições de fazerem o bacharelado, mas criam uma série de dificuldades para fazerem as cadeiras pedagógicas. Diante dessa demanda, a coordenação criou o bacharelado geral e continuou com a licenciatura. A política de desvalorização da docência somou-se à própria falta de incentivo por parte dos próprios docentes desestimulando os alunos a optarem pela licenciatura. Consequentemente, em meados de 1999 a licenciatura foi desativada. Somente na reforma do projeto em 2002 essa modalidade foi reativada. Pimenta e Anastasiou (2002) sintetiza a reflexão a respeito da cultura arraigada na academia, no que diz respeito à docência nas áreas específicas de ensino: ...há um certo consenso de que a docência no ensino superior não requer formação no campo de ensinar. Na maioria das instituições de ensino superior, ... embora seus professores possuam experiência significativa e mesmo anos de estudos e áreas específicas, predomina o despreparo e até um desconhecimento cientifico do que seja o processo de ensino e de aprendizagem(PIMENTA E ANASTASIOU, 2002, p. 36-37). O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E AS MÚTUAS “TRADUÇÕES” DE SIGNIFICADOS A RESPEITO DA PRÁTICA DOCENTE A reforma do projeto teve como base as diretrizes apresentadas nos pareceres e resoluções, norteadas pela epistemologia da prática, respaldando todo um elenco de 5 estudos e experiências que delineiam a competência profissional na construção de saberes específicos da prática docente em contextos situados, confirmando que “não basta a um profissional ter conhecimentos sobre o seu trabalho. É fundamental que saiba mobilizar esses conhecimentos, transformando-os em ação” (Parecer CNE/CP 009/2001). Os próprios especialistas da música demonstram que tais proposições, próprias do campo da educação, não fazem parte de suas reflexões compartilhadas no cotidiano do desenvolvimento curricular. Entretando o exercício de reelaboração do projeto desencadeou uma série de ações tendo em vista a estabelecer o que ora denominamos de uma permanente dialogicidade inter/multicultural por meio do compartilhamento de racionalidades práticas que circundam os campos pedagógico e musical, com o fim de não mais tratar a formação docente como uma especialidade cuja atribuição fica a cargo das disciplinas pedagógicas. Souza, refletindo sobre a contribuição de Paulo Freire sobre a prática educacional como ação intercultural por envolver os seus atores em todo o seu contexto de ser, de saber e de fazer, entende que a diversidade cultural ‘pode se transformar numa situação de multiculturalidade pela vivência da interculturalidade’(Souza, 2002:33). Para que o habitus constituído em cada área de conhecimento sedimente uma profícua dialogicidade mútua, é preciso que os profissionais desses diferentes campos aceitem o desafio de se traduzirem uns aos outros ao modo híbrido anunciado por Hall (1997), ao dissertar a respeito das identidades culturais. A abordagem freiriana faz sentido em razão da perspectiva interdisciplinar não dá conta da complexidade do habitus já arraigado nas reflexões e práticas dos campos que ultrapassam as fronteiras da perspectiva científica, de onde provém a fragmentação e especialização dos conhecimentos, bem como de sua legitimação. Em estudo anterior a respeito do campo da arte em Pierre Bourdieu, apreendemos que este autor toma emprestado a máxima hegeliana para argumentar que nem uma ação dos sujeitos tem sentido sem que esteja em constante relação dentro de um campo e/ou entre estes: “o real é relacional”. A utilização do conceito de espaço social possibilita pensar a realidade como conjunto de relações, onde os sujeitos ocupam diferentes posições (Costa, 2003, p. 251). Ocupar diferentes posições no interior dos campos de conhecimentos e em meio 6 às ações intersubjetivas é na abordagem multirreferencial, romper com o mito da totalidade do conhecimento, apreendendo a “existência de vários campos cognitivos, onde a ciência é apenas um deles” (Fagundes & Burnham, 2001, p. 05). Neste sentido, o conhecimento produzido não é apenas ‘resultado da combinação de enfoques disciplinares’, costumeiramente tratados numa perspectiva interdisciplinar. Na situação investigada, dar conta da complexidade da formação do educador musical nos campos específicos da música e da educação resulta do diálogo com os vários tipos de saberes dos quais os sujeitos envolvidos são portadores, derivados não somente de um conteúdo acadêmico cientificamente legimitimado, mas também de rituais culturais desenvolvidos e sedimentos nas práticas de ambos. Sensibilizados com as premissas que ventilaram as reformas curriculares abordadas no início desse texto, professores e pesquisadores inauguram uma série de iniciativas com o fim de tratar a docência musical como um campo de conhecimento específico cuja prática de educação musical são consideradas fontes de investigação, situadas no trato com o ensino da música e não somente como categorias gerais do fenômeno educativo. O incentivo à continuidade da formação dos docentes formadores de educadores musicais no nível de mestrado em educação, a atenção dada as atividades práticas ao longo da formação não somente restrita ao estágio curricular ou prática de ensino, a aproximação dos profissionais docentes da música com os estudos investigativos desenvolvidos no campo da educação são alguns indícios de que, mais do que uma postura interdisciplinar, busca-se criar uma nova cultura dialógica mais aberta aos múltiplos referenciais que os campos podem oferecer para diferentes compreensões relativas aos enfoques que atualmente norteiam a formação docente, desfazendo querelas hierarquizantes entre um e outro campo. Esse modo competitivo como são tratados os conhecimentos pedagógicos e aqueles dos conteúdos específicos, nos estudos de Pimenta e Anastasiou (2002) são mitos que não contribuem para tratar o fenômeno educativo na sua complexidade, onde uma série de elementos por vezes pensados pelo viés do campo pedagógico, é abordada de modo totalmente diferente no campo musical, exigindo então um constante compartilhamento para que seja compreendido de modo a corresponder às diversas demandas apresentadas na atualidade. Nessa direção o Projeto Político Pedagógico indica alguns elementos conflituosos na prática curricular, cujos encaminhamentos exigem uma competência dialógica para tratá-los, trazendo para o cenário dialógico os múltiplos referenciais da 7 cultura escolar e das culturas acadêmicas dos estudos em educação e dos diferentes enfoques dados a educação musical. A rigidez dos métodos e a fragmentação dos conteúdos são apenas alguns desses elementos apresentados na problemática da formação de arte-educadores e da docência superior no curso de Música, que foram articulados aos estudos em educação a respeito da transposição didática e a transformação da matéria a ser ensinada no diálogo dos diferentes profissionais do campo de educação e da música. Em vista de criar condições para superar esses dilemas, dentre as demais diretrizes, o PPP ressalta a articulação da teoria com a prática, a valorização da pesquisa individual e coletiva, os estágios e as atividades de extensão. Destaca para isso a necessidade de encontrar formas de interdisciplinaridade, modos de integração teoria e prática e da integração da graduação com a pós-graduação. Além disso, a limitação das disciplinas pedagógicas para dar conta da complexidade em que a docência se configura atualmente, indica a necessidade de ações compartilhadas entre as disciplinas do núcleo comum, particularmente aquelas do conhecimento pedagógico e das práticas musicais. É comum ouvir os professores especialistas dizerem que para a sua formação, as disciplinas pedagógicas foram vazias de significado, restando então a observação das práticas dos seus professores para serem reproduzidas na prática docente: A experiência com a prática de ensinar, com a prática docente é bem nova. Ainda que eu tenha feito duas licenciaturas (Matemática e Música) - pra dá um depoimento sincero nenhuma das disciplinas pedagógicas me auxiliaram como professor de forma alguma. Não pelas disciplinas, mas talvez pela forma com que foi tratada pelo professor que estava à frente. Ainda que eu visse a importância... não me ajudaram muito (E). Esse mesmo professor faz interessantes considerações que reforçam a necessidade de compartilhamento dos saberes distintos para que haja uma compreensão mútua e ampla da prática educativa situada em um contexto específico que é o do educador musical. Esse professor concebe a especialidade musical de tal modo que somente sujeitos com mínima formação em música podem investigar suas especificidades. São eles que estão em condições de compreender “certos melindres” da área. Esse professor se faz entender, compartilhando a compreensão da relação teoria e 8 prática no campo musical, ressaltando a inadequação da reflexão dessa temática feita no campo pedagógico para a dinâmica interna do conhecimento musical: Numa aula de harmonia, na produção de um arranjo. O que seria a prática ali dentro? Eu acho que a prática já está inserida dentro daquele trabalho. (...) Já outras disciplinas que já carregam o nome de prática, como prática instrumental, essa já tem um caráter mais prático por natureza, mas as outras dá pra você fazer esse link. É um exercício teórico; é como se fosse a prática de uma teoria (E). Essa reflexão abriu espaço para discutirmos os diferentes enfoques a respeito da prática, especificamente da prática educativa. Transformação pedagógica da matéria, transposição didática, epistemologia da prática e competência pedagógica foram algumas temáticas da educação que também compartilhamos para situar o profissional da educação como um produtor de conhecimentos, cujas práticas se apresentam em vários aspectos: o manuseio com o próprio conhecimento a ser ensinado, no intuito de torná-lo acessível ao contexto cultural dos alunos, a seleção e organização do material didático, a ação pedagógica propriamente dita, ou o currículo em ação e as decisões não previstas que são tomadas no momento da ação. Na área da música, o comentário do professor demonstra uma atenção para uma das especificidades da prática docente que é o conhecimento do conteúdo a ser ensinado: Vamos pegar a disciplina de harmonia, canto coral e regência. A intenção hoje é que você consiga produzir; gerar produto onde as diferentes habilidades gerem um produto musical, que produza um trabalho único. A disciplina de harmonia geram algumas peças. Pode ser preparada com os alunos de regência e pode ser cantado pelos alunos do canto coral. Então você teria os alunos cantando sob a batuta de um outro aluno de regência, cantando uma peça que foi produzida na disciplina de harmonia (E). Nessa perspectiva, tem sentido a afirmativa do professor que atribui ao especialista da música o trato com este conhecimento. O mesmo, entretanto, referindose ao Projeto pedagógico, destaca a fragmentação dos conhecimentos nas práticas curriculares no cotidiano dos professores como uma problemática desafiadora para uma 9 formação em música, cuja especificidade exige uma relação constante entre as cadeiras, como por exemplo essa articulação entre as aulas de harmonia, canto coral e regência. É nesse aspecto que a especificidade da formação docente também exige uma relação bem mais potencial entre os conhecimentos da música e os estudos didático-pedagógicos, superando a concepção aditiva das disciplinas pedagógicas ao curso de música, que parece intencionar apenas uma fundamentação para as práticas de ensino, destituindoas, porém, de seus potenciais significados para a especialidade da educação musical, até porque o trato com o conteúdo não acontece isolado das demais ações didáticopedagógicas. Mas essa já é uma visão dos estudos em educação, sem a pretensão de construir consensos a respeito, mas de trazer os diferentes registros para o colóquio sobre a formação docente, exercitando e criando a cultura de tratar a docência como campo de conhecimento. Além do mais, os professores de música encontram-se com múltiplas exigências de formação no campo da música, sendo que a demanda para a docência é mínima. ‘Se há vinte alunos, talvez uma minoria tenha real vontade de trabalhar com educação musical’. Moreira (2000) nos situa na cultura disciplinar no qual a docência não somente na área de música, esteve sedimentada. Neste sentido, o habitus disciplinar continua forte na identidade docente. A competência dialógica entre em cena no exercício do saber fazer colóquios interculturais dos múltiplos saberes. Nesse intuito, outro desafio apresentado no projeto pedagógico se configura no cenário profissional que recebe os egressos do curso, pondo a docência em relevância, uma vez que muitos dos alunos do curso não têm intenção de ser professor, mas acabam por inserirem-se em diversas modalidades de educação musical. Outras professoras interagem no diálogo, compartilhando suas experiências iniciais de formação e de docência, enfocando o aspecto generalista da formação e reforçando o vazio de significado que as disciplinas pedagógicas costumam representar na cultura curricular do curso de música. Essa contribuição dialógica do campo musical ainda traz a preocupação com a inserção dos recém formado no trabalho, ressaltando que não há essa discussão de modo sistemático no cotidiano do curso: Quando entrei no curso, não estava pensando em ser uma futura professora de música. É preciso compreender a falta da maturidade do aluno por não ver a necessidade de estudar Didática Geral. Hoje, além desta, nós temos Psicologia 10 Evolutiva e Psicologia da aprendizagem. Mesmo assim os alunos não dão importância. O interesse se centra na prática musical. Quando o aluno se vê formado, entretanto, que vai ao campo de trabalho, então percebe o distanciamento entre o que estudou e as exigências da prática docente. Minha primeira experiência como professora de flauta doce, teve como referência a didática que observei anteriormente na prática da minha professora. Não foi meu professor (risos) de Didática me ensinando como eu iria repassar isso, mas sim, a observação da prática pedagógica dos meus professores (El). Essa professora ainda discute o papel da licenciatura, sugerindo a importância de abrir espaços para discutir as especificidades da docência a partir da oferta de trabalho, propondo projetos de incentivo e de valorização da educação musical. Reconhece que a predominância da prática musical “deixa de lado” esses aspectos da profissionalização docente, o que acarreta uma cultura de rejeição durante o curso e uma espécie de choque ao término do curso, quando o graduado se vê como educador musical. Outra professora responsável pela licenciatura ressalta algumas dificuldades de construir um perfil da educação musical primeiramente pelo caráter individualista da formação do instrumentista que toma mais relevância no currículo. A falta de integração das disciplinas resulta, na sua visão, da cultura disciplinar, quando cada professor chega e ministra sua aula, saindo para suas inúmeras atividades próprias de músico, aspecto identificado também nos outros cursos de conhecimento específico que ancora-se na didática instrumental: Geralmente os professores (...) recebem ementas prontas, planejam individual e solitariamente, e é nesta condição individual e solitária - que devem se responsabilizar pela docência exercida (Pimenta e Anastasiou, 2002, p.37). De um modo geral, porém, é unânime a constatação de que, a partir do movimento em vista da reformulação do projeto pedagógico, surgem expressivas iniciativas para superação da fragmentação entre as disciplinas na busca de valorização da licenciatura e para própria construção da concepção do que seja arte-educação. “Fica difícil de se ter um perfil para o educador musical. ‘As pessoas acham que educação 11 musical sempre é ensinar um instrumento, que é também, não deixa de ser, mas não é somente isso’ (ENC). Neste sentido, mais uma professora do referido curso traz importante reflexão a respeito do relação entre arte-educação e a formação do educador musical: Como preparar professores se até então o estudo da música era focado nessa reprodução de modelos, na reprodução de uma tradição? O que a pedagogia musical faz é uma reprodução dessa literatura que é farta hoje em dia, mas não existe um estudo específico, as escolas ainda patinam na problemática do ensino. Por outro lado, para nós músicos há uma interrogação: o arteeducador vai dar conta de ensinar música? O que de fato ele ensina? Decorrente dessa indefinição, nossa preocupação é instrumentalizar (formar) em música. Na licenciatura, ele vai se instrumentalizar na didática de transmissão desse conteúdo, na efetivação da sala de aula. Do mesmo modo nossa preocupação é focar o aspecto profissional: é um músico de performance? É um compositor? É um professor de música? São competências distintas. Isso aí precisa ser contemplado no curso de música. Mas essas reflexões ainda são insipientes para a complexidade e heterogeneidade da formação musical (LB). Essa professora se confessa ignorante a respeito da formação do arte-educador, por se tratar de uma concepção que ainda conserva o caráter generalista da educação artística, sem contemplar as especificidades dos conhecimentos artísticos. Esse panorama começa a mudar em âmbito nacional, com a reformulação da categorização das linhas de pesquisas do CNPq, onde os arte-educadores consultados, enviaram sugestões para as linhas de pesquisas de arte na educação, focando cada uma das modalidades artísticas em relação com o aspecto do ensino e da aprendizagem. A importância da pesquisa na educação musical é outro aspecto ressaltado por um outro professor no sentido de valorizar a docência. Essa ação, segundo ele, pode auxiliar muito na construção das especificidades da educação musical em diferentes contextos, já que ensinar em escola pública não é a mesma realidade de uma escola específica voltada para instrumentalização ou outra vertente da prática musical como a composição ou a regência. Nessa perspectiva os estudos realizados e divulgados pela 12 Associação Brasileira de Educadores Musicais (ABEM) demonstram a existência de reflexões já bem desenvolvidas nessa área. A competência dialógica desses estudos com aqueles da área pedagógica poderá auxiliar principalmente na compreensão e reelaboração do fenômeno arte-educação nas políticas curriculares da formação do educador musical para atuar profissionalmente nas escolas públicas. No decorrer dessa ação dialógica, percebemos o delineamento da construção do conhecimento intercultural sobre a formação do educador musical. Nem uma nem outra especialidade dá conta desse saber-fazer da educação musical. O conhecimento vai tomando forma na ação dialógica, entre conflitos e consensos. Articulam-se a essas reflexões dos professores da música, aquelas dos pesquisadores da área pedagógica lançando outras experiências de formação do educador musical que se cerca da concepção de educação estética como espaço amplo onde a educação musical se insere, situando determinados contornos do conhecimento musical a partir de contextos sociais e das intencionalidades da ação educativa. O objetivo de criarmos esses espaços intersubjetivos na perspectiva colaborativa é possibilitar a construção de competências dialógicas com a reflexão didática dos envolvidos, a fim de pensarmos juntos a formação para a docência. Além de dominar esse campo específico, o licenciado também precisa dominar a didática desse campo. A compreensão do campo pedagógico é de que o educador musical é um sujeito que se torna professor, além de um profissional de música, além de um técnico que domina um ou mais elementos do conhecimento e da prática musical, é alguém que vai trabalhar na interação com outros, criando situações de aprendizagem na área. A licenciatura forma profissionais que vão trabalhar na Educação Básica escolar e também em outras modalidades como as organizações não governamentais. Além de dominar o conteúdo, deve ter capacidade para transmitir; como entrar em interação com a classe e levar esse grupo a entender o que é música. Uma coisa é dominar um campo como um cientista ou um pesquisador, outra é gerenciar a aprendizagem do conhecimento numa relação intersubjetiva que implica a transposição didática. Enfim, a docência constitui-se da relação híbrida entre diferentes conhecimentos, cuja atualidade social exige cada vez mais uma sintonia inter-multicultural que transcendente saberes e culturas acadêmicas pautados na racionalidade instrumental. “Dialogar com diferentes formas de conhecimento” se configura como um dos elementos essenciais para a prática docente superior em vista de sintonizar com as recentes demandas (Pimenta & Anastasiou, 2002, p. 221). 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL/MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – nº 9394/96. BRASIL/MEC/CNE. Parecer n° CNE/CP 009/2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. BRASIL/MEC/CNE. Parecer nº 146/2002 Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em Direito (...), Música, Dança, Teatro e Design BRASIL/CNE. Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares para professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. BOUFLEUER, P. J. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. 3ª ed. Ijuí Ed. Unijuí, 2001. COSTA, Maria Zenilda. O campo da arte e o sistema analítico de Pierre Bourdieu e o ensino da arte. In VASCONCELOS, José Gerardo (Org.). Filosofia, educação e realidade. Fortaleza: EUFC, 2003. DAMASCENO, M.N. e THERRIEN, J.(Orgs). Artesãos de um outro ofício: múltiplos saberes e práticas no cotidiano escolar. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e do desporto do governo do estado do Ceará, 2000. FAGUNDES, Norma Carapiá; BURNHAM, Teresinha Froes. Transdisciplinaridade, multirreferencialidade e currículo. 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