AS APROPRIAÇÕES ESTÉTICAS DA CENA TROPICALISTA Victor Creti Bruzadelli (Universidade Federal de Goiás) 1-Eu sou terrível/ Eu sou o samba No centro do palco um cantor negro empunhando seu violão. Acompanhado por um trio de roqueiros que portavam pratos, baixo e guitarra elétrica. Uma cena comum, não? Com certeza não! Seria se eles não estivessem, em outubro de 1967, no palco do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record de São Paulo. Seria se esse músico negro não fosse Gilberto Gil, compositor das chamadas “músicas de protesto”, como Roda e Louvação, e se os músicos que o acompanhavam não fossem o trio paulistano “Os Mutantes”. Juntos esses quatro defendiam a música Domingo no Parque, de Gil e Rogério Duprat, com uma orquestração nada convencional. Essa cena, com certeza, não era nada comum no contexto musical da década de 1960. Somada à apresentação de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, acompanhado pelo grupo pop argentino “Beat Boys”, a apresentação de Gil causa um verdadeiro rompimento com as formas enrijecidas dos festivais. Rompimento que se dá tanto no plano da canção (letra e música), quanto no plano da performance. A cena musical dos anos de 1960 era, quase sempre, dominada pela dicotomia alienado-engajado ou nacionalista-“entreguista”. Do lado dos “alienados e entreguistas” a principal referência é o “Iê-iê-iê”, de Roberto Carlos, o Rei da Jovem Guarda. Do outro, a música engajada e nacionalista pode ser representada por artistas como Carlos Lyra, Edu Lobo e Geraldo Vandré. Esses grupos combatiam-se pela aceitação do público, principalmente através de programas televisivos, como a Jovem Guarda e o Fino da Bossa, ou através dos festivais de música (como o que foi citado acima), todos televisionados. O importante é notar que, devido à cobertura televisa, o público que participava dessa disputa crescia cada vez mais. As estruturas dos Festivais eram quase sempre as mesmas, com pouquíssimas variações. Deles participavam músicos da ala engajada-nacionalista, acompanhados de seus violões, instrumento símbolo da moderna MPB, com temas brasileiros e politizados, como a vida no morro, a luta de um retirante ou até mesmo temas revolucionários. Mesmo os cantores e compositores de “Iê-iê-iê”, quando se apresentavam nesses ambientes, privilegiavam esses temas. As músicas de Gil e Caetano apresentadas naquele Festival de 1967 fugiam completamente dos temas estabelecidos por aquele formato de mídia. Apesar daquela transgressão, ambas as músicas saem bem colocadas do festival: Domingo no Parque conquista o segundo lugar, enquanto Alegria, Alegria o quarto. 2- Eu organizo o movimento Nos anos 1990, Will Straw cria o conceito de Cena Musical, no sentido de “espaço cultural no qual um leque de práticas musicais coexistem, interagem umas com as outras dentro de uma variedade de processos de diferenciação, de acordo com uma ampla variedade de trajetórias e influências” (Negus, 1999 in Napolitano,2001). Esse conceito visa criar uma alternativa para se pensar o consumo a partir da teoria das subculturas, desligando os processos de produção artística do âmbito social do artista e vinculando à construção eclética do próprio produtor de arte. Ainda no ano da apresentação de Gil e Caetano no III Festival da Música Popular Brasileira, esses músicos do chamado “Grupo Baiano” não haviam se organizado como cena musical. Mais tarde, ainda nesse ano, esses músicos se organizam para a criação de uma cena musical, sob o título de Tropicalismo ou Tropicália (como prefere Caetano). Essa designação da cena é emprestada de uma obra do artista plástico Hélio Oiticica, obra constituída por um túnel (“penetrável”, segundo Oiticica) adornado por serragem, brita, palmeiras e, no fundo, um aparelho televisor sempre ligado. Essa cena musical, em todo o seu percurso, se apresenta como algo revolucionário. A Tropicália se instala no sistema da indústria cultural para se aproveitar tanto das suas técnicas de distribuição, quanto de sua modernidade de produção. Modernidade é, inclusive, um dos temas centrais dos tropicalistas. Segundo o projeto estético tropicalista, buscava-se inserir a música brasileira no circuito da modernidade. Não uma modernidade idealizada como a dos populistas desenvolvimentistas, mas uma modernidade que co-habita com os arcaísmos culturais brasileiros. Essa relação entre moderno e arcaico se processa, na estética tropicalista, através da justaposição desses termos opostos, evidenciando a convivência desses dois âmbitos da vida cultural brasileira. Julgavam-se herdeiros e continuadores dos acordes dissonantes da Bossa Nova de João Gilberto, que havia iniciado a transformação da música brasileira, portanto eram os continuadores da “linha evolutiva da música popular brasileira”. Os tropicalistas também irão se relacionar musicalmente com maestros como Rogério Duprat, Júlio Medaglia, Sandino Hohagen e Damiano Cozzela, todos músicos eruditos de vanguarda. Esses músicos também estavam preocupados em fazer uma música urbana de consumo, pela qual fariam a “renovação da tradição musical brasileira” (Favaretto, 2000). Pode-se perceber aí uma convergência de interesses dos vanguardistas e tropicalistas, portanto essa cena foi o responsável por um diálogo sobre as relações entre música erudita e música popular. Enquanto os músicos do “Grupo Baiano” se favoreciam da utilização das técnicas da música eletrônica, concreta, entre outros os vanguardistas, por sua vez, se inseriam na indústria cultural, ou seja, ao circuito de consumo. O diálogo com intelectuais se dá também em outro ramo artístico, no ramo da poesia, com os concretistas. As relações se intensificam no nível da teorização e organização do movimento e se manifestam na elaboração das letras das canções. É importante citar que não há, apesar da distância de dez anos entre os movimentos concretista e tropicalista, uma relação de influência direta e sim de aproximações, já que os músicos afirmam ter contato direto com os poetas concretistas após o início da Tropicália. As principais, no entanto, não estão no nível da poética e escrita e sim na revisão crítica de seu objeto de arte, na oposição às correntes estéticas nacionalistas (populistas) e por operarem na faixa do consumo, além de ambos os movimentos convergirem na intenção da modernidade. Apesar de temporalmente distanciados, os movimento se apoiavam mutuamente. O chamado Cinema Novo também terá seu lugar nas apropriações estéticas de outros ramos da arte feita pelos tropicalistas. Várias das músicas pertencentes a esse movimento lembram a estética “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” do cinema de Glauber Rocha. As letras são diversas vezes compostas por cortes abruptos que acabam formando relações simples, semelhantes às da linguagem cinematográfica. Impressionados com os sucessos de The Beatles e da Jovem Guarda os tropicalistas se encantam com a estética pop. Além de se vincular à modernidade (assim como a guitarra elétrica) a música pop se preocupa com o consumo de seu objeto, dois aspectos bem-quistos aos tropicalistas. A integração de elementos da música pop às criações tropicalistas está diretamente ligada à possibilidade de se fazer partir daí uma crítica e uma dessacralização dos padrões enrijecidos da MPB, evidenciando, assim os muros do confinamento artístico brasileiro. Além de se preocupar com as apropriações musicais do pop, os artistas tropicalistas também se preocupavam em inserir em seu trabalho a estética da pop'art, de Andy Warhol e Roy Lichtenstein, em seus figurinos, cenários de palcos e capas de discos. Tudo deveria ser consumido, ao mesmo tempo que estimulava mais esse consumo. Em suas performances, os tropicalistas incorporavam a prática do happening, que se constituía numa forma de expressão das artes plásticas que, apropriando características das artes cênicas, faziam com que o artista fizesse de seu próprio corpo e discurso uma ferramenta artística. Os happenings são práticas artísticas marcadas pelo improviso e pela espontaneidade do artista frente ao público, que também interfere em suas apresentações. Como se pode perceber, o tropicalismo tem um caráter antropofágico no que se refere ao aspecto sincrético da arte. Mas essa não é a única aproximação possível entre as idéias e procedimentos artísticos de Oswald de Andrade e Caetano e Gil, como o humor corrosivo e o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, por exemplo. A música dos baianos demonstra o problema da nacionalização da arte frente ao cosmopolitismo do ofício de artista, explícito na frase de Caetano Veloso: "Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo", tema caro a Oswald de Andrade. Há também citações textuais, como na música Geléia Geral (gravada no disco “Tropicália ou Panis et Circenses” de 1968) do verso “alegria é a prova dos nove” - presente no Manifesto Antropófago. A Tropicália, como se pode perceber é um conjunto de várias referências artísticas, mais ou menos conexas ou relevantes, tornando o movimento uma tendência verdadeiramente revolucionária na cena musical brasileira na década de 1960. 3-Muita coisa sucedeu/ Daquele tempo pra cá Apesar de já ter nascido com um objetivo previamente estabelecido e determinado temporalmente, a Tropicália propõe a discussão da expressão cultural brasileira, deixando-a pronta para uma reconstrução. Os quarenta anos de tropicalismo modificaram bastante o caráter da música brasileira, influenciando muitos dos que viriam a tomar lugar no circuito artístico. Chegou a influenciar mesmo músicos da MPB como Chico Buarque que compôs a música Baioque, fusão do baião e rock. Sem o tropicalismo, seria difícil imaginar o mineiro Milton Nascimento cantando Para Lennon e McCartney, uma música pop tocada com o auxílio de guitarras e baixos elétricos. Na final da década de 1970 se revela em São Paulo um grupo de compositores bastante heterogêneo e não organizados em forma de movimento que recebe o título de neo-tropicalistas, depois adotando o título de “vanguarda paulistana”, devido a se apresentarem no teatro Lira Paulistana. Esses músicos, tendo na figura de Arrigo Barnabé o personagem central, faziam fusões do rock e da música dodecafônica com o universo fantástico das histórias em quadrinhos, além de fazerem contato com os irmãos Campos e Décio Pignatari, poetas concretistas. Outros movimentos com inspiração no sincretismo musical – poético tropicalista irão surgir ao longo desses 40 anos. Um bom exemplo é o Mangue–beat, ou Movimento Mangue, que mistura ritmos pernambucanos como a ciranda, o coco, a embolada e principalmente o maracatu com hip hop, punk e etc. O músico mais importante desse movimento, Chico Science (Líder da banda Nação Zumbi) admite ter sofrido influência dos tropicalistas, uma comprovação é a aproximação de Gilberto Gil à Nação Zumbi, antes do falecimento de Chico em fevereiro de 1997. Carlinhos Brown, compositor e percussionista baiano, é um declarado admirador do movimento iniciado pelos tropicalistas no final da década de 1960. Tanto em suas composições e depois em suas bandas (Timbalada e Bolacha Maria) o compositor funde as riquezas dos ritmos afro-brasileiros com a universalidade do pop-rock. Mesmo caminho é trilhado pelo misto de banda e projeto social Olodum, que mistura as influências dos ritmos próprios da cidade de Salvador aos sons pop, reggae, entre outros, como fica demonstrado na música Alegria Geral, que em seus versos diz: “Olodum ‘tá’ hippie, Olodum ‘tá’ pop / Olodum ‘tá’ reggae, Olodum ‘tá’ rock”. No Rio de Janeiro, no início de 1993, um grupo de compositores se apodera da condição de “Órfãos da Tropicália” e criam a Retropicália, demonstrando o papel essencial que esse movimento teve para a música brasileira e a influência que deixou em toda a música produzida desde então, influência que seria impossível analisar nos limites de uma comunicação como essa. Bibliografia ADORNO, Theodor. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. CALADO, Carlos. Tropicália – A História de uma Revolução Musical. São Paulo: Editora 34, 1997. FAVARETTO, Celso. Tropicália – Alegoria, Alegria. Cotia: Ateliê Editorial, 2000. NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2005. PAIANO, Enor. Tropicalismo – Bananas ao Vento no Coração do Brasil. São Paulo: Ed. Scipione, 1996. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia da Letras, 1997. VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1995.