desconstrução do gênero em orlando, de virgínia woolf

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DESCONSTRUÇÃO DO GÊNERO EM ORLANDO, DE VIRGÍNIA WOOLF
Lucélia Canassa (Letras Vernáculas e Clássicas – UEL)
Adilson dos Santos (UEL)
Resumo:
Este estudo tem como objetivo analisar o tema do duplo, cristalizado através da androginia, na
obra de Virginia Woolf, Orlando, publicada em 1928. O livro utilizado para o estudo é uma
edição de 2011, com tradução de Laura Alves. A análise procurará traçar um paralelo com o
clássico de Platão, O banquete, que ilustra o conceito de androginia através das palavras de
Aristófanes. O diálogo utilizado é uma edição de 1979, com tradução de José Cavalcante de
Souza. A androginia é tema presente na literatura ocidental e os mitos que a envolvem tratam,
geralmente, de censura e consequente sofrimento. Analisaremos, portanto, a tentativa de
Woolf no que diz respeito à desconstrução do gênero: as particularidades dos sexos são
contextuais, e não inatas. Faremos, também, uma reflexão sobre a relação de poder entre os
sexos, as construções culturais, a função da mulher na sociedade e a ambiguidade da
identidade feminina e masculina nas relações sociais.
Palavras-chave: androginia, desconstrução do gênero, Virginia Woolf.
703
INTRODUÇÃO
A androginia e os mitos que a envolvem fazem parte de várias culturas.
Vislumbrando um ideal, unem-se os princípios de masculino e de feminino em um só ser.
Essa dualidade faz com que a definição de gênero não seja possível. Percorrendo essa ideia,
os andróginos de Platão, em O banquete, tinham uma força extraordinária e um poder imenso
e, por isso, tornaram-se ambiciosos e desafiaram os deuses. A reação de Zeus, para deixá-los
humildes, menos orgulhosos e mais fracos, foi cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas
pernas. Com isso, o sofrimento e a procura pela outra parte começaram. Através da fala de
Aristófanes, o mito tem o seguinte esquema: perfeição original de uma unidade dual,
transgressão orgulhosa do homem, esperança de nova aproximação da unidade perdida no
tempo e no sofrimento. (PIERRE, 2000, p.27)
Fica claro, dessa forma, o rompimento do homem, em relação à
normalidade fisiológica, com as diferenças sexuais. No diálogo de Platão, há a representação
de três espécies de ancestrais da humanidade: os que duplicam as particularidades masculinas,
os que duplicam as particularidades femininas e os que unem masculinidade e feminidade. Os
últimos, ao serem retratados como os mais fortes, relatam o sofrimento dos amantes separados
e, através de aspectos cosmogônicos – narrativas de origem – vemos a filiação do masculino
com o Sol, o feminino com a Terra e os andróginos com a Lua, corpo celeste a meio caminho
do Céu e da Terra, independente dos dois anteriores.
O conceito de androginia, em Woolf, também está relacionado à rejeição da
dicotomia essencialista entre o masculino e o feminino. Para definir esse conceito, Thomas
Bonnici, em seu livro Teoria e crítica literária feministas, organizado como dicionário e com
verbetes explicativos, diz que o termo androginia foi um importante conceito da Segunda
Onda Feminista170 e foi usado por Woolf parar descrever o equilíbrio completo dos
sentimentos masculinos e femininos. (BONNICI, 2007)
Woolf, em suas obras e ensaios, insistiu na desconstrução da identidade
sexual e lutou pelo direito feminino de ter uma profissão, educação e independência
170
Fase que se estendeu da década de 1960 até a década de 1980, tendo sido uma continuidade da Primeira Onda
Feminista, em que as mulheres se organizam para reivindicar seus direitos. A diferença das duas fases, de forma
simplificada, é que, no primeiro momento, as mulheres lutavam por conquista de direitos políticos e, no segundo,
estavam preocupadas especialmente com o fim da discriminação e a completa igualdade entre os sexos.
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financeira. Além disso, não deixou de ponderar sobre os prejuízos acarretados ao se pensar
em cada um dos sexos separadamente porque, para ela, é natural os sexos cooperarem entre si.
As mentes são, ou deveriam ser, andróginas, pois escrever apenas com o lado masculino do
cérebro causa obstáculos para a comunicação. A escritora defendia na arte a necessidade de se
ser masculinamente feminina e femininamente masculino.
A obra
Orlando é uma obra de Adeline Virginia Woolf (1882-1941), influente
escritora inglesa do século 20, com grandes contribuições para o movimento feminista
ocidental. Publicada em 1928, Orlando é dedicado à Vita Sackville-West, por quem Virginia
Woolf esteve apaixonada por um tempo, e conta a história de um protagonista sexualmente
mutante ao longo de quatro séculos. Ao planejar a elaboração do livro, Virginia comenta em
seu Diário: “Será uma biografia começando em 1500 e continuando até o presente, chamada
Orlando, Vita; apenas com uma mudança de um sexo para o outro”171.
O romance é composto por seis capítulos, cuja narração segue ordem
cronológica e o narrador é um biógrafo que reconstrói a vida da personagem que dá título à
obra. Além de discutir as transformações do gênero sexual, há também uma discussão sobre
gênero narrativo. É o que analisa Ana Maria Bueno Accorsi, em seu artigo “As metamorfoses
de gênero em Orlando de Virginia Woolf”172:
Em termos de gênero literário, mesclando narrativa de romance, história e biografia,
Woolf exerce uma transformação, mas reafirma que não seria somente a arte do
romancista que estaria sendo representada, mas a arte do historiador também. Tanto
um quanto outro estaria moldando um repertório inteligível de eventos e explicando
de forma crítica os mitos e as concepções populares do passado. (ACCORSI, 2001,
p.161)
Isso porque, além de narrar a história de Orlando por três séculos, como
plano de fundo tem-se a presença da história literária inglesa e os eventos históricos da
própria Inglaterra. Outro aspecto desse romance é a presença de um narrador e biógrafo que
conta a história de Orlando e que, de forma extremamente irônica, expressa suas próprias
171
(Woolf, V. The Diary of Virginia Woolf, Ed. Anne Olivier Bell, v. 3, 1925-1930, 5 de outubro de 1927, in:
WOOLF, Virginia. Orlando; tradução de Laura Alves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.8).
172
Publicado em: Anais do X Seminário de crítica literária; XVII Seminário de crítica do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, 2001
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opiniões e sentimentos e dialoga com o leitor: “Nosso simples dever é expor os fatos até onde
são conhecidos, e então deixar o leitor fazer com eles o que puder”. (WOOLF, 2011, p. 49)
Somando esses aspectos ao fato de que, no prefácio escrito pela autora, nos
deparamos com inúmeros agradecimentos a diversas pessoas de diferentes profissões, temos,
em um primeiro momento, a impressão de uma biografia real, que foi construída com
responsabilidade e cuidado. Porém, quando iniciamos a leitura, de imediato assinamos um
pacto ficcional: há ausência de realismo. O enredo se inicia com Orlando jovem aos 16 anos,
no final do século XVI, e termina em outubro de 1928, com a protagonista na condição de
mulher madura.
Orlando – uma personagem extraordinária
Extraordinariamente, Orlando vive por quatro séculos. Ele é pajem da
Rainha Elizabeth I, galã na corte do Rei Jaime, embaixador nos pomposos palácios de
Constantinopla até sofrer uma miraculosa transformação. Laura Alves, na apresentação do
livro, diz que o comportamento do herói/heroína se altera com o passar dos séculos:
Orlando é masculino, violento nos tempos de Elizabeth I e Jaime I, quando conhece
Sasha; torna-se pensativo, mórbido, no século XVII; vai para Constantinopla como
embaixador, casa-se com uma dançarina, Rosina Pepita e muda de sexo; retorna à
Inglaterra no século XVIII, participa de chás e saraus literários e cerca-se de poetas
como Pope. No século XIX, em pleno apogeu como mulher, “cora”, usa saias de
crinolina, apaixona-se e casa-se com Shelmerdine. E, por fim, no século XX, nasce
seu filho; o livro termina em 11 de outubro de 1928. (ALVES, 2011, p. 09)
A vida de Orlando é excepcional, embora seja narrada com muita
naturalidade. No começo da narrativa, Orlando é apresentado como alguém do sexo
masculino. Apesar do seu gosto pela poesia e pela solidão, que o acompanhará em toda a sua
vida, Orlando tem as atitudes esperadas de um comportamento masculino da época. Como
exemplo, envolve-se com mulheres em sua juventude, entre elas Sasha, sua maior decepção
amorosa. A personagem, ao longo da narrativa, passa por alguns transes em que é acometida
por um sono profundo durante dias e quando acorda, age naturalmente, como se nada tivesse
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acontecido. Em um desses transes, no terceiro capítulo, é que ocorre a mudança e Orlando173
acorda mulher.
Orlando é retratado como um ser raro, devido aos seus questionamentos
existenciais - o que é vida, o que é amor - e a sua paixão pela solidão, pela natureza, pela
poesia e pela sabedoria. Existe uma vontade de se compreender – ou de se encontrar? - e de
não aceitar que a vida seja medíocre - como se o desejo de encontrar algo que fosse pleno o
impulsionasse a viver. Um ser excepcional e diferente dos outros. Talvez por isso, não pôde
ficar resignado a apenas um sexo.
A desconstrução do gênero
Na transformação que ocorre, o lado feminino de Orlando, até então
resguardado, aflora e a personagem perceberá que ser mulher no século XIX não é tão simples
como um dia lhe pareceu:
Somente quando sentiu a saia enrolando em suas pernas e o capitão oferencendo-se
com grande polidez para mandar armar-lhe um toldo no convés que ela percebeu,
sobressaltada, as desvantagens e os privilégios de sua posição. (WOOLF, 2011, p.
109)
Aquele corpo, agora de mulher, sabe o que é ser homem, sendo possível
comparar as duas condições. A mudança, em um primeiro momento, parece não perturbar
Orlando:
Orlando tinha se transformado numa mulher – não há como negar. Mas, em todos os
outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A mudança de
sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua identidade. Seu rosto
permanecia, como provam os retratos, praticamente o mesmo. (...) A mudança
parecia ter sido produzida completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o
próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso,
e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar
que (1) Orlando sempre tinha sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem.
Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples
fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim
permaneceu daí por diante. (WOOLF, 2011, p. 99 e 100)
173
Orlando também dá nome a obras e outros personagens: ao canto XXV de Orlando Furioso, poema épico
datada de 1516 e escrita por Ludovico Ariosto, em que uma amazona está sempre vestida de homem; na peça de
Shakespeare, a comédia "As You Like It", escrita entre 1599 e 1606, em que uma outra personagem, Rosalinda,
apaixonada por Orlando, veste-se de homem para poder encontrá-lo;
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A partir do momento que se torna mulher, compreende particularidades dos
dois sexos. Orlando, então, oscilará entre os dois gêneros:
(...) pois foi essa mistura de homem e mulher, um preponderando, depois a outra,
que frequentemente dava a sua conduta uma inesperada reviravolta. (...) No entanto,
é difícil dizer se Orlando era mais homem ou mais mulher (...) (WOOLF, 2011, p.
134 e 135)
Tanto na voz do biógrafo, quanto na voz do personagem, aparecem, por
diversas vezes, qualidades, ações e deveres típicos e próprios de cada sexo, e diferenças
culturais entre homens e mulheres. Ao se tornar mulher, Orlando percebe que tarefas
socialmente importantes, como política e negócios, são restritas aos homens, enquanto as
mulheres possuem “sagradas responsabilidades” (p. 112), retratando assim a relação de poder
entre os sexos. Por outro lado, a personagem não deixa de observar essa relação de poder com
sobressalto e ironia quando, por exemplo, um marinheiro olha para baixo e perde o equilíbrio
ao ver seus tornozelos:
“Se a visão dos meus tornozelos significa a morte para um homem honesto que sem
dúvida tem mulher e família para sustentar, devo, por humanidade, mantê-los
cobertos”, pensou Orlando. (WOOLF, 2011, p. 112)
É no mínimo irônico uma mulher não poder ter prestígio social, mas ser
capaz de causar a morte de um homem de família pelo simples fato de mostrar seus
tornozelos. Através dos pensamentos e questionamentos de Orlando, conseguimos repensar a
identidade de sexo. É como se pudéssemos desfazer a lógica imposta de que um indivíduo
deve adaptar-se a modelos já prontos ou que exista, realmente, qualidades femininas e
masculinas, compreendendo que isso, na realidade, não passa de fatos contextuais, e não
naturais como a sociedade coloca. Em certo momento, enfim, Orlando reconhece-se mulher,
sem deixar de lado a ideia, que parece ser a defendida por Woolf e retratada pela sua
personagem, da inexistência de controle de um sexo sobre o outro:
“Graças a Deus que sou mulher!”, gritou, e estava quase caindo em extrema loucura – nada é
mais lamentável numa mulher ou num homem do que ter orgulho do seu sexo. (WOOLF,
2011, p. 114)
A oscilação entre os dois gêneros parece contribuir na vida de Orlando já
mulher, inclusive em seu casamento. Na verdade, mais que uma oscilação, é a vontade de
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desconstruir os conceitos de masculino e feminino. Havia uma compreensão entre Orlando e
Shelmerdine174 que os levavam a se questionar:
_ Tens certeza de que não és homem? – perguntava-lhe ansiosamente, e ela
respondia como num eco.
_ Será possível que não sejas mulher? – e então imediatamente tiravam a prova. Pois
cada um estava mais surpreso com a rapidez da simpatia do outro, e era para ambos
uma tal revelação que a mulher pudesse ser tão tolerante e falasse com tal liberdade
como um homem e que o homem fosse tão estranho e sutil como uma mulher que
eles tinham que tirar a prova de imediato. (WOOLF, 2011, p. 178)
Em muitas relações condicionadas por uma construção social patriarcal, os
parceiros não se completam, o que resulta em domínio – do colocado como superior - e
submissão – do colocado como inferior. No envolvimento de Orlando e Shelmerdine, a
situação parece não acontecer dessa forma. Poder-se-ia dizer que, por eles terem vivido ora
como homem, ora como mulher, tornaram-se capazes de viver uma relação amorosa distinta
de muitas outras convencionais. Diferente da relação tradicional patriarcal em que o homem
assume um papel de superioridade e para a mulher resta o papel de submissão, o romance dos
personagens retrata uma igualdade que não dói em ninguém e, mais ainda, causa uma
sensação de plenitude.
Como exemplo, a compreensão de Orlando: há uma passagem do romance,
na qual Shelmerdine está contando uma história sobre uma de suas viagens em alto mar e ele
diz que “os biscoitos acabaram” para explicar a razão de ter descido do barco em uma das
paradas e Orlando, sem nenhum sentimento de ciúmes e sem que seu parceiro diga,
compreende e concorda que as negras são atraentes – porque esse havia sido o motivo real da
sua descida. Ou seja, “os biscoitos acabaram” era como um eufemismo, uma mentira que
Shelmerdine conta para não causar desconforto à mulher, mesmo que essa ação de ter se
envolvido com outra mulher tenha acontecido em um passado distante. Essa compreensão
demonstrada por Orlando na condição de parceira de Shelmerdine seria a de um homem para
com outro homem, e não entre um casal. Outro exemplo é quando Shelmedirne age com
afetividade, ternura, emoção, tal como uma mulher agiria, sem receio de mostrar sua
sensibilidade. De forma interessante, Orlando quebra com aquilo que se espera de uma
mulher:
174
Em todo o romance há a presença da confusão de identidade sexual em vários personagens. Shelmerdine
possui os dois gêneros em seu próprio nome, no inglês she/he.
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O amor, disse o poeta, é toda a existência da mulher. E, se olharmos por um
momento para Orlando escrevendo em sua mesa, devemos admitir que nunca houve
uma mulher tão apta para essa tarefa. Certamente, uma vez que ela é uma mulher,
uma bela mulher, uma mulher na flor da idade, logo abandonará esse fingimento de
escrever e meditar e começará, pelo menos, a pensar num guarda-caça (e, contanto
que pense num homem, ninguém se opõe a que uma mulher pense). E então ela lhe
escreverá um pequeno bilhete (contanto que escreva bilhetes, ninguém se opõe a que
uma mulher escreva) (...) Certamente Orlando deve ter feito uma dessas coisas! Meu
Deus – mil vezes, meu Deus, Orlando não fez nada disso. (WOOLF, 2011, p. 188)
Concordando, assim, com Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo
sexo:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produtor intermediário entre o macho
castrado que qualifica de feminino. (Beauvoir, 1980, p. 9)
Dessas colocações, pode-se depreender que as construções culturais limitam
homens e mulheres e Orlando possuía a possibilidade de desprender-se disso, além de saber
das fraquezas e virtudes de ambos os sexos. Podemos, então, pensar na possibilidade do
andrógino ideal do ser humano. Orlando vive diversas situações em sua vida e, ao final, como
mulher, já madura, encontra aquilo que procura: o amor nos braços do misterioso
Shelmerdine, que lhe dará um filho. É como se Orlando tivesse vivido tantas situações, desde
aventuras até cargos respeitados, e completasse o ciclo de uma vida ao dar a luz. Vida essa
que é questionada em vários momentos por Orlando, e até mesmo pelo biógrafo que, em um
dado momento, diz não saber o que é a vida: “(...) devemos voltar atrás e dizer diretamente ao
leitor que espera ansioso ouvir o que é a vida – meu Deus! Não sabemos”. (WOOLF, 2011, p.
190)
Há, sem dúvida, uma reflexão sobre a função das mulheres na sociedade,
questionamentos relevantes sobre os papéis e os comportamentos e, Orlando, tendo sido
homem e sabendo ser mulher, podendo, assim, optar por um dos lados, há também uma
apologia da igualdade entre os sexos.
Podemos afirmar que Orlando, como personagem, confere uma capacidade
desejada pela maioria dos mortais: em apenas um corpo, ser múltiplos indivíduos, viver várias
vidas, ter o tempo como um aliado e, ainda, encontrar a plenitude através do amor e da
sabedoria.
710
O Banquete e Orlando
Aristófanes em O banquete, de Platão, diz:
Três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o
feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois (...) andrógino
era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao
masculino e ao feminino (...) eram por conseguintes de uma força e de um vigor
terríveis. (PLATÃO, 1979, p. 22)
Shelmerdine e Orlando, ao se conhecerem, parecem ter reencontrado essa
força que haviam perdido. Os andróginos da mitologia desafiaram Zeus e, como castigo para
enfraquecê-los, foram separados:
Diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir,
mas parem com a intemperança, tornados mais fracos (...) eu os cortarei a cada um
em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós,
pelo fato de se terem tornado mais numerosos”. (PLATÃO, 1979, p. 23)
Assim sendo, relacionando as duas obras, há a consciência de que, ao se
juntarem, os indivíduos se tornaram mais fortes. Podemos dizer que Orlando não só encontra
aquilo que pretendia, como também parece encontrar o que Aristófanes diz das qualidades do
amor (Eros):
É assim que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor, e o seu
próprio amado cada um encontrasse, tornado a sua natureza primitiva. (PLATÃO,
1979, p. 25)
Talvez, devido a essa consciência, Virginia Woolf tenha lutado pela
igualdade dos gêneros, e não pela superioridade de nenhuma parte e, dessa forma, com sua
arte, tenha iniciado uma luta pela democratização da escrita. Orlando é um livro que, a cada
releitura, parece mais plural. O que ao mesmo tempo nos parece rico para mais especulações,
causa confusão por gerar tantas epifanias. Assim como Platão, que ao retratar o mito da
androginia, da ideia de uma unidade e sua posterior mutilação, nos traz luz acerca da
igualdade entre os gêneros e a inexistência de controle de um sexo sobre outro. Um
pensamento aparentemente tão simples parece continuar restrito ao universo do utópico:
repensar e recriar uma identidade sexual em que as qualidades de “homens” e “mulheres”
sejam, na verdade, qualidades do ser humano, e não objetos para diferenciar os sexos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACCORSI, Ana Maria Bueno. As metamorfoses de gêneros em Orlando de Virginia
Woolf. In: Anais do X Seminário de crítica literária; XVII Seminário de crítica do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, 2001
BEAUVOIR, Simone de; tradução de Sergio Milliet. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá:
Eduem, 2007.
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e
tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2009.
BRUNEL, Pierre; tradução de Carlos Sussekind. Dicionário de mitos literários. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2000.
PLATÃO, Diálogos. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções e notas de
José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
WOOLF, Virgínia; tradução de Laura Alves. Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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