Paixão - Pastoral Familiar

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HOMILIA DA PAIXÃO DO SENHOR 2012 – D. Manuel Clemente
- A verdade é Cristo e a vida em Cristo!
“Disse-lhe Pilatos: ‘Então, tu és rei?’ Jesus respondeu-lhe: ‘É como dizes: sou rei. Para
isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da
verdade escuta a minha voz.’ Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’”
- Amados irmãos, que nos traz aqui? Perdoai-me a franqueza e quase a rudeza duma
pergunta assim, que antes de mais faço a mim próprio.
Sexta-Feira Santa de 2012: tantos séculos volvidos sobre o acontecimento evocado,
distância tão grande de lugar e cultura… E aqui mesmo estamos, nesta suspensão das
coisas, nesta escuta atenta de diálogos havidos e nunca por demais escutados. Para nos
entendermos afinal a nós mesmos, no que devemos ser.
Sexta-Feira Santa de 2012: quanta perplexidade, quanta interrogação do tempo que
corre, nosso e dos outros – que também é nosso. – Como garantiremos a verdade de
todos, seres humanos com direitos e deveres, dignidades reconhecidas e dignificações a
promover, realmente promover?
Nesta mesma hora em que aqui revivemos a Paixão de Jesus, continua ela em todo o
sofrimento do mundo. Nos que estão sós, nos que estão doentes, nos que não têm
trabalho que os realize e sustente, nos que emigram sem condições nem garantias… Nas
famílias desfeitas e nas que nem conseguem constituir-se, por falta de formação ou
apoios de vária ordem… Rol infindável de situações e casos, todos pesando no madeiro
da cruz que o Filho de Deus carregou um dia, cruz do mundo inteiro e do tempo todo.
Mas ainda antes de a ter aos ombros, tinha-a em si mesmo, Verbo incarnado que era.
Carne e sangue do mundo na humanidade de Deus, assim mesmo apresentada e assim
mesmo salva. Também assim apresentada aos olhos esquivos de Pilatos, como agora aos
nossos, que bem atentos hão de estar.
E num diálogo decisivo, de que não poderemos desistir com a displicência do
governador romano. Jesus não fugiu à pergunta sobre a sua realeza. Foi Pilatos que
fugiu à resposta de Jesus, com fraca evasiva. Retomemos a passagem, tal qual a
ouvimos: “Disse-lhe Pilatos: ‘Então, tu és rei?’ Jesus respondeu-lhe: ‘É como dizes: sou
rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele
que é da verdade escuta a minha voz.’ Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’”.
Ao ocasional representante dos reinos deste mundo, Jesus abriu o horizonte dum reino
mais alto, onde a própria realidade inteiramente o fosse. Amados irmãos e irmãs, deixaime adiantar que disto precisamente se trata e de nada menos que isto: de reconhecer a
verdadeira dimensão humana, como a partir de Deus se configura; e de Deus humanado,
como Jesus diante de Pilatos e de todos nós agora.
Reparemos então no problema que temos. Consiste ele na redução constante que
fazemos da realidade, própria e alheia. Reduzimo-la ao imediatamente desejável ou
compensatório, aos outros que diretamente nos caibam ou sirvam, àquilo que
individualmente projetamos e apetecemos… E tanto assim é, falando em geral, que ao
mais acidental percalço, ou grave obstáculo, tudo se pode pôr em causa – mesmo a um
“Deus” que a partir de nós e só de nós forjávamos.
E também no que restringíramos dos outros, do mundo e da própria vida: os outros
desconsiderados na sua alteridade, o mundo consumisticamente tomado e a vida nem
respeitada nem agradecida, mesmo nas vicissitudes que comporte. Tudo isto ou quase
nada, deixa-nos dramaticamente de fora da realidade e alienados dela, do seu
fundamento, consistência e sentido.
Por outro lado, verdadeiro agora, nada esteve ausente da vida de Cristo: família e exílio,
festas e trabalhos, inteligência aguda e sensibilidade magnífica, convivência calorosa e
grandes silêncios, coração em Deus e olhos bem na terra. Da parte de outros, também
nada faltou: das aclamações aos abandonos, das promessas às traições, das multidões
variáveis ao pequeníssimo grupo que lhe restou ao pé da cruz.
Creio, irmãos caríssimos, que o maior argumento – se de algum precisássemos – que
nos responderia à pergunta inicial, sobre o porquê de estarmos hoje aqui, consiste nisto
mesmo de não podermos concentrar-nos, mental e devocionalmente, senão em torno de
Cristo, que em si mesmo concentra todo o Céu, como se dá, e toda a terra, como anseia.
Por isso nos iluminam e atraem tanto as palavras ouvidas e nunca por demais evocadas.
Sim, a verdade de Cristo é a realidade do mundo, a nossa realidade que só nele encontra
significado cabal e redenção inteira, satisfeita esta pelo grande preço com que Ele a
viveu, sofreu e retribuiu ao Pai, unindo a foz à fonte. Como dito fora: “Tanto amou
Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele
não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).
Por isso e só por isso, somos definitivamente de Cristo, como Cristo é de Deus Pai, na
unidade do Espírito. – Quanto realismo encontram, especialmente agora, alguns
versículos evangélicos, como os que se seguem: “Eu vim para que tenham vida e a
tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas.
[…] Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecemme, assim como Pai me conhece e eu conheço o Pai; e ofereço a minha vida pelas
ovelhas” (Jo 10, 10 ss)! Espantam-nos e ganham-nos tais palavras, que, recolhidas nas
primeiras gerações cristãs, nos salvam agora, com a luz que trazem. A luz que esplende
da cruz, intensamente ela.
E há verdadeiro milagre em palavras destas, ou nos sentimentos que elas nos induzem.
Por certo nos espanta o realismo e a sedução com que nos tocam sempre, ainda que
ouvidas já vezes sem conta, mas sempre primeiras. Falar assim é falar verdade,
inquestionavelmente verdade, com toda a comprovação que a inteligência lhe encontra
na alma. Como aos cristãos perseguidos pelo Império, que representaram Cristo como o
“bom pastor” nos muros das catacumbas; como aos ministros do Evangelho que, entre
tantos nomes, se revelaram precisamente como “pastores” e sacramentos de Cristo
Pastor; como a quantos encontram alívio e paz, repetindo incansavelmente os sagrados
versículos que em Cristo alcançaram a manifestação mais plena: “O Senhor é meu
pastor: nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas
refrescantes, reconforta a minha alma e guia-me por caminhos retos, por amor do seu
nome. Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo…” (Sl 23, 1 ss).
E é por isso também que à descuidada pergunta de Pilatos: - O que é a verdade?,
respondemos nós, com a presença aqui e a convicção mais forte: - A verdade é Cristo e a
vida em Cristo!
Mas também sabemos o que tal implica. Se em Cristo encontramos o pastor e na cruz o
seu bordão, teremos de ser conformes com tal verdade recebida e alcançada.
Conformidade implica conversão ao que nos foi dado; conformidade requer testemunho
ativo junto de quem O não conheça e assim mesmo O espere. Entre ovelhas sem pastor
e o pastor que recebemos, urgem as mediações que nós temos de ser. Também
aconteceu connosco, que já divisamos a glória da cruz e não fora desta, porque alguém
nos ensinou que era mesmo assim. Assim acontecerá com outros, se os aproximarmos
do mesmo pastor.
De Pilatos, que desistiu de obter resposta, não sabemos muito mais e o que se diz não o
abona. Mas dos poucos, pouquíssimos, que com tanto risco seguiram Jesus até ao
Gólgota; dos poucos que depois testemunharam a sua morte feita vida e aí mesmo
renasceram; de tantos que em dois milénios alargaram o Evangelho pelo mundo: destes
colhemos nós a flor e o fruto da verdade demonstrada e da realidade perfeita.
Por isso a cruz de Cristo fulgurou tanto, por entre as trevas que cobriram toda a terra.
Por isso e só por isso, estamos e estaremos sempre aqui. Porque a sua voz é mais forte
do que as nossas dúvidas. Porque a sua resposta é integral, numa vida oferecida e assim
mesmo salva e salvadora. Restando-nos clamar, como clamou quem o soube, em
adequação perfeita ao que Cristo lhe dera: “De nada me quero gloriar, a não ser na cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o
mundo!” (Gl 6, 14).
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 6 de abril de 2012
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