oncogenética Hereditariedade e câncer de mama D IANTE DA ALTA INCIDÊNCIA E DE UM PROGNÓS- TICO RELATIVAMENTE FAVORÁVEL – DADOS EU- Divulgação ROPEUS APONTAM UMA TAXA DE SOBREVIVÊNCIA Edenir Inêz Palmero * Geneticista molecular; pesquisadora do Hospital de Câncer de Barretos; professora do Programa de Pós-Graduação em Oncologia do Hospital de Câncer de Barretos Contato: [email protected] 38 setembro/outubro 2013 Onco& de 91% no primeiro ano pós-diagnóstico e de 65% nos cinco anos subsequentes –, o câncer de mama é hoje o mais prevalente no mundo1. No Brasil, é a primeira causa de morte relacionada ao câncer em mulheres de todas as idades2. No caso do câncer de mama, assim como para a maioria dos tumores malignos, a incidência está relacionada, principalmente, com fatores ambientais e estilo de vida, como exposição a substâncias químicas, radioativas e poluentes em geral, alimentação, fumo, sedentarismo, obesidade, entre outros3. Não menos importante, mas muitas vezes menos conhecidos, a idade ao diagnóstico e a história familiar de câncer também representam fatores de risco significativos para o desenvolvimento da doença, principalmente quando se trata de um câncer com caráter hereditário. Do total de casos de câncer de mama diagnosticados a cada ano, estima-se que de 5% a 10% sejam hereditários, ou seja, causados por uma alteração genética herdada que confere a seu portador um risco de câncer significativamente maior que o da população em geral. Se trouxermos esses percentuais à realidade brasileira, estamos falando de aproximadamente 2.600 a 5.300 novos casos de câncer de mama hereditários por ano, conforme estimativas do INCA, o que é assustador tanto pelas suas proporções numéricas quanto pelo fato de que a maior parte desses tumores não é reconhecida como de origem hereditária2. Famílias que apresentam múltiplos casos de câncer, várias gerações afe- tadas por câncer, tumores bilaterais ou tumores diagnosticados em idade precoce em relação à média de idade ao diagnóstico para aquele tipo de neoplasia devem ser avaliadas cuidadosamente, já que esses fatores são indicadores importantes de risco para o câncer de mama hereditário. Os indivíduos considerados “suspeitos” ou de alto risco devem ser encaminhados para aconselhamento genético, no qual a hipótese diagnóstica pode ser confirmada e informações sobre a doença, sua forma de herança, estratégias preventivas e de redução de risco, assim como as chances de recorrência para outros familiares, podem ser avaliadas e discutidas dentro de um contexto multidisciplinar4. Além da história familiar de câncer, outra variável importante na identificação de famílias em risco para câncer de mama hereditário refere-se às características histopatológicas dos tumores. Indivíduos com mutações germinativas em BRCA1 apresentam um excesso de carcinomas mamários ductais do tipo medular, além de um excesso de tumores triplo negativos (TN) (negatividade para os receptores hormonais estrógeno ER, progesterona PR e HER2)5. Outra característica importante é que esses tumores expressam um ou mais dos marcadores “basais”, como citoqueratina 5/6 (CK5/6), 14 (CK14), EGFR, SMA, P-caderina, caveolina 1, apresentando dessa forma um fenótipo “basal-like”. A identificação de indivíduos em risco para câncer de mama hereditário é importante por várias razões. Primeiro, porque indivíduos afetados apresentam risco cumulativo vital muito superior ao da população em geral para vários tipos de câncer. Segundo, porque outros familiares de um indivíduo afetado podem estar em risco para o câncer hereditário. Os tumores hereditários apresentam um padrão de herança autossômico dominante, de forma que cada indivíduo possui uma chance de 50% de herdar o alelo alterado. Terceiro, a possibilidade de identificar familiares de elevado risco para o desenvolvimento de câncer torna possível o emprego de uma abordagem preventiva e de detecção precoce do câncer, já que medidas de rastreamento intensivo e intervenções preventivas (cirurgias profiláticas e quimioprofilaxia) se mostram significativamente eficazes na redução do risco de câncer em portadores de mutação4,6,7. Além disso, os rápidos avanços em técnicas de biologia molecular nas últimas décadas resultaram na identificação de genes que, quando alterados, aumentam significativamente o risco de desenvolver câncer de mama, câncer de ovário e outros tumores. Por outro lado, a identificação de um indivíduo não afetado em uma família com risco aumentado permite a sua tranquilização e elimina os gastos e complicações de rastreamento e intervenções preventivas desnecessárias8. No caso das intervenções preventivas, estudos prospectivos e retrospectivos demonstraram que a mastectomia bilateral profilática é a intervenção de maior redução de risco de câncer de mama em mulheres portadoras de mutação nos genes BRCA1/BRCA2 (redução de até 90% do risco)9,10. A salpingo-ooforectomia bilateral profilática em pacientes portadoras de mutações promove redução de 90% do risco de câncer de ovário, bem como redução de 50% no risco de câncer de mama11. Entre as opções não cirúrgicas destacam-se a quimioprevenção e a modificação da exposição a fatores de risco10. Além disso, cabe destacar o desenvolvimento de novas terapias, utilizando inibidores da enzima PARP (Poly-Adenosine Diphosphate-Ribose Polymerase 1), específicas para pacientes portadores de mutações nos genes BRCA. Câncer de mama hereditário – aspectos moleculares O primeiro gene relacionado à síndrome de predisposição hereditária ao câncer de mama e ovário (Hereditary Breast and Ovarian Cancer – HBOC OMIM #114480), BRCA1 (OMIM #113705) foi identificado em 1994, por Miki et al.12. Esse gene foi mapeado no cromossomo 17q12-23 e sua descoberta foi decorrente de estudos de ligação em membros de famílias com múltiplos casos de câncer de mama e ovário. O segundo gene associado à predisposição hereditária ao câncer de mama, ovário e outros tumores é o gene BRCA2 (OMIM #600185), localizado no cromossomo 13q12-1313. Acredita-se que o gene BRCA1 seja responsável por cerca de 45% a 50% de todos os casos de câncer de mama hereditários. Portadoras de mutação germinativa nesse gene têm um risco cumulativo vital (RCV) de desenvolver câncer de mama de 40% a 65% até os 80 anos de idade14. Além disso, o RCV para câncer de ovário nessas pacientes também é significativamente maior, e pode chegar até 40% aos 80 anos de idade14,15. O gene BRCA2, quando alterado, aumenta o risco de desenvolvi- mento de múltiplos tumores. BRCA2 é responsável por cerca de 30% a 40% de todos os casos de câncer de mama hereditários. O RCV para câncer de mama em mulheres portadoras de mutações germinativas nesse gene é similar ao risco de portadoras de mutações germinativas em BRCA1 (40% a 65% até os 80 anos de idade)14,15, enquanto o risco para câncer de ovário é de 15% a 30%14. Embora menor que o RCV para câncer de ovário associado a mutações germinativas em BRCA1, esse risco ainda é dez vezes maior que o da população em geral. Homens com mutações germinativas em BRCA2 têm um RCV significativamente maior de desenvolver câncer de mama, cerca de 6% até os 70 anos de idade, o que representa um aumento de 80-100 vezes quando comparado ao risco da população em geral16. Além disso, existem outros genes envolvidos na predisposição hereditária ao câncer de mama, como TP53, PTEN, PALB2, ATM, entre outros. Cabe ainda ressaltar que uma fração das famílias com características sugestivas de hereditariedade como fator causal permanece uma incógnita, já que pode resultar do somatório do efeito de alterações em genes de suscetibilidade ou ainda de alterações em algum gene ainda não associado ao desenvolvimento do câncer de mama hereditário. Do ponto de vista técnico, a pesquisa de mutações germinativas em BRCA1 e BRCA2 (teste genético) é um processo de alta complexidade, resultante, principalmente, do tamanho desses genes e da extensa heterogeneidade molecular observada na doença. Além da ampla gama de mutações pontuais já identificadas (ausência de hot spots), grandes rearranjos gênicos em BRCA1 e BRCA2 vêm sendo identificados e associados ao mesmo fenótipo clássico de predisposição ao câncer de mama e ovário. A estratégia considerada gold-standard para a identificação de mutações germinativas na sequência codificadora dos genes BRCA é o sequenciamento de todos os éxons de ambos os genes. Por se tratar de uma estratégia extremamente laboriosa (e, em consequência, um processo demorado) e cara, outras estratégias estão surgindo, como o emprego do sequenciamento de nova geração (next generation sequencing), que consiste basicamente no sequenciamento, de forma massiva e paralela, de milhões de sequências-molde de DNA. Sendo assim, vários pacientes podem ser analisados simultaneamente, não apenas para BRCA1 e BRCA2, mas também para outros genes suspeitos e, dessa forma, a hipótese diagnóstica pode rapidamente ser comprovada/refutada. No entanto, essa tecnologia ainda necessita de validações antes de sua implementação na rotina diagnóstica. Por último, cabe enfatizar que o teste genético não deve ser utilizado para o rastreamento de quaisquer pacientes com câncer de mama, mas sim dentro de um contexto de aconselhamento genético direcionado para famílias de alto risco para câncer hereditário e, dessa forma, deve ser uma ferramenta para confirmação objetiva de uma suspeita diagnóstica que surge a partir da história médica e familiar de um indivíduo. O resultado, seja ele positivo, negativo ou inconclusivo, deve ser interpretado com extrema cautela e considerado no âmbito da história familiar em questão17. Onco& setembro/outubro 2013 39 Câncer de mama hereditário – realidade nacional “Somente conhecendo melhor a nossa população estaremos aptos a construir nossas próprias estatísticas e a adaptar os protocolos clínicos e modelos de risco à realidade brasileira” 40 setembro/outubro 2013 Onco& No Brasil existem poucos serviços especializados no diagnóstico de síndromes de predisposição hereditária ao câncer, bem como no acompanhamento prospectivo dos pacientes e seus familiares. Esses serviços estão, em sua maioria, alocados em hospitais-escola e também em instituições privadas, oferecendo, nesses casos, um atendimento de alto custo, o que torna o acesso cada vez mais restrito e difícil18,19. Concorre para agravar a dificuldade de acesso o fato de que a grande maioria desses centros de ensino (hospitais-escola) se localiza em grandes centros populacionais, geralmente em capitais, deixando a população das regiões periféricas sem acesso ao serviço20. O teste genético para câncer de mama hereditário não recebe cobertura do Sistema Único de Saúde nem de planos de saúde privados. Existem alguns hospitais públicos e privados (sem fins lucrativos) que oferecem o teste gratuitamente aos pacientes da própria Instituição (exceção à regra vigente no país), assim como alguns centros que oferecem o teste genético vinculado a protocolos de pesquisa para pacientes em risco provenientes de seus próprios serviços. Como uma consequência da quase inexistência de serviços de genética e câncer no Brasil, dados sobre agregados familiares de câncer de mama ou portadores de mutação em BRCA1 e BRCA2 em nosso meio ainda são escassos. Os principais trabalhos até agora publicados envolvem i) populações específicas, como mulheres jovens com câncer de mama; pacientes de origem judaica Ashkenazi ou ii) regiões e/ou mutações específicas dos genes, sendo que a maior parte dos estudos concentra suas análises nas mutações fundadoras situadas nos genes BRCA1 e BRCA2. Uma situação peculiar no Brasil é a alta prevalência da mutação p.R337H no gene supressor tumoral TP53. Trata-se de uma mutação fundadora exclusivamente brasileira, já detectada em diversas famílias brasileiras, com e sem critérios clínicos para síndrome de Li-Fraumeni (síndrome autossômica dominante de predisposição hereditária a vários tipos de câncer, especialmente sarcomas, câncer de mama, tumores do sistema nervoso central, leucemias e tumores adrenocorticais diagnosticados em idade jovem). Inicialmente descrita por Ribeiro e colaboradores em famílias com carcinoma adrenocortical do estado do Paraná21, essa mesma mutação, presente no éxon 10 do gene TP53 (c.1010G>A, p.R337H), vem sendo descrita em alta frequência em várias famílias brasileiras aparentemente não relacionadas. Trabalho realizado por Assumpção e colegas22 analisou 123 mulheres da região Sudeste do Brasil com história pessoal de câncer de mama com e sem história familiar positiva de câncer e detectou a mutação p.R337H em 2,4% delas. Adicionalmente, Gomes e colaboradores encontraram essa mutação em 0,5% de 390 mulheres brasileiras com câncer de mama analisadas23. Estudo realizado pelo nosso grupo indicou que a frequência populacional da mutação p.R337H na região Sul do Brasil é de 0,3%24. Pode-se concluir que, considerando uma população grande e heterogênea como a nossa, muito há para se pesquisar a fim de compreender melhor a epidemiologia do câncer de mama hereditário no Brasil, os principais genes envolvidos, as principais mutações causadoras, os principais fatores genéticos, epigenéticos e ambientais que possam estar envolvidos, pois somente conhecendo melhor a nossa população estaremos aptos a construir as nossas próprias estatísticas e a adaptar os protocolos clínicos e modelos de risco criados com base em populações europeias e/ou norte-americanas à realidade brasileira. Conclusões Identificar pacientes em risco é fundamental para direcionar condutas específicas de rastreamento de câncer, permitindo a detecção da doença em estadios menos avançados e dessa forma aumentando a possibilidade de cura. É fundamental que se estimule o acompanhamento prospectivo das famílias de maior risco de forma personalizada. É preciso transmitir aos pacientes e a seus cuidadores a importância de conhecer a própria história e guardar bons registros acerca das patologias que acometem a família. Referências bibliográficas: 1. Parkin, D.M. Global cancer statistics in the year 2000. Lancet Oncol 2, 533-543 (2001). 2. www.inca.gov.br, B.N.C.I.A.a. 3. McPherson, K., Steel, C.M. & Dixon, J.M. ABC of breast diseases. Breast cancer-epidemiology, risk factors, and genetics. BMJ 321, 624-628 (2000). 4. Câncer., B.M.d.S.I.N.d. Rede Nacional de Câncer Familial: manual operacional. (2009). 5. Lakhani, S.R., et al. The pathology of familial breast cancer: predictive value of immunohistochemical markers estrogen receptor, progesterone receptor, HER-2, and p53 in patients with mutations in BRCA1 and BRCA2. J Clin Oncol 20, 2310-2318 (2002). 6. Hartmann, L.C., et al. Efficacy of bilateral prophylactic mastectomy in women with a family history of breast cancer. N Engl J Med 340, 77-84 (1999). 7. Rebbeck, T.R., et al. 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