O enfrentamento da Doença pelo Vírus Ebola no Brasil: uma

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>>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 O enfrentamento da Doença pelo Vírus Ebola no Brasil: uma pesquisa documental Selma Regina de Andrade1, Andriela Backes Ruoff1, Daiane Trentin1, Mara Ambrosina Vargas1 Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. [email protected], [email protected], [email protected], [email protected] 1
Resumo. O estudo objetivou compreender o processo de preparação e enfrentamento à ameaça de introdução do vírus Ebola no Brasil, tendo por referencial o ciclo do conhecimento. Trata-­‐se de uma pesquisa documental realizada com documentos oficiais. Foram analisados 27 documentos, dentre eles protocolos, fluxogramas, consolidados e nota técnica. Os resultados mostraram uma linha de desenvolvimento do ciclo do conhecimento, com o reconhecimento e o diagnóstico do problema, construção de alternativas de soluções e decisão da melhor estratégia a seguir, a cada nova mudança no ambiente. Conclui-­‐se que, no processo de enfrentamento, os componentes do ciclo estão presentes, de modo oculto, mas intrínseco na maneira como a área da saúde se organizou e conduziu a preparação e resposta a ameaça de introdução vírus Ebola no País. Palavras-­‐chave: Gestão do conhecimento, Vigilância epidemiológica, Epidemias, Surtos de Doenças, Ebolavirus. The Knowledge Cycle in combating the disease by Ebola Virus in Brazil: documentary research Abstract. The study aimed to understand the process of preparing and dealing with the threat of introduction of the Ebola virus in Brazil, having as reference the knowledge cycle. This is a documentary survey of official documents. We analyzed 27 documents, including protocols, flow charts, and consolidated technical note. The results showed a line of development of the knowledge cycle, with the recognition and diagnosis of the problem, developing alternative solutions and decision of the best strategy to follow, with each new change in the environment. We conclude that, in the coping process, the cycle components are present in hidden mode, but inherent in the way health care is organized and led the preparation and response to the threat of introduction Ebola virus in the country. Keywords: Knowledge management, Epidemiological surveillance, Epidemics, Disease outbreaks, Ebolavirus. 1 Introdução A doença pelo vírus Ebola (DVE) foi descoberta em 1976 e, em 2014, declarada uma emergência de saúde pública de interesse internacional. A manifestação de surtos descontrolados da doença, no continente africano, suscitou uma rápida estruturação de estratégias de prevenção e controle dessa doença pelas autoridades sanitárias e organizações de saúde, em âmbito mundial (Lopes & Dunda, 2015). O caráter epidêmico da DVE gerou mudanças no ambiente de vigilância epidemiologica em âmbito internacional e nacional por se tratar de uma infecção sem tratamento específico e com o agravante de ser uma doença que leva à morte (DE) grande parte das pessoas infectadas. Assim, a epidemia do Ebola expõe questões sanitárias que podem alcançar, em última instância, o estágio de pandemia, em caso do não controle e de sua disseminação (Lopes & Dunda, 2015). Esta característica de alta letalidade, associada a questões de circulação e migração de pessoas, com a possibilidade de contágio global, fizeram com que as organizações de saúde intensificassem a 174 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 preparação e enfrentamento ao vírus, com medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde (Organização Mundial da Saúde, 2015; Ministério da Saúde, 2014a). Em busca de medidas saneadoras, a Organização Mundial da Saúde (OMS) representou o papel central como órgão coordenador de ações para o combate da DVE, funcionando como facilitadora na troca de informações multinível sobre o assunto, incentivando e recolhendo recursos em várias instâncias, e ampliando a participação global dos governos (Lopes & Dunda, 2015). No Brasil, o Ministério da Saúde (MS) elaborou o Plano de Contingência em Emergência de Saúde Pública -­‐ Doença pelo Vírus Ebola (PC-­‐DVE), no qual estão registradas as prioridades e responsabilidades governamentais das três esferas de gestão, bem como a aplicação dos recursos para esta emergência (Ministério da Saúde, 2014b). As recomendações instituídas pelo PC-­‐DVE nortearam e embasaram a preparação e capacitação dos profissionais do setor saúde. A possibilidade da introdução de um eventual caso de Ebola no Brasil mudou a rotina dos serviços de saúde, em especial, o hospitalar, receptor primário dos casos. Embora as normas de biossegurança já integrem os protocolos hospitalares, a letalidade causada pela DVE disseminou temor e insegurança nas equipes envolvidas, com impacto nos serviços de controle de infecção, vigilância e emergência. Nesta perspectiva de ações rápidas e eficazes, é pertinente considerar para a situação da criação das estratégias desenvolvidas para o enfrentamento da DVE, os componentes do ciclo do conhecimento das organizações, referencial teórico deste estudo. O ciclo, que inclui a criação de significado, a construção do conhecimento e a tomada de decisão, permite compreender processos e informações novas, suas interpretações e análises, bem como decisões e ações adotadas (Choo, 2008). Assim, o ciclo inicia-­‐se com a criação de significado, a partir de mudanças ocorridas no ambiente, provocando perturbações no fluxo de experiência dos indivíduos. Estes buscam dar significado ao que está ocorrendo, para então desenvolver uma interpretação comum que possa guiar as ações. Na construção do conhecimento, há a conversão da informação, por meio da partilha dos conhecimentos. Este processo é alcançado quando se reconhece o relacionamento sinérgico entre o conhecimento tácito (subjetivo e intuitivo) e explícito (formal e objetivo), e quando são elaborados processos sociais capazes de criar novos conhecimentos por meio da conversão do tácito em explícito e vice-­‐versa. Após a criação de significados e conhecimentos, a organização precisa escolher várias opções e se comprometer com as melhores estratégias disponíveis no momento. Com isso, toma decisões com base na análise das alternativas, para as quais prevê e avalia as consequências para cada uma, de acordo com as preferências e objetivos traçados (Choo, 2008). Ao considerar o ciclo do conhecimento, admite-­‐se o pressuposto que o processo decorrente de uma situação de emergência pública também se caracteriza por um ciclo constante de interpretação das mudanças da doença (criação de significado), reflexão e análise (construção do conhecimento) e elaboração de ações/estratégias (tomada de decisão). Deste modo, as etapas instituídas na resposta da emergência em saúde frente à DVE assemelham-­‐se ao utilizar o ciclo do conhecimento na elaboração e planejamento de estratégias, atentas às mudanças do ambiente externo, sendo este um recurso importante na eficácia das ações pensadas nas organizações. Este estudo teve o objetivo de compreender como se deu o processo de preparação e enfrentamento à ameaça de introdução do vírus Ebola no Brasil, tendo por referencial o ciclo do conhecimento. 2 Metodologia Estudo de abordagem qualitativa, do tipo pesquisa documental, de natureza exploratória e descritiva. A pesquisa documental se caracteriza pela busca de informações em documentos originais que não receberam nenhum tratamento analítico (Oliveira, 2007). 175 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 A coleta dos dados foi realizada no mês de julho de 2015 e se deu através dos documentos publicados online no período de agosto a dezembro de 2014, no site do Ministério da Saúde. Adotou-­‐se como critérios de inclusão documentos disponíveis na íntegra no formato online e que atendiam ao objetivo do estudo. Foram extraídos 37 documentos, porém excluiram-­‐se 10, por não contemplarem o escopo do estudo. Ao final, compuseram o corpus documental 27 documentos. Os documentos foram analisados pela técnica de análise documental (Cellard, 2012). Na primeira etapa, de sistematização, fez-­‐se análise preliminar dos documentos, constituida de cinco dimensões: 1) o contexto, observando o contexto histórico no qual foi produzido o documento; 2) o autor, avaliando a identidade documental; 3) a autenticidade e confiabilidade do texto, analisando a procedência do documento e a qualidade da informação transmitida; 4) a natureza do texto, avaliando a sua estrutura conforme o contexto em que é redigido; e 5) os conceitos-­‐chave e a lógica interna do texto, extraindo os conceitos utilizados, sua importância e sentido no contexto em que foram empregados. Na segunda etapa de análise de documentos, realizou-­‐se uma síntese das informações dos documentos selecionados na primeira etapa, a partir do encadeamento das cinco dimensões. Nesse momento, extraíram-­‐se os dados, comparando-­‐os com os elementos contidos no corpus documental, permitindo o entendimento das similaridades, relações e diferenças, com vistas à interpretação e reconstrução dos aspectos analisados (Cellard, 2012). Com base nessa etapa, estruturam-­‐se três categorias analíticas relacionadas aos componentes do Ciclo do Conhecimento: criação de significado, construção do conhecimento e tomada de decisão (Choo, 2008). 3 Resultados A dinâmica da construção do PC-­‐DVE não se deu num momento único, mas seguiu o curso da doença, ou seja, passou por constante atualização. Logo, 20 protocolos, quatro fluxogramas, dois consolidados e uma nota técnica foram constituindo o conteúdo do PC. O entrelaçar de novas informações e experiências vivenciadas pelos profissionais nos países infectados forneceram elementos para adaptar, rever e instituir as melhores ações na preparação do País frente à ameaça de introdução do vírus Ebola. 3.1 O contexto A elaboração do PC-­‐DVE ocorreu em meio a um contexto de epidemia da doença na África. Em 2014, surtos de casos descontrolados de Ebola naquele continente, já iniciados em 2013, levaram as autoridades internacionais em saúde a afirmar a situação como uma emergência de saúde pública de importância internacional. A gravidade da doença, associada às crenças culturais, difícil acesso, escassez de profissionais da saúde, tornou difícil o controle dos surtos da doença, gerando um contexto de preocupação mundial (Organização Mundial da Saúde, 2014). Nesse sentido, houve a intensificação, especialmente, na área da Vigilância Epidemiológica (VE) na preparação dos países para o enfrentamento da doença, numa eventual disseminação mundial. Somado ao descontrole de casos, fatores como o fácil acesso e mobilidade internacional produziram um cenário de preocupação e alerta no campo da saúde. Os documentos analisados compõem o PC-­‐DVE do Brasil, desenvolvido de acordo com o Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública e com as orientações da OMS. No plano, foram determinadas as responsabilidades na esfera federal e a organização necessária para atender as situações de emergência relacionadas a esta doença no País. Cabe ressaltar que, enquanto a 176 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 emergência esteve em curso, o PC-­‐DVE manteve-­‐se em constante atualização, na perspectiva de garantir a detecção de casos em tempo hábil e a resposta rápida e apropriada (MS, 2014b). 3.2 Os autores Os documentos provêm de uma equipe técnica coordenada pela Secretaria de Vigilância em Saúde/MS do Brasil. A SVS tem como função dar suporte aos estados e municípios na resposta às emergências em saúde pública e é responsável por coordenar a preparação e resposta das ações de vigilância em saúde, de importância nacional e internacional (Ministério da Saúde, 2013). Formada por especialistas técnicos, a equipe elaborou o PC-­‐DVE, instituindo medidas de preparação e resposta local para possível pandemia do Ebola. Os órgãos e entidades que contribuíram com o desenvolvimento do PC-­‐DVE pertencem às três esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), do MS, das Secretarias de Saúde dos Estados e dos Municípios e o Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional (GEI-­‐ESPII) (MS, 2014b). 3.3 A autenticidade, a confiabilidade e a natureza do texto O PC-­‐DVE publicado pela SVS/MS é um texto de domínio público de natureza técnica, disponível no site do MS (http://portalsaude.saude.gov.br). A construção dos conceitos, determinações e medidas descritas nos protocolos, fluxogramas, consolidados e Nota Técnica estão de acordo com fontes da OMS e da ANVISA. Durante a elaboração deste estudo, o PC-­‐DVE estava na 13ª versão; porém, ao concluir as análises este documento já se encontrava em sua 16ª versão, com atualização datada de 02/12/2015. 3.4 Os conceitos-­‐chave e a estrutura interna do texto O conteúdo apresentado no PC-­‐DVE é resultado de estudos anteriores, contínuos e em construção. O compilado de materiais apresentados sob a forma de protocolos, fluxogramas, consolidados e uma nota técnica, teve a finalidade de orientar as ações específicas frente a uma eventual introdução do vírus Ebola no território nacional. Os conceitos-­‐chave abordados nos documentos se referem a medidas do biossegurança para os profisisonais da saúde, como orientações para utilização de Equipamentos de Proteção Individual e precaução e controle a serem adotadas na assistência a pacientes suspeitos de infecção por Ebola. Outro conceito-­‐chave diz respeito a informações sobre a DVE como orientações para identificação de caso suspeito, provável ou confirmado de DVE e monitoração dos contactantes, bem como definição de caso suspeito, provável, confirmado, descartado, contactante ou comunicante. Ainda, orientações para Manejo de Pacientes com Suspeita da Febre do Ebola; orientação sobre atendimento inicial, atendimento no Hospital de Referência Estadual, continuidade do atendimento do caso suspeito no Hospital de Referência Nacional e remoção de pacientes. Também conceito-­‐chave sobre a investigação epidemiológica da DVE, detecção, notificação e registro de caso suspeito de Ebola. No conjunto dos documentos, os protocolos abrangeram a gestão da situação num eventual caso suspeito de Ebola em atendimento nas organizações de saúde. Os protocolos constituem o registro de atos oficiais, negociados e pactuados entre gestores e trabalhadores nas esferas federal, estaduais e municipais. Descrevem uma situação específica, contendo detalhes operacionais e especificações a 177 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 respeito de o que fazer; quem faz e como fazer, constituindo uma ferramenta norteadora para os profissionais nas decisões do processo de trabalho (Ministério da Saúde, 2009). Os fluxogramas indicaram os passos da operacionalização de cada etapa no sentido de prevenir a contaminação e promover atendimento de modo seguro ao profissional e paciente (MS, 2014b). A representação gráfica das etapas de trabalho, constituída por um fluxograma descritor, apresenta esquematicamente a sequência das atividades, fases, operações e agentes executores (Pêssoa et al., 2011). Nesse sentido, os fluxogramas orientaram de forma gráfica e minuciosa as ações programadas, consistindo em um guia prático para os profissionais. Os consolidados, por sua vez, forneceram uma visão da situação de forma atualizada. São constituídos de dados coletados dos sistemas de informações e das investigações epidemiológicas, ordenados de acordo com as características de pessoa, lugar e tempo em tabelas, gráficos, mapas da área em estudo, etc (Fundação Nacional de Saúde [FUNASA], 2002). Por fim, a Nota Técnica, apresentou dados e análises relevantes do ponto de vista administrativo, técnico-­‐científico ou jurídico. Constitui um documento em que é feito a exposição de um assunto e tem a finalidade de analisar, constatar e expor tecnicamente determinado assunto e, quando for necessário, propor solução e/ou encaminhamento a ele pertinente. Pode dirigir-­‐se à comunidade da SVS e do MS, mas também à imprensa ou ao público em geral (Ministério da Saúde, 2014c). 5 Análise e Discussão Para analisar este movimento produzido na preparação e resposta do Brasil frente ao vírus Ebola, utilizou-­‐se o ciclo do conhecimento que reúne três processos contínuos sobre o uso da informação para subsidiar a tomada de decisão. Embora estes processos aconteçam em momentos definidos, os três podem ocorrer simultaneamente em uma dinâmica contínua de interpretar, converter e analisar a informação. No primeiro momento, na criação de significado, as mudanças advindas do aumento do registro de casos de pacientes infectados pelo vírus Ebola na África foram interpretadas. A ameaça da possibilidade de contaminação global provocou alterações no contexto epidemiológico, fazendo com que as equipes da VE buscassem entender os fatos e fenômenos que ocorreram nesta nova realidade. Concomitantemente, foram inferidas interpretações e análises a estas mudanças identificadas. Estudos realizados na África mostraram que essas mudanças podem estar relacionadas ao contexto sociocultural, associadas ao descrédito da comunidade com relação à alta letalidade por vírus Ebola, gerando suspeitas e resistências a procurar os serviços de saúde, elevando a ocorrência do número de casos. Somaram-­‐se, a esse contexto africano, as greves dos profissionais de saúde relativas à inadequação de vestimenta para o contato com os doentes, associadas aos óbitos de colegas de trabalho (Lopes & Dunda, 2015; Forrester et al., 2014; Phua, 2015). A atividade da VE nesse processo se deu em perguntar o que e por que aquilo acontecia e o que significou aquela informação. Para isso, utilizou documentos que tratavam de aspectos sobre a DVE, como consolidados atualizados sobre o número de casos confirmados, histórico do vírus no mundo, bem como a situação atual da transmissão do vírus e relatórios sobre as informações do processo de investigação epidemiológica. O surto de 2014 representou o primeiro de DVE na África Ocidental, atingindo cinco países (Guiné, Libéria, Nigéria, Serra Leoa e Senegal), com casos também detectados na Espanha e nos Estados Unidos (Lopes & Dunda, 2015; Dixon & Schafer, 2015). Em setembro de 2014, foi anunciado um caso diagnosticado de DVE no Texas, de uma pessoa proveniente de um país Ebola-­‐afetado, reforçando a necessidade de outras capitais iniciarem a preparação local para o enfrentamento do vírus (Benowitz et al., 2014; Musa et al., 2015). 178 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Estudos anteriores a 2014 também serviram de base para responder aos questionamentos das equipes brasileiras, pois tratavam de pesquisas sobre replicação, patogenicidade e transmissão do Ebola em suínos, vacinas experimentais para DVE em roedores, assim como a capacidade de resposta imune em sobreviventes do Ebola (Kobinger et al., 2011; Ebihara et al., 2013; Sobarzo et al., 2013). Este processo de monitoramento da apresentação do vírus, possíveis mudanças da doença e países em que esta foi identificada, caracterizou a constante atualização e atenção às mudanças externas. O resultado deste processo de criação de significado foi uma interpretação das mudanças ocorridas na realidade local, fruto de análises e discussões coletivas, base para a elaboração do PC-­‐DVE. Simultaneamente à criação de significado, no segundo momento, denominado de construção do conhecimento, a informação da nova realidade foi convertida em conhecimento, ou seja, houve a conversão da informação, por meio da partilha dos conhecimentos entre os indivíduos envolvidos. A construção do conhecimento parte de uma lacuna no conhecimento dos indivíduos. Há a necessidade de criar novos conhecimentos para a resolução de um problema. No caso do enfrentamento e preparação à ameaça de introdução do vírus Ebola no Brasil, o objetivo comum era a necessidade de saber como detectar precocemente casos suspeitos de infecção pelo Ebola, evitar a disseminação do vírus e a contaminação de profissionais. Para o alcance deste objetivo foi necessária a sinergia entre o conhecimento tácito e o explícito dos indivíduos envolvidos através de um processo social capaz de criar novos conhecimentos por meio da conversão destes conhecimentos tácitos em explícitos. A conversão desses conhecimentos se deu por meio de um ciclo contínuo que tem como componentes a socialização, a exteriorização, a combinação e a internalização. Assim, as equipes responsáveis pelo enfrentamento do Ebola no Brasil adquiriram conhecimento tácito partilhando experiências com outras instituições e/ou órgãos governamentais por meio do processo de socialização. Além disso, esses conhecimentos tácitos foram traduzidos, num processo de exteriorização, em conceitos explícitos por meio de protocolos com definições sobre a DVE, conceitos de caso suspeito, caso provável, caso confirmado, contactante e comunicante, assim como orientações para manejo de pacientes com suspeita de febre do Ebola. A equipe de VE construiu novos conhecimentos explícitos com base nos conceitos construídos anteriormente (combinação), explicitados na realização de reuniões e de capacitações das equipes nas organizações de saúde. A criação de protocolos e fluxogramas levaram, aparentemente, à incorporação de tais conhecimentos como tácitos, ou seja, internalizados na forma de rotinas de trabalho comum. Um exemplo de construção do conhecimento pode ser retratado pelo manejo do surto endêmico que ocorreu na República Democrática do Congo, com 69 casos relatados, de julho a outubro de 2014. A compreensão da dinâmica de transmissão durante o surto propiciou informações importantes para antecipar e controlar epidemias futuras de DVE, contribuindo assim para descrições epidemiológicas mais consistentes, com a noção de que uma rápida implementação das intervenções de controle reduz a propagação da doença (Althaus, 2015). Por outro lado, um estudo realizado com profissionais de saúde na Nigéria revelou lacunas no conhecimento para o controle da infecção, evidenciando que as práticas sobre a preparação para emergências, controle e gerenciamento da DVE precisavam ser melhoradas (Olowookere et al., 2015). O investimento em capacitações e o detalhamento das estratégias em protocolos e fluxogramas direcionam as ações de forma a oferecer maior segurança para o profissional no atendimento dos casos de infecção pelo vírus. Um estudo realizado sobre o uso dos EPI ressaltou que, embora haja risco elevado de transmissão viral, é possível evitar a contaminação priorizando o uso correto e o contínuo aperfeiçoamento das estratégias de proteção, assim como treinamento das equipes (Fischer, Weber, & Wohl, 2015). Assim como a capacitação profissional, o investimento em informação e comunicação política e midiática é essencial para a contenção de um surto. O conhecimento das pessoas em relação ao Ebola 179 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 foi avaliado em estudo realizado nos Estados Unidos, cujos resultados evidenciaram que a maioria dos participantes sabia que Ebola pode ser transmitido pelo contato com sangue e fluidos corporais e que haveria a necessidade de quarentena obrigatória com proibições de viagens. Em relação à capacidade da mídia e do governo para relatar com precisão ou prevenir uma epidemia nos EUA foi baixa. Percebeu-­‐se, nesse estudo, que a maioria das ações dos governos centrava-­‐se em comportamentos para evitar as políticas de transporte (Kelly et al., 2015). Com relação aos quatro componentes de construção do conhecimento -­‐ socialização, exteriorização, combinação e internalização (Choo, 2008), e a partir dos resultados deste estudo e da literatura consultada, é possível inferir que esses processos se retroalimentaram em uma espiral contínua, em âmbito organizacional da VE. Tais processos se efetivam por meio de reuniões, definição de conceitos, resoluções de problemas em grupos, experimentos e a formação de alianças com outras organizações para compartilhamento das informações. Esta espiral também pode ser visualizada com a troca de informações entre os governos e demais organizações envolvidas com a epidemia de Ebola, incluindo a OMS, provedora financeira. Esta ação coletiva aumentou a chance de contenção da doença, visto que a participação de países, vítimas ou não da epidemia, operando conjuntamente em vários níveis de atuação, interrompeu o alastramento da doença tanto dentro da própria região contaminada, quanto fora dela (Lopes & Dunda, 2015). O ciclo do conhecimento se completa com a tomada de decisão. Nesse sentido, os dados deste estudo mostram que depois da criação de significados e construção de conhecimentos voltados para a ação, a equipe da VE definiu, entre várias opções, as melhores estratégias que seriam adotadas para o enfrentamento do vírus Ebola, caracterizando o momento da tomada de decisão. O produto de análises e decisões da equipe de VE levou à definição de ações e estratégias que se materializaram no PC-­‐ DVE. Diante do avanço da epidemia no oeste africano, a OMS publicou o plano de ação, mobilizando países atingidos, países vizinhos e a comunidade internacional na tentativa de contê-­‐la. Foram instituídas várias ações em distintos níveis de atuação. No nível local realizou-­‐se logística para prevenção, diagnóstico e tratamento da doença; monitoramento do deslocamento de pessoas para outras cidades. Em abrangência nacional houve o estabelecimento de um centro de coordenação para questões logísticas, tais como compartilhamento de informações e uso de equipamentos pelo pessoal da área de saúde, finanças e fronteiras. Em âmbito internacional propôs-­‐se o compartilhamento de informação entre países e por meio de instituições, como OMS, Nações Unidas, ONGs, captação de recursos financeiros e cooperação na área de vacinas e medicamentos testados contra o vírus (OMS, 2014). Ainda com relação ao processo de enfrentamento, outro produto resultante das discussões e análises esteve relacionado ao incentivo à pesquisa para a descoberta de vacina ou medicamento. Esta medida envolveu vários países, entre eles, Canadá, Inglaterra e Estados Unidos, tendo este último produzido a droga ZMapp, a única testada na epidemia de 2014 (Ajelli et al., 2015). No Brasil, a construção do PC-­‐DVE, e todo o conhecimento empregado, demonstraram o potencial das equipes na busca da melhor decisão para a redução e controle dos casos de DVE, proteção dos profissionais e atendimento às pessoas infectadas. A organização do MS reflete-­‐se na organização internacional, que em constante atuação, esteve sempre à procura da melhor estratégia no combate a DVE (OMS, 2015; Lopes & Dunda, 2015). A dinâmica do ciclo do conhecimento se manifesta por meio das novas informações sobre a DVE que alteram o cenário epidemiológico, foco central das ações e estratégias do PC-­‐DVE. As mudanças ocorridas desde a primeira detecção do vírus em 1976 e que vem acontecendo ao longo da história, caracteriza a constante transformação do ambiente. Comprovando esta afirmativa, temos as 15 versões do PC-­‐ DVE. 180 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 A VE tem por identidade a vigilância constante das doenças que permeiam a comunidade, bem como propor as medidas de controle pertinentes e em tempo oportuno. Portanto, a DVE como produtora contínua de informações e a VE como organização de constante atenção as mudanças do ambiente, permite identificar nos protocolos, fluxogramas, consolidados e nota técnica que foram formando o PC e sendo adequadas e revistas nas versões publicadas, as características dos elementos do ciclo do conhecimento. 5 Conclusões Em uma emergência em saúde pública, como o Ebola, pôde-­‐se constatar que os três processos do ciclo do conhecimento estão presentes, tanto na preparação como na resposta a ser produzida. Este processo revelou uma linha geral de desenvolvimento deste ciclo, com o reconhecimento e o diagnóstico do problema, construção de alternativas de soluções e decisão da melhor estratégia a seguir, a cada nova mudança no ambiente. Considerando a DVE como uma doença que gera mudança no ambiente e a VE como uma organização que interpreta e institui ações para estas mudanças, o ciclo do conhecimento pôde ser identificado neste movimento de criação de significado, construção de conhecimentos e tomadas de decisões. As ações organizacionais tomadas geram novas mudanças no ambiente, produzindo novas correntes de experiências, às quais a organização terá de se adaptar, gerando assim um novo ciclo. A informação assume a magnitude de mudar e nortear as situações, estratégias e decisões. O trabalho das equipes da VE efetivado no PC-­‐DVE na preparação e resposta da emergência do Ebola contém as múltiplas faces de um conjunto de conhecimento em forma de síntese nas ações instituídas e que permanentemente estão na posição de mudança. Adota, assim, no modo de operacionalizar a informação recebida, o ciclo de conhecimento. Este estudo se limita à análise da produção documental e à restrita vivência das pesquisadoras na aplicação prática do PC-­‐DVE, contada apenas em simulações. Contudo, ao relacionar os componentes do ciclo do conhecimento com o minucioso trabalho da VE, o estudo permitiu uma avaliação dos processos de construção do PC-­‐DVE, assim como da construção de outros planos para fazer frente às emergências de saúde pública, muitas vezes não percebidos pelos técnicos que os elaboram. Na ótica do ciclo do conhecimento, os documentos analisados contribuíram para aprofundamento do referencial teórico, demonstrando que este ciclo acontece nas organizações, de modo oculto, mas intrínseco na maneira como a área da saúde se organizou e conduziu a preparação e resposta a ameaça de introdução vírus Ebola no País. Recomenda-­‐se que outros estudos sejam realizados a fim de contribuir na melhoria das ações organizacionais. A tomada de consciência, pelos membros de uma organização, de que num processo está incluso o conhecimento, pode possibilitar um melhor preparo em uma nova situação de emergência. Referências Ajelli, M., Parlamento, S., Bome, D., Kebbi, A., Atzori, A., Frasson, C., … Merler, S. (2015). The 2014 Ebola virus disease outbreak in Pujehun, Sierra Leone: epidemiology and impact of interventions. BMC Medicine, 13, 281. doi: 10.1186/s12916-­‐015-­‐0524-­‐z. Althaus, C.L. (2015). 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