Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 CONHECIMENTO CIENTÍFICO E ESCOLAR NO ENSINO DE ECOLOGIA: A DUALIDADE ENTRE PARADIGMAS ECOLÓGICOS EM UM LIVRO DIDÁTICO Rodrigo Mendonça dos Santos (Universidade Federal Fluminense); Sandra Lúcia Escovedo Selles (Universidade Federal Fluminense); Mariana Lima Vilela (Universidade Federal Fluminense). Resumo Este trabalho analisa o livro didático “Biologia – Biologia das Populações”, de José Mariano Amabis e Gilberto Rodrigues Martho, sua organização e conteúdo, focalizando o conhecimento escolar ecológico em um de seus capítulos. Considerando a dualidade existente na Ecologia, entre os paradigmas da ecologia de populações e a ecologia de ecossistemas, a análise mostra que o livro didático expressa diversos conflitos que ocorrem para seleção e organização de conteúdos e, também, a relação tensionada entre as disciplinas escolares e as disciplinas acadêmicas. Esta tensão foi evidenciada na dificuldade de integrar esses dois paradigmas ao se trabalhar o conhecimento ecológico escolar no livro didático de Biologia. Palavras-chave: currículo, ecologia, livro didático, ensino de biologia. Introdução Para este trabalho, estabelecemos uma problematização a partir do conceito de paradigma cunhado por Thomas Kuhn (2006), quando afirma que toda ciência possui um paradigma que não é apenas uma teoria, mas um sistema de valores e crenças que são interpretados e compartilhados entre membros de uma comunidade científica e que orienta grupos de cientistas dentro de um momento histórico. No sentido atribuído por este filósofo, um exemplo de paradigma é o conceito de ecossistema que, ao longo do tempo, se tornou padrão para o estudo da Ecologia (O’NEILL, 2001). No entanto, a definição desta ciência é diversa entre os próprios ecólogos de maneira que os que possuem as populações biológicas como objeto de estudo enfatizam os organismos (perspectiva populacional) e os ecólogos de ecossistemas destacam as relações energéticas dos diversos compartimentos do ambiente, implicando na definição de uma perspectiva mais ecossistêmica (PINTO e TAUCHEN, 2011). A pesquisa ora relatada considera que a divergência dos ecólogos ao definir seu objeto de estudo estabelece uma dualidade, dentro da própria ciência Ecologia, entre os paradigmas de ecologia de populações e de ecologia de ecossistemas, como sugere Vieira (2003). Além 6619 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 de colaborar para a existência de diferentes definições de Ecologia, essa dualidade pode influenciar na elaboração de conceitos, nos modos de produção do conhecimento ecológico e na maneira como a Ecologia é divulgada socialmente, inclusive na escola. Baseando-se nessas reflexões, o presente trabalho assume como hipótese que essa dualidade de paradigmas se reflete nos conteúdos de Ecologia no contexto escolar e pode se expressar em livros didáticos. Apoiada em estudos do campo do currículo (GOODSON, 2013; LOPES 2007) e do saber escolar (FORQUIN, 1992) a pesquisa analisa possíveis tensões existentes entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar expressas na disciplina escolar Biologia e, em particular na seleção dos conteúdos de Ecologia no livro didático. Goodson (2013) compreende que as disciplinas escolares refletem os conflitos e embates que ocorrem entre os grupos sociais no processo de seleção de conteúdos. O autor afirma que estas disciplinas se formam pela disputa de finalidades acadêmicas - voltadas para fins universitários -, pedagógicas – relativas à aprendizagem – e utilitárias – referentes à interesses cotidianos das pessoas. Ao estudar a disciplina escolar Biologia, devemos considerar que ela está sujeita não apenas a influências das ciências de referência, ou acadêmicas, mas também a condicionantes sociais da própria esfera escolar. Portanto, o conhecimento escolar não é mera simplificação do conhecimento científico, mesmo que tenha se desenvolvido ao longo do tempo mantendo fortes relações com este, conforme afirma Lopes (2007). Para esta autora o conhecimento escolar é um conhecimento legítimo que possui especificidades e objetivos próprios do ambiente escolar, muitas vezes, distintos dos objetivos científicos. Isto encontra concordância em Forquin (1992), para quem reestruturar e reorganizar os saberes e materiais culturais existentes em uma sociedade em um dado momento histórico é essencial para que estes se tornem transmissíveis às próximas gerações. Tomando por base esse quadro teórico, o trabalha apresenta os resultados de uma pesquisa que analisa um livro didático de Biologia, focalizando a dualidade entre os paradigmas ecológicos, para discutir as tensões entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar ecológico. Desse modo, o trabalho objetiva evidenciar e analisar conflitos que ocorrem na seleção e organização de conteúdos referentes à Ecologia no livro didático “Biologia das Populações”. A análise baseia-se nos questionamentos levantado por Vieira (2003) quanto à coexistência de dois paradigmas na ciência Ecologia – populações e ecossistemas – e nas tensões existentes entre o conhecimento científico e o escolar (LOPES, 2007). É importante destacar que ao 6620 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 analisar o livro didático, este trabalho não tem como intenção apontar divergências conceituais entre o conteúdo apresentado no livro didático e a ciência de referência, nesse caso a Ecologia. Metodologia A escolha recaiu sobre o livro “Biologia das Populações” (Projeto Moderna Plus, edição 2009 da Editora Moderna), de José Mariano Amabis e Gilberto Rodrigues Martho. A opção deste livro como fonte de pesquisa baseou-se em alguns critérios: na ampla presença das obras desses autores nas escolas; na grande quantidade de edições produzidas por estes autores, o que confere legitimidade devido à permanência entre os livros produzidos no país; a coexistência de uma coleção seriada destes autores indicada pelo PNLEM – MEC 2009; e na disponibilidade do material para análise. Para identificar as duas perspectivas (ecossistêmica e populacional) durante toda a unidade Ecologia, o sumário desta unidade foi analisado em busca de termos que representassem cada uma delas. Por um lado, termos relacionados à ecologia de ecossistemas como cadeia alimentar, níveis tróficos, ecossistema e bioma, identificavam capítulos que abordam em seu interior a perspectiva ecossistêmica. Por outro lado, termos relacionados à ecologia de populações como comunidades, populações, relações ecológicas identificavam capítulos em que a perspectiva populacional está presente. Ademais, o capítulo de Relações Ecológicas foi analisado detalhadamente e procurou-se identificar se o tema era tratado considerando apenas os organismos individualmente, ou se abordava também o papel destes e suas interações nos diversos compartimentos do ambiente, bem como sua influência nos fluxos de energia. Resultados e Discussão A análise do sumário mostrou que a unidade Ecologia é organizada de modo que os conteúdos variem desde temas mais específicos, relacionados principalmente a conceitos fundamentais e processos biológicos, a temas mais amplos, relacionados à organização do ambiente e da sociedade, como se observa no Quadro I. Organização semelhante já foi identificada em coleções das décadas de 1980 e 1990, de Amabis e Martho, o que indica uma manutenção de um padrão na organização dos conteúdos ao longo das edições (VASCONCELOS e GOMES, 2011). 6621 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Quadro I. Sumário Resumido da Unidade de Ecologia. Biologia das Capítulos Populações 13 – Fundamentos da 16 – Relações ecológicas entre seres Ecologia vivos Unidade C- 14 – Energia e matéria nos 17 – Sucessão ecológica e principais Ecologia ecossistemas biomas do mundo 15 – Dinâmica das populações biológicas 18 – Humanidade e ambiente Ao observar o sumário detalhado do capítulo 13 (Figura 1), que introduz os “Fundamentos da Ecologia”, é possível notar que tanto as populações quanto os ecossistemas são apontados como conceitos básicos da Ecologia, mas na sequência do capítulo existe uma seção que aborda exclusivamente cadeias e teias alimentares, introduzindo a definição de nível trófico. Esta seção, que conclui o capítulo de Fundamentos da Ecologia, pode ser compreendida como uma estratégia pedagógica utilizada para preparar o aluno para o capítulo seguinte – Energia e Matéria nos Ecossistemas - que apresenta os fluxos de energias, níveis tróficos e os ciclos biogeoquímicos. No entanto, a presença de conceitos como cadeias, teias alimentares e níveis tróficos em um capítulo chamado “Fundamentos da Ecologia” reforça, neste capítulo, o privilégio dado à perspectiva ecossistêmica para o estudo da Ecologia, uma vez que esses conceitos se relacionam diretamente a temas como fluxo de energia, pirâmides ecológicas e produtividade. Concomitantemente, apenas uma página do capítulo aborda as populações biológicas, sugerindo que os fundamentos ecológicos são predominantemente filiados à perspectiva ecossistêmica. 6622 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Figura 1. Sumário Detalhado do Capítulo 13, Fundamentos da Ecologia. Na sequência, o sumário sugere que o capítulo 14 refere-se especificamente à ecologia de ecossistemas, abordando os fluxos de energia, níveis tróficos e ciclos biogeoquímicos, enquanto os capítulos 15 e 16 referem-se especificamente à ecologia de populações, nos quais serão introduzidos os fatores que regulam as populações biológicas e as relações ecológicas como se observa na figura 2. 6623 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Figura 2. Sumário Detalhado do Capítulo 14, 15 e 16. 6624 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 O capítulo 17 - Sucessão ecológica e principais biomas do mundo - é o maior da unidade Ecologia e evidencia uma grande predominância da perspectiva ecossistêmica. Como é possível observar na figura 3, a primeira seção que aborda a sucessão ecológica e a evolução das comunidades biológicas durante a sucessão ocupam apenas duas páginas do capítulo. Ao mesmo tempo, todas as seções seguintes se referem ao ecossistema: Fatores que afetam a evolução dos ecossistemas; Grandes biomas do mundo, Domínio morfoclimáticos e principais biomas brasileiros; e Ecossistemas aquáticos. Figura 3. Sumário Detalhado do Capítulo 17. O último capítulo da unidade (figura 4), “Humanidade e ambiente”, destaca na segunda seção a interferência humana nos ecossistemas. É interessante notar que mesmo tratando da extinção de populações biológicas o título da seção menciona apenas o ecossistema. Dessa maneira, a organização da seção ao mesmo tempo em que evidencia uma maior valorização dos ecossistemas, parece sugerir uma hierarquia entre as duas perspectivas. 6625 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Figura 4. Sumário Detalhado do Capítulo 18. A análise mais detalhada de todo sumário da unidade Ecologia permite identificar, então, que a unidade concede maior espaço à perspectiva ecossistêmica do que à perspectiva populacional. A perspectiva ecossistêmica parece ser predominante na maioria dos capítulos da unidade. Este desequilíbrio de abordagens entre estas perspectivas já foi obsevada em alguns livros didáticos como sugere Vieira (2003). A análise do capítulo “Relações Ecológicas” evidencia a falta de integração entre os paradigmas dentro do capítulo. É possível perceber que, durante o capítulo de Relações Ecológicas, as explicações se referem sempre ao nível dos indivíduos. Mesmo conceitos da própria ecologia de populações só aparecem em uma das relações apresentadas – predação -, no trecho destacado abaixo: [...] Do ponto de vista individual, as espécies predadoras beneficiamse, enquanto as presas são prejudicadas. Do ponto de vista ecológico, a predação regula a densidade populacional, tanto das presas como de predadores. A estreita correlação observada entre as flutuações no tamanho das populações de predadores e as das presas é da maior importância para a sobrevivência de ambas [...] (AMABIS e MARTHO, 2009, pág. 399) Em nenhum momento identifica-se uma tentativa de associar as relações ecológicas com os fluxos de energia que ocorrem no ambiente, ou como essas relações influenciam no ecossistema de forma mais ampla. Essa abordagem dicotomizada evidencia a ausência de diálogo entre os paradigmas dentro do capítulo. 6626 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Dessa forma, a maior predominância do paradigma ecossistêmico durante a unidade de Ecologia, evidenciada através da análise do sumário, e a falta de integração entre as duas perspectivas ecológicas dentro do capítulo de Relações Ecológicas pode ser entendida como um reflexo do modo como a ciência Ecologia se estrutura, sem utilizá-las de forma plenamente integrada (O’NEILL, 2001). Considerando que o conhecimento escolar é influenciado por diversos condicionantes sociais (GOODSON, 2013; LOPES, 2007) e passa por diversos processos de transformação até que seja transmissível aos alunos (FORQUIN, 1991) cabe indagar se a desintegração entre os paradigmas nos capítulos analisados seria uma estratégia pedagógica para tornar os conteúdos mais compreensíveis para os estudantes. Ao mesmo tempo, sabe-se que o conhecimento escolar mantém fortes relações com o conhecimento científico, uma vez que este é legitimado pela ciência e por suas finalidades econômicas (LOPES, 2007) e, também, porque as disciplinas escolares historicamente se consolidam ao se aproximarem das disciplinas acadêmicas (GOODSON, 1983). Conclusões O estudo identifica o desequilíbrio na abordagem de dois paradigmas, visto que não são utilizados de forma plenamente integradas. Considerando que a dualidade entre as ecologias está representada, de modo tensionado no contexto acadêmico, vemos que a abordagem do livro didático de Biologia não problematiza essa dualidade. O privilégio da ecologia de ecossistemas nesse material - transversal em quase toda a unidade Ecologia – sugere o quanto conflitos epistemológicos e disputas na comunidade de biólogos são silenciados no interior da disciplina escolar (SELLES e FERREIRA, 2005). Considerando ainda que o conhecimento escolar não é pura simplificação do conhecimento científico (LOPES, 2007), abordar a Ecologia sem integrar esses dois paradigmas pode ser uma opção orientada por finalidades pedagógicas. Sugere-se que a complexidade das bases teóricas e metodológicas envolvidas na dualidade entre as ecologias dificultaria sua abordagem no contexto escolar. A opção pela ecologia de ecossistemas poderia tornar o conhecimento ecológico mais compreensível para os estudantes, pois esta enfatiza conceitos, tais como fluxo de energia, cadeia alimentar, etc., enquanto a ecologia de populações está intimamente relacionada à Biologia evolutiva. Esta, por sua vez, associa a Biologia a diversas outras áreas do saber (FUTUYAMA, 2001), demandando conhecimentos mais profundos não apenas em Ciências Biológicas, como também em Geologia e Matemática, entre outras (TIDON e LEWONTIN, 2004). 6627 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Referências Bibliográficas AMABIS, J. M.; MARTHO, G. Biologia: Biologia das Populações. 1ª ed. Moderna, 810 p. 2009. FORQUIN, J. C. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria e educação, n. 5, p. 28-49, 1992. FUTUYMA, D. J., MEAGHER, T. R. 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