O algebrista Al-Khwārizmī Miriam Abduche Kaiuca Doutora HCTE/UFRJ [email protected] Ricardo Silva Kubrusly Prof. Titular HCTE/UFRJ [email protected] RESUMO O algebrista Al-Khwārizmī foi um estudioso matemático que alargou gradativamente limites na área do conhecimento científico árabe no século IX e em especial, na Álgebra, que se inventa como um processo de construção de abstração crescente. A história da Álgebra está intimamente ligada ao desenvolvimento de todas as áreas da cultura árabe, muitas vezes motivadas por campos tão diversos como lexicografia, criptografia, filosofia e arte, e que ajudaram a determinar abordagens matemáticas com conceitos filosóficos abrangentes no século IX. Palavras-chave: Álgebra; filosofia; ciências humanas Alma súbita sonho de estrelas viajandeiras de infinito Versos para além dos números feitos com os esmeros das letras que desenho da paciência que só histórias intermináveis propiciam Álgebra que o meu destino seja as equações que inventas por essa historia sem fim que nos contempla Retroativamente, apresentamos al-Khwārizmī, como ele foi. Ao aprofundar os estudos na cultura árabe verificamos como ela era impregnada de matemática: em suas músicas, seus desenhos de decoração, especialmente feitos em mesquitas, que na sua maioria, baseavam-se em cálculos matemáticos. Percebemos também como a religião islâmica convivia no dia a dia com os mais avançados pensadores e os influenciava e os motivava para obter conhecimentos. A figura de Alá e seus preceitos estão sempre presentes, conduzindo-os, tal qual uma invisível mão, dirigindo-os para caminhos onde significados têm lugar nos signos nascentes, onde o “Uno, a Coisa, o Múltiplo em Um”, chamado de Allah, conduz ao caminho certo. O Livro do Universo, o Alcorão ou Corão, determinava que a busca pelo conhecimento fosse um ato divino. Pode-se perceber a importância atribuída ao conhecimento: "O mundo é sustentado por quatro pilares: a sabedoria do instruído, a justiça do grande, as orações dos virtuosos, e o valor do bravo." (LE BON, 2000). Além dos aspectos religiosos, as interferências histórico-culturais apontam para que o surgimento da Álgebra não fosse uma mera causalidade de estudos matemáticos. Não aparecem descobertas, mas invenções, resultados fruto de procedimentos envolvidos de dizeres às necessidades individuais ou coletivas. Não se transporta saberes de uma cultura para outra, ou de uma região para outra, mas responde-se à expectativas e desejos de um grupo social em que aquela pesquisa está sendo gestada. Aqui, defrontamo-nos com a figura extraordinária do califa al-Ma’mun. Herdeiro e monarca, que por força de uma disputa com seu irmão, vem a ser o Califa da região da Grande Síria. Ele seria, sem dúvida, um homem da renascença, apesar de ter vivido 800 anos antes da mesma, pois passa a incentivar a propagação da cultura através do mecenato cuja Casa da Sabedoria é o melhor exemplo. Incentivava os seus pensadores a escrever e publicar suas ideias através de livros que os árabes já produziam a partir da produção de papiros que vieram da China e da Índia. A visão de al-Ma’mun é extraordinária, uma vez que a Europa, a esta época, vivia um período de obscurantismo conhecido como Idade Média, que mantinha fechada a quatro paredes, nos monastérios copistas, todo o conhecimento que dispunham para uso restrito da Igreja Católica, naquela ocasião, detentora de todo o cabedal de conhecimento científico e social. Esse fato é abordado no livro O Nome da Rosa de Umberto Eco. Vivia-se uma cultura impregnada pela cientificidade e pela religiosidade. Na Casa da Sabedoria despontaram grandes matemáticos, num período entre os séculos VIII e XII, tais como Abu Ryan al-Biruni, que desenvolveu estudos astronômicos e geográficos; Ibn al Hayzam, que se dedicou aos estudos de ótica, ‘Abd-al-Hamid ibn-Turk que desenvolveu estudos em equações quadráticas; Thabit ibn-Qurra um pouco mais adiante no tempo desenvolve uma matemática superior e, por fim, Abul Wefa, que veio a sistematizar a trigonometria. Já bem mais tarde, Al-Karkhi desenvolve soluções para algumas equações que tornar-se-iam a base da matemática da Renascença e por fim, o mais conhecido de todos, o poeta Omar Khayyam que se destaca em vários campos do pensamento. Havia, também, estudos desenvolvidos por outros pensadores, sobre os numerais; teoria dos números e da contagem; geometria; trigonometria plana e esférica concomitante com o estudo da Álgebra. No caso da Álgebra, não foi por mero acaso que ela surgiu em meio a determinados condicionamentos histórico-culturais à época do califado abássida (que - ao contrário dos califas Omíadas - pretendiam aplicar rigorosamente a lei religiosa à vida quotidiana), no seio da "Casa da Sabedoria" (Bayt al-Hikma), de Bagdá, patrocinada pelo califa Al-Ma'mun, (Califa de 813 a 833), de orientação teológica mu'atazilita. É um conhecimento científico – ilm - gestado em língua árabe, utilizando uma linguagem descritiva, para operações algébricas, baseada nas características da língua árabe que se diferencia da língua grega, durante o século VIII. Assim, ao pensar que na al-jabr e al-muqabalah pode-se atrelar um estudo científico onde os estudiosos estavam se desvinculando daqueles manuscritos gregos e procurando uma identidade árabe que se diferenciasse da Geometria grega. Não eram uma causalidade os estudos da Casa da Sabedoria, mas um apelo às exigências sociais e culturais, que segundo Sedillot (1951), cuja autoridade no assunto é incontestável, caracteriza a Escola de Bagdá da seguinte forma: É o espírito verdadeiramente científico que governa todos os seus trabalhos: prosseguir do conhecido ao desconhecido, observar fenômenos acuradamente de modo a deduzir causas de efeitos, aceitar ou não como fato o que havia sido provado por experimentos, estes eram os preceitos ensinados pelos mestres. Os árabes do século IX estiveram em poder de um rico método científico que muito tempo depois, nas mãos de cientistas modernos, concorreu para suas maiores descobertas. Provavelmente, outros pensadores contemporâneos à al-Khwārizmī, dado ao nível de sofisticação em que se encontravam, poderiam desenvolver este conhecimento, mas o fato é que foi al-Khwārizmī quem primeiro enunciou os princípios da Álgebra. Abu Abdullah Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmī, instado pelo califa al-Ma’mun na Casa da Sabedoria, em Bagdá começa a desenvolver um método absolutamente original de olhar os dilemas sociais e científicos e tentar facilitar essa tarefa que era extremamente difícil e complicada. Eram os cálculos matemáticos para resolver heranças, divisões de terra e outros problemas jurídicos. Muhammad Ibn Musa al-Khwārizmī era um religioso convicto e quando na "Casa da Sabedoria", dedica seu livro Al-Kitab al-mukhta-sar fy hisab al-jabr wa al-muqabalah ("Livro breve para o cálculo da jabr e da muqabalah"), o trabalho do fundador da Álgebra, ao califa Al’Ma’mun. Ao escrever o livro não só nomeia uma nova forma de pensar um conhecimento científico, mas também abre os caminhos para outros matemáticos e para enriquecimento da forma de fazer matemática. (ABDOMASSIH, 1971). O legado islâmico nas ciências e, em particular, a linguagem de Abu Abdullah Muhammad Ibn Musa al-Khwārizmī era fruto da cultura do século VIII, eram métodos linguísticos de cálculo e cálculos jurídicos que viriam a facilitar as sentenças dos juízes imbuídos da Fé Islâmica porque toda e qualquer decisão era feita à luz dos livros do Alcorão. Os estudos de al-Khwārizmī chegaram até aos cálculos relacionados com testamentos e partilhas que eram tão presentes naquele mundo do Oriente Médio. Conjugado a essa dinâmica surge à exigência de que o califa de al’Ma’mun em que alKhwārizmī compusesse um livro no qual o objetivo explícito era escrever a nova ciência de forma que o texto fosse “conciso” (Mukhatsar) e “inclusivo” (Hasir) e de conteúdo necessário. Esses dois qualificadores implicavam e sugeriam uma referência aos níveis requeridos de textos literários e eles se aplicam ao estilo de escrever. (RASHED, 1994). Nossa hipótese, nesse trabalho, é que ambos os termos tinham um caráter democrático e socializador para que todos pudessem compreender, pois eram para serem lidos pelas diversas camadas sociais da época. Isto representa salientar que naquele momento histórico havia uma intencionalidade, por parte do Califa Al’Ma'mun de expandir novos conhecimentos à sociedade da época por meio da formação de um dicionário pelos lexicográficos e pela organização jurídica. Era mais uma vez a representação da complementaridade dos conhecimentos matemáticos com a língua materna árabe. Tomamos como interface das hipóteses que defendemos que durante a segunda metade do século VIII e na primeira parte do século IX, deu-se a formação de um grupo inteiro de novas disciplinas das ciências humanas: lexicografia, morfologia, prosódia, criptografia, criptoanálises, etc, estudado e organizado por al – Khalil, criando um novo método. Ele defendia que a formação de uma classe de possíveis elementos a priori seria puramente formal, no sentido de que o significado dos elementos da classe fosse inteiramente relevante para formar palavras reais (palavras com significado). É nessa acepção que defendemos a necessidade de ler-se os acadêmicos daquele tempo, visto o uso que faziam das combinatórias como um tipo de cálculo (hisãb). A essa nova metodologia se atrelaria também uma nova epistemologia, a qual levava consigo uma noção de ciência diferente daquela transmitida pela tradição helenística. Essa epistemologia difere da filosofia ocidental e cristã. É impossível a compreensão da evolução dessa área do conhecimento sem a focalização do papel desempenhado pela filosofia árabe medieval. As correntes platônicas e aristotélicas, distanciam-se do pensamento filosófico e epistêmico árabe. A língua árabe com sua capacidade de intuição não lograva o realismo, mas apoiava-se no “Outro” marcado na própria expressão. A distinção do Outro, nasce da matéria, sendo a forma, ao contrário, comum a todos. Criava-se uma conceitualização de significantes e significados não somente para a percepção filosófica, mas também para dar conta dos aspectos de compreensão de formas de expressão. A língua sem contextualização implicava um campo simbólico como material. Isso representava dar uma forma de conceitualismo onde a primazia é aceita para a existência de unidades individuais linguísticas. Havia uma nova abordagem para o conhecimento científico e popular. Defendemos que esse novo conceito científico e seus objetivos dependeram do novo método que foi descrito pelas ciências das humanidades e foi similar ao do encontrado no livro de al-Khwārizmī. Esse novo método, mais tarde, penetrou em outras áreas da matemática, aparecendo não somente na Álgebra, mas também na geometria e na teoria dos números. Acreditamos que al-Khwārizmī, consciente ou não, adotou esse conceito derivado do seu tempo ou foi, fortemente, influenciado por ele. O significativo foi a presença desse conceito, que juntamente com seu método de acompanhamento são duas condições para a Álgebra ser possível. Realmente com a linguagem de especialista catedrático e, com influência das ciências humanas, al-Khwārizmī começa por desenvolver uma classificação a priori dos objetos de sua Álgebra, usando procedimentos combinatórios. Consideramos que alKhwārizmī necessitou de um conceito absolutamente formal para os termos que eram sujeitados a procedimentos combinatoriais, isto é, um conceito que era ontologicamente neutro. Seu conceito de “coisa” (shay) e do quadrado (mãl) de fato completam essa necessidade. A “coisa” (shay) pode muito bem ser um número ou o segmento de uma linha reta ou realmente qualquer outra magnitude. Os sucessores de al-Khwārizmī quer sejam matemáticos, quer sejam filósofos, tais como al-Farabi, entenderam esses conceitos perfeitamente. Tendo estabelecido esses conceitos, al-Khwārizmī introduz a ideia de igualdade às operações elementares de aritmética e finalmente, à combinação de três termos (zero, coisa, 2 quadrado: n, x, x , onde ‘número’ tem que ser tomado para significar o termo constante dado na equação). Dessa forma, ressaltamos nas considerações apresentadas que o desenvolvimento das disciplinas das ciências sociais e das humanidades e das conexões que essas disciplinas mantiveram com as “ciências dos antigos”, provocaram um efeito de modificar ideias sobre o todo no sistema de conhecimento e o que era necessário para um conhecimento apodeítico (conhecimento incontestável, porque é demonstrado e por isso é incontestável). (GANDZ, 1936) É importante apontar para o fato que naquele momento, na Casa da Sabedoria, estudava-se que as palavras da linguagem possível eram derivadas pela combinação e permutação das letras; as palavras da língua “verdadeira e real” são aquelas palavras da linguagem possível que obedecem às regras para uma compatibilidade fonética e que são de fato usadas. O lexicógrafo, em especial, al-Khalil, encarava a tarefa de trabalhar com uma neutralidade para, posteriormente, atribuir significado e sentido. Entretanto, nem todas as palavras que satisfazem essas condições de serem reais, eram necessariamente usadas. Nesse ponto o lexicográfico pede ajuda a etnolinguística sobre o conhecimento da literatura pré islâmica, da literatura do primeiro século, do Alcorão e daí por diante. Então, estudos de língua aparecem como um campo privilegiado tanto para a formulação desse novo cálculo, quanto para seu emprego. Esse fenômeno foi de certa forma, conectado com a história elementar da análise combinatória. A linguagem é de maneira clara, uma das áreas mais prontas e disponíveis que satisfazem à condição de ter um número finito de elementos discretos. Letras são entidades discretas e seu número é finito. ( RASHED;MORELON, 1996) Portanto vale ressaltar que foi neste período que um grupo de teóricos, entre eles os algebristas, percebeu que no estudo da lexicografia e criptografia havia “uma álgebra associativa”. Não sabemos ao certo se havia algum intercâmbio de ideias entre esses grupos teóricos ou se se desenvolveram por processos independentes. Acreditamos, porém, que estudos nas diversas áreas do conhecimento e da própria natureza física sim que existia entre essas correntes um ambiente de divulgação de novos saberes. Desta maneira, durante a segunda metade do século VIII e na primeira parte do século IX, tem-se a formação de um grupo inteiro de disciplinas – lexicografia, morfológica, prosódia, criptografia, criptoanálises, etc. – que utilizavam esse novo método. Esse novo conceito de conhecimento científico e seus objetivos dependeram de um novo método, e algo similar foi encontrado no livro de al-Khwārizmī. Como conclusão, entendemos que a Álgebra, de acordo com o material pesquisado, usou na sua ontologia, um objeto que buscava o indeterminado, a incógnita, a coisa1 e o desconhecido, termos ou palavras que não pertenciam às ciências naturais (ciências dos 1 Coisa era considerado um termo sagrado: Deus é a coisa das coisas, o nada do nada, a coisa do nada e o nada da coisa. antigos ou alternativamente ciências racionais – astronomia, matemática, filosofia, medicina, alquimia e outros) e que se constituiram, historicamente, para responder à perguntas sociais e culturais daquela época. O pensamento algébrico abriu a epistemologia da pergunta, fruto do pensamento alicerçado na intuição e na intenção que repercute da concepção da própria Álgebra: de um lado o desejo de perfurar o real, de obturar seus vazios e fatiá-lo com a lâmina do pensamento; e de outro lado o desejo de elevá-lo, de repuxar suas fronteiras para o alto, de inundá-lo com equilíbrio e inclusão. Assim, o algebrista al-Khwārizmī foi um sintetizador, na esperança de que na síntese (fusão dos contrários) se chegasse, enfim, ao desconhecido finalmente compreendido. Preenchimento vazios e desconhecido na busca de Deus (?) e, quem sabe, guiados por esse desconhecido, levados a pensar o funcionamento dos contrários, oferecendo, assim, um lugar por excelência do humano e da ausência de certezas onde cabem a ignorância, as dúvidas, a incógnita e o infinito. REFERÊNCIAS Al- FÄRÃBI, Yussef, Ihsâ ‘ al-‘ulûm, Ed. Uthmân Amin, Cairo, 1968. GANDZ, S, The sources of al-Khwārizmī 's algebra, Osiris, i . 1936. LE BON, Gustave. As opiniões e as crenças. Edição eletrônica:Ed. Ridendo Castigat Mores. 2000. RASHED, Roshdi. The development of Arabic mathematics : between arithmetic and algebra .London, 1994. RASHED, Roshid ;MORELON, Regis. Enciclopedia of the History of Arabic Science. Routledge 1996