UM CAMINHO JÁ COMEÇADO MAS AINDA NÃO ACABADO: A FÉ A FÉ PROFESSADA, CELEBRADA, VIVIDA E REZADA ABRIR A PORTA DA FÉ CREIO NA RESSURREIÇÃO DA CARNE E NA VIDA ETERNA QUINTAS-FEIRAS IGREJA PAROQUIAL 14 / DEZ 2012 A crença na ressurreição apareceu bastante tardiamente no pensamento bíblico, no clima de expectativa dum messias que viria a libertar o povo de Israel dos seus opressores: os seus ocupantes estrangeiros. Só a encontramos claramente formulada no século II a.C. Mas esta concepção do além situava-se na linha recta dum desenvolvimento progressivo do pensamento hebraico ao longo de dezoito séculos de meditação religiosa, desde a primeira «Revelação» do Deus Único a Abraão, meditação consignada ao longo de todos os livros do Antigo Testamento. […] Temos, pois, de supor que Deus recompensará os justos duma outra maneira. Será sem dúvida devolvendo-lhes uma plenitude de vida, sobretudo quando eles aceitaram sacrificar a sua própria existência para Lhe serem fiéis - como os partidários judeus revoltando-se, após os irmãos Macabeus, para expulsar o ocupante pagão e recusando-se, a custo da própria vida, sacrificarem aos ídolos. […] O profeta Daniel já exprimia esta esperança num texto escrito cerca de 165 a.C.: «Um grande número dos que dormem na terra empoeirada hão-de despertar, uns para a vida eterna, os outros para o opróbrio, para o horror eterno» (Dn. 12, 1-3). Mas para o judaísmo, ao contrário das religiões orientais, a vida nova e prometida não é a simples sobrevivência da alma: é a vida total. Trata-se dum dom de Deus, uma recompensa maravilhosa expressa com o vocabulário e as imagens do Reino prometido para o fim dos tempos: festim, núpcias, cidade nova. Haverá então um julgamento em que o Messias Rei separará os bons e os maus: «As ovelhas e os cabritos», repetirá Jesus. […] Estas palavras conservam-se muito perto dos escritos apocalípticos contemporâneos, mas representam o seu acabamento. Nesta perspectiva, «a ressurreição diz respeito tanto aos maus como aos bons. Vem na sequência da vinda do Messias, resolve o problema da retribuição, vem acompanhada por uma completa transformação das condições actuais. É uma vida nova. Os Evangelhos, sobretudo o de João, desenvolverão a ideia duma existência renovada, dando ao pensamento de Jesus a sua explicitação última. […] Qualquer termo linguístico recebe parte da sua significação do universo cultural onde é utilizado. Qualquer afirmação sobre o além, em particular, é tributária deste universo. Assim é com o conceito de «ressurreição». […] Ora, no pensamento judaico, o homem não é esse composto binário de alma e corpo separados, que o pensamento grego e sobretudo o cartesianismo nos habituaram, a nós Ocidentais, a conceber espontaneamente. Para o pensamento bíblico, o homem é uma totalidade. É como um todo que ele se manifesta (quando, por exemplo, Jesus «aparece»): ao mesmo tempo através do espírito, da alma e do corpo. Propriamente falando, o corpo não é distinto da alma. Aliás, em hebraico não existe palavra para designar o corpo enquanto separado da alma, pois os Hebreus não concebiam normalmente tal noção, faltando-lhes por isso a palavra correspondente. […] O corpo, no pensamento hebraico, é aquilo através do qual eu estou ligado aos outros homens e ao universo. Assim, depois da Sua morte Jesus manifesta-se aos Seus graças a um corpo, o seu corpo. Mas não se pode adiantar mais e sobretudo precisar qual a sua natureza. Só que a não podemos caraterizar pela simples materialidade. Pois não aparece ele numa sala cujas saídas estão todas fechadas? Não desaparece ele subitamente dos olhos das testemunhas? S. Paulo fala, então, de «corpo espiritual». A nossa dificuldade de Ocidentais em compreender esta linguagem depende, em parte, de termos sido formados numa outra visão das coisas: a do pensamento grego que, mais tarde, Descartes endureceu um pouco. Neste, o corpo e a alma são concebidos como duas realidades separadas, certamente complementares, mas estranhas uma à outra, ou mesmo hostis. Para o pensamento grego, a alma (que seria o verdadeiro eu) está como que prisioneira no corpo. A morte liberta-a e ela pode regressar ao mundo dos espíritos que é o seu verdadeiro mundo. Por isso, para um grego, a ressurreição do corpo é incompreensível: que prisioneiro aceitaria retomar a sua prisão? Os inteligentes espíritos dos ouvintes de Paulo no areópago de Atenas escandalizam-se quando ele se põe a falar da ressurreição dos mortos e riem-se dele. Ora, os cristãos ocidentais participam frequentemente de duas culturas: -a bíblica, pelo conteúdo da sua fé; -a grega, pela tradição ocidental. Na ressurreição, a pessoa humana total entra na eternidade de Deus. Esta dupla antropologia explica, em parte, a dificuldade humana em compreender o significado da expressão «ressurreição da carne» no Credo. Por vezes, imagina-se um esquema que utiliza sucessivamente as duas antropologias: depois da morte começaria por haver a imortalidade da alma, seguida do regresso do corpo. Mas há o risco de este aparecer a mais ou de vir demasiado tarde. Esquece-se que no além já não existe tempo. Por isso, mais vale falar simplesmente, e é o mais tradicional, da imortalidade da pessoa humana na sua totalidade. A palavra «ressurreição» significa nesse caso que cada pessoa humana sobreviverá na sua integralidade para lá da morte, como que em resposta a um apelo de Deus que a chama, a «Suscita»: que a «re-suscita». […] A fé dos cristãos num para lá desta vida enraíza-se, como se vê, na sua fé na ressurreição de Jesus, «primogénito de entre os mortos e primícias dos que adormeceram» (1 Co. 15, 20). É que a morte já não é o mesmo desde que Jesus a enfrentou, a percorreu e venceu. Lembremos a Sua palavra: «Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem vive e crê em Mim não morrerá jamais» (Jo 11, 15-26). A morte, portanto, já não é a morte pura e simples, o fim da existência. Cristo deu-lhe o sentido que ela deveria ter desde a origem, desde o primeiro homem: passagem para uma vida nova. «Ao morrer, Ele venceu a nossa morte.» […] A fé dos cristãos não é, no entanto, a projeção imaginativa da necessidade de fugir à condição humana marcada pela morte. Ela não consiste em fazer da vida terrena uma simples antecâmara do além ou uma simples preparação para o encontro com Deus depois da morte. De facto, a vida presente é o começo da outra vida e a inauguração do encontro. O além é o prolongamento «transfigurado» daquilo que já teve nascimento na Terra. É esta a grande tradição do cristianismo. Um dos credos que resume a tradição dos apóstolos termina com este grito final: «Creio na ressurreição da carne e na vida eterna!». O credo de Niceia-Constantinopla, por seu lado, conclui com a afirmação: «Espero a ressurreição dos mortos e a vida que há-de-vir!». Notemos bem que o cristão, no que às coisas do além diz respeito, afirma: «Creio», porque adere a uma «Revelação» de Deus. Não diz: «Eu sei», como se tudo mergulhasse na clareza duma evidência racional decisiva. São Paulo sublinha-o à sua maneira: «No presente, apenas vemos como que num espelho deformado, duma maneira enigmática e confusa.» O que o cristianismo afirma da outra vida é, pois, objeto não duma expectativa meramente humana, mas duma esperança recebida como um dom de Deus. Crer na vida eterna é, para o cristianismo, ter confiança em Deus: crer na Sua Palavra. Poderemos ir mais longe do que um simples acto de fé e descrever essa outra vida? A questão é difícil porque todas as nossas palavras são tiradas da experiência que temos na Terra e dependem—como veem - de universos culturais muito diferentes. É preciso, no entanto, responder a questões como estas que formulamos numa ou outra altura da nossa vida com toda a razão: Como viveremos no além? Quanto tempo? Como será o nosso corpo? Como será restabelecida a justiça? Há quatro representações clássicas que respondem a tais interrogações: A «ressurreição da carne», o «céu», o «purgatório», o «inferno». Tudo o que afirmámos da ressurreição de Jesus no Seu corpo pode aplicar-se ao que o cristianismo chama a «ressurreição da carne». Ela diz respeito a cada um de nós depois da morte. Notemos, antes de mais, que a Bíblia fala de ressurreição «da carne» e não apenas «dos corpos». Quer a Bíblia dizer desse modo que a ressurreição diz respeito a todo o ser do homem. No além, muito especialmente em Deus, nós não seremos puros espíritos. Seremos lá o ser que somos na Terra, único no mundo, com toda a sua personalidade, a sua história e a sua corporeidade. Mas, não sendo nós mais limitados nem pelo tempo nem pelo espaço, nem pela doença nem pelo pecado, seremos então «glorificados», isto é, transformados na «Glória» (a manifestação do Ser) de Deus. A ressurreição diz respeito a todo o homem. De que maneira se realizará ela? Uma vez que a ressurreição e a vida eterna dizem respeito a todo o homem, o corpo nada tem de acessório. Mas, segundo as culturas e as épocas, a maneira de as representar pode ser variável. A fé cristã não toma partido sobre a forma de as compreender. O apóstolo Paulo, por exemplo, retoma à sua conta a velha comparação cósmica da semente e da espiga de trigo: o corpo ressuscitado não será mais idêntico ao corpo mortal do que a planta o é para a semente. O primeiro distinguir-se-á do segundo como o desabrochar definitivo da matéria ainda corruptível. Paulo descreve esta novidade radical: «Semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível. Semeado perecível, ressuscita resplendente de glória. Semeado na fraqueza, ressuscita pleno de força. Semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual» (1 Co. 15, 42-44). Jean Vernette. REENCARNAÇÃO, RESSURREIÇÃO. Círculo de Leitores. 1995. Pg. 169-195