5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. Números musicais no cinema contemporâneo: atração e narrativa Carolina Oliveira do Amaral 1 Resumo: O gênero musical, um dos principais gêneros do cinema clássico, comumente é associado a ideias de escapismos e espetáculo, diretamente relacionado à Hollywood e ao entretenimento como um todo. Propomos através desse artigo, observar o número musical, unidade dramático-narrativa principal do gênero, sendo utilizado pelo cinema contemporâneo em filmes como Fôlego, de Kim Ki-duk (Coréia do Sul, 2007) e Desejo e Perigo, de Ang Lee (EUA/China, 2007). Os dois filmes utilizam performances musicais femininas com uma dupla proposta: narrativa e de atração, provocando ao mesmo tempo, um êxtase pela performance e uma mudança significativa na história. Dessa forma, o número musical teria se deslocado do seu próprio gênero para assumir funções narrativas específicas em filmes do cinema contemporâneo. Palavras-chave: número musical, atração, narrativa Abstract: The musical genre, one of the mayors in classical cinema, is commonly associated with ideas of escapism and entertainment, directly related to Hollywood and entertainment as a whole. We propose through this article, watch the musical number, the main dramatic-narrative unit of the genre, being used by contemporary cinema in Breath by Kim Ki-duk (South Korea, 2007) and Lust, Caution, by Ang Lee (U.S. / China, 2007). Both movies use women in musical performances with double function: narrative and attraction. Therefore, the musical number is dislocated from its own generic proposals for assuming specific narrative functions in contemporary cinema. Keywords: musical number, attraction, narrative 1 Aluna mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. Introdução A cela está decorada com imagens que lembram algum paraíso tropical: palmeiras, praia, mar azul, lancha. O prisioneiro entra e o podemos ver através do ponto de vista da mulher responsável pela “decoração”. Depois, a vemos com um vestido de verão e óculos escuros. Ela se levanta e começa a cantar com euforia: “quando as estrelas brilham loucamente, vamos à praia”. O prisioneiro fecha os olhos enquanto a ouve e o que vemos é um close da imagem da praia colada na parede. Em seguida, a mulher canta olhando diretamente para a câmera. Trata-se do ponto de vista do prisioneiro. A mensagem “vamos à praia” é dirigida ao prisioneiro, espectador naquele momento e ao espectador da sala de cinema, através do olhar direto para a câmera. Pelos olhares, nós, espectadores somos convocados a interagir diretamente com o filme nesse momento. Na forma de espetáculo, o número musical quebra a diegese e constrói outro ambiente de significações. Apela aos sentidos e a um lugar utópico, abre um espaço de ficção dentro da própria ficção. A canção e a dança como instâncias narrativas, também dirigem ao espectador formas outras de interação, diferentes do que até então exigiu a história. Em outro filme, vemos a fronteira do distrito japonês na China durante a segunda guerra. Carros, guardas, passaportes e a mulher é autorizada a passar para o lado japonês de vitrines de neon, gueixas, homens de terno ou farda. Ela chega ao restaurante onde seu amante, um alto figurão do governo colaboracionista, a espera. Ela é da resistência chinesa e seu envolvimento amoroso é uma missão política, para chegar perto do “traidor” e matá-lo. Eles se encontram em local reservado dentro do “restaurante”, na verdade, uma espécie de bordel japonês, com música e gueixas. Ela fecha todas as portas, para que fiquem apartados do “mundo” lá fora, como na cela do parágrafo anterior. Eles falam sobre o quanto cada um é um pouco gueixa em tempo de guerra e sobre a crueldade e melancolia dos japoneses enquanto escutam ao fundo a música que vem “lá de fora”. Então, provando ser melhor gueixa que as próprias japonesas, ela decide cantar e dançar para ele uma canção de amor: “seu coração é meu coração”. Ele a olha e se emociona. Vemos pelo ponto de vista dela a reação dele. A letra da canção traz imagens utópicas como faz o papel de parede no outro filme. Coloca também em cheque a “missão” dela. A canção parece transmitir um www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. sentimento “verdadeiro” que emociona o personagem e espectador da cena. Através do olhar dele, o espectador do filme também se emociona. Cria-se uma tensão entre a vingança construída pela narrativa, e o amor cantado pela personagem. Mais uma vez, o número musical abre outras possibilidades dentro da própria diegese. Possibilidades estas que ao mesmo tempo em que parecem contrárias à narrativa, são usadas como maneiras de intensificá-la. A seguir, detalhamos as noções de espetáculo e narrativa, importantes para a análise do número musical. Espetáculo ou atração e narrativa O gênero musical está associado ao que se chama Tradição do Espetáculo (Rubin, 2002, pp53), “os shows de menestréis, o vaudeville, o burlesco, o circo, o show do velho oeste de Buffalo Bill”. Uma tradição baseada em criar sentimentos de abundância, variedade e maravilha, que privilegiava a atração em detrimento da integração, unidade ou continuidade (ibdem). O musical se consolidou no cinema sonoro já na década de 1930, trazendo essa tradição de espetáculo, porém com a proposta de conjugar atração e continuidade, ou seja, construir uma narrativa a partir de números musicais. Nesse contexto, apresentamos o conceito de “atração”, cunhado pelos autores Gunning e Gaudreault2 (Strauven, 2006) referindo-se ao Primeiro Cinema. Esse cinema “tem como assunto sua própria habilidade de mostrar coisas em movimento” (Costa, 2006, pp24), apresentando, portanto, um caráter “atrativo” nos primeiros anos do cinema, antes do parâmetro narrativo se estabelecer como regra. Podemos destacar três características mais marcantes desse cinema: a performance, associação de idéias e a capacidade de excitar. Era um cinema com a habilidade de “dar a ver” imagens, representando assim o seu lado “exibicionista” (Balthar, 2012). Gunning e Gaudreaut usaram o conceito “atração” a partir da “montagem de atrações” de Eisenstein, que promovia um “choque emocional” 3, com “um direto e por vezes até agressivo adereçamento ao espectador” (apud Strauven, pp19). O 2 3 Os autores escreveram em dois artigos diferentes, porém escritos no mesmo ano de 1986. Vale a pena lembrar também que o cinema no seu surgimento era uma atração tecnológica, e muitas vezes a experiência de cinema se aproximava bastante da experiência no parque temático (Gunning, 2006) (Singer, 2001). www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. “cinema de atrações4” é um cinema de efeito espetacular, e pode ser estendido para além do marco histórico do primeiro cinema. O próprio Gunning (2006, pp 383) observa a possibilidade de uso da atração dentro do cinema narrativo: o cinema de atrações não desapareceu com a dominância da narrativa, mas seu uso é mais tímido, apenas em algumas práticas vanguardistas e como componentes de filmes narrativos mais evidentes em alguns gêneros (o musical, por exemplo) do que em outros. Assim, aproximamos o conceito de “atração” do número musical. Se continuarmos elencando as características desse cinema, veremos que “o cinema de atrações solicita diretamente a atenção do espectador, incitando curiosidade visual e provendo prazer através de um excitante espetáculo – um evento único, seja ele documentário ou ficção, que é de interesse em si” (ibdem). Duas questões podem ser destacadas. A primeira é que atração promove prazer no espectador através de um espetáculo. A atração “engaja, endereça e envolve o corpo do espectador” de forma diferente à da narrativa (ELSAESSER e HAGENER, 2010). A segunda questão que iremos destacar é que a atração é um evento em si, como vimos, ela “solicita diretamente a atenção do espectador”. O número musical, como atração, é uma unidade, sendo, ao mesmo tempo, integrado e autônomo em relação à narrativa. Podemos afirmar que o número musical, ao se contar por si próprio, possui uma potência narrativa. A referente autonomia do número musical o permite ganhar vida própria para além da narrativa de onde originalmente apareceu. No entanto, por mais destacado que pareça o número musical, sua autonomia será sempre relativa, pois remete ao filme de onde surgiu, diferente de videoclipes, animações, filmes de vanguarda e outras atrações solitárias. O filme musical é uma estrutura combinada de número e narrativa, atração e história. É a narrativa que costura os discursos múltiplos numa unidade, que no cinema clássico normalmente é posta em continuidade. A narrativa no cinema clássico era construída através dos seguintes elementos: causalidade, conseqüência, motivações, e a busca de metas através da superação de obstáculos (Bordwell, Thompson e Staiger, 1985). Nas histórias do chamado período clássico existem uma ou duas metas principais que traçarão a linha de ação, Em 1990 Gunning revisou o seu artigo e passou a chamar de “cinema de atrações”, no plural, sendo desde então, o termo específico usado pelo autor. 4 www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. construída através de uma relação de causalidade. No musical de palco, por exemplo, as metas principais são montar o espetáculo e conseguir o amor da corista, e o caminho pelo qual o personagem principal faz, através dos obstáculos para alcançar essas metas é traçado pela narrativa. Bordwell, Thompson e Staiger vêem uma integridade dinâmica na construção da história, onde se trabalha enredo e personagens através de uma causalidade cuidadosamente construída. Uma cadeia de causa e efeito, onde um efeito gera uma ação, uma reação, e assim, instaura uma nova causa, recomeçando o processo novamente. A causalidade se justifica através das motivações dos personagens. As motivações podem ser de vários tipos: psicológicas, realísticas, intertextuais, genéricas e artísticas5, todas funcionando de maneira a dar integridade à história. Posto dessa forma, a narrativa parece uma fria combinação de elementos, que se opõe à atração e seu caráter espetacular. Keating (2006, pp6) lembra que a narrativa é construída em muitos gêneros, como o melodrama, por exemplo, como uma maneira de causar afetos, provocando a empatia entre personagens e espectadores. O autor argumenta que os espectadores não estão apenas interessados no que acontece em seguida, mas numa “resposta emocional” ao acontecimento em si, e para isso, narrativas usam estratégias de antecipação e de culminação de eventos. Opor narrativa e espetáculo produz resultados menos interessantes do que observar como os dois combinados se afetam mutuamente, uma vez que funcionam em regimes diferentes de espectatorialidade. Existem expectativas diferentes em cada uma das estruturas. Enquanto uma solicita mais diretamente um envolvimento sensório-sentimental, a outra, prioritariamente, pede o acompanhamento baseado na lógica de causa e efeito e na continuidade. Através da combinação desses dois elementos a estrutura do cinema musical é montada para corresponder às expectativas diferentes, duas expectativas que existem simultaneamente, mesmo que o filme intercale entre uma e outra. Na verdade, as diferentes expectativas se combinam, se interpelam e se intensificam ao juntarmos narrativa e número musical. Patrick Keating (2006, pp 6) Os autores lembram que no musical, além das motivações de gênero, quando a presença de números musicais não possui uma relação lógica de causalidade, funciona como uma motivação artística, assim como a inserção de espetáculo estranho à lógica narrativa. 5 www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. pensando dessa mesma forma, à qual ele chama de modelo cooperativo 6, fala que a narrativa produz coerência na mesma medida em que produz emoção, e narrativa e atração “podem, em alguns casos, mutuamente intensificar ao outro”. A narrativa, portanto, é responsável não apenas por delimitar o caminho espaço-temporal da história, mas também produzir afetos, provocar uma “resposta emocional” do espectador que acompanha a história. A escolha de números musicais em pontos determinados da narrativa não é aleatória. O cinema clássico sempre utilizou bem essa combinação entre espetáculo e história, e os momentos de atração dentro da narrativa potencializam sua capacidade emotiva. Gênero musical e espetáculo A principalmente característica que diferencia o musical dos demais gêneros é o papel que a música representa dentro da narrativa, sendo fundamental para a compreensão da história. Rick Altman (1989, p.71) recorta de forma esclarecedora os limites do gênero: Um dos motivos pelos quais hesitamos em classificar alguns filmes como musicais – mesmo que eles tenham muitas músicas – é que essas canções nunca levam a uma reversão da hierarquia imagem/som, mas são usadas unicamente como acompanhamento ou interlúdios. Inverter a hierarquia imagem/som traz um prazer de contra-cultura, tão apreciado nos cinemas moderno e contemporâneo. João Luiz Vieira (2007, p.54) afirma que “de todos os gêneros cristalizados pelo cinema de Hollywood, o musical é o que apresenta o maior número possível de técnicas e estratégias geralmente associadas ao projeto modernista”. Podemos destacar duas dessas “técnicas e estratégias” utilizadas pelo musical: a reflexividade e uma irrealidade/sonho, bem dizer, escapismo, inerente ao gênero. Keating em artigo bem a fim com o nosso pensamento esclarece três modelos teóricos de narrativa: o modelo clássico, onde a narrativa é a força dominante, o modelo da alternação, onde narrativa e outros sistemas de dominância se alternam, e o modelo afetivo, no qual a narrativa linear está subordinada à produção de emoção. No modelo cooperativo, que Keting propõe, narrativa e outras atrações trabalham juntas para pra produzir uma resposta emocional mais intensa. 6 www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. O principal elemento que possibilita a reflexividade é a consciência da presença da câmera nos números musicais, tanto através dos olhares quanto no ritmo provocado pela montagem. Nos dois números descritos no início do texto, o intérprete olha diretamente para a câmera, e por consequência, para o espectador. Olhar para a câmera ainda é um dos tabus do cinema clássico-narrativo. Porém, a reflexividade e sua quebra da quarta parede num musical clássico difere-se do que foi proposto pelo teatro de Brecht e pelo cinema moderno. Principalmente, porque o cinema clássico não questiona a si mesmo. Nesse cinema, as técnicas reflexivas normalmente buscam uma “identificação afetiva com o encontro dos olhares” e “o corte entre o numero musical e a narrativa é feito para elogiar o show business” (Vieira, 1996). No entanto, a mesma estrutura utilizada pelo cinema contemporâneo ganha outros contorno. O número musical num filme contemporâneo que não pertence ao gênero suscita um estranhamento, ao mesmo tempo em que solicita essa identificação afetiva e traz um prazer no ato de olhar. Sobre este prazer Laura Mulvey (1983) discorre através do termo escopofilia. Segundo a autora feminista, o cinema clássico codificou o ato erótico de olhar na linguagem da ordem patriarcal: o olhar, controlador, é masculino e o objeto do olhar, espetáculo, é a mulher. A escopofilia transforma o outro no objeto de estímulo sexual através do olhar, ao mesmo tempo em que estimula o lado narcisístico e exibicionista ao sustentar esse olhar como objeto de desejo: A mulher mostrada como objeto sexual é o leitmotiv do espetáculo erótico: de garotas de calendário até o striptease, de Ziegfield até Busby Berkeley, ela sustenta o olhar, representa e significa o desejo masculino. O cinema dominante combinou muito bem o espetáculo e a narrativa. (Repare, entretanto, como num filme musical, os números de canto e dança quebram com a fluidez da diegese). A presença da mulher é um elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento de uma história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica. Esta presença estranha tem que ser integrada de forma coesa na narrativa (idem, pp 444) Ao citar Berkeley e Ziegfield, Mulvey traz o cinema musical para falar dessa dosagem bem-feita entre narração e espetáculo no cinema clássico. Segundo a autora, “o impacto sexual da mulher atriz leva o filme a uma ‘terra de ninguém’ fora de seu próprio espaço e tempo” e essa noção de espetáculo se aproxima da noção de atração www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. que vínhamos falando. A mulher evoca as questões extradiegéticas, enquanto o homem tentaria controlar essas tendências através da diegese. O olhar masculino seria a narrativa, e o objeto de olhar feminino é o espetáculo. O espetáculo congela a narrativa, mas de maneira integrada e coesa, de modo a manter a ordem patriarcal, afinal “dessa forma que a divisão entre espetáculo e narrativa sustenta o papel do homem como o ativo no sentido de fazer avançar a história, deflagrando os acontecimentos” (ibdem). Mulvey afirma que o olhar do espectador se filia ao olhar controlador da narrativa e que através do herói, o espectador pode tomar posse da mulher, tendo assim uma sensação de onipotência. Dessa forma (idem, pp445): o homem controla a fantasia do cinema e também surge como o representante do poder num sentido maior: como o dono do olhar do espectador, ele substitui esse olhar na tela a fim de neutralizar as tendências extradiegéticas representadas pela mulher enquanto espetáculo. A autora lança uma série de oposições como narrativa e espetáculo, diegese e extradiegese, olhar e objeto, masculino e feminino, que estariam frente a frente no cinema clássico, de maneira que o lado normativo (masculino, diegese, olhar) sairia “vitorioso”, restaurando assim a sociedade patriarcal. Evocar o elemento feminino (extradiegético, de atração, espetacular) e controlá-lo, ou melhor, parecer controlá-lo, causa prazer. Nos filmes analisados, performances femininas interpelam personagem (e espectador) como objetos do olhar e do desejo. Nos dois trechos elas cantam e usam a performance como estratégia de sedução, e em seguida, ganham beijos apaixonados de sua platéia diegética, nos dois casos, a personagem masculina e par romântico na história. A narrativa abre espaço para a performance, para momentos de espetáculo ou “atração” e por isso muitos identificam esse momento como contranarrativo (Thompson, 2004). No entanto, o espetáculo aponta para momentos importantes da história, ou pontos de virada na própria narrativa. Vieira (1996, p.346) nos lembra que essa configuração número/narrativa “é resultado imediato da configuração dos números musicais como os momentos narrativos mais importantes do filme, ainda que, muitas vezes isso não pareça assim”, já que a narrativa parece estar parada. Nos dois filmes analisados, a partir do número musical, o casal aprofunda o www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. relacionamento amoroso, como se existisse uma “verdade” que os une de maneira mais forte. O procedimento de relacionar performance musical ao envolvimento do par romântico na narrativa foi usado à exaustão pelo cinema clássico. Sua reutilização pelo cinema contemporâneo atualiza de forma renovada, muitas vezes até irônica, idéias características dos musicais clássicos. Idéias que foram demonstradas por dois teóricos importantes no estudo do gênero: Richard Dyer e Jane Feuer. Richard Dyer afirma que o entretenimento tenta superar tensão social, inadequação e ausências através de soluções utópicas como abundância, energia, intensidade, transparência e comunidade. Ou seja, entretenimento seria uma solução ao capitalismo, mas promovida pelo próprio capitalismo (Dyer, 2002, pp23). A abundância traz uma forma de distribuir igualmente a riqueza. A energia iguala trabalho e dança e a intensidade traz drama, excitação e vontade de viver, e as duas juntas seriam uma solução para o tédio, a monotonia, o trabalho alienado e a exaustão. A transparência traz espontaneidade e comunicação honesta, revela uma “verdade” que estaria escondida. É o que acontence nos filmes analisados quando a performance musical parece não deixar dúvidas sobre os “verdadeiros” sentimentos dos casais. Por último, a comunidade coloca todos juntos num único interesse, em comunhão ou numa atividade coletiva. Outra estudiosa do gênero, Jane Feuer subdivide o mito do entretenimento em outros três: da espontaneidade, da integração e da audiência, mas afirma que em um único número musical é possível ter todos os três juntos, “mostrando o seu impacto através de combinação e repetição” (FEUER, 2002, p.32). Os mitos da espontaneidade e da integração, dizem respeito mais ou menos ao que Dyer fala sobre transparência e comunidade, nas palavras de Feuer (idem, pp.35) “o mito da espontaneidade opera de forma a tornar a performance musical, que é parte da cultura, parecer ser parte da natureza”. O mito da audiência, por sua vez, diz respeito à platéia interna que normalmente existe num numero musical. Nos filmes Fôlego e Desejo e Perigo, a platéia interna é a personagem masculina, para quem o espetáculo foi feito7. Em Fôlego, a platéia interna é principalmente o prisioneiro, porém existe sempre um carcereiro na sala e o chefe da casa de detenção que observa pela câmera de segurança. Esse personagem observa e 7 www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. Em termos de narrativa, o número musical pode ter várias funções importantes como aproximar o par romântico, trazer à cena espontaneidade ou alegria, ou ainda pontuar momentos específicos da trama. Isso se dá, normalmente através das canções, que muitas vezes são cantadas como se fossem os verdadeiros sentimentos dos personagens, “transformando palavras faladas em palavras cantadas” (LAING, 2000, pp.5). No musical a música cantada afeta o personagem, tanto no comportamento quanto em seu humor, sendo parte integrante da sua “personalidade”. Sejam as soluções utópicas de Dyer ou os mitos de Feuer, todos eles se relacionam com duas características que falamos no início do texto: espetáculo e escapismo. Do espetáculo já falamos, mas falta acrescentar sobre o escapismo; presente no musical pela idéia de utopia que os números evocam, ou como já falamos, através de uma ficção dentro da própria ficção. A utopia pode ser desdobrada em dois significados: o de não-lugar, “que rompe com as categorias da evidência” e também o de um bom lugar, um lugar dos sonhos, “onde o que se faz, se vê e se diz, se ajustam exatamente”(Rancière, 2005, p. 61). No número musical tudo parece ser possível e a preocupação com a representação realista se afrouxa. Há, portanto, uma impossibilidade em termos de “realismo” inerente ao gênero (Martin Rubin, 2002, pp.57), e por isso, são constantes as construções de estados de sonho ou vigília nos filmes clássicos. Nos filmes analisados, a utopia se mostra pelas imagens suscitadas por música e cenário. Em Fôlego e Desejo e Perigo, o número musical contrapõe por meio de uma fuga utópica o próprio espaço fechado e até claustrofóbico onde está sendo executado. Feuer (1993, pp77) lembra que sequências de sonho no musical são usadas muitas vezes para catalisar o amor na narrativa, criando assim uma relação parecida entre o musical e o espectador: A resolução do sonho, a resolução do filme e a saída do cinema costumam ocorrer num curto período. Por pouco tempo, após se ver um musical, o mundo lá fora pode parecer mais vívido; as pessoas podem sentir uma súbita urgência de dançar pelas ruas. Uma sensação de não saber muito bem qual mundo em que se está pode também ser evocada pelo filme. influencia no que vemos e ouvimos. Muitas vezes a câmera assume o seu ponto de vista, vemos que ele aproxima, afasta ou congela a imagem, além de ser sempre o responsável por determinar o fim da visita apertando um alarme sonoro. Dentro do filme é uma instancia narrativa importante, porém, como não está fisicamente presente na sala não o estamos incluindo na platéia interna. É uma espécie de platéia intermediária, entre a diegética e não-digética (nós). Ele assiste ao casal e nós assistimos ele assistindo o casal. Criando assim um efeito de abismo. www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. O filme musical traz esse universo de sonhos e o cinema contemporâneo pode utilizar essa possibilidade irrealista através dos números de diferentes formas. Nos dois filmes analisados, além dos espaços fechados, os números musicais são usados como “brechas” (os escapes) em contextos sociais conturbados: em Fôlego, a cadeia, e em Desejo e Perigo, a dominação política. Em Fôlego, o número musical impossível para os padrões realistas provoca incredulidade no espectador que se pergunta até onde mais pode chegar filme, personagens e narrativa. Em Desejo e Perigo, o número cria uma atmosfera utópica de felicidade e intimidade em meio àquele relacionamento suspeito. Importante lembrar que nos dois filmes, os números, através de imagem e som, evocam uma instância utópica: as músicas cantadas falam de momentos felizes, “primavera da juventude”, verão, ir à praia, ou sobre o amor verdadeiro que resiste a tudo. A cena é mais iluminada e colorida que as demais. Em Fôlego, o papel de parede que a personagem feminina leva para a prisão demonstra de forma exagerada e irônica essa diferença. Na verdade, Fôlego traz uma história inusitada: uma mulher de classe média sufocada num casamento infeliz, depois de ouvir várias vezes a notícia de que um condenado à morte teria tentado suicídio, decide visitá-lo na prisão. Lá ela conta para ele como se sentiu ao ficar 5 minutos sem respirar quando era pequena e pediu para que ele não se machucasse novamente. A partir daí, ela volta à cadeia mais 4 vezes, estreitando sua relação com o condenado. Todas as suas visitas são acompanhadas pelo olhar vigilante de uma câmera de segurança, vigiada pelo chefe do presídio. Todas as vezes em que ela volta lá, com exceção da última, ela decora toda a sala de visita com um papel de parede de uma estação do ano e canta uma canção sobre o tema. Primavera, verão e outono, no inverno, porém, não há música nem papel de parede8. Analisaremos, em especial, o número “verão”. Trata-se de sua terceira visita à cadeia. Já estamos introduzidos ao universo do filme, já contamos com a sua performance musical e com algum desfecho romântico para o casal, que só não se beijou da última vez porque a visita acabou na hora em que iam se aproximar. Dessa vez, ela canta, ele participa como platéia, não apenas através do olhar, mas O que é de se esperar, a associação entre número musical e felicidade ou utopia, é oposta às idéias associadas a inverno e o filme utiliza essa construção. 8 www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. batendo palmas no fim da música, mesmo gesto que Tony Leung fará ao fim da apresentação em Desejo e Perigo. A estrutura de Fôlego propõe que cada visita da personagem feminina à cadeia seja um espetáculo. Para o condenado à morte, que tentava fugir da condenação através de suicídio, esses momentos de espetáculo dão um pouco mais de fôlego a sua existência. A narrativa aqui não segue estritamente uma lógica de causa e efeito, mas sim de conflitos em progressão e repetição e as estações do ano são uma boa metáfora para essa estrutura. Em Desejo e Perigo, ao contrário, a narrativa segue os moldes do cinema clássico discutidos anteriormente com personagens, motivações, metas e uma lógica de causa e efeito. Acompanhamos a militância de Wang (Wei Tang), uma jovem chinesa na China invadida pelo Japão em sua missão seduzir o colaboracionista, o Sr. Yee (Tony Leung) para ser morto pelos outros membros da resistência. Nesse filme, a personagem feminina seria, em tese, a responsável pela condenação à morte do homem. O medo é um sentimento partilhado por personagens e espectador, assim como a esperança encontrada no amor e no sexo. Com o tempo, o relacionamento entre o casal se estreita e os encontros se tornam mais freqüentes. Até chegarmos à cena descrita no início do texto. Ela canta e dança, enquanto ele se emociona, quase chora. O que começou como espionagem e vingança política pouco a pouco tomou outro formato. E o número musical é o responsável por mostrar essa virada narrativa. Como vimos através de Dyer, durante o número musical a “verdade” vêm à tona. A música nos dois casos parece comunicar afetos de forma mais eficiente, intensificando assim a resposta emocional solicitada pela narrativa. Giuliano Obici (2008, p 72) fala na música como um fluxo de afetos, e essa é uma boa imagem para pensarmos o papel do número musical dentro da narrativa. Os momentos musicais ao mesmo tempo em que parecem suspender a narrativa apontam para si ao olharmos o filme como um todo. Nos dois filmes, eles representam o momento em que o casal se une “de verdade”. Há, portanto, um engajamento emocional entre público e personagens, ao mesmo tempo em que acontece uma virada narrativa. Número e narrativa apelam para o espectador de maneiras diferentes, porém, combinadas, de modo a intensificarem-se mutuamente. www.conecorio.org 15 5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012. Os números musicais, portanto, marcam a narrativa. Ironicamente, muitas vezes, acabam se tornando os momentos de maior importância narrativa do filme. Lembramos aqui que através dos olhares e a estética de espetáculo, são direcionados diretamente para o espectador. A nossa aposta é que os números se configuram como uma potente ferramenta narrativa dentro do cinema contemporâneo, interpelando diretamente o espectador, que responde enquanto corpo e memória na recepção do filme. Referências: ALTMAN, Rick. The American Film Musical. 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