Números musicais no cinema contemporâneo - Coneco

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5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO
Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012.
Números musicais no cinema contemporâneo: atração e narrativa
Carolina Oliveira do Amaral 1
Resumo: O gênero musical, um dos principais gêneros do cinema clássico,
comumente é associado a ideias de escapismos e espetáculo, diretamente relacionado
à Hollywood e ao entretenimento como um todo. Propomos através desse artigo,
observar o número musical, unidade dramático-narrativa principal do gênero, sendo
utilizado pelo cinema contemporâneo em filmes como Fôlego, de Kim Ki-duk (Coréia
do Sul, 2007) e Desejo e Perigo, de Ang Lee (EUA/China, 2007). Os dois filmes
utilizam performances musicais femininas com uma dupla proposta: narrativa e de
atração, provocando ao mesmo tempo, um êxtase pela performance e uma mudança
significativa na história. Dessa forma, o número musical teria se deslocado do seu
próprio gênero para assumir funções narrativas específicas em filmes do cinema
contemporâneo.
Palavras-chave: número musical, atração, narrativa
Abstract: The musical genre, one of the mayors in classical cinema, is
commonly associated with ideas of escapism and entertainment, directly related to
Hollywood and entertainment as a whole. We propose through this article, watch the
musical number, the main dramatic-narrative unit of the genre, being used by
contemporary cinema in Breath by Kim Ki-duk (South Korea, 2007) and Lust,
Caution, by Ang Lee (U.S. / China, 2007). Both movies use women in musical
performances with double function: narrative and attraction. Therefore, the musical
number is dislocated from its own generic proposals for assuming specific narrative
functions in contemporary cinema.
Keywords: musical number, attraction, narrative
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Aluna mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF
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Introdução
A cela está decorada com imagens que lembram algum paraíso tropical:
palmeiras, praia, mar azul, lancha. O prisioneiro entra e o podemos ver através do
ponto de vista da mulher responsável pela “decoração”. Depois, a vemos com um
vestido de verão e óculos escuros. Ela se levanta e começa a cantar com euforia:
“quando as estrelas brilham loucamente, vamos à praia”. O prisioneiro fecha os olhos
enquanto a ouve e o que vemos é um close da imagem da praia colada na parede. Em
seguida, a mulher canta olhando diretamente para a câmera. Trata-se do ponto de vista
do prisioneiro. A mensagem “vamos à praia” é dirigida ao prisioneiro, espectador
naquele momento e ao espectador da sala de cinema, através do olhar direto para a
câmera. Pelos olhares, nós, espectadores somos convocados a interagir diretamente
com o filme nesse momento. Na forma de espetáculo, o número musical quebra a
diegese e constrói outro ambiente de significações. Apela aos sentidos e a um lugar
utópico, abre um espaço de ficção dentro da própria ficção. A canção e a dança como
instâncias narrativas, também dirigem ao espectador formas outras de interação,
diferentes do que até então exigiu a história.
Em outro filme, vemos a fronteira do distrito japonês na China durante a
segunda guerra. Carros, guardas, passaportes e a mulher é autorizada a passar para o
lado japonês de vitrines de neon, gueixas, homens de terno ou farda. Ela chega ao
restaurante onde seu amante, um alto figurão do governo colaboracionista, a espera.
Ela é da resistência chinesa e seu envolvimento amoroso é uma missão política, para
chegar perto do “traidor” e matá-lo. Eles se encontram em local reservado dentro do
“restaurante”, na verdade, uma espécie de bordel japonês, com música e gueixas. Ela
fecha todas as portas, para que fiquem apartados do “mundo” lá fora, como na cela do
parágrafo anterior. Eles falam sobre o quanto cada um é um pouco gueixa em tempo
de guerra e sobre a crueldade e melancolia dos japoneses enquanto escutam ao fundo
a música que vem “lá de fora”. Então, provando ser melhor gueixa que as próprias
japonesas, ela decide cantar e dançar para ele uma canção de amor: “seu coração é
meu coração”. Ele a olha e se emociona. Vemos pelo ponto de vista dela a reação dele.
A letra da canção traz imagens utópicas como faz o papel de parede no outro filme.
Coloca também em cheque a “missão” dela. A canção parece transmitir um
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sentimento “verdadeiro” que emociona o personagem e espectador da cena. Através
do olhar dele, o espectador do filme também se emociona. Cria-se uma tensão entre a
vingança construída pela narrativa, e o amor cantado pela personagem. Mais uma vez,
o número musical abre outras possibilidades dentro da própria diegese. Possibilidades
estas que ao mesmo tempo em que parecem contrárias à narrativa, são usadas como
maneiras de intensificá-la. A seguir, detalhamos as noções de espetáculo e narrativa,
importantes para a análise do número musical.
Espetáculo ou atração e narrativa
O gênero musical está associado ao que se chama Tradição do Espetáculo
(Rubin, 2002, pp53), “os shows de menestréis, o vaudeville, o burlesco, o circo, o
show do velho oeste de Buffalo Bill”. Uma tradição baseada em criar sentimentos de
abundância, variedade e maravilha, que privilegiava a atração em detrimento da
integração, unidade ou continuidade (ibdem). O musical se consolidou no cinema
sonoro já na década de 1930, trazendo essa tradição de espetáculo, porém com a
proposta de conjugar atração e continuidade, ou seja, construir uma narrativa a partir
de números musicais.
Nesse contexto, apresentamos o conceito de “atração”, cunhado pelos autores
Gunning e Gaudreault2 (Strauven, 2006) referindo-se ao Primeiro Cinema. Esse
cinema “tem como assunto sua própria habilidade de mostrar coisas em movimento”
(Costa, 2006, pp24), apresentando, portanto, um caráter “atrativo” nos primeiros anos
do cinema, antes do parâmetro narrativo se estabelecer como regra. Podemos destacar
três características mais marcantes desse cinema: a performance, associação de idéias
e a capacidade de excitar. Era um cinema com a habilidade de “dar a ver” imagens,
representando assim o seu lado “exibicionista” (Balthar, 2012).
Gunning e Gaudreaut usaram o conceito “atração” a partir da “montagem de
atrações” de Eisenstein, que promovia um “choque emocional” 3, com “um direto e
por vezes até agressivo adereçamento ao espectador” (apud Strauven, pp19). O
2
3
Os autores escreveram em dois artigos diferentes, porém escritos no mesmo ano de 1986.
Vale a pena lembrar também que o cinema no seu surgimento era uma atração tecnológica, e muitas
vezes a experiência de cinema se aproximava bastante da experiência no parque temático (Gunning,
2006) (Singer, 2001).
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“cinema de atrações4” é um cinema de efeito espetacular, e pode ser estendido para
além do marco histórico do primeiro cinema. O próprio Gunning (2006, pp 383)
observa a possibilidade de uso da atração dentro do cinema narrativo:
o cinema de atrações não desapareceu com a dominância da
narrativa, mas seu uso é mais tímido, apenas em algumas práticas
vanguardistas e como componentes de filmes narrativos mais
evidentes em alguns gêneros (o musical, por exemplo) do que em
outros.
Assim, aproximamos o conceito de “atração” do número musical. Se
continuarmos elencando as características desse cinema, veremos que “o cinema de
atrações solicita diretamente a atenção do espectador, incitando curiosidade visual e
provendo prazer através de um excitante espetáculo – um evento único, seja ele
documentário ou ficção, que é de interesse em si” (ibdem). Duas questões podem ser
destacadas. A primeira é que atração promove prazer no espectador através de um
espetáculo. A atração “engaja, endereça e envolve o corpo do espectador” de forma
diferente à da narrativa (ELSAESSER e HAGENER, 2010). A segunda questão que
iremos destacar é que a atração é um evento em si, como vimos, ela “solicita
diretamente a atenção do espectador”. O número musical, como atração, é uma
unidade, sendo, ao mesmo tempo, integrado e autônomo em relação à narrativa.
Podemos afirmar que o número musical, ao se contar por si próprio, possui
uma potência narrativa. A referente autonomia do número musical o permite ganhar
vida própria para além da narrativa de onde originalmente apareceu. No entanto, por
mais destacado que pareça o número musical, sua autonomia será sempre relativa,
pois remete ao filme de onde surgiu, diferente de videoclipes, animações, filmes de
vanguarda e outras atrações solitárias. O filme musical é uma estrutura combinada de
número e narrativa, atração e história. É a narrativa que costura os discursos múltiplos
numa unidade, que no cinema clássico normalmente é posta em continuidade.
A narrativa no cinema clássico era construída através dos seguintes elementos:
causalidade, conseqüência, motivações, e a busca de metas através da superação de
obstáculos (Bordwell, Thompson e Staiger, 1985). Nas histórias do chamado período
clássico existem uma ou duas metas principais que traçarão a linha de ação,
Em 1990 Gunning revisou o seu artigo e passou a chamar de “cinema de atrações”, no plural, sendo
desde então, o termo específico usado pelo autor.
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construída através de uma relação de causalidade. No musical de palco, por exemplo,
as metas principais são montar o espetáculo e conseguir o amor da corista, e o
caminho pelo qual o personagem principal faz, através dos obstáculos para alcançar
essas metas é traçado pela narrativa.
Bordwell, Thompson e Staiger vêem uma integridade dinâmica na construção
da história, onde se trabalha enredo e personagens através de uma causalidade
cuidadosamente construída. Uma cadeia de causa e efeito, onde um efeito gera uma
ação, uma reação, e assim, instaura uma nova causa, recomeçando o processo
novamente. A causalidade se justifica através das motivações dos personagens. As
motivações podem ser de vários tipos: psicológicas, realísticas, intertextuais,
genéricas e artísticas5, todas funcionando de maneira a dar integridade à história.
Posto dessa forma, a narrativa parece uma fria combinação de elementos, que
se opõe à atração e seu caráter espetacular. Keating (2006, pp6) lembra que a narrativa
é construída em muitos gêneros, como o melodrama, por exemplo, como uma maneira
de causar afetos, provocando a empatia entre personagens e espectadores. O autor
argumenta que os espectadores não estão apenas interessados no que acontece em
seguida, mas numa “resposta emocional” ao acontecimento em si, e para isso,
narrativas usam estratégias de antecipação e de culminação de eventos.
Opor narrativa e espetáculo produz resultados menos interessantes do que
observar como os dois combinados se afetam mutuamente, uma vez que funcionam
em regimes diferentes de espectatorialidade. Existem expectativas diferentes em cada
uma das estruturas. Enquanto uma solicita mais diretamente um envolvimento
sensório-sentimental, a outra, prioritariamente, pede o acompanhamento baseado na
lógica de causa e efeito e na continuidade. Através da combinação desses dois
elementos a estrutura do cinema musical é montada para corresponder às expectativas
diferentes, duas expectativas que existem simultaneamente, mesmo que o filme
intercale entre uma e outra.
Na verdade, as diferentes expectativas se combinam, se interpelam e se
intensificam ao juntarmos narrativa e número musical. Patrick Keating (2006, pp 6)
Os autores lembram que no musical, além das motivações de gênero, quando a presença de números
musicais não possui uma relação lógica de causalidade, funciona como uma motivação artística, assim
como a inserção de espetáculo estranho à lógica narrativa.
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pensando dessa mesma forma, à qual ele chama de modelo cooperativo 6, fala que a
narrativa produz coerência na mesma medida em que produz emoção, e narrativa e
atração “podem, em alguns casos, mutuamente intensificar ao outro”.
A narrativa, portanto, é responsável não apenas por delimitar o caminho
espaço-temporal da história, mas também produzir afetos, provocar uma “resposta
emocional” do espectador que acompanha a história. A escolha de números musicais
em pontos determinados da narrativa não é aleatória. O cinema clássico sempre
utilizou bem essa combinação entre espetáculo e história, e os momentos de atração
dentro da narrativa potencializam sua capacidade emotiva.
Gênero musical e espetáculo
A principalmente característica que diferencia o musical dos demais gêneros é
o papel que a música representa dentro da narrativa, sendo fundamental para a
compreensão da história. Rick Altman (1989, p.71) recorta de forma esclarecedora os
limites do gênero:
Um dos motivos pelos quais hesitamos em classificar alguns
filmes como musicais – mesmo que eles tenham muitas músicas
– é que essas canções nunca levam a uma reversão da hierarquia
imagem/som,
mas
são
usadas
unicamente
como
acompanhamento ou interlúdios.
Inverter a hierarquia imagem/som traz um prazer de contra-cultura, tão
apreciado nos cinemas moderno e contemporâneo. João Luiz Vieira (2007, p.54)
afirma que “de todos os gêneros cristalizados pelo cinema de Hollywood, o musical é
o que apresenta o maior número possível de técnicas e estratégias geralmente
associadas ao projeto modernista”. Podemos destacar duas dessas “técnicas e
estratégias” utilizadas pelo musical: a reflexividade e uma irrealidade/sonho, bem
dizer, escapismo, inerente ao gênero.
Keating em artigo bem a fim com o nosso pensamento esclarece três modelos teóricos de narrativa: o
modelo clássico, onde a narrativa é a força dominante, o modelo da alternação, onde narrativa e outros
sistemas de dominância se alternam, e o modelo afetivo, no qual a narrativa linear está subordinada à
produção de emoção. No modelo cooperativo, que Keting propõe, narrativa e outras atrações trabalham
juntas para pra produzir uma resposta emocional mais intensa.
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O principal elemento que possibilita a reflexividade é a consciência da
presença da câmera nos números musicais, tanto através dos olhares quanto no ritmo
provocado pela montagem. Nos dois números descritos no início do texto, o intérprete
olha diretamente para a câmera, e por consequência, para o espectador. Olhar para a
câmera ainda é um dos tabus do cinema clássico-narrativo. Porém, a reflexividade e
sua quebra da quarta parede num musical clássico difere-se do que foi proposto pelo
teatro de Brecht e pelo cinema moderno. Principalmente, porque o cinema clássico
não questiona a si mesmo. Nesse cinema, as técnicas reflexivas normalmente buscam
uma “identificação afetiva com o encontro dos olhares” e “o corte entre o numero
musical e a narrativa é feito para elogiar o show business” (Vieira, 1996). No entanto,
a mesma estrutura utilizada pelo cinema contemporâneo ganha outros contorno. O
número musical num filme contemporâneo que não pertence ao gênero suscita um
estranhamento, ao mesmo tempo em que solicita essa identificação afetiva e traz um
prazer no ato de olhar.
Sobre este prazer Laura Mulvey (1983) discorre através do termo escopofilia.
Segundo a autora feminista, o cinema clássico codificou o ato erótico de olhar na
linguagem da ordem patriarcal: o olhar, controlador, é masculino e o objeto do olhar,
espetáculo, é a mulher. A escopofilia transforma o outro no objeto de estímulo sexual
através do olhar, ao mesmo tempo em que estimula o lado narcisístico e exibicionista
ao sustentar esse olhar como objeto de desejo:
A mulher mostrada como objeto sexual é o leitmotiv do espetáculo
erótico: de garotas de calendário até o striptease, de Ziegfield até Busby
Berkeley, ela sustenta o olhar, representa e significa o desejo masculino. O
cinema dominante combinou muito bem o espetáculo e a narrativa.
(Repare, entretanto, como num filme musical, os números de canto e
dança quebram com a fluidez da diegese). A presença da mulher é um
elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum,
todavia sua presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao
desenvolvimento de uma história, tende a congelar o fluxo da ação em
momentos de contemplação erótica. Esta presença estranha tem que ser
integrada de forma coesa na narrativa (idem, pp 444)
Ao citar Berkeley e Ziegfield, Mulvey traz o cinema musical para falar dessa
dosagem bem-feita entre narração e espetáculo no cinema clássico. Segundo a autora,
“o impacto sexual da mulher atriz leva o filme a uma ‘terra de ninguém’ fora de seu
próprio espaço e tempo” e essa noção de espetáculo se aproxima da noção de atração
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que vínhamos falando. A mulher evoca as questões extradiegéticas, enquanto o
homem tentaria controlar essas tendências através da diegese. O olhar masculino seria
a narrativa, e o objeto de olhar feminino é o espetáculo. O espetáculo congela a
narrativa, mas de maneira integrada e coesa, de modo a manter a ordem patriarcal,
afinal “dessa forma que a divisão entre espetáculo e narrativa sustenta o papel do
homem como o ativo no sentido de fazer avançar a história, deflagrando os
acontecimentos” (ibdem).
Mulvey afirma que o olhar do espectador se filia ao olhar controlador da
narrativa e que através do herói, o espectador pode tomar posse da mulher, tendo
assim uma sensação de onipotência. Dessa forma (idem, pp445):
o homem controla a fantasia do cinema e também surge como o
representante do poder num sentido maior: como o dono do olhar do
espectador, ele substitui esse olhar na tela a fim de neutralizar as
tendências extradiegéticas representadas pela mulher enquanto espetáculo.
A autora lança uma série de oposições como narrativa e espetáculo, diegese e
extradiegese, olhar e objeto, masculino e feminino, que estariam frente a frente no
cinema clássico, de maneira que o lado normativo (masculino, diegese, olhar) sairia
“vitorioso”, restaurando assim a sociedade patriarcal. Evocar o elemento feminino
(extradiegético, de atração, espetacular) e controlá-lo, ou melhor, parecer controlá-lo,
causa prazer.
Nos filmes analisados, performances femininas interpelam personagem (e
espectador) como objetos do olhar e do desejo. Nos dois trechos elas cantam e usam a
performance como estratégia de sedução, e em seguida, ganham beijos apaixonados
de sua platéia diegética, nos dois casos, a personagem masculina e par romântico na
história. A narrativa abre espaço para a performance, para momentos de espetáculo
ou “atração” e por isso muitos identificam esse momento como contranarrativo
(Thompson, 2004). No entanto, o espetáculo aponta para momentos importantes da
história, ou pontos de virada na própria narrativa. Vieira (1996, p.346) nos lembra que
essa configuração número/narrativa “é resultado imediato da configuração dos
números musicais como os momentos narrativos mais importantes do filme, ainda
que, muitas vezes isso não pareça assim”, já que a narrativa parece estar parada. Nos
dois filmes analisados, a partir do número musical, o casal aprofunda o
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relacionamento amoroso, como se existisse uma “verdade” que os une de maneira
mais forte.
O procedimento de relacionar performance musical ao envolvimento do par
romântico na narrativa foi usado à exaustão pelo cinema clássico. Sua reutilização
pelo cinema contemporâneo atualiza de forma renovada, muitas vezes até irônica,
idéias características dos musicais clássicos. Idéias que foram demonstradas por dois
teóricos importantes no estudo do gênero: Richard Dyer e Jane Feuer.
Richard Dyer afirma que o entretenimento tenta superar tensão social,
inadequação e ausências através de soluções utópicas como abundância, energia,
intensidade, transparência e comunidade. Ou seja, entretenimento seria uma solução
ao capitalismo, mas promovida pelo próprio capitalismo (Dyer, 2002, pp23). A
abundância traz uma forma de distribuir igualmente a riqueza. A energia iguala
trabalho e dança e a intensidade traz drama, excitação e vontade de viver, e as duas
juntas seriam uma solução para o tédio, a monotonia, o trabalho alienado e a exaustão.
A transparência traz espontaneidade e comunicação honesta, revela uma “verdade”
que estaria escondida. É o que acontence nos filmes analisados quando a performance
musical parece não deixar dúvidas sobre os “verdadeiros” sentimentos dos casais. Por
último, a comunidade coloca todos juntos num único interesse, em comunhão ou
numa atividade coletiva.
Outra estudiosa do gênero, Jane Feuer subdivide o mito do entretenimento em
outros três: da espontaneidade, da integração e da audiência, mas afirma que em um
único número musical é possível ter todos os três juntos, “mostrando o seu impacto
através de combinação e repetição” (FEUER, 2002, p.32).
Os mitos da espontaneidade e da integração, dizem respeito mais ou menos ao
que Dyer fala sobre transparência e comunidade, nas palavras de Feuer (idem, pp.35)
“o mito da espontaneidade opera de forma a tornar a performance musical, que é parte
da cultura, parecer ser parte da natureza”. O mito da audiência, por sua vez, diz
respeito à platéia interna que normalmente existe num numero musical. Nos filmes
Fôlego e Desejo e Perigo, a platéia interna é a personagem masculina, para quem o
espetáculo foi feito7.
Em Fôlego, a platéia interna é principalmente o prisioneiro, porém existe sempre um carcereiro na
sala e o chefe da casa de detenção que observa pela câmera de segurança. Esse personagem observa e
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Em termos de narrativa, o número musical pode ter várias funções importantes
como aproximar o par romântico, trazer à cena espontaneidade ou alegria, ou ainda
pontuar momentos específicos da trama. Isso se dá, normalmente através das canções,
que muitas vezes são cantadas como se fossem os verdadeiros sentimentos dos
personagens, “transformando palavras faladas em palavras cantadas” (LAING, 2000,
pp.5). No musical a música cantada afeta o personagem, tanto no comportamento
quanto em seu humor, sendo parte integrante da sua “personalidade”.
Sejam as soluções utópicas de Dyer ou os mitos de Feuer, todos eles se
relacionam com duas características que falamos no início do texto: espetáculo e
escapismo. Do espetáculo já falamos, mas falta acrescentar sobre o escapismo;
presente no musical pela idéia de utopia que os números evocam, ou como já falamos,
através de uma ficção dentro da própria ficção.
A utopia pode ser desdobrada em dois significados: o de não-lugar, “que
rompe com as categorias da evidência” e também o de um bom lugar, um lugar dos
sonhos, “onde o que se faz, se vê e se diz, se ajustam exatamente”(Rancière, 2005, p.
61). No número musical tudo parece ser possível e a preocupação com a
representação realista se afrouxa. Há, portanto, uma impossibilidade em termos de
“realismo” inerente ao gênero (Martin Rubin, 2002, pp.57), e por isso, são constantes
as construções de estados de sonho ou vigília nos filmes clássicos. Nos filmes
analisados, a utopia se mostra pelas imagens suscitadas por música e cenário. Em
Fôlego e Desejo e Perigo, o número musical contrapõe por meio de uma fuga utópica
o próprio espaço fechado e até claustrofóbico onde está sendo executado.
Feuer (1993, pp77) lembra que sequências de sonho no musical são usadas
muitas vezes para catalisar o amor na narrativa, criando assim uma relação parecida
entre o musical e o espectador:
A resolução do sonho, a resolução do filme e a saída do cinema costumam
ocorrer num curto período. Por pouco tempo, após se ver um musical, o
mundo lá fora pode parecer mais vívido; as pessoas podem sentir uma
súbita urgência de dançar pelas ruas. Uma sensação de não saber muito
bem qual mundo em que se está pode também ser evocada pelo filme.
influencia no que vemos e ouvimos. Muitas vezes a câmera assume o seu ponto de vista, vemos que ele
aproxima, afasta ou congela a imagem, além de ser sempre o responsável por determinar o fim da visita
apertando um alarme sonoro. Dentro do filme é uma instancia narrativa importante, porém, como não
está fisicamente presente na sala não o estamos incluindo na platéia interna. É uma espécie de platéia
intermediária, entre a diegética e não-digética (nós). Ele assiste ao casal e nós assistimos ele assistindo
o casal. Criando assim um efeito de abismo.
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O filme musical traz esse universo de sonhos e o cinema contemporâneo pode
utilizar essa possibilidade irrealista através dos números de diferentes formas. Nos
dois filmes analisados, além dos espaços fechados, os números musicais são usados
como “brechas” (os escapes) em contextos sociais conturbados: em Fôlego, a cadeia,
e em Desejo e Perigo, a dominação política.
Em Fôlego, o número musical impossível para os padrões realistas provoca
incredulidade no espectador que se pergunta até onde mais pode chegar filme,
personagens e narrativa. Em Desejo e Perigo, o número cria uma atmosfera utópica
de felicidade e intimidade em meio àquele relacionamento suspeito. Importante
lembrar que nos dois filmes, os números, através de imagem e som, evocam uma
instância utópica: as músicas cantadas falam de momentos felizes, “primavera da
juventude”, verão, ir à praia, ou sobre o amor verdadeiro que resiste a tudo. A cena é
mais iluminada e colorida que as demais. Em Fôlego, o papel de parede que a
personagem feminina leva para a prisão demonstra de forma exagerada e irônica essa
diferença.
Na verdade, Fôlego traz uma história inusitada: uma mulher de classe média
sufocada num casamento infeliz, depois de ouvir várias vezes a notícia de que um
condenado à morte teria tentado suicídio, decide visitá-lo na prisão. Lá ela conta para
ele como se sentiu ao ficar 5 minutos sem respirar quando era pequena e pediu para
que ele não se machucasse novamente. A partir daí, ela volta à cadeia mais 4 vezes,
estreitando sua relação com o condenado. Todas as suas visitas são acompanhadas
pelo olhar vigilante de uma câmera de segurança, vigiada pelo chefe do presídio.
Todas as vezes em que ela volta lá, com exceção da última, ela decora toda a
sala de visita com um papel de parede de uma estação do ano e canta uma canção
sobre o tema. Primavera, verão e outono, no inverno, porém, não há música nem
papel de parede8. Analisaremos, em especial, o número “verão”. Trata-se de sua
terceira visita à cadeia. Já estamos introduzidos ao universo do filme, já contamos
com a sua performance musical e com algum desfecho romântico para o casal, que só
não se beijou da última vez porque a visita acabou na hora em que iam se aproximar.
Dessa vez, ela canta, ele participa como platéia, não apenas através do olhar, mas
O que é de se esperar, a associação entre número musical e felicidade ou utopia, é oposta às idéias
associadas a inverno e o filme utiliza essa construção.
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batendo palmas no fim da música, mesmo gesto que Tony Leung fará ao fim da
apresentação em Desejo e Perigo.
A estrutura de Fôlego propõe que cada visita da personagem feminina à cadeia
seja um espetáculo. Para o condenado à morte, que tentava fugir da condenação
através de suicídio, esses momentos de espetáculo dão um pouco mais de fôlego a sua
existência. A narrativa aqui não segue estritamente uma lógica de causa e efeito, mas
sim de conflitos em progressão e repetição e as estações do ano são uma boa metáfora
para essa estrutura.
Em Desejo e Perigo, ao contrário, a narrativa segue os moldes do cinema
clássico discutidos anteriormente com personagens, motivações, metas e uma lógica
de causa e efeito. Acompanhamos a militância de Wang (Wei Tang), uma jovem
chinesa na China invadida pelo Japão em sua missão seduzir o colaboracionista, o Sr.
Yee (Tony Leung) para ser morto pelos outros membros da resistência. Nesse filme, a
personagem feminina seria, em tese, a responsável pela condenação à morte do
homem. O medo é um sentimento partilhado por personagens e espectador, assim
como a esperança encontrada no amor e no sexo.
Com o tempo, o relacionamento entre o casal se estreita e os encontros se
tornam mais freqüentes. Até chegarmos à cena descrita no início do texto. Ela canta e
dança, enquanto ele se emociona, quase chora. O que começou como espionagem e
vingança política pouco a pouco tomou outro formato. E o número musical é o
responsável por mostrar essa virada narrativa. Como vimos através de Dyer, durante
o número musical a “verdade” vêm à tona.
A música nos dois casos parece comunicar afetos de forma mais eficiente,
intensificando assim a resposta emocional solicitada pela narrativa. Giuliano Obici
(2008, p 72) fala na música como um fluxo de afetos, e essa é uma boa imagem para
pensarmos o papel do número musical dentro da narrativa.
Os momentos musicais ao mesmo tempo em que parecem suspender a
narrativa apontam para si ao olharmos o filme como um todo. Nos dois filmes, eles
representam o momento em que o casal se une “de verdade”. Há, portanto, um
engajamento emocional entre público e personagens, ao mesmo tempo em que
acontece uma virada narrativa. Número e narrativa apelam para o espectador de
maneiras diferentes, porém, combinadas, de modo a intensificarem-se mutuamente.
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5º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UFF | UFRJ | UERJ | PUC-RIO
Universidade Federal Fluminense, Niterói. 24 a 26 de outubro de 2012.
Os números musicais, portanto, marcam a narrativa. Ironicamente, muitas
vezes, acabam se tornando os momentos de maior importância narrativa do filme.
Lembramos aqui que através dos olhares e a estética de espetáculo, são direcionados
diretamente para o espectador. A nossa aposta é que os números se configuram como
uma potente ferramenta narrativa dentro do cinema contemporâneo, interpelando
diretamente o espectador, que responde enquanto corpo e memória na recepção do
filme.
Referências:
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