Este trabalho tem por objetivo confrontar a visão gramatical quanto

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GÊNERO DO SUBSTANTIVO: FLEXÃO OU DERIVAÇÃO?
FLÁVIA LANNES VIEIRA DE AGUIAR
Este trabalho tem por objetivo confrontar a visão gramatical
quanto ao gênero do substantivo, com outras correntes teóricas que
põem em dúvida a existência da flexão de gênero dos substantivos, a
fim de mostrar que o gênero do substantivo não se trata de um processo flexional, mas de um processo derivacional, e enfocar a confusão feita pela gramática ao relacionar sexo e gênero como sendo
iguais, como se todos os substantivos tivessem referente sexuado.Começaremos determinando o que é derivação e o que é flexão.
As gramáticas tradicionais não apresentam nenhum tipo de
explicação para o que seja processo flexional, apenas apresentam as
desinências e dizem como devem ser feitas as flexões, dividindo-as
em flexão de gênero, número e grau. Não nos ocuparemos aqui das
flexões de número e grau, mas apenas da flexão de gênero e com
relação ao substantivo já que no adjetivo essa flexão realmente existe. Sendo assim, com relação ao gênero, a gramática divide o substantivo em epicenos, sobrecomuns, comuns de dois gêneros e os que
variam em gênero por heteronímia. Quanto à derivação, é comum
encontrarmos definições como a de Rocha Lima (2003, p. 200): “Derivação é o processo pelo qual de uma palavra se formam outras, por
meio da agregação de certos elementos [prefixos e sufixos] que lhe
alteram o sentido – referido sempre, contudo, à significação da pala-
vra primitiva.”; e divide a derivação em prefixal, sufixal, parassintética e regressiva.
Como já foi dito, segundo a gramática, o gênero do substantivo é um processo flexional e que ocorre através das desinências de
gênero. No entanto, há estudiosos que não concordam com a forma
como a gramática aborda este aspecto do substantivo. Dentre estes,
alguns acreditam realmente tratar-se de um processo flexional, mas
que a gramática não esclarece e, até confunde, o modo como esse
processo ocorre. Outros vão mais além, e crêem não haver flexão no
gênero do substantivo, e sim um processo de derivação que ocorre
por meio do acréscimo de um sufixo à palavra. A seguir veremos
como alguns autores se posicionam em relação a este fato.
Valter Kehdi (1990) não menciona o processo derivacional,
mas aceita que o sufixo contribui na mudança de classe das palavrasbase. Não define o que vem a ser flexão, mas estabelece as diferenças existentes entre sufixos e desinências, considerando a relação de
dependência existente entre estas e a palavra, e afirma haver a desinência de gênero masculino no português.
Basílio (1989) tem por base de seu trabalho a produtividade
dos sufixos e a análise do processo de formação de palavras. Segundo a autora, tanto o processo derivacional, quanto o processo de formação do feminino são extremamente produtivos na língua portuguesa.
Freitas (1981) despreza o estudo diacrônico enfatizando o estudo sincrônico, o que acarreta problemas, pois denomina como sen2
do flexão palavras que etmologicamente não o são. No entanto, segue a linha tradicional da gramática. Divide os morfemas em derivativos e categoriais. Morfemas derivativos são os formadores de novas
palavras, trata-se de uma relação aberta e, os Morfemas categoriais
pertencem a uma relação gramatical fechada e que sugerem modalidades de uma mesma palavra. Embora acabe com a confusão feita
pela gramática tradicional entre o sexo e o gênero, não apresenta
nenhuma definição do que vem a ser flexão, descreve apenas o que
não o é.
Câmara Jr. (1985) nos fornece toda a teoria de flexão e derivação. Explica que o termo “flexão” vem do alemão e era usado para
indicar o desdobramento de uma palavra em outros empregos, mas
que no português apresenta-se sob o aspecto de desinências ou sufixos flexionais. Cita ainda Varrão (116 a.C. – 26 a.C.) gramático latino que fez a distinção entre Derivatio Voluntaria – processo que
age na criação de novas palavras e que esclarece o caráter fortuito
desse processo – e Derivatio Naturalis – para indicar novas modalidades de uma mesma palavra. Para este autor, a flexão é a formação
de uma palavra por meio de um morfema, constituindo uma idéia
acessória em que o significado base não é alterado, e a derivação, ao
contrário da flexão, é uma relação aberta que pode ocorrer em qualquer vocábulo da língua, alterando sua classe gramatical. Embora
Matoso Câmara seja o teórico que melhor entendeu o que vem a ser
o processo flexional, e mostre todos os caminhos que nos levam a
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crer que o gênero do substantivo não se trata de uma flexão, ele reafirma que este processo é flexional.
Matthews (1974) se propõe a fazer a distinção entre Morfologia lexical e Morfologia flexional. Esta estaria ligada à flexão, enquanto aquela à derivação. Portanto, como é possível notar, há uma
relação coerente entre Derivatio Voluntaria, Morfologia lexical e
derivação, assim como entre Derivatio Naturalis, Morfologia flexional e flexão.
Sandmann (1992) não define o que vem a ser derivação. Quanto a flexão, não se ocupa deste processo de maneira específica, mas
diz que trata-se de uma “forma de derivação não-voluntária ou necessária” (Sandamann, 1992, p. 23), sendo determinada pela concordância, e que os sufixos flexionais “são obrigatórios, pois sua ausência é significativa” (Sandamann, 1992, p. 42). Neste trabalho, o autor
trata do morfema de gênero feminino -a denominando-o de sufixo
derivacional, pois apresenta um traço lexical.
Após todas essas considerações, é possível chegar-se a conclusão de que a derivação é um processo de caráter fortuito, assistemático e irregular – pois não ocorre com todos as palavras pertencentes a
uma mesma classe –, não obrigatório – pois o falante é que decide se
quer ou não usá-la – e incoerente e impreciso; trata-se de uma relação aberta que apresenta como resultado um novo vocábulo que pode
mudar quanto à classe gramatical ou não. Enquanto que a flexão é
um processo obrigatório, sistemático e regular, coerente e imposto
pela natureza da frase, ou seja, pelo núcleo substantivo que rege a
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sentença; é uma relação fechada que se dá entre o léxico de uma
língua e a sua gramática. No entanto, é possível perceber que, com
relação ao gênero do substantivo, há divergências quanto ao processo
por meio do qual é formado. Alguns autores como Matoso Câmara e
a própria tradição gramatical, afirmam tratar-se de uma flexão, enquanto autores como Sandmann, afirmam que este é um processo de
derivação sufixal.
Expostas essas teorias partiremos agora para a análise dos
substantivos em português com o objetivo de definirmos se o gênero
deste é feito por processo flexional, como diz a gramática, ou derivacional, como acreditam alguns teóricos como é o caso do Sandmann.
Em português os substantivos são nomes que possuem referentes
sexuados e assexuados. Os substantivos de referente assexuado, que
são maioria em português, não trazem em si marcas morfológicas de
gênero. Quanto aos de referente sexuado podemos dizer, que é insignificante a quantidade de substantivos que, referindo-se a estes seres,
recebem marca morfológica de gênero. Ou seja, quase que a totalidade de substantivos em português não apresentam marca morfológica
de gênero. Como afirmou Câmara Jr., o que ocorre são substantivos
com tema em “-a”, em “-o” /u/ átono final, e em “-e” /i/ átono final.
A vogal temática não é marca de gênero e não pode ser confundida
com o sufixo –a marca de feminino, que trazem em si o gênero, ou
seja, o substantivo apresenta um gênero próprio, imanente, nãomarcado, que obriga os determinantes presentes na frase, a concordarem com ele. A partir do que foi dito acima é possível desfazer a
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confusão apresentada pela tradição entre sexo e gênero, ao afirmar
que o gênero do substantivo é uma flexão e que este terá o gênero
masculino ou feminino de acordo com a desinência –a ou –o. O problema tem início na classificação em substantivos epicenos, sobrecomuns, comuns de dois gêneros e os substantivos que variam em
gênero por heteronímia.
De acordo com a gramática os substantivos epicenos, são usados para designar animais. Na verdade, os epicenos apresentam um
gênero gramatical único, específico, o que faz com que os determinantes flexíveis a concordarem com ele. Nestes casos a distinção de
sexo ocorrerá através de um expediente lexical (macho/fêmea), que é
facultativo, e a distinção de gênero virá intrínseca no substantivo.
Como por exemplo: “a cobra”, pertence ao gênero feminino, embora
não esteja determinado o sexo, já em “a cobra macho” o gênero continua sendo feminino, mas o sexo do referente – expresso pelo determinante “macho” – é masculino.
Com relação aos substantivos classificados pela gramática
como sobrecomuns – substantivos usados para pessoas, mas que
pertencem a um único gênero –, temos que o substantivo em si não
indica a distinção de sexo. São do gênero feminino ou masculino,
obrigam os determinantes flexíveis a concordarem com eles, mas não
indicam diferenças de sexo através de expedientes morfológicos,
como é possível notar nos exemplos: “a testemunha”, possui gênero
feminino; “João é a testemunha chave.”, a palavra testemunha permanece com o gênero feminino, mas refere-se a uma pessoa do sexo
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masculino; “o cônjuge”, possui gênero masculino, mas em “O cônjuge de Vinícius é Cristina.”, o gênero continua sendo masculino embora o referente seja do sexo feminino.
Com o comum de dois gêneros, ocorre uma coincidência entre
o sexo e o gênero que ficam sendo o mesmo. No entanto, como vimos, essa semelhança ocorre com um grupo muito pequeno de substantivos, logo não pode ser tomado como regra. como faz a gramática, o que provoca a confusão quanto ao sexo e ao gênero como se
estes fossem iguais.
Os substantivos que variam em gênero por heteronímia abrangem casos como “homem e mulher”, “galo e galinha”, que a gramática insiste em classificar como sendo um masculino do outro que é
feminino, quando na verdade esses substantivos possuem gênero
próprio, embora estejam relacionados semanticamente, ou seja, os
substantivos privativamente masculinos estão relacionados, semanticamente, a outros privativamente femininos.
Os substantivos terminados em –o, ao contrário do que afirma
a gramática, não caracteriza uma desinência de masculino, mas a
ausência da marca de feminino. Sendo assim o gênero masculino é
marcado por um morfema gramatical zero (Ø), que expressa a ausência do feminino que indica uma especificação qualquer. Com o propósito de acabar com o problema da associação do gênero ao sexo do
referente, Câmara Jr. propõe uma outra classificação para os substantivos, muito mais coerente que a tradicional, que seria a seguinte:
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substantivos de gênero único, substantivo de dois gêneros sem flexão
e substantivos de dois gêneros com flexão redundante.
Agora verificaremos que o gênero do substantivo na verdade
não se trata de um processo flexional,mas um processo de derivação
sufixal. A partir dessas considerações feitas até aqui acerca do substantivo, é possível atestar que o substantivo possui gênero imanente,
masculino ou feminino, sendo assim não há necessidade do acréscimo de uma desinência de gênero para caracterizar-se feminino ou
masculino. Logo, o gênero em português não pode ser tratado como
uma flexão e sim como um processo de variação de natureza lexical.
A noção de flexão está expressa no artigo que como determinante
acompanha ou não o substantivo. Outro ponto que deve ser levado
em consideração é que cada uma das formas usadas para o masculino
ou para o feminino são independentes umas das outras, sendo, portanto, itens lexicais diferentes, isto é, constituem novas palavras. O
gênero do substantivo também não é um processo sistemático e regular, pois são poucos os substantivos que sofrem esse processo, o qual
pode ocorrer de formas variadas; não é obrigatório e caracteriza-se
pela não concordância, já que não há regra gramatical alguma que
determine o seu uso; é um processo opcional, pois está na vontade do
falante de usar a forma feminina ao invés da masculina, o que dependerá da pragmática que este falante possui; e não se trata de uma
relação fechada já que é um processo extremamente produtivo.
É possível concluir, então, que o gênero do substantivo em
português, não deve ser confundido com a questão do sexo do refe8
rente, pois nada tem a ver com ela já a maioria dos nomes são assexuados, e que os substantivos possuem gênero imanente, isto é, intrínseco. Esse processo, na verdade, não se trata de flexão mas de
derivação sufixal, pois atende a todos os conceitos concernentes a
este, sendo assim, o seu gênero constitui uma categoria lexical, caracterizando uma formação de novas palavras e não modalidades de
uma mesma palavra.
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Referências Bibliográficas
BASILIO, Margarida. Teoria Lexical. 2. ed., São Paulo: Ática, 1989.
BOTELHO, José Mario. O Gênero Imanente do Substantivo no Português. Rio de Janeiro: Botelho, 2004.
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SANDMANN, Antônio J. Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto,
1992.
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