Adjetivos

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Adjetivos
Alfredo José MansurI
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
O progresso recente do conhecimento médico e científico
tem trazido contribuições relevantes à medicina, entre elas a
compreensão aprofundada da fisiologia, da patologia e da expressão clínica de doenças e técnicas diagnósticas e terapêuticas novas ou aperfeiçoadas. O conhecimento científico, um
dos fundamentos mais importantes da Medicina, tem entre as
suas características o fato de ser aberto ao teste de hipóteses,
à experimentação e ter a possibilidade de ser transitório. Tais
características conferem especial dinamismo ao progresso. Este,
por sua vez, tem exigências para vir a ser; é modulado por competências, fatores que o fundamentam, amparam, estimulam,
desenvolvem, produzem, ofertam, disponibilizam ou vendem.
As características desse processo trazem qualificações, noções
de extensão e de quantidade, conexões, subordinações, que repercutem nos valores e no sistema lógico de pensamento no
qual esse conhecimento transita. Consequentemente, elas repercutem na linguagem e podem chegar aos adjetivos que ocupam lugar ao lado do substantivo Medicina.
Dicionário de etimologia ensina que o termo adjetivo1
(adjectivum, a, um) deriva do verbo adjicio, -is,-eci, -ectum,
-icere, que pode significar atirar, lançar, por ao lado (ad “ao
lado de”, jacere “lançar, deitar, jogar, atirar, arrojar contra ou
sobre, enviar, despedir, estabelecer, por, colocar”. Em outro dicionário,2 encontra-se adjicio (adicio), -is, ere, jeci, jectum, em
sentido próprio, lançar alguma coisa ao lado de, atirar, jogar
perto; e por enfraquecimento do sentido, ajuntar, acrescentar,
unir, aumentar, e em sentido figurado, dirigir ou voltar os olhos
ou o pensamento para alguém, lançar em leilão. Professores
Henrique e France Murachco, casal de filólogos, ainda ensinam que os adjetivos não têm existência própria [comunicação
pessoal] (como leigos na matéria, podemos ficar mais sensíveis
àquilo que aos profissionais do ramo pode soar óbvio). Além
disso, para pacientes, palavras podem não ser apenas palavras.3
O significado e as acepções dos adjetivos podem ser amplos a ponto de estimular reflexões sobre o tema, não somente aos gramáticos, mas também aos práticos, no caso
médicos com atividade clínica ou profissionais que atuam na
área da saúde. Embora não seja o foco específico da literatura
médico-científica, o assunto vez por outra vem à tona.4,5 Há os
que se alegram com o fato de poderem usar o substantivo como
adjetivo e até termos compostos com hífens em alguns contextos.4 Seguem algumas reflexões.
Expectativas – é possível que, frente a algumas circunstâncias, os adjetivos desenvolvidos e apostos ao substantivo medicina venham impregnados de expectativa, de tal modo a sugerir
implícita noção que soluções urgentemente necessárias já estejam acessíveis ou possam estar disponíveis no curto prazo, sem
tomar em firme consideração o fato de que, entre a necessidade,
a hipótese dos trabalhos de investigação, seus resultados e a sua
disponibilização, pode haver um longo hiato de investimento,
tempo, trabalho, pesquisa e discussão.
Um exemplo interessante foi enfatizado recentemente na
expressão medicina de precisão. Especialistas relataram o caso
bem encaminhado de uma paciente de 35 anos de idade portadora de uma forma de câncer pulmonar, a qual teve o tratamento orientado por um painel de variantes genéticas; advertiram em seguida para a necessidade de expectativas realistas,
e lembraram que o progresso não é automático e nem de um
dia para outro.6 Enquanto isso, as necessidades dos pacientes
continuam a surgir e os médicos continuarão a atendê-las com
os recursos disponíveis.
Modernidade – quando lemos ou ouvimos falar sobre medicina personalizada, pode-se ter a impressão de que esse conceito seja
aquisição recentíssima da medicina. De fato, atualmente, graças
a pesquisas mais recentes, o caráter “personalizado” do cuidado
médico pode estar fundamentado com o auxílio de bases mais
recentes ou até mais sólidas (por exemplo, com base genética),6,7
ainda que não disponível em sentido amplo para a população.
Entretanto, insiste em desvelar-se o fato de que médicos na
prática clínica fazem isso há muito: adequar o conhecimento
médico-científico disponível à necessidade de cada paciente,
personalizando-o de acordo com os dados disponíveis. Duas
etapas fundamentais da prática médica – o diagnóstico e o
tratamento – cotidianamente reiteram isso. A manifestação de
cada afecção passa pela individualidade do paciente, inclusive
quanto aos sintomas. Do mesmo modo, a terapêutica ainda
Livre-docente em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo.
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toma em consideração, além das preferências pessoais dos pacientes, os recursos disponíveis e a tolerância individual a cada
um aos tratamentos escolhidos, que frequentemente podem
necessitar ajustes. Para tanto têm sido empregados a ciência,
mas também a arte. Esta, por sua vez, sendo aberta e não
delimitada, garante o empirismo do qual surgem novas necessidades, perguntas, hipóteses e investigação. Talvez, nesse caso
particular, houvesse necessidade de não se restringir ao adjetivo personalizada, mas ampliar a expressão “personalizada com
o auxílio do método a, b, ou c”; esses métodos, sim, podem
ser recentes, mas o substantivo medicina tem a permanência
que dá sentido às qualificações.
Delimitação – a medicina dita especializada foi entendida
durante muito tempo como buscando conhecimento aprofundado sobre determinada área da prática médica. O dicionário1 relaciona mais de 20 adjetivos para a medicina, desde
a letra “a” – “aiurvédica” até a letra “t” – “tropical”. Mesmo
as atuações de caráter mais geral adquiriram a postura de especialidades (por exemplo, medicina interna). O progresso
do conhecimento, a quantidade de informação disponível e
o trabalho de selecioná-las, o tempo de formação e a natureza
dos novos métodos de diagnóstico e de tratamento contribuíram para construir e firmar essa necessidade. O conhecimento
aprofundado conceitualmente se opõe à ideia da restrição e
limitação ao conhecimento, em que pese a limitação científica
de delimitar assuntos para explorá-los empírica ou cientificamente. Fica implícita a natureza da relação entre o conhecimento fundamental, o método e o conhecimento de ponta
numa era de aparente excesso de informação.
Entretanto, é conveniente a reflexão sobre o risco de a medicina às vezes dita superespecializada (e, do mesmo modo,
excessivamente adjetivada) se tornar medicina “de interesse específico” (novo adjetivo?), situação na qual delimitaria o seu
campo de visão da prática de tal modo a turvar a integridade
do paciente e passar a ver-se a si mesma como setor do conhecimento e não voltada ao paciente. A menção já foi feita em
uma entrevista por um ministro da Saúde – a atuação médica
como atuação tecnóloga – na qual se avalia tal possibilidade,
em detrimento da visão médica (na qual se passa pela discussão
diagnóstica e da indicação terapêutica).8
Curiosamente, a necessidade de não se restringir à visão
específica e perder a visão geral já foi enunciada há anos em
outros países dentro de uma própria especialidade – haveria a
necessidade do especialista “invasivo” (?!?), do “não invasivo”, e
do especialista “geral”, e ganhamos mais um adjetivo, que, ao
contrário de muitos, não restringe mas amplia, e cujo emprego pode soar paradoxal.9 Tem sido também nossa experiência a
demanda por esse tipo de qualificação, há mais de 10 anos, em
médicos que se dedicam à formação em cardiologia. De algum
modo, há certa preocupação com a delimitação que pode ser
lembrada nos adjetivos.
Hífen – a adjetivação da medicina também requer que progressivamente tenhamos hifens em uso, como conquista da modernidade – pode ser necessário que tenhamos a medicina psico-neuro-endócrino-cardiológica. Surgiram, na prática cotidiana,
termos como medicina neuro-psico-geriátrica, entre outros.
Também é fato que o adjetivo da especialidade ao mesmo
tempo em que qualifica, e delimita, restringe. Quando isso
acontece, recorre-se ao uso de hifens, fazendo-se composições
dos adjetivos, de tal modo que, para contemplar todo o organismo humano, teríamos que compor uma palavra composta
de inumeráveis adjetivos.
Importação – alguns adjetivos da medicina podem ser
rapidamente importados. Evidentemente, uma qualificação
expressa em um adjetivo representa o resultado de um processo de conhecimento e de tecnologia. Ao se usar o adjetivo, pode-se trazer o entendimento de que a importação do
adjetivo e do falar sobre ele signifique o domínio do processo, naquelas mágicas que as palavras têm ou podem ter,
particularmente quando expressas em posições de poder, seja
ele econômico, político ou acadêmico. Os adjetivos podem
ser importados sem ônus; máquinas ou equipamentos têm
custos altos, manutenção, depreciação e é mais difícil de serem importados. Parece que competências e processos são
mais resistentes à importação do que os adjetivos.
Implicação organizacional – é interessante se indagar a respeito das implicações organizacionais dos adjetivos da medicina. As estruturações organizacionais (organogramas) podem
seguir diferentes orientações – da necessidade do sistema de
saúde (às vezes chamada de política), da demanda de pacientes,
dos objetivos e interesses de cada serviço em particular, da etapa
diagnóstica, da etapa terapêutica e do tratamento crônico de
pacientes. Imagine-se, de repente, organogramas passarem a ser
ditados pelos adjetivos da medicina.
Relação – existem adjetivos de relação.1 Portanto, pode-se perguntar a natureza da relação de certos adjetivos com a medicina.
Qualificação – às vezes os adjetivos que qualificam a medicina dizem respeito ao método empregado. Assim, podemos
falar em medicina molecular, em medicina nanotecnológica
etc. Ocasionalmente, o adjetivo pode dizer respeito à etapa do
processo, como por exemplo, medicina diagnóstica. Às vezes,
a medicina pode dizer respeito à complexidade do cuidado e
da tecnologia disponibilizada – assim, fala-se em primária, secundária, terciária e até quaternária. Portanto, dependendo da
circunstância, o adjetivo irá variar.
Finalizando estas reflexões, transite-se, ainda que momentaneamente, pela pergunta de inquiridores mais ousados, que
chegaram a indagar se o termo medicina deixou de ser substantivo e exige-se sempre adjetivado. Ensina o dicionário que
há adjetivos que podem ser substantivados.1 Concluindo, não
devemos deixar de lembrar que a experiência de outros colegas
pode enriquecer as reflexões acima.
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Alfredo José Mansur
REFERÊNCIAS
1. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva; 2001.
2. Faria O. Dicionário escolar latino-português. 5a ed. Rio de Janeiro: MEC/
Fename; 1975.
3. Colaianni A. The language of medicine. Ann Intern Med. 2012;157(2):146-7.
4. Baer DM. Adjectives, nouns, and hyphens. Science. 1983;222(4622):368.
5. Reider J, Korytkowski MT. The adjectives of inpatient glycemic management.
Curr Diab Rep. 2012;12(1):1-3.
6. Mirnezami R, Nicholson J, Darzi A. Preparing for precision medicine. N Engl
J Med. 2012;366(6):489-91.
7. Collins FS. A linguagem da vida: O DNA e a revolução na sua saúde. São
Paulo: Editora Gente; 2010.
8. Racy S, Venceslau P. ‘Sexo? Eu tento cumprir à risca’. Temporão assume a
polêmica e analisa a saúde do País. O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2010.
p. D2. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sexo-eutento-cumprir-a-risca,549381,0.htm. Acessado em 2012 (3 dez).
9. Hurst JW. Will the nation need more cardiologists in the future than are
being trained now? J Am Coll Cardiol. 2003;41(10):1838-40.
INFORMAÇÕES
Endereço para correspondência:
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
São Paulo (SP)
CEP 05403-000
Tel. InCor (11) 2661-5237
Consultório: (11) 3289-7020/3289-6889
E-mail: [email protected]
Fonte de fomento: nenhuma declarada
Conflito de interesse: nenhum declarado
Data de entrada: 1o de novembro de 2012
Data da última modificação: 30 de novembro de 2012
Data de aceitação: 3 de dezembro de 2012
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