Redes - Filosofia e Teologia

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a.9 n.16 jan./jun. 2011 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Nº 16
n. 16 janeiro/junho 2011
a. 9
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES
Diretor: Hugo Scheer
Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Diretor Executivo: Jolmar Luis Hawerroth
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da
Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Coordenador
Paulo Cesar Delboni
[email protected]
Vice-coordenador
Renato C. Gama
Comissão Editorial
Antônio Vidal Nunes, Fábio Eulalio dos Santos, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni
e Renato C. Gama.
Conselho Editorial
Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio
Vidal Nunes (Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta
(Ufes), Edebrande Cavalieri (Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões,
St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF),
Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo), Joachim
G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B.
Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama
(Iftav), Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A.
Carrara (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo).
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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav
Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
a. 9 - n. 16 - janeiro/julho 2011
Vitória-ES
FILOSOFIA E RELIGIÃO
ISSN 1679-4265
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Vitória
a. 9 n. 16 p. 1-240 jan./jun. 2011
© 2011 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio,
sem autorização da editora constitui violação da LDA 9.610/98.
Redação (endereço para contato):
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Capa: Edson Maltez Heringer
Revisão geral: Djalma José Vazzoler
Elaboração e revisão dos abstracts: Jussara Braz da Conceição
Editoração: Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 - [email protected]
Impressão: Gráfica Quatro Irmãos | 27 3326-1555 - [email protected]
Editora: Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 9, n. 16 (jan./jun. 2011). - Vitória : Iftav / Faculdade Católica
Salesiana do Espírito Santo, 2011.
240 p. ; 21,5 cm.
Semestral
ISSN 1679-4265
1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia
da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito
Santo.
CDU 1+2 (05)
Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................7
A EXISTÊNCIA SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO ............................ 9-37
The existence according to Thomas Aquinas
Sávio Laet de Barros Campos
ALGUMAS PREMISSAS FILOLÓGICAS PARA A
COMPREENSÃO DO SENTIDO DE BEATITUDE
NO DE BEATA VITA DE S. AGOSTINHO ..........................................38-56
Some philological premises to the understanding of the meaning
of beatitude in Saint Augustine’s ‘De Beata Vita’
Adriano Beraldi
ALGUNS ASPECTOS DA RECEPÇÃO DO
PENSAMENTO ZUBIRIANO NA IBEROAMÉRICA ........................57-86
Some aspects of the reception of the Zubirian thought in Ibero-America
Everaldo Cescon
LA CONCEPCIÓN ACERCA DEL SER HUMANO:
FUNDAMENTO DEL HUMANISMO EN EL
PENSAMIENTO MARXISTA CUBANO DE LA
PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX .......................................................87-129
The conception concerning human being: base of humanism in the
Cuban Marxist thought of the first half of the 20th Century
Freddy Varona Domínguez
LA FILOSOFIA DEL DIALOGO DI MARTIN BUBER .................130-143
The philosophy of dialogue of Matin Buber
Paulo Cesar Delboni
MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA
COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE ................144-166
Marx and his method: beyond the understanding of the history of humanity
Renato Almeida de Andrade
COSMOPOLITISMO E INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA .......167-188
Cosmopolitism and South American integration
Giuseppe Tosi
A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO E
DO PENSAMENTO FRACO DE GIANNI VATTIMO NA
EPISTEMOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO ...............................190-205
The contribution of phylosophy of religion and of weak thought
of Gianni Vattimo in the epistemology of religious teaching
Jorge Luis Vargas dos Santos
TEÓRICOS DO SAGRADO: ALGUMAS
CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES .........................................................206-217
Theorists of the Sacred: some conceptions and perceptions
Alessandro Vescovi
CAMPO E CIDADE: UMA ABORDAGEM
SOCIOLÓGICA NO PRIMEIRO TESTAMENTO ...........................218-234
Country and city: a sociologic approach in the Old Testament
Adriano de Souza Viana
REVISTAS EM PERMUTAS ...................................................................235-238
NOTA AOS COLABORADORES .........................................................239-240
APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em
2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de
Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Teologia
do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav).
O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção
do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores
e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras
instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O
conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações.
“Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência
entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração
multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as
ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos
no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a
comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 7, jan./jun. 2011
7
A EXISTÊNCIA SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO
Sávio Laet de Barros Campos*
Resumo
Este artigo versa sobre a noção de existência na ontologia de Tomás de
Aquino. Trata do existir entendido como ato de ser. Para desenvolver esta
temática, definiremos alguns termos recorrentes na ontologia de Tomás:
substância, essência, acidente, matéria, forma, ente, ato e potência. Tendo
procedido à análise desses termos, tentaremos relacioná-los com o ser.
Destarte, abordaremos a questão da relação entre: ser e substância, ser e
ente, essência e existência, ser e ato e ser e perfeição.
Palavras-chave: Existência, ato, perfeição.
Introdução
Este trabalho versa acerca da noção de existência no âmbito da
ontologia tomásica. Ele trata do existir entendido como ato de ser
(actus essendi). Para desenvolver esta temática, teremos de definir alguns
termos recorrentes na ontologia tomasiana: substância (substantia),
essência (essentia), acidente (accidens), matéria (materia), forma (forma),
ente (ens), ato (actus) e potência (potentia). Uma vez tendo procedido à
análise desses termos, num esforço sintético tentaremos relacioná-los
* Bacharel-Licenciado e Pós-Graduando em Filosofia pela Universidade Federal
de Mato Grosso [UFMT], Sávio cursou ainda algumas disciplinas teológicas (Revelação
e Fé; Transmissão da Revelação e Teologia do Direito Canônico) no SEDAC (Studium
Eclesiástico D. Aquino Corrêa). Foi pesquisador do Grupo de Estudos Polis-Éthos
(registrado no CNPq) da UFMT. Também participou como estudioso da filosofia
medieval no grupo de “Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval” (com registro no
CNPq) vinculado à mesma instituição.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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Sávio Laet de Barros Campos
com o ser (esse). Destarte, abordaremos a questão da relação entre: ser
(esse) e substância (substantia), ser (esse) e ente (ens), essência (essentia)
e existência, ser (esse) e ato (actus) e ser (esse) e perfeição (perfectione).
Privilegiaremos, a título de fontes, a Summa contra gentiles (1258 a
1264), na tradução brasileira de Odilão Moura, revista recentemente
(1996) pelo Prof. Luis Alberto De Boni, e a Summae theologiae (12661274) – obra-prima do autor – máxime na sua “Prima Pars”, composta entre os anos 1266 e 1272. Transitaremos por esta última na
sua mais recente tradução brasileira – empresa de fôlego das Edições
Loyola – e que resultou no aparecimento de nove volumes, entre os
anos de 2001 e 2006. No que concerne aos comentadores de Tomás,
trafegaremos pelo clássico Le thomisme: introduction au siystème de
Saint Thomas D’aquin (1919), de Étienne Gilson. Frequentaremos
a versão castelhana (1951) desta obra – única autorizada do original
francês – por Alberto Oteiza Quirino: El tomismo: introducción a la
filosofía de Santo Tomás de Aquino. Lançaremos mão também do
introito de Luís Jean Lauand, Tomás de Aquino: vida e pensamento –
estudo introdutório geral (e da questão “Sobre o verbo”), disponível
na obra Verdade e conhecimento, lançada pela Martins Fontes em 1999.
1 A existência em Tomás de Aquino
1.1 Substância (Substantia) e essência (Essentia)
Permanecendo fiéis ao “método” de explanação de Tomás,
segundo o qual “[...] todo o nosso conhecimento se origina a partir dos
sentidos” (TOMÁS DE AQUINO, 2001. I, 1, 9, C),1 começaremos
por designar aqueles seres que nos são dados pela nossa mais imediata
experiência sensível. Designá-los-emos pelo termo “substância”
1
10
“[...] quia omnis nostra cognitio a sensu initium habet.”
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
A existência segundo Tomás de Aquino
(substantia) (GILSON, 1951, p. 46, 47).2 Essas substâncias constituem
um todo completo, a formar uma unidade ontológica passível de
existir e de ser definida. Ora, à substância, enquanto passível de
definição, chamaremos de essência (essentia): “Quando a substância
pode ser concebida como una e definida, toma o nome de ‘essência’.
A essentia não é, pois, senão a substância enquanto é suscetível de
definição” (GILSON, 1951, p. 46, 47, tradução nossa).3
Ora bem, dissemos que a substância forma uma unidade ontológica suscetível de ser definida. Dissemos ainda que essa unidade
ontológica, enquanto passível de ser expressa num conceito (conceptus),
será chamada de essência, e que essa essência (essentia) irá designar essa
mesma unidade ontológica, ou seja, será ela que – enquanto expressa
na definição – irá dizer-nos o que é (quid est) a substância: “Exatamente
a essência é o que a definição disse que é a substância” (GILSON,
1951, p. 46, 47, tradução nossa). Portanto, será a essência (essentia),
expressa num conceito (conceptus), que responderá à pergunta: “Quid
sit?”; isto é, será ela que nos irá fazer conhecer o que uma coisa (res)
é, o seu quid est. Por conseguinte, enquanto expressa numa definição, a
essência deverá ser chamada quididade (quidditas): “E, visto que aquilo
pelo que a coisa é estabelecida no próprio gênero ou espécie é isto
que é significado pela definição indicando o que a coisa é, daí vem
que o nome de essência é transformado pelos filósofos no nome de
quididade [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2005c. I, 3).4
2 “Partiendo, com Santo Tomás, de los entia, o seres, que nos son dados por la
experiencia sensible, los designaremos con el término ‘sustancias’.”
3 “Cuando la sustancia puede ser concebida como una y definida, toma el
nombre de ‘esencia’. La essentia no es, pues, sino la sustancia em cuanto es susceptible
de definición.”
4 “Significar lo que es una substancia, es responder a la pregunta quid sit; por
eso, en tanto está expresada en la definición, la esencia se llama ‘quididad’”.
Tradução: “Significar o que é uma substância é responder à pergunta quid
sit; por isso, enquanto está expressa na definição, a essência se chama ‘quididade’”
(GILSON, 1951, p. 47).
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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Sávio Laet de Barros Campos
1.2 A substância como uma essência que existe por si
É costume definir o termo substância como um “ser por si” (ens
per se). Na verdade, essa definição, sem ser inexata, está, no entanto,
incompleta. Com efeito, um “ser por si” (ens per se) que não possuísse
qualquer outra determinação, não estaria apto para existir, salvo se ele
fosse o seu próprio ser (suum esse), mas, neste caso, já não seria uma
substância, e sim o ipsum esse subsistens. Entretanto, ainda não temos
como saber se esse ser existe ou não. Portanto, cuida afirmar que a
substância é um modo de ser que, delimitado por uma essência, existe
por si (per se).
Aliás, é exatamente por que a substância é algo determinado por
uma essência, que ela é suscetível de ser definida. De fato, é da natureza da substância ser cognoscível, ou seja, passível de ser concebida.
Mas o que torna uma substância cognoscível, isto é, suscetível de ser
definida num conceito, é justamente o fato de ela ser uma determinada
substância. E o que, por seu turno, assim a determina, é exatamente
a sua essência. Por isso, uma definição mais adequada e restrita de
substância seria: a substância é uma essência ou quididade que “é por
si” (per se). Do termo substância, diz Santo Tomás: “O que ele significa
é a essência à qual pertence ser de tal modo, a saber, ser por si mesma
[...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001 I, 3, 5, ad 1).
1.3 A substância como “ser por si” (ens per se):
substância e acidentes
Resta ainda precisar o que significa, quando aplicado à substância,
o termo “ser por si”. Ora bem, ser por si quer significar, com relação
à substância, que ela possui uma unidade ontológica que a distingue de
todas as demais coisas, ou seja, que ela possui um ser distinto de todos
os demais seres. Diz-se ainda que a substância existe por si, porquanto
tal unidade ontológica concede-lhe todas as condições requeridas para
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
A existência segundo Tomás de Aquino
que possa existir. E essa unidade ontológica lhe é conferida, antes de
tudo, pela sua essência.5
Sem embargo, toda substância é, deveras, detentora de todas
as determinações necessárias para que possa existir.6 No entanto, tais
determinações não existem nelas do mesmo modo. Tomemos uma
substância. Antes de qualquer coisa, o que a determina, conforme já
dissemos, é a sua essência. Um homem, por exemplo. A primeira
coisa que o determina enquanto tal é a sua essência ou quididade, isto
é, o seu quid est, aquilo sem o qual ele não poderia ser o que é, homem.
Trata-se, desta feita, daquelas determinações que serão expressas na sua
própria definição de homem: animal racional.7
Entretanto, ao verificarmos um homem concreto, a saber, uma
substância racional concretamente realizada, perceberemos que tal
substância é também dotada de outras tantas determinações complementares que não são senão exigências intrínsecas daquela sua
determinação primeira, vale dizer, da sua essência. Com efeito, todo
homem, exatamente por ser um animal racional, precisa ter um corpo,
e este corpo, por sua vez, precisa ter sangue, ossos etc. Por conseguinte,
É a essência (essentia) que dá à substância (substantia) as condições requeridas para
que ela possa existir como tal substância. Entretanto, não compete à essência, como se
verá mais adiante, conceder à substância o ato de ser (actus essendi) pelo qual ela se torna
um ente (ens), isto é, um ser que existe, que tem e exerce o ato de ser (actus essendi).
6 “Se dice que existe por sí, porque constituye una unidad de ser distinta de
toda otra y por contener en sí todas las determinaciones para su existencia.”
Tradução: “Se diz que existe por si, porque constitui uma unidade de ser
distinta de toda outra e por conter em si todas as determinações requeridas para sua
existência” (GILSON, 1951, p. 47, 48, tradução nossa).
7 “Sin embargo sus diversas determinaciones no existen en él con el mismo
título ni de la misma manera. Están primeiro aquéllas sin las cuales no podríamos darle
el nombre de hombre. Tales son las determinaciones que expresan las definiciones.”
Tradução: “Sem embargo, suas diversas determinações não existem nela com
o mesmo título, nem da mesma maneira. Estão primeiro aquelas sem as quais não
poderíamos dar-lhe o nome de homem. Tais são as determinações que expressam as
definições” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa).
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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Sávio Laet de Barros Campos
também necessita ocupar um lugar no espaço e estar sujeito ao tempo.
Ora, são essas determinações complementares que designamos com o
nome de acidentes (accidens).8 E é ao sujeito (subiectum) de todas estas
determinações complementares que chamamos substância. Na verdade,
é este sujeito que, na sua integralidade, existe por si.
Todavia, conquanto concretamente não consigamos distinguir
uma substância dos seus acidentes, devemos notar sempre que todos
esses acidentes existem na substância, por ela e para ela, mas não o
contrário. Com outras palavras, os acidentes pertencem à substância,
e não vice-versa. Porém, não se trata de pensar nos acidentes como
meros agregados da substância, pois isto também comprometeria a
unidade existencial, inerente a toda substância como tal. Os acidentes, na
verdade, não têm existência própria fora da substância. A única forma
de eles existirem é na substância e pela substância. Mas todos estes,
quer dizer, a substância e os seus acidentes, existem, por sua vez, em
virtude de um ato único de existir, que será o ato de existir da substância
completa, isto é, da sua essência e das suas determinações complementares. A falar com máxima exação, será justamente este ato único de
existir que dará existência à substância na sua inteireza e unicidade.9
Mas ainda nos falta determinar a procedência de tal ato de existir.
8 “Supongamos esta sustancia concretamente realizada: todas las determinaciones
complementarias lo estarán al mismo tiempo, y lo estarán por ella. Por ser un animal,
um hombre deve tener cierto color y cierta talla ocupará necesariamente en el espacio
cierto lugar y cierta posición relativa. Llámase sustancia al sujeto de estas determinaciones
complementarias, que a su vez reciben el nombre de accidentes.”
Tradução: “Suponhamos esta substância concretamente realizada: todas as
determinações complementares estarão nela ao mesmo tempo, e estarão nela por
ela. Por ser um animal, um homem deve ter certa cor e certo tamanho, ocupará
necessariamente no espaço certo lugar e certa posição relativa. Chama-se substância o
sujeito destas determinações complementares, que, por sua vez, recebem o nome de
acidentes” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa).
9 “Hablar de las cosas como de sustancias no es concebirlas como grupo de
accidentes ligados por cierta cópula a un sujeto; todo lo contrario: es decir que ellas
están como unidades de existencia, en las que todos sus elementos constitutivos son,
em virtude de um mismo e único ato de existir, que es el de la sustancia. Los accidentes
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A existência segundo Tomás de Aquino
Desta forma, já podemos estabelecer que não devemos entender
este “existir por si” da substância, como se ela tivesse em si (a se) a
causa mesma da sua existência. Em verdade, o único ser que existe
por si, não tendo alhures a causa da sua existência, é Deus, que não é
propriamente uma substância. Assim, quando aplicado à substância,
este “existir por si” significa que ela possui todos os requisitos necessários para existir, e que tudo o que nela há, existe em virtude de
um ato único de existir, o qual é responsável pela sua existência como
substância, ou seja, enquanto uma unidade existencial.10
1.4 Forma e matéria
No plano do conhecimento intelectual, que atinge o ser das coisas,
atende abstrair das substâncias sensíveis, as únicas que nos são diretamente acessíveis, aquilo que nelas possui um ser próprio, vale dizer,
aquilo que nelas “existe por si” de fato e de direito. Isto é possível,
no tienen existencia propia que se agregue a la de la sustancia para completarla. No
tienem, pues, otra existencia que la de ella. Para ellos, existir, es simplesmente ‘existirem-la-sustancia’ o, como se dice también, su esse est inesse.”
Tradução: “Falar das coisas como de substâncias não é concebê-las como
grupos de acidentes ligados por certa cópula a um sujeito; ao contrário: é dizer que
elas estão como unidades de existência, na qual todos os seus elementos constitutivos
são em virtude de um mesmo e único ato de existir, que é o da substância. Os acidentes
não têm existência própria que se agregue ao da substância para completá-la. Não têm,
pois, outra existência que a dela. Para eles, existir é simplesmente ‘existir-na-substância’
ou, como se diz também, seu esse est inesse” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa).
10 “La sustancia no existe por si, en el sentido de que no tenga causa de su
existencia: Deus, el único que existe sin causa, no es una sustancia; ella existe por si
en el sentido de que lo que es le pertenece en virtud de un acto único de existir, y se
explica inmediatamente por este acto, razón suficiente de todo lo que es.”
Tradução: “A substância não existe por si, no sentido de que não tenha causa
de sua existência: Deus, o único que existe sem causa, não é uma substância; ela existe
por si, no sentido de que o que ela é pertence-lhe em virtude de um ato único de
existir, e se explica imediatamente por este ato, razão suficiente de tudo o que ela é”
(GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).
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Sávio Laet de Barros Campos
visto que – a modo de abstração (abstractio) – é sempre exequível
separar aquilo que existe por si, a substância, dos seus acidentes.11 De
resto, nada impede que consideremos à parte aquilo que “existe por
si”, prescindindo, pois, daquilo que não tem existência própria, embora, na realidade, ambos existam num todo uno e indiviso, isto é,
como substância.
Ora, uma coisa que é peculiar às substâncias sensíveis é que elas
se encontram divididas em classes. O que as classifica enquanto pertencentes a uma dessas classes é exatamente aquele elemento que, presente
nelas, as torna passíveis de serem expressas num conceito. Portanto, tal
elemento é o que as coloca dentro de uma dessas classes, tornando-as
cognoscíveis para nós, que temos um conhecimento naturalmente conceitual, ou seja, geral. Com efeito, o elemento que torna as substâncias
sensíveis suscetíveis de serem expressas em conceitos é o que chamaremos, doravante, de forma (forma). É a forma, portanto, o que determina
essas mesmas substâncias, colocando-as numa espécie (species), conforme assevera o próprio Tomás: “E o modo de cada substância composta
de matéria e forma é segundo a sua forma, pela qual ela pertence a uma
determinada espécie” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 43).
Uma notável propriedade destas substâncias é a de serem distribuídas
em classes, cada uma das quais constitui o objeto de um conceito, que,
por sua vez, pode ser expresso em uma definição. É um fato inegável, de
qualquer maneira que se lhe interprete, que pensamos por ideias gerais,
ou conceitos. Para que este fato, que é real, seja possível, é necessário que
o dado de nossa experiência sensível seja conceptualizável, isto é, que sua
11 “El análisis de lo que constituye el ser mismo de las cosas puede, pues, hacer
abstracción del accidente, desprovisto de ser própio, y fijarse sobre la sustancia. Las
únicas sustancias de las que tenemos experiencia directa, son las cosas sensibles, cuyas
cualidades percibimos.”
Tradução: “A análise do que constitui o ser mesmo das coisas pode, pois,
fazer abstração do acidente, desprovido de ser próprio, e fixar-se sobre a substância.
As únicas substâncias das quais temos experiência direta são as coisas sensíveis, cujas
qualidades percebemos” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).
16
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
A existência segundo Tomás de Aquino
natureza se preste a um conhecimento por conceitos. Designemos, pois,
com um termo distinto o que, no real, faz possível o conhecimento conceitual. Chamemos a este elemento a forma da substância. Diremos, pois,
que toda substância implica uma forma, e que, em virtude desta forma,
uma substância pode classificar-se em uma espécie determinada, cuja
definição expressa o conceito (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).12
Cuida precisar agora como podemos distinguir as substâncias que
pertencem a uma mesma espécie, ou seja, que possuem uma mesma
forma. De fato, na nossa experiência mais imediata, não encontramos
o “homem”, mas, sim, indivíduos humanos. Sem embargo, urge saber
o que é que torna tais substâncias diversas, já que todas elas possuem
uma mesma e única forma. Ora, chamaremos de matéria (materia) o
princípio de individuação dessas substâncias, que se encontram em uma
mesma espécie.13
12 “Una notable propiedad de estas sustancias está la de ser distribuibles en
clases, cada una de las cuales constituye el objeto de un concepto, a su vez expresable
en una definición. Es un hecho innegable, de cualquier manera que se lo interprete,
que pensamos por ideas generales, o conceptos. Para que este hecho, que es real, sea
posible, es necesario que el dato de nuestra experiencia sensible sea conceptualizable, es
decir, que su naturaleza se preste a su conocimiento por conceptos. Designemos, pues,
con un término distinto lo que, en lo real, hace posible el conocimiento conceptual.
Llamemos a este elemento la forma de la sustancia. Diremos, pues, que toda sustancia
implica una forma, y que en virtud de esta forma una sustancia puede clasificarse en
una espécie determinada, cuya definición expresa el concepto.”
13 “Por otra parte, es un hecho de experiencia el que las especies no existen
como tales; ‘hombre’ no es una sustancia; las únicas sustancias que conocemos son
los individuos. Por lo tanto debe haber en el individuo un elemento diverso de la
forma, que será precisamente el que distinga unos dos otros, a los representantes de
la misma especie. Designemos ahora este nuevo elemento de lo real con um término
distinto. Llamémosle materia.”
Tradução: “Por outra parte, é um fato de experiência que as espécies não
existem como tais; ‘homem’ não é uma substância; as únicas substâncias que
conhecemos são os indivíduos. Portanto, deve haver no indivíduo um elemento diverso
da forma, que será precisamente o que distingue uns dos outros, aos representantes
de uma mesma espécie. Designemos agora este novo elemento do real com um termo
distinto. Chamemos-lhe matéria” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).
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Sávio Laet de Barros Campos
Portanto, a falar com exação, toda substância sensível é uma unidade
existencial composta de matéria e forma. Assim a define, com meridiana
clareza, Gilson: “[...] toda substância é, ao mesmo tempo e indivisamente, uma unidade de existência de uma forma e de uma matéria”
(GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).14
1.5 O ato de existir da substância
Estabelecidas essas premissas, falta-nos arguir ainda: de onde
provém este ato único de existir da substância? Procede da matéria?
Emana da forma? Ou dimana do composto da união de ambos?
Que não seja a matéria o ato (actus) pelo qual existe (quo est) a
substância, fica claro quando se tem presente que a matéria não tem
existência alguma fora da forma, da qual é matéria. A matéria está
para a forma como a potência (potentia) para o ato. Portanto, a matéria existe, pela forma, na substância – unidade de matéria e forma.
Destarte, fora da substância, a matéria não tem existência alguma.
Ora, uma vez que carece de existência própria, a matéria não pode ser
causa da substância, que justamente possui uma existência própria.
Di-lo-á o próprio Aquinate: “Segundo, porque o ser não é ato próprio da matéria, mas do todo substancial. Pois o ser é ato daquilo do
qual podemos dizer que é. Ora, o ser não se atribui à matéria, mas ao
todo. Donde não se poder afirmar que a matéria é, mas substância é
o que é aquilo que é” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1, 1289).
Que não seja a matéria o que faz com que a substância seja, conhece-se
no que a matéria não é suscetível de existir sem uma forma qualquer.
Sempre será a matéria de uma substância que, por ter uma forma, é
objeto de conceito e de definição [...]. Tomada precisamente como
“[...] toda sustancia es a la vez e indivisamente una unidad de existencia de
una forma y de una materia.”
14
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A existência segundo Tomás de Aquino
matéria, separada de tudo aquilo que forma parte, não tem existência.
[...]. Carecendo de existência própria, a matéria não pode causar a da
substância (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa).15
Tomemos agora a forma, e veremos que também ela não explica
o ato último que dá à unidade ontológica, a qual chamamos substância,
o ato de ser (actus essendi) que a torna um ente (ens). Atesta o próprio
Tomás que “[...] nem a forma é o ser [...]” (TOMÁS DE AQUINO,
1996, II, LIV, 1 (1290)).16 Com efeito, a forma certamente ocupa um
lugar mais nobre do que a matéria na substância. É por ela, antes de
tudo, que a matéria passa a ser a matéria de uma dada substância.17
Além disso, é pela forma que a própria substância passa a ser o que é,
isto é, uma unidade ontológica composta de matéria e forma e capaz de
possuir uma existência própria.18 É a forma, ademais, que especifica
a substância como sendo uma determinada substância. É ela, portanto,
que coloca a substância numa espécie e, desta feita, que confere à
substância uma inteligibilidade própria. Sem embargo, é a forma que dá
uma essência específica à substância, tornando-a, assim, suscetível de
15 “Que no sea la materia lo que hace que la sustancia sea, se conoce en que la
materia no es susceptible de existir sin una forma cualquiera. Siempre será la materia
de una sustancia que, por tener una forma, es objeto de concepto y de definición. [...].
Tomada precisamente como materia, separada de todo aquello de que forma parte,
no tiene existencia. [...]. Careciendo de existencia propia, la materia no puede causar
la de la sustancia.”
16 “[...] nec forma est ipsum esse [...]” (grifo nosso).
17 “La materia no es más que un potencial determinable por la forma, siendo la
forma el acto que hace la materia sea la de tal o cual sustancia determinada.”
Tradução: “A matéria não é mais que um potencial determinável pela forma,
sendo a forma o ato que faz com que a matéria seja a de tal ou qual substância
determinada” (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa).
18 “El papel própio de la forma es, pues, constituir la sustancia como sustancia.
[...]. Concebida así, la forma es aquello por lo cual sustancia es lo que es.”
Tradução: “O papel próprio da forma é, pois, constituir a substância como
substância. Concebida assim, a forma é aquilo pelo qual a substância é o que é” (GILSON,
1951, p. 50, tradução nossa).
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19
Sávio Laet de Barros Campos
ser expressa num conceito.19 No entanto, isto não é tudo, visto que,
uma coisa é explicar o “porquê” de algo ser o que é; outra, bem distinta,
é dizer “porque” tal coisa existe, é um ente (ens). Ora, é precisamente
isto o que a forma não explica.20 Assim, conclui Tomás: “Logo, nos
compostos de matéria e forma, nem a matéria, nem a forma podem
ser ditas o que é [ipsum quod est], nem ser [ipsum esse]” (TOMÁS DE
AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)).21 Nem mesmo com relação às
formas subsistentes pode-se dizer que o ato último pelo qual a substância passa a ser um ente não é a forma: “[...] a forma subsistente
não é um não-ente, mas um ato que é forma participante do último
que é ser” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 44).
Doravante, se não é pela matéria nem pela forma, tomadas isoladamente, que a substância existe (é um ens), então, deve haver algo
que justifique por que com a composição de matéria e forma passa
a existir o que antes não existia, a saber, a substância. Como, pois, da
união de matéria e forma, que, tomadas em separado, não subsistem,
pode nascer um ser que subsista, qual seja, a substância?22 Assim, na
19 “Con seguridad que la forma es un elemento de la sustancia más noble que
la materia, ya que es la que la determina y le confiere la inteligibilidad.”
Tradução: “Com certeza, a forma é um elemento da substância mais nobre que
a matéria, já que é ela que determina e confere inteligibilidade à matéria” (GILSON,
1951, p. 50, tradução nossa).
20 “Explicar un ser como sustancia, equivale a decir por qué dicho ser ‘es lo que
es’. [...]. Sin embargo esto no es todo, ya que una vez explicado por qué un ser es lo
que es, queda por explicar lo que hace que dicho ser exista.” Tradução: “Explicar um
ser como substância equivale a dizer por que tal ser ‘é o que é’. [...]. Sem embargo,
isto não é tudo, já que, uma vez explicado por que um ser é o que é, resta explicar o
que faz com que tal ser exista” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
21 E ainda: “Pois o ser da coisa não é sua forma nem sua matéria, mas algo que
sobrevém à coisa através da forma” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 44).
22 “Ya que ni la materia, ni la forma pueden existir aisladas, compréndese bien
la possibilidad de la existencia de su compuesto, pero no se ve cómo su unión puede
engendrar la existencia actual. Cómo la existencia podria surgir de lo que no existe?”
Tradução: “Já que nem a matéria nem a forma podem existir isoladas,
compreende-se bem a possibilidade da existência do seu composto, porém, não se vê
como sua união pode engendrar a existência atual. Como a existência poderia surgir
do que não existe?” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
20
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A existência segundo Tomás de Aquino
análise do real, o ato de ser (actus essendi) passa a ser o ato primeiro
e fundante: “Forçoso é, pois, fazer passar a existência para primeiro
lugar, como termo último que pode alcançar a análise do real” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).23
Podemos dizer que aqui nos encontramos no epicentro da doutrina tomásica. É este o ponto nevrálgico no qual descobrimos que a
análise do real não termina na substância, e que o ser não se encerra
na forma da substância. Com efeito, o ser (esse) não se identifica com
a substância que o possui. Desta maneira, somos transportados,
pelo próprio Tomás, da “ontologia essencial” de Aristóteles – que
finda no acabamento da substância – para a sua própria ontologia,
transfigurada em “ontologia existencial”. Tal “ontologia existencial”
se define pelo fato de que, para além da substância, há um ato de ser
(actus essendi) pelo qual ela existe, isto é, pelo qual ela se torna um ente,
ou seja, um sendo.24
Destarte, não é mais a forma que dá a última palavra sobre o ser,
isto é, o ser não consiste mais naquele elemento que faz com que a
substância seja o que é e se encontre numa determinada espécie. O ser,
propriamente falando, deixa de designar a forma da coisa (res). Doravante, a forma passa a ser como um quo est secundário da substância,
subordinado ao seu verdadeiro quo est primário, que é o ato de ser
(actus essendi). Com efeito, para além da forma, e precedendo-a, há um
“Forzoso es, pues, llegar a hacer pasar la existencia a primer lugar, como último
término que pueda alcanzar el análisis de lo real.”
24 “Convengamos en llamar ‘esencial’ a toda ontología, o doctrina del ser, para
la cual las nociones de sustancia y de ser equivalgan. Se dirá entonces que, en uma
‘ontología essencial’, el elemento que termina al acabamiento de la sustancia es el
elemento último de lo real. No puede suceder lo mismo en una ‘ontología existencial’,
en la que el ser se define en función de la existencia.”
Tradução: “Convecionamos chamar ‘essencial’ toda ontologia, ou doutrina do
ser, para a qual as noções de substância e ser equivalem-se. Dir-se-á então que, em uma
‘ontologia essencial’, o elemento que termina o acabamento da substância é o último
elemento do real. Não pode suceder o mesmo em uma ‘ontologia existencial’, na qual
o ser se define em função da existência” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
23
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Sávio Laet de Barros Campos
ato de ser (actus essendi) que faz com que a substância – cuja essência
cuida à forma determinar – exista, seja um ente. Tomás arrola este
argumento, arrazoando que o esse se comporta como ato com relação
à própria forma, que só passa a ser princípio de ser para a substância,
enquanto é atualizada (actuatio) pelo esse, atualidade (actualitas) primária
que torna a substância um ente:
Além disso, porque o ser está como ato para a forma [ipsam etiam formam
comparatur ipsum esse ut actus], pois, por esse motivo, nos compostos de
matéria e forma, a forma é dita princípio do ser [principium essendi], porque
é complemento da substância [complementum substantiae], cujo ato é o ser
[actus est ipsum esse] (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1291)).25
Estamos diante de um evento verdadeiramente epocal. Trata-se
realmente de uma nova ideia, geratriz de todas as outras; originária,
ademais, do sistema que abordamos. A substância – um composto
de matéria e forma –, unidade ontológica e existencial, não existe,
doravante, nem em virtude da matéria nem em virtude da forma
nem mesmo em virtude do composto, senão que passa a ser um ente
25 Adiante, ele é ainda mais claro: “[...] o ser é aquilo que faz a substância
denominar-se ente” (TOMÁS DE AQUINO, II, LIV, 1 (1292); “Cuando se la contempla
con relación a la existencia, la forma cesa, efectivamente, de aparecer como la última
determinación de lo real. [...]. Desde este segundo punto de vista, la forma sustancial
aparece como un quo est secundario, subordinado al quo est primário que es el acto
mismo de existir. Más allá de la forma, que hace que un ser sea tal ser, de tal especie
determinada, es preciso poner el esse o acto de existir, que hace que la sustancia así
constituída sea un ens.”
Tradução: “Quando contemplada com relação à existência, a forma cessa,
efetivamente, de aparecer como a última determinação do real. [...]. A partir deste
ponto de vista, a forma substancial aparece como um quo est secundário, subordinado
ao quo est primário, que é o ato mesmo de existir. Mais além da forma, que faz com
que um ser seja tal ser, de tal espécie determinada, é preciso por o esse ou ato de existir,
que faz com que a substância assim constituída seja um ente” (GILSON, 1951, p. 51,
tradução nossa).
22
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A existência segundo Tomás de Aquino
por força de um ato de ser (actus essendi), que lhe é ulterior. Em outras
palavras, se a forma é o quo est da substância, o ato de ser (actus essendi)
é o quo est da própria forma. Por conseguinte, é o esse, no seu primado
absoluto, que faz com que a substância seja um ente. É o que conclui
o Aquinate: “Todavia, a forma pode ser dita pelo qual é [quo est] a coisa,
enquanto princípio do ser [principium essendi]; mas a substância toda
[tota substantia] é que o que é [quod est], e o ser [ipsum esse] é aquilo que
faz que a substância [substantia] denomine-se ente [ens]” (TOMÁS DE
AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)).26
O que é exatamente o ser (esse)? É o existir? Mas o próprio existir, o que é? É um ato ou um estado? O ser (esse) se confunde com o
ente? Qual a sua relação com a essência? Como ele se comporta em
relação à substância? É dessas e outras questões que, concisamente,
passaremos a tratar.
2 O ser (esse) e o ente
Segundo Tomás, “[...] o termo ser designa um ato”.27 De fato,
“o ato é o que mais propriamente é” (LAUAND, 1999, p. 61). No
entanto, o que é o ato? Ora, não há uma definição rigorosa para ele.
26 “Lo que interesa retener ante todo, es que la misma sustancia, o el compuesto,
no existe más que en virtud de una determinación ulterior, esta vez verdaderamente
suprema, que es su mismo acto de existir. En este sentido, o esse es el quo est de la
forma, que a su vez es el quo est de la sustancia; es pues lo que hace que la sustancia
seja un ens, que posea el acto de existir.”
Tradução: “O que interessa reter, antes de tudo, é que a mesma substância, ou
o composto, não existe mais que em virtude de uma determinação ulterior, desta vez
verdadeiramente suprema, que é seu mesmo ato de existir. Neste sentido, o esse é o quo est
da forma, que, por sua vez, é o quo est da substância; é, pois, o que faz com que a substância
seja um ens, que possua o ato de existir” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
27 “Esse actum quendam nominat” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XXII, 4
(208), o parêntese é nosso). Numa passagem da Summae Theologiae, Tomás usa o termo
ens como sinônimo de esse. Ele diz: “[...] o ente designa propriamente algo que está
em ato” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5, I, ad 1).
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Com efeito, potência e ato são noções tão fundamentais que escapam
a toda definição estrita. Sabe-se, contudo, que com o termo latino
“actus” quer-se traduzir o termo grego energéia, que designa uma ação
ou atividade. Logo, sendo, antes de mais nada, um ato (actus), o “ser é,
acima de tudo, atividade, ato” (LAUAND, 1999).
Agora bem, este mesmo ser (esse) concebido como ato coloca a
substância num estado, o estado de ente, ou seja, num sendo. E, por isso
mesmo, tendemos a identificar o ser (esse) com o ente (ens). No entanto,
cumpre discriminar sempre e cuidadosamente o esse como ato de ser, que
é o que funda e sustenta a substância no estado de ente, do próprio ente,
que é propriamente um estado, o estado de habens esse.28 Portanto, importa
que não “entifiquemos” o esse, pois “todas as coisas, todos os entes são,
antes de tudo, aqueles que ‘exercem o ato’ de ser” (LAUAND, 1999,
p. 61), e não o próprio ser (esse). Destarte, cuida que distingamos o ser
(esse) e o ente (ens), como diferenciamos um ato de um estado.
De fato, após termos ultrapassado a substância, o próprio ente, e
havermos chegado finalmente ao esse entendido como ato de ser (actus
essendi), corremos o risco, de resto, sempre presente para nós – cujo
modo de conhecer natural é conceitual –, de transformarmos o mesmo esse como ato de ser (actus essendi) numa espécie de essência (essentia),
suscetível, por conseguinte, de ser expressa num conceito. Ora, tal
28 “Para comprender este principio en su naturaleza propia, es necesario recordar
que, como todo verbo, el verbo esse designa una acción, un acto, y no un estado. El estado
en él que el esse coloca a aquello que lo recibe, es el estado de ens, es decir un “siendo”.
Tradução: “Para compreender este princípio em sua natureza própria, é
necessário recordar que, como todo verbo, o verbo esse designa uma ação, um ato, e
não um estado. O estado no qual o esse coloca aquilo que o recebe, é o estado de ens,
isto é, um ‘sendo’” (GILSON, 1951, p. 53, tradução nossa).
Em outro lugar, ensina Gilson dizendo que ens diz-se daquilo que possui o ato
de existir, habens esse: “Nunca estará de más repetirlo: el ens no es ni puede ser último
sino refiriéndose al existir; ens significa habens esse”. Tradução: “Nunca será demais
repeti-lo: o ens não é nem pode ser último senão referindo-se ao existir; ens significa
habens esse” (GILSON, 1951, p. 63, tradução nossa).
24
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A existência segundo Tomás de Aquino
procedimento, longe de nos fazer apreender o ser (esse) numa definição,
só nos alienará dele, fazendo-nos esquecê-lo em sua singularidade.
Com efeito, como dissemos, o ser é, antes de qualquer coisa, um ato. E
um ato, conforme também já averiguamos, é uma noção tão universal
que não se deixa definir. Logo, sendo um ato, “[...] o ser escapa a qualquer definição” (LAUAND, 1999, p. 61). Desta sorte, “não podemos
transformá-lo num conceito, como o fazemos com a essência de qualquer coisa, porque é anterior a qualquer ideia” (LAUAND, 1999, p. 62).
O termo grego eidos (ideia) é traduzido, em latim, por forma. Logo,
“por ideias, portanto, se entendem as formas de todas as coisas que
existem fora das coisas mesmas” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I.
15, 1, C). Porém, o esse, em conformidade com o que temos dito, não
é a forma, mas é o quo est da própria forma. E, sendo a forma o que na
substância é suscetível de ser expresso num conceito, “o ser é, e sempre será, um mistério que o homem não pode esgotar” (LAUAND,
1999, p. 61); porquanto, ele não pode ser expresso num conceito, ele
não se deixa prender numa ideia.
Ora bem, uma filosofia em que o ser designa, antes de tudo, um
ato, é uma filosofia do real, pois o “[...] ato é o que é real, fático, já realizado [...]” (LAUAND, 1999, p. 62). Ademais, tal filosofia torna-se,
assim, o que há de mais oposto a um sistema essencialista, como bem
frisa o Prof. Lauand: “Ao contrário de todo pensamento essencialista,
Tomás não parte das essências, mas das coisas, dos entes, da realidade”
(1999, p. 62). É ainda Lauand quem afirma: “É pelo ato de ser que
Tomás supera todo tipo de essencialismo e é ‘o mais existencialista
de todos os filósofos’” (1999, p. 60).
Note-se bem, todavia, que não se quer com tal distinção, qual
seja, entre ser (esse), ente e essência, olvidar a importância da essência
nem esquivar-se do plano conceitual, mas apenas transcendê-los,
ultrapassá-los, como exige a própria realidade. Esta distinção não
corresponde, nem de longe, a uma separação entre esses elementos.
Aliás, na concretude do real todos eles se encontram em uma unidade
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inviolável: o ser (esse), o ente (ens) e a essência (essentia) estão intrinsecamente unidos na unidade indivisa da substância (substantia).
Como se dá a unidade desses elementos no real? Explica Lauand:
“Todo ente é e é algo: é homem, é cão, é pedra. Nesta composição,
se o responsável pelo é do ente é o ato de ser, seu complemento
necessário, a essência, corresponde ao ‘quê’ que o ente é” (LAUAND,
1999, p. 62). Por conseguinte, se o ente é o que exerce o ato de ser
(actus essendi), “[...] a essência é a medida da recepção do ato de existir”
(LAUAND, 1999, p. 63). De fato, se a substância é um ente pelo ato de
ser (actus essendi), a essência é o que o ente é, e, assim, “[...] a essência
é o que responde à pergunta: ‘O que é isto’?” (LAUAND, 1999, p.
63). Em uma palavra, o ente, em nossa experiência, é sempre alguma
coisa que existe, alguma coisa que possui e exerce um ato de ser (actus
essendi) delimitado pela sua essência. Assim, pois, ser (esse), ente (ens)
e essência são inseparáveis na nossa experiência sensível, conquanto
permaneçam distintos. Joseph Nicolas assim sintetiza esta unidade na
diversidade ou estes desdobramentos do conceito de ser:
Quando se fala de ser, pode-se tratar do que é uma realidade (sua essência), do ato de existir que a faz ser real (sua existência), do ser que
exerce esse ato e que se define como sendo isto em vez daquilo (é o
ens, o sendo). Inseparabilidade da essência e da existência, pois nada é
concebível como existente senão conforme uma essência. Mas distinção
real, “o que é” um ser não pode identificar-se com o fato de ser, nem,
sobretudo, com o ato pelo qual ele “é” (MARIE, 2001. p. 41).
3 A clássica distinção entre essência e existência
Essência e existir atende saber distingui-los, sem eliminá-los.
Cuida frisar-lhes a diferença sem suprimi-los ou confundi-los. A
consagrada distinção entre essência e existência, tal como é explanada
por certos comentadores, segundo nos parece, não é satisfatória, porquanto resulta numa tentativa de essencializar o ato de ser (actus essendi),
como se a existência da coisa fosse, então, a essência do esse.29 De fato,
26
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A existência segundo Tomás de Aquino
importa sublinhar que a existência da substância é um estado, ou seja,
o fato de ela existir é o que a faz ou a torna um ente, um “sendo”. E,
como temos dito, o ente (ens) é o que é, e não o ato de ser (actus essendi)
pelo qual (quo est) a coisa (res) é e é o que é (quod est). O ente, segundo
também temos afirmado, é como que o exercício, por assim dizer, do
ato de ser (actus essendi) que ele possui, não sendo, todavia, o próprio
ato de ser (actus essendi), haja vista que o ato de ser (actus essendi) é um
ato, e não propriamente um estado, o estado de ente. Portanto, cumpre-nos dizer que a clássica distinção é insuficiente.
Na verdade, esta confusão entre existência e existir, entre ser (esse)
e ente, procede do fato – tão corriqueiro quanto inevitável para nós
– de que na nossa experiência concreta não encontramos nada que
seja um puro ato de ser (actus essendi), mas tão-somente algo que existe:
“uma árvore existente”, “um homem que existe” etc. De fato, nós
só encontramos entes que exercem o ato de ser (actus essendi), sem sê-lo
por essência (per essentiam). Por isso mesmo, tendemos a identificar o
ser (esse) com aquilo que o tem e exerce, a saber, o ente (ens). Destarte,
como o quid est do ente nos é apreensível, enquanto confundimos o
esse com o ente, supomos que também o esse – tal como a quididade
de um ente qualquer – possa também ser definido num conceito. E,
assim, inclinamo-nos a pensar o esse como sendo algo estático. Mas a
verdade é que o esse não é como uma essência, nem sequer tem uma
essência se considerado em si mesmo. Ao contrário, o esse, enquanto
tal, é simplesmente um ato. Decerto a existência de uma coisa atesta
que ela possui o esse de algum modo, mas tal estado de existente não
é o próprio ato de ser (actus essendi), senão que é apenas a expressão
evidente do seu vigor e como que a manifestação da sua presença.
29 “Hablar de la distinción entre esencia y existencia, es expresarse como si la
misma existencia fuera una esencia: la esencia del ato de existir. Y esto es ponerse a
tratar como una cosa lo que es un ato.”
Tradução: “Falar da distinção entre essência e existência é expressar-se como
se a mesma existência fosse uma essência: a essência do ato de existir. E isto é tratar
como uma coisa o que é um ato [...]” (GILSON, 1951, p. 54, tradução nossa).
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Sávio Laet de Barros Campos
4 O esse: o ato dos atos e a perfeição das perfeições
O esse é o ato, havíamos dito, da própria forma.30 E, seguindo este
raciocínio, dissemos também que o esse passa a ser o quo est primário da
própria substância, enquanto a forma passa a ser apenas o quo est secundário da mesma substância. De fato, como é a forma que determina o ser da
substância, e é o esse que determina o ser da própria forma,31 a substância
deve ao esse, em último termo, o seu status de ente, conforme deixa claro
Frei Tomás: “Todavia, a forma pode ser dita pelo qual é [quo est] a coisa,
enquanto princípio do ser; mas a substância toda é o que é [est ipsum quod
est], e o ser [ipsum esse] é aquilo que faz a substância denominar-se ente
[ens]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)).
Assim, sendo o esse o que confere o ser a todas as coisas, é ele o
que mais propriamente se pode designar como ser: “Para Sto. Tomás,
o ser é antes de tudo existir. O ser se define em função da existência”
(MARIE, 2001, p. 40). Desta sorte, numa “ontologia existencial” como
a tomásica, o ser passa a designar realmente um ato (actus), o ato de
ser ou existir (esse, actus essendi), como já explicamos. E há mais. Como
cada coisa é perfeita na medida em que está em ato,32 o esse, sendo um
ato em si mesmo e um ato com relação a todas as coisas, é, ipso facto,
“Ora, qualquer forma particular só se encontra em ato se se lhe acrescentar
o ser [esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, p. 220, 221).
31 “Portanto, o ser [esse] é o complemento de todas as formas. De fato, a forma
só chega à conclusão quando tem o ser [esse]; e só tem o ser [esse] quando é em ato.
De modo que não existe nenhuma forma a não ser mediante o ser [esse]” (TOMÁS
DE AQUINO, 2005d, p. 220).
32 Por que uma coisa é perfeita enquanto está em ato?, poder-se-ia arguir-nos.
Diz-se perfeito, do latim perfectio, ao que está totalmente feito (totaliter factus). Portanto,
per-fectum diz-se sempre de algo que já está realizado, consumado, concluído. Ora,
opõe-se a esta noção de perfeição a noção de potência. Do latim, o termo potentia
designa sempre o que pode ser, mas ainda não é; potência é sempre uma capacidade
de vir-a-ser. Ao contrário, o ato, do latim, actus, praticamente coincide com a definição
que propomos dar para perfeição. Entretanto, o ato designa, antes de tudo, algo já
realizado, completo, arrematado.
30
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A existência segundo Tomás de Aquino
o que há de mais perfeito na coisa33 e a perfeição das perfeições, isto
é, a fonte de todas as demais perfeições.34 De fato, enquanto o esse é a
atualidade de todo ato, e sendo o ato a própria perfeição de uma coisa,
é do esse que procede toda perfeição: “[...] o ser [esse] é a atualização
[actualitas] de qualquer forma ou natureza. Não se entende a bondade
ou a humanidade em ato, a não ser enquanto as entendemos como
existindo [esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001. I, 3, 4, C).
Em uma palavra: “Ora, aquilo que é o mais formal (maxime formale
omnium) é o próprio ser (ipsum esse)”,35 e, sendo assim, é o epicentro ou
o polo de onde dimana toda perfeição. Dizer, afinal, que o esse é um
ato para si próprio, corresponde a dizer que ele não é o ato de uma
essência, mas sim o ato pelo qual a essência – e toda a substância,
inclusive a própria forma – passa a ser um ente.36 Por isso, em relação
à forma e à própria substância como um todo, o esse não se comporta
como tendo delas recebido algo; ao contrário, foi ele (o esse) que lhes
conferiu e confirma o estado de habens esse:
Deve-se dizer que o ser (ipsum esse) é o que há de mais perfeito entre
todas as coisas, pois a todas se refere como ato. E nada tem atualidade
senão enquanto é: o ser (ipsum esse) é, portanto, a atualidade de todas as
coisas, até das formas. Por conseguinte, não se refere às coisas como o
recipiente ao que é recebido, e sim como o que é recebido ao recipiente
(TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 4, 1, ad 3).
“[...] esse est inter omnia perfectissimum [...].”
Tradução: “[...] o ser é a mais perfeita de todas as coisas” (TOMÁS DE
AQUINO, 2005b, p. 220).
34 “O ser [esse] é a atualidade de todo ato e, portanto, a perfeição de toda
perfeição” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, p. 2119).
35 “O ser, concebido como raiz de tudo, é o que põe em ato tudo aquilo que
existe. [...] o ser é o ato supremo, a forma de todas as formas” (TOMÁS DE AQUINO,
2001, p. 220).
36 “Além da forma que faz que tal ser se situe numa espécie determinada, é
preciso situar o esse ou ato de existir que faz com que a substância assim constituída
seja um ens, um ser” (MARIE, 2001).
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Sávio Laet de Barros Campos
5 O ser (esse) e a essência
Sendo o esse um ato para si mesmo, isto significa, finalmente, que ele
é puro, isto é, isento de toda ulterior determinação, ele simplesmente existe. Agora bem, este existir puro, por mais nada determinado, é, ademais,
infinito. Além disso, enquanto puro ato – e o ato é o que responde por
toda perfeição –, o esse, sendo um ato ilimitado, é também uma perfeição
infinda. Ele é o que é: unicamente ato de existir. Único, de fato, porque
nada pode ser concebido, enquanto existindo, que exista fora dele, visto
que, sendo ele o próprio existir, nada pode existir independentemente
dele, e nem ser o que ele não seja, de forma mais eminente.37
É claro que, para um ato de existir como este, nem se colocaria o
problema da distinção entre essência e existir (esse), pois, se assim nos
pudéssemos expressar, no caso do tal ato puro de existir, a sua essência
seria precisamente existir (esse). Ele existiria em virtude de si mesmo,
seria o seu próprio existir (suum esse). Porém, bem se vê que não é exatamente deste ipsum esse subsistens que estamos falando agora, e, sobre
a sua existência ou não, nada podemos concluir ainda. Por hora, com
relação a ele, podemos apenas postular que, se verdadeiramente existe,
deverá, deveras, ser de tal forma que a sua própria essência (essentia)
seja ato puro de existir (esse). Dito de outra forma, se existir, existirá
por si mesmo (a se).38
“Poner semejante acto, sin outra determinación, es ponerlo como puro, ya que
no es sino el acto de existir; pero es también ponerlo como absoluto, ya que es todo
el acto de existir; y, finalmente, es ponerlo como único, ya que nada que sea puede
concebirse como siendo que el acto puro de existir no lo sea.”
Tradução: “Por semelhante ato, sem outra determinação, é pô-lo como puro, já
que não é senão o ato de existir; porém, é também pô-lo como absoluto, já que é todo o
ato de existir; e, finalmente, é pô-lo como único, já que nada que seja pode conceber-se
como sendo que o ato puro de existir não o seja” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).
38 “Que el acto puro de existir exista o no, todavía lo ignoramos a esta altura
de nuestra investigación; pero está claro, por lo menos, que si tal ser existe, existe en
cierto modo por derecho propio, como ser cuya esencia misma es el existir.”
Tradução: “Que o ato puro de existir exista ou não, todavia ignoramo-lo a
esta altura de nossa investigação; porém, está claro, pelo menos, que, se tal ser existe,
existe de certo modo por direito próprio, como ser cuja essência mesma é o existir”
(GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).
37
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A existência segundo Tomás de Aquino
No entanto, no nosso contato com as coisas sensíveis – as
únicas, aliás, que nos são imediatamente acessíveis –, encontramos
apenas atos de existir finitos e limitados. Na nossa experiência mais
concreta com o real, deparamo-nos somente com “um animal que
existe”, com “um homem existente”, ou com uma “árvore que existe”. Todos estes seres compõem espécies que se distinguem uma das
outras pelo fato de cada uma ter uma essência própria.39 Portanto,
dados atos de existir, encontrá-los-emos definidos e determinados pelas
diversas essências que constituem os entes que povoam este mundo.
E é justamente em relação à existência destas substâncias que se
coloca, de forma inalienável, o problema da distinção, nelas, entre
essência e ato de existir (esse, actus essendi), já que em nenhuma delas
a essência se identifica com o ato de existir. De fato, a essência de
uma árvore é ser uma árvore, de um animal, ser um animal, de um
homem, ser um homem. Assim sendo, a existência não se inclui em
nenhuma dessas essências. Por conseguinte, o fato de elas existirem
torna-se um problema inolvidável para o metafísico, já que não
possuem em si a razão do seu existir.40
39 “Son, como lo hemos dicho ya, las sustancias concretas, objeto de nuestra
experiencia sensible. Ninguna dellas nos es conocida como un puro acto de existir.
Distinguimos a cada una de ellas como siendo ya ‘un árbol existente’, o ‘un animal
existente’, o ‘un hombre existente’. Esta determinación específica de los atos de
existir, que sitúa a cada uno de ellos en una espécie determinada, es precisamente lo
que llamamos su esencia.”
Tradução: “São, como já temos dito, as substâncias concretas, objeto de nossa
experiência sensível. Nenhuma delas nos é conhecida como um puro ato de existir.
Distinguimos a cada uma delas como sendo já ‘uma árvore existente’, ou ‘um animal
existente’, ou ‘um homem existente’. Esta determinação específica dos atos de existir,
que situa cada um deles em uma espécie determinada, é precisamente o que chamamos
sua essência” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).
40 “Ahora bien, si se trata de tales seres, los únicos de que tenemos conocimiento
empírico, el problema de su existencia se impone ao pensamiento. [...] en um árbol,
un animal o un hombre. Su esencia es ser ya un árbol, ya un animal, ya un hombre;
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Sávio Laet de Barros Campos
Ora bem, já dissemos que o ser (esse) é, antes de qualquer coisa,
um ato, uma ação ou uma atividade. Aliás, é a primeira e a mais
fundamental das ações, pois todas as demais ações de uma natureza
procedem dele, tendo em vista que o “[...] agir segue o ser em ato
[...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001 III, LXIX, 10 (2450)),41 e o “[...]
o modo de agir [modus operandi] de toda coisa é uma consequência de
seu modo de existir [modum essendi]” (TOMÁS DE AQUINO, I, 89,
1, C).42 Contudo, ao mesmo tempo, segundo a arguta observação
do Prof. Lauand, “[...] o ser não é uma atividade a mais que deriva da
natureza de cada coisa. O ser – no sentido de ser-real – está fora e acima da série de características que compõem a essência” (LAUAND,
1999, p. 61). Com outras palavras, a raiz da ação de todas as coisas,
isto é, a causa primeiríssima de toda atividade das criaturas não procede da natureza delas, pois o ato de todas as ações é o existir (esse),
que, precisamente, nenhuma delas possui por essência (per essentiam).
Por conseguinte, neste ponto de vista, a vetusta distinção entre
essência e existência recupera, ao menos parcialmente, o seu sentido.
Entretanto, melhor seria concebê-la e colocá-la como uma distinção
em ningún caso su esencia es el existir. El problema de la relación de la esencia con
su acto de existir se plantea, pues, de una manera ineluctable respecto de todo ser
cuya esencia no sea el existir.”
Tradução: “Agora bem, se se trata de tais seres, os únicos de que temos
conhecimento empírico, o problema de sua existência se impõe ao pensamento. [...]
uma árvore, um animal ou um homem. Sua essência é ser já uma árvore, já um animal,
já um homem; em nenhum caso sua essência é o existir. O problema da relação da
essência com seu ato de existir se coloca, pois, de uma maneira inelutável, com respeito
a todo ser cuja essência não seja o existir” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).
41 “[...] agere sequitur ad esse in actu [...].”
42 “O ato [actus], com efeito, é o princípio da ação [actionis principium est]” (TOMÁS
DE AQUINO, 1996, II, VI, 6 (884)); “[...] a coisa age [agit] enquanto é ato [actu]”
(TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XVI, 4 (131)); “Além disso, nenhuma coisa opera
[agit] senão enquanto está em ato [actu]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XXVIII,
4 (265)). E ainda: “[...] todo ser [unumquodque] age [agit] enquanto está em ato [actu]”
(TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 25, 1, ad 1).
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A existência segundo Tomás de Aquino
entre essência e ato de existir (esse, actus essendi). É o que conclui Gilson: “Tal é também o alcance da distinção de essência e existência,
que indubitavelmente seria melhor chamar distinção de essência e de
existir” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).43
Com efeito, o que fica estabelecido como certo é que um ente cuja
essência não seja ato de ser (actus essendi) não existe por direito próprio.
Ora, é justamente com isto que nos deparamos na nossa experiência
sensível mais imediata. Encontramo-nos, de fato, diante de entes cuja
essência não é ato de ser (actus essendi). Destarte, tais entes, inobstante
existam, poderiam também não existir. Em uma palavra, são entes
contingentes, isto é, entes cuja essência não implica ou inclui o ato de
ser (actus essendi). Esses entes, por conseguinte, não têm em si a razão
suficiente da sua existência, a saber, o fato mesmo de serem entes.
Dito isso, teríamos que colocar em seguida a questão da existência de
Deus – ser necessário e Ipsum Esse Subsistens –, mas isso já excederia
o objeto de estudo deste ensaio.
Conclusão
Nem a hyle (matéria), nem a morphé (forma), tampouco o sínolo,
constitui, para Tomás, o núcleo mais íntimo do real. Antes, o pulsar
primeiro da realidade – o coração do real –, em Tomás, está no ato de
existir (esse),44 ou seja, naquele ato de ser (actus essendi) pelo qual a própria
substância (ousía) passa a ser um ente (ens), um existente. A metafísica
“Tal es también el alcance de la distinción de esencia y existencia, que
indudablemente sería mejor llamar distinción de esencia y de existir.”
44 “Así entendido, el acto de existir se sitúa en el corazón o, si se quiere, en raiz
misma de lo real. Es, pues, el principio de los principios de la realidad.” Tradução:
“Assim entendido, o ato de existir se situa no coração ou, se se quiser, na raiz mesma
do real. É, pois, o princípio dos princípios da realidade” (GILSON, 1951, p. 52, 53,
tradução nossa).
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Sávio Laet de Barros Campos
tomasiana não se encerra, portanto, no hilemorfismo aristotélico. Tomás
não deixa de se referir a esta ontologia existencial. Para ele, nas substâncias sensíveis há duas composições (compositio) de potência (potentia)
e ato (actus), a saber, a de matéria e forma, que constitui a substância
(substantia), e a de substância (substantia) e ser (esse), pela qual a substância
passa a ser um ente (ens), ou seja, a existir:
Porém, nas substâncias compostas de matéria e forma há dupla composição de ato e potência: uma, é a da própria substância, que se compõe
de matéria e forma; outra, da própria substância (que já é composta) e
ser, composição que também pode ser expressa assim: o que é e ser, ou
o que é e pelo qual é. (TOMÁS DE AQUINO, 1996 II, LIV, 3 (1295)).45
Eis, enfim, estabelecida a primazia do esse. Isto implica que, antes da
bondade, há o ser, fonte de toda bondade: “[...] todo ente, enquanto tal,
é bom” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5, 3, C). Em uma palavra, isto
significa que, como diz Tomás: “[...] o ser (esse) é a atualidade (actualitas)
de todas as coisas (omnis rei) [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5,
1, C). Ora, com este primado do ipsum esse ultrapassamos o plano da
essência, visto que, acima de toda e qualquer forma (que é o quo est que
45 Mesmo em relação às substâncias separadas, uma coisa é o ato de ser; outra é
a substância receptiva desse ato: “Logo, em todo e qualquer ser – exceto o primeiro
– há tanto o próprio ser como ato, quanto à substância que possui o ser da coisa
como potência receptiva deste ato que é o ser” (TOMAS DE AQUINO, 2006, 8, 42);
“En resumen: en las sustancias concretas que son objeto de la experiencia sensible,
escalónanse en profundidad dos composiciones metafísicas: la primera, la de la materia
y de la forma, constituye la sustancialidad de la sustancia; la segunda, la de la sustancia
com el ato de existir, constituye la sustancia como ser, por hacer de ella un existente.”
Tradução: “Em resumo: nas substâncias concretas, que são objeto da
experiência sensível, escalam-se em profundidade duas composições metafísicas: a
primeira, a de matéria e forma, constitui a substancialidade da substância; a segunda,
a da substância como ato de existir, constitui a substância como ser, por fazer dela
um existente” (GILSON, 1951, p. 52, tradução nossa).
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A existência segundo Tomás de Aquino
determina o quod est da substância, isto é, a sua essência),46 encontra-se
o ipsum esse, que é o ato da própria forma, ou seja, o seu quo est: “Dizer
que o existir se comporta como um ato, ainda com respeito à forma – ad
ipsam etiam formam comparatur esse ut actus – é afirmar a primazia radical da
existência sobre a essência” (GILSON, 1951, p. 52, tradução nossa).47
Fica estabelecido, além disso, que o ato de ser (actus essendi) não é um
agregado à coisa; ao contrário, ele é o que há de mais íntimo em algo,
é o que por primeiro deve-se denominar ser. E é por isso, aliás, como
bem acentua Lauand, que “[...] o ato de ser é que é o ponto de partida
[...]”, ou seja, partimos dele exatamente porque ele é “[...] o elemento
mais fundamental de todos os entes” (LAUAND, 1999, p. 63). De
fato, o esse é o que há de mais basilar na substância. Destarte, assim
é porque antes de possuir o ser (esse), a própria essência, que é o quid
est da substância, é um puro nada, conforme afirma o próprio Aquinate:
“Antes de possuir o ser [esse], a essência é um puro nada” (TOMÁS DE
AQUINO, 2005b, 3, 5, ad 3. p. 219). Ademais, é o esse o que determina
a própria forma, que é a que, por seu lado, determina e dá unidade existencial à substância. Logo, o esse é o que funda a mesma substância no
que ela tem de mais íntimo, a saber, a sua unidade existencial de matéria e
forma: “Ora, o ser (esse) é o que há de mais íntimo e de mais profundo
em todas as coisas, pois é o princípio formal de tudo o que nelas existe
[...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 8, 1, C). Conclui Tomás:
O ato primeiro é o ser subsistente [esse subsistens] por si mesmo. Por isso,
todas as coisas recebem o último complemento pela participação no ser
[esse]. [...]. Por isso, afirmo que o ser substancial de todas as coisas não
46 A forma, ao determinar a essência (essentia), determina também os
complementos da essência (essentia).
47 “Decir que el existir se comporta como um acto, aun com respecto a la
forma – ad ipsam etiam formam comparatur esse ut actus – es afirmar la primacía radical de
la existencia sobre la esencia.”
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é um acidente, e sim a atualidade de todas as formas existentes, sejam
elas dotadas ou não de matéria (TOMÁS DE AQUINO, 2005d, XII,
5, 1. p. 220).
E não é só. Neste mesmo sentido, di-lo-á o mesmo Tomás que,
sendo o esse o que há de mais íntimo no ente, medir-se-á a profundidade de tudo mais que houver no ente pela sua maior ou menor
proximidade do esse. Corolário espontâneo de tudo quanto dissemos é
que, para Tomás, não é esse que deriva de essentia, mas sim essentia é que
deriva de esse. Com outras palavras ainda, não é correto dizer que algo
é (esse) porque é um ser (ens), mas, sim, que algo é um ser (ens) porque
é (esse). “Esse não deriva de essentia, senão essentia de esse. Não se diz de
um objeto qualquer que é porque é um ser, senão, melhor, ou ao menos
deveria concebê-lo assim, que é um ser porque é. Por isso o existir não
é um acidente da essência” (GILSON, 1951, p. 63, tradução nossa).48
Referências
GILSON, Etienne. El tomismo: introducción a la filosofía de Santo
Tomás de Aquino. Trad. Alberto Oteiza Quirno. Buenos Aires: Desclée
de Brouwer, 1951.
LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: vida e pensamento – estudo
introdutório geral (e à questão “sobre o verbo”). In: Verdade e
conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MARIE, Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. Trad. Henrique C.
de Lima Vaz et al. São Paulo: Loyola, 2001.
MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. 2.
ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005.
“Esse no deriva de essentia, sino essentia de esse. No se dice que un objeto
cualquiera que es porque es um ser, sino más bien, o al menos debería concebírselo
así, que es un ser porque es. Por eso el existir no es un acidente de la esencia [...].”
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
A existência segundo Tomás de Aquino
TOMÁS DE AQUINO. De natura accidentium. In: MONDIN, Battista.
Quem é Deus? elementos de teologia filosófica. 2. ed. Trad. José Maria
de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005a.
______. De potentia. In: MONDIN, Battista. 2. ed. Quem é Deus?
Elementos de teologia filosófica. Trad. José Maria de Almeida. São
Paulo: Paulus, 2005b.
______. O ente e a essência. 2. ed. Trad. Carlos Arthur do Nascimento.
Rio de Janeiro: Vozes, 2005c.
______. Quodl. XII, 5, 1. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus?
Elementos de teologia filosófica. 2. ed. Trad. José Maria de Almeida.
São Paulo: Paulus, 2005d.
______. Sobre os Anjos. Trad. Luiz Astorga. Rev. Carlos Nougué. Rio
de Janeiro: Sétimo Selo, 2006.
______. Suma contra os gentios. Trad. Odilão Moura e Ludgero Jaspers.
Rev. Luis A. De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. 2 v.
______. Suma teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo:
Loyola, 2001. v. I.
THE EXISTENCE ACCORDING TO THOMAS AQUINAS
Abstract
This article studies the notion of existence in Thomas Aquinas’ ontology.
It discusses the existence understood as the act of being. To develop
this theme, we will define some recurrent terms in Thomas’ ontology:
substance, essence, accident, matter, form, being, act and potentiality.
Having conducted to the analysis of these terms, we will try to relate them
to the being. Thus, we will deal with the issue of the relation between: being
and substance, being and entity, essence and existence, being and act and
being and perfection.
Key words: Existence, act, perfection.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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ALGUMAS PREMISSAS FILOLÓGICAS PARA
A COMPREENSÃO DO SENTIDO DE BEATITUDE
NO ‘DE BEATA VITA’ DE S. AGOSTINHO
Adriano Beraldi*
Resumo
Neste artigo procuramos esclarecer a acepção do termo beatitudo para o
“jovem” Agostinho através de um recurso filológico, mais exatamente pela
via etimológica. Esse recurso visa a uma melhor compreensão da concepção
do pensador sobre o tema da felicidade à época de seus escritos iniciais,
especificamente na obra De beata vita, composta no ano de 386. Entendemos
que este aspecto, embora pouco explorado, é um interessante viés introdutório
à referida obra bem como aos demais trabalhos compostos no período da
produção intelectual agostiniana conhecido como “Diálogos de Cassiciacum”.
Palavras-chave: Beatitudo, e δαιμονία, mακαρία, etimologia, paganismo,
cristianismo.
Introdução
Para o pensamento grego em geral, o alcance da ε δαιμονία, isto
é, da felicidade como escopo último de todo ser humano, implicava
o exclusivo exercício das instâncias noéticas e volitivas essenciais ao
homem per se. Esta concepção, mutatis mutandis, foi aquela herdada por
figuras do pensamento pagão latino, cujos influxos sobre Agostinho
revelam-se praticamente inegáveis, como Cícero e Sêneca.1 Assim,
Mestre em filosofia (UFES).
Sobre tais influxos cf., entre outros, AUGUSTIN, Saint. De beata vita/La vie
heureuse. Introduction, texte critique, traduction, notes e tables par J. Doignon. Paris:
Bibliothèque Augustinienne, 4/1. Les oeuvres de Saint Augustin, 1986 e SANGALLI,
Idalgo José. O fim último do homem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
*
1
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
entre os latinos, a felicidade, desde esse horizonte teleológico, passa
a se expressar, grosso modo, através do lema beatitudo.
Embora não haja um alinhamento por parte de Agostinho no tocante ao aspecto eudaimônico da exclusividade, digamos, logocêntrico-volitiva, uma vez que a felicidade humana tem que estar, para nosso
pensador, submetida à graça divina,2 esta condição encontra-se inserida
ao longo das reflexões do De beata vita: ainda que não bastantes, a ratio
(razão) e voluntas (vontade) são importantes na construção de uma vida
feliz. Mas o que fica claro já desde o preâmbulo da obra é que, nelas
mesmas, ratio e voluntas não são mais suficientes para a beatitudo. Ou
seja, ao contrário daquela tradição que o influenciara, em Agostinho, o
homem deixa de possuir autonomia para o atingimento da felicidade: sem
a intervenção da Graça, simplesmente não estamos aptos a alcançá-la.
De todo modo, no supracitado preâmbulo, Agostinho deslinda
uma rica alegoria. Nela, a beatitudo é o objetivo a ser alcançado pelos
navegantes em um vasto oceano, metáfora3 para a nossa condição
existencial. E esta alegoria envolve a sua própria experiência de vida,
descrevendo a particular “navegação” agostiniana em busca da felicidade, o que justifica a classificação do De beta vita como as suas “primeiras Confissões”.4 Mais. Este estilo alegórico nos permite pontuar,
ainda que brevemente, interessantes aspectos desse seu “itinerário”,
o que ajudará a nos situarmos para a posterior análise etimológica do
termo beatitudo empregado pelo nosso filósofo.
Já no início do diálogo De beata vita (I, 1) Agostinho declara a insuficiência da
razão e da vontade humanas para a consecução da felicidade.
3 O estilo metafórico percorre praticamente toda a obra, sendo uma de suas
mais interessantes marcas. Esse aspecto do De beata vita valeria, certamente, um estudo
próprio. Mas aqui tal signo aparecerá mencionado somente de passagem, pois, levado
a cabo na profundidade que merece, extravasaria, e muito, nosso propósito específico.
4 “Les premières confessions de Saint Augustin” é o título de um artigo de Pierre
Courcelle para a Revue des Études Latines, n. 22, 1943-1944, referindo-se ao trecho I, 4
do De beata vita. Cf. também AUGUSTIN, 1986, n. compl. 3, p. 135-140.
2
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
39
Adriano Beraldi
Seu verdadeiro percurso começa com o primeiro contato com a
filosofia ainda em sua terra natal, Tagaste, no norte da África, através
da retórica de Cícero na obra Hortensius – de cunho protréptico e da
qual, hoje, só nos restam fragmentos.5 A partir dessa leitura, Agostinho, tomado de entusiasmo, aventura-se na navegação e enfrenta
as primeiras “névoas da rota”. Com os maniqueus e sua doutrina
materialista-dualista, após um longo convívio, aos poucos vai se desiludindo, descobrindo que as supostas verdades que escondiam não
passavam de vacuidades veladas. Frustrado, ele segue os “ventos”
rumo aos Acadêmicos, e, entre eles, sofre o fustigar das “vagas” da
incerteza cética que dominava o ecletismo da Escola nesse período.
Finalmente, depois de “oceanos” de angustiada busca, percurso
que descreverá pormenorizadamente em suas futuras Confessiones,
Agostinho chega, em 384, a Milão, onde ocupa por algum tempo, e
não sem destaque, a função de professor de retórica,6 período em
que também trava contato com o neoplatonismo, bastante presente
nos círculos instruídos milaneses, inclusive entre aqueles cristãos
(quanto ao estoicismo, ao menos em relação a Sêneca, certamente
já era conhecido desde os tempos de estudante). Ali, a partir da
concepção transcendental da filosofia plotiniana, entrevê o “porto”
procurado, e descobre que Deus é a ideia que está além de qualquer
imagem material, do mesmo modo que a alma, a realidade humana
mais assemelhada a Ele. Lê, então, umas poucas obras neoplatônicas
traduzidas para o latim, cotejando-as com trechos das Escrituras,
mas, ainda assim, apesar das várias correspondências possíveis entre
Um dos quais é citado de modo textual no De beata vita, II, 10, como sublinha
Werner Beierwaltes. Regio beatitudinis: Augustine’s concept of happiness. In: The Saint
Augustine lecture series: Saint Augustine and the agustinian tradition. Villanova: Villanova
University Press, 1980. n. 68. p. 34.
6 Tendo lecionado desde 373, sucessivamente, em Tagaste, Cartago e Roma,
onde abandona, em definitivo, o maniqueísmo e frequenta a Academia cética de então.
5
40
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
ambas as fontes – como aquelas feitas por Ambrósio, por exemplo7
–, sente-se incompleto.
A propósito dos elementos deste aporte neoplatônico, seja via
Porfírio, seja diretamente de Plotino – de todo modo, ambos na
tradução para o latim, dadas as dificuldades com os textos gregos
reveladas mais tarde pelo próprio Agostinho (AGOSTINHO, 2009a,
I, 14, 23) –, eles emergem não só no De beata vita, mas claramente
ao longo de todo o Contra acadêmicos e em outros trabalhos iniciais
do filósofo. A este ponto, vale notar que especificar essas contribuições neoplatônicas constitui uma tarefa virtualmente impraticável,
ainda que não faltem argumentos em favor de determinados tratados
plotinianos, como a Eneada, I, 6, ou escritos de Porfírio, como o De
regressu animae (CATAPANO, 2006, p. 128).
Aliás, a vexata questio, a controversa questão de quais seriam
precisamente os tais Plotini paucissimis libris (pouquíssimos livros
de Plotino) mencionados por Agostinho no De beata vita (AGOSTINHO, 1986, p. 58), tem gerado várias hipóteses, muitas não concordes, entre os estudiosos. Um dos maiores óbices a alguma certeza
a esse respeito é a própria declaração agostiniana em seus primeiros
escritos de que aquelas obras eram traduções de seu contemporâneo
Mario Vittorino. Este, convertido ao cristianismo em seus últimos
anos, verteu para o latim alguns escritos neoplatônicos, comentários
a Cícero e Aristóteles, entre outros, além de compor obras próprias
de cunho teológico. Mas, como Agostinho não fornece informações
mais pormenorizadas sobre os referidos livros de Plotino, impõe-se
a dúvida, dado o caráter de tradução feita por Vittorino, se aqueles
seriam acompanhados ou não pelos comentários de Porfírio, ou
mesmo se seriam não mais que passagens citadas deste em alguma de
7 As homilias “De Isaac vel anima” e “De bono mortis” são dois casos, entre
outros, dessas correspondências. Cf. MORESCHINI, Claudio. História da filosofia
patrística. Tradução de Orlando S. Moreira. São Paulo: Loyola, 2008. p. 430-439.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
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Adriano Beraldi
suas obras. De todo modo, quaisquer que tenham sido efetivamente
as obras “plotinianas”, o fato é que as influências, diretas ou não do
Licopolitano – e com ele, aquelas platônicas8 –, são, na prática, incontestáveis nesse nosso primeiro Agostinho. Nesse sentido, vale a pena
citar que, em relação à referência que Agostinho faria muitos anos
depois que lera um pouco antes da sua conversão, em 386, “alguns
livros platônicos”,9 há quem defenda que teria ele conhecido efetivamente a doutrina neoplatônica em junho daquele mesmo ano, através
das Eneadas de Plotino e alguns escritos de Porfírio (COSTA, 2002,
p. 155, n. 36). Assim, pesadas todas essas possibilidades, é a noção de
felicidade no Plotino das Eneadas que levamos em conta aqui como
influxo neoplatônico, uma vez tratar-se da primeira e principal fonte
escrita dessa doutrina.10
8 E não apenas com Plotino. É interessante assinalar aqui a lembrança de G.
Catapano. Em Epistolae, 7, I, 2, a doutrina platônica da reminiscência é defendida como
notória descoberta socrática em termos bem aproximados daqueles presentes no
Mênon e no Fédon. Entretanto, como não se pode comprovar uma leitura direta destes
diálogos platônicos por parte de Agostinho, considera-se, amiúde, que ele teria entrado
em contato tanto com a teoria da anamnese quanto com a maiêutica socrática, através
de Cícero (cf. Tusculanae disputationes, I, XXIV, 57-58). Já para D. Doucet, citado ainda
por Catapano, a fonte de Agostinho nos Soliloquia, quando este critica a opinião dos
magni philosophi – que não é senão a demonstração socrática da imortalidade da alma,
desenvolvida no Fédon – seria o De regressu animae, de Porfírio. Por fim, também nos
informa Catapano que, para Franco De Capitani, as possíveis influências de Porfírio
não excluem as de Plotino. Cf. CATAPANO, 2006, p. CXXXVII, e n. 368, 371, 374.
9 Cf. Confessiones, VII, 9, 13. Devemos ter em conta que por “livros platônicos”
Agostinho estava certamente se referindo ao que hoje chamamos de “neoplatônicos”.
Sobre esse ponto cf. B. da Silva Santos in AGOSTINHO, Santo. Contra acadêmicos, A
ordem, A grandeza da alma e O mestre. Tradução de Frei Agustinho Belmonte. São Paulo:
Paulus, 2008. n. 32. p. 21.
10 O alexandrino Amônio Sacas (c. 175-242), mestre de Plotino, nada escreveu,
tendo este se incumbido de desenvolver por escrito suas ideias – algo como Platão em
relação a Sócrates. Além de Plotino, outros discípulos de Amônio escreveram sobre a
doutrina de seu mestre, como Herênio, do qual nada restou, e Orígenes, o pagão, do
qual se preservaram apenas os títulos das obras. Permanece, portanto, Plotino como
a única fonte direta do provável espírito da escola de Amônio.
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
Mas voltemos a Milão e àquele estado de espírito conturbado
supramencionados. Lá Agostinho ouve as prédicas do bispo da
cidade, Ambrósio, e trava debates com o sacerdote Simpliciano
(AGOSTINHO, 2009a, VIII, 2, 3). Até que, como ele próprio relata
ao longo do Livro VIII das Confessiones, num jardim daquela cidade, em um dia de agosto de 386 – logo após, portanto, as leituras de
Plotino e/ou Porfírio –, durante uma crise de profunda depressão, é
repentinamente tomado pela revelação cristã nas palavras de Paulo
de Tarso11 e, desse modo, tal qual aquele náufrago da alegoria do
preâmbulo do De beata vita que é lançado à terra pela Graça divina,
pôde entregar-se ao encetamento da serena vida feliz.
A partir de então, Agostinho abandona suas atividades docentes
(mais especificamente em setembro de 386) e passa a se dedicar ao
que chamou de otium liberali (AGOSTINHO, 2009d, I, II, 4).12 Retira-se com familiares e discípulos para Cassiciacum, uma propriedade
campestre de um amigo nos arredores de Milão, no norte da Itália,
onde escreve, entre novembro de 386 e março de 387, quatro de seus
trabalhos filosóficos iniciais, dentre os quais figura, exatamente, o
fulcro de nosso estudo: o De beata vita.
Como dissemos, o texto possui a forma de um diálogo e foi
composto por ocasião do 32º aniversário de Agostinho, no fim do
outono daquele ano de 386. Presentes estão sua mãe, Mônica; seus
amigos e discípulos, Alípio, Licencio e Trigésio; seu irmão, Navígio;
e seu filho, Adeodato; além de seus primos, Lastidiano e Rústico.
Nele, Agostinho desenvolve um debate filosófico justamente sobre
a questão da beatitudo.
11 Cf. Rom 13, 13-14. Para esta e para a próxima referência bíblica nos utilizamos
da versão da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
12 Trata-se do notório otium philosophandi, o “ócio filosófico”, conforme esclarece
B. da Silva Santos in AGOSTINHO, 2008. n. 2. p. 10.
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Adriano Beraldi
Felicidade: uma etimologia
Para começarmos a empreender uma investigação aprofundada das reflexões presentes no De beata vita, antes de mais nada,
parece-nos apropriado um breve recurso, em caráter preliminar,
que visa justamente ao esclarecimento do lema que designa o objeto das considerações de Agostinho sobre o tema, isto é, explorar
o horizonte etimológico deste termo felicidade13 desde onde nosso
pensador articula-se para construir sua reflexão. Esse procedimento
permitirá melhor entendimento do emprego da palavra neste texto
bem como de outras que a tradição filosófica anterior adotou para
significar a sua noção.
O latim possui pelo menos dois termos para identificar aquilo
que podemos entender por felicidade, que, embora não estejam totalmente desarticulados, guardam entre si notáveis diferenças: felicitas
e beatitudo.14 O primeiro vem diretamente de felix, cujo significado
imediato, por sua vez, é “fértil” ou “fecundo”, a própria circunstância
da abundância da produtividade. Originariamente, a fertilidade que o
termo felix indica estendia-se às terras e seus frutos, dotando-o, nos
Para este excurso etimológico cf. BEVENISTE, Émile. O vocabulário das
instituições indo-europeias. v. 1. Tradução de D. Bottmann. São Paulo: Editora da Unicamp,
1995; FREUND, William; ALLEN, Andrews. A copious and critical Latin-English lexicon.
New York: Harper & Brothers Publishers, 1851; LALANDE, André. Vocabulário técnico
e crítico da filosofia. Tradução de F. Correia, M. Aguiar, J. Torres e M. Souza. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999; LEVERETT, Frederick P.; TORREY, Henry W. A new
and copious lexicon of the Latin language. Boston: Wilkins and Carter, 1838; REALE,
Giovanni. História da filosofia antiga: léxico, índices, biografia. v. 5. Tradução de H. C. de
Lima Vaz e M. Perine. 10. ed.. São Paulo: Loyola, 1995; SANTOS, Bento S. Virtude e
eudaimonia nos diálogos “socráticos”. Síntese, Belo Horizonte, v. 37, n. 117, p. 5-26,
2010; SPICQ, Ceslas. Noti di lessicografia neotestamentaria. Brescia: Paideia Editrice, 1994;
VALPY, Francis E.J. An etymological dictionary of the Latin language. London: Elibron
Classics, 1828. Cf. também HARPER, Douglas: <http://www.etymonline.com>.
14 Vale lembrar ainda o adjetivo fortunatus, que, originariamente, designava a feliz
circunstância de se estar agraciado pela sorte ou fortuna.
13
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
seus primórdios, com uma reverberação talvez “feminina”, o que
poderia encontrar no sufixo ix (como em imperatrix ou matrix) um
vestígio dessa condição.15 De todo modo, felix acabou por tornar-se,
por derivação de sentido, aquele que é beneficiado pela opulência da
fertilidade, ou seja, “afortunado”, “próspero”, donde “feliz”, sendo
o seu estado o da felicitas.
Já a situação de quem é beatus, ou seja, a beatitudo deriva (como
aquele seu cognato) do verbo beo, que significa “completar”, “satisfazer”, “encher”, no sentido de nada faltar, de absoluta plenitude,
em que tudo está em seu lugar, perfeito. O adjetivo beatus denota,
portanto, “cumulado de bens”, “bem-aventurado”, “completo”. Daí
a natureza da felicidade da beatitudo, isto é, uma felicidade vinculada à
plenitude ou à perfeição. Mas devemos ter em conta que essa perfeição
– que, para o estoicismo, por exemplo, podia se realizar na natureza
humana em conformidade com uma razão inerente à Natureza tomada universalmente – assume, com o pensamento cristão de Agostinho,
a dimensão de uma contemplatio (contemplação) divina, desde onde a
própria plenitude de Deus é a condição da felicidade para o homem.
Mas há mais. A tradição que influencia Agostinho, mesmo que
indiretamente, traz ainda pelo menos mais dois vocábulos sobre
os quais vale a pena refletir. São eles os termos gregos ε δαιμονία e
μακαρία.16 O vocábulo ε δαιμονία é composto dos étimos ε, o advérbio “bem”, isto é, “com propriedade”, e δαίμων, originalmente algo
Aliás, sendo “dhe” sua raiz indo-europeia – como ocorre no vocábulo latino
femina (mulher, fêmea) – e que significa “mamar”, essa especulação se reforça. De fato,
além de felare (mamar), deriva daquele mesmo radical indo-europeu o termo grego
θήλεια (fêmea).
16 Há ainda indicando felicidade em grego a palavra ε τυχία, mas que num
paralelo com os termos latinos seria o correlato de fortuna, uma vez que diz respeito
à prosperidade advinda do favor da Τύχη, deusa da fortuna, sendo a ventura daí
decorrente relativa à obra do acaso. O mesmo se dá em relação a λβος, que denota
uma felicidade proveniente da riqueza, da posse de bens materiais.
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como um “ser etéreo”, um “espírito” situado entre deuses e homens,
cuja função era exatamente a de intermediação entre a instância humana e a divina. Assim, a palavra ε δαιμονία, significando o estar sob
a proteção de um δαίμων apropriado que ordena exteriormente um
agir com correção (vale dizer, virtuoso), já possuía uma carga ético-religiosa desde sua gênese. Com o tempo esse δαίμων interiorizou-se,
passando a significar a garantia de uma paz íntima identificada com
a felicidade. Posteriormente o termo foi empregado sob ângulos distintos ao longo da tradição filosófica greco-helenística, mas que, de
modo geral, manteve a noção de satisfação completa da alma humana,
desde que tal estado estivesse vinculado intimamente à ρετή (virtude),
seja esta entendida como o agir adequado ou como a virtude humana
por excelência, isto é, segundo a sua faculdade noética.
Por sua vez, μακαρία é a condição do μάκαριος, um composto de
μάκαρ, “bem-aventurado” ou “feliz”, no sentido de se estar repleto
por uma doação, mais a partícula ιος, designativa do adjetivo.17 Este
sentido de plenitude se explicita quando observamos que ao mesmo
campo semântico de μακαρία pertencem também χάρις (graça, benefício)18 e χάρισμα (obséquio, dom, mostra de benevolência). Com
efeito, no texto neotestamentário μακαρία é a palavra empregada
para identificar a felicidade própria da bem-aventurança: na Bíblia,
Efetivamente, ambos, μάκαρ e μάκαριος são adjetivos sinonímicos no grego.
Vale notar que o termo se encontra ligado ao divino desde Homero: “μάκαρες θεο”,
isto é, “deuses bem-aventurados”, é o modo como ele se refere às potestades olímpicas
(Ilíada, XXIV, 99 e passim). Também Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 120; 139 e passim)
os chama da mesma maneira. Por isso μάκαρ adquiriu já nos primórdios da literatura
grega uma conotação quase de “imortalidade”, característica essencial dos deuses. E,
como a divindade não está sujeita às vicissitudes terrenas, μάκαρ passou a associarse àqueles mortos que desfrutavam de uma condição especial, como é o caso dos
heróis hesiódicos: em Os trabalhos e os dias, 171, eles merecem de Zeus o dom de viver
ν μακάρων νήσοισι, ou seja, “na Ilha dos bem-aventurados”.
18 Gratia, em latim. O próprio termo grego χάρις contribuiu para a evolução
etimológica da gratia latina.
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
μάκαριος tem o sentido de “abençoado”,19 o que, em tese, faz μακαρία
se identificar mais propriamente com a beatitudo latina e, portanto, com
o emprego agostiniano do termo.
Ocorre que Agostinho, à época de seus diálogos iniciais, tocado
não apenas por trechos das Escrituras (das quais, aliás, possuía um
conhecimento ainda não aprofundado), absorvera um amplo influxo
daquelas acepções acima descritas com as doutrinas filosóficas que
delas se utilizaram de um modo ou de outro. Isso concorreu para
promover, ao menos entre a noção de ε δαιμονία (sobretudo em
sua concepção neoplatônica) e a de beatitudo (do estoicismo latino e
de certo ecletismo), uma síntese que culminará, no referido tratado
agostiniano sobre a felicidade, na sua identificação com a posse de
Deus, conforme podemos extrair das conclusões do diálogo. Afinal,
ao menos nessas reflexões iniciais, o neoplatonismo, o neoestoicismo
e o ecletismo constituíam as partes mais significativas dos influxos
pagãos em nosso pensador; sendo, inclusive, já identificáveis na produção dos diálogos desse período as convergências e os afastamentos
em relação à noção de felicidade de Agostinho.
Não obstante, para encerrar esta breve apreciação étimo-filológica, vale ainda assinalar, en passant, ao menos dois exemplos
de momentos anteriores àqueles influxos diretos, quando o tema da
felicidade mereceu relevantes reflexões dentro da tradição filosófica:
a concepção de Platão, retrabalhada posteriormente no ideário neoplatônico, e a posição de Aristóteles, que pela via eclética acabou por
alcançar a noção agostiniana sobre o tema. Para tanto, observemos
duas passagens de obras mais do que consagradas dentro da história
da filosofia.
19 Beatus, na Vulgata; em português, “feliz”, como em Mt 5, 3-11 (no plural beati,
“felizes”).
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
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A primeira, um trecho de A república, em que Platão, através do
diálogo entre Sócrates e Trasímaco acerca da ψυχή (alma) em sua
relação com a ρετή (virtude) da δικαιοσύνη (justiça), a mais elevada
entre as virtudes platônicas, diz o seguinte:
– [...] Considere isto. A alma tem como sua obra (ργον) o que não
se poderia realizar com nada mais no mundo, como, por exemplo,
direção, governo, deliberação, e quejandos, existindo qualquer outra
coisa além dela ao que se poderia justamente atribuí-las (aquelas
funções), e dizer que são sua função específica?
– A nenhuma outra.
– E quanto à vida? Devemos dizer que é também uma função da
alma?
– Mais certamente ainda – Ele disse.
– E não diremos também que existe uma excelência ou virtude da
alma?
– Diremos.
– A alma algum dia realizará bem sua função própria se privada de
sua própria virtude, ou isso é impossível?
– É impossível.
– Então, necessariamente, uma alma má irá governar e dirigir mal as
coisas, enquanto a alma boa irá bem em todas elas.
– Necessariamente.
– E não concordamos que a justiça é a excelência ou virtude da alma
e seu defeito a injustiça?
– Sim, concordamos.
– Logo, a alma justa e o homem justo viverão bem e o injusto mal?
– Assim parece – disse ele – segundo seu raciocínio.
– Mas, além disso, aquele que vive bem é bem-aventurado (μάκαριος)
e feliz (ε δαίμων) e o que vive mal o contrário.
– Claro.
– Então o justo é feliz (ε δαίμων) e o injusto miserável (θλιος)
(PLATÃO, 2007, I, 353d-354a).
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
É com alguma singeleza que Sócrates demonstra que a injustiça
jamais poderia ser considerada mais vantajosa que a justiça, como
antes Trasímaco queria fazer crer no diálogo. Todavia, o trecho
acima reproduzido nos permite, para o nosso caso específico, uma
constatação. A de que o Sócrates platônico parte de um pressuposto, não ainda explicitamente declarado à altura desse que é, afinal,
apenas o primeiro Livro de A república, mas de modo algum inaudito, que é o seguinte: em última análise, o ργον da alma, sua função
mais própria, até aqui,20 tem que ser a justiça, a maior das virtudes,
o que carreia necessariamente a felicidade. Nesse contexto, como
podemos verificar no próprio texto platônico, tanto μακαρία quanto
ε δαιμονία encontram-se conjugadas sob a égide do viver bem, da
ρετή da justiça, a obra, nesse âmbito, mais apropriada da alma.
Já a segunda importante passagem à qual podemos nos reportar
acerca da natureza da felicidade é aquela da Ética a Nicômaco, em que
Aristóteles declara:
Mas, se a felicidade [ε δαιμονία] consiste na atividade de acordo com
a virtude [κατ’ ρετν νέργεια], é razoável que seja uma atividade em
conformidade com a maior delas; e esta será a virtude da melhor parte
de nós. Se esta parte é o intelecto [νος], ou qualquer outra que seja
considerada, por natureza [κατ φύσιν], nossa líder e governante, e tenha
o conhecimento das coisas nobres e divinas, ou ela mesma seja também
efetivamente divina, ou como sendo relativa à nossa parte mais divina, a
atividade dessa parte de nós de acordo com a virtude apropriada constituirá
a felicidade perfeita; e como já declarado [no livro VI] essa atividade é
a da contemplação [θεωρητική] (ARISTÓTELES, 2003, X, VII, 1).
Mas a este ponto já prefigurando a noção do Bem, estando, de fato, de algum
modo, nele subsumida. A consideração da justiça dá azo ao próprio modo de ser do
agir moral, negando a μαρτία (erro) radical do desacordo ético-ontológico, que subjaz
a este discurso socrático e, de resto, toda a concepção platônica, inclusive sobre a
felicidade: esta deve ser o resultado de uma conversão para o Bem.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
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Adriano Beraldi
Assim, Aristóteles indica que a ε δαιμονία consistiria no bem final
de uma cadeia de ações, definindo-a como uma νέργεια (ato, atividade)21
da ψυχή, que se dá segundo o λόγος (razão) e de acordo com a ρετή
mais perfeita, o que redunda na vida contemplativa,22 num refinado
entendimento do papel da prática virtuosa na consecução do melhor
fim. Então, para encontrar o sentido de ε δαιμονία, fim último de todo
agir humano, devemos considerar o homem nele mesmo, compreender
sua “obra” mais própria, seu ργον, aquela atividade que o distingue
enquanto homem (HOLTE, 1962, p. 25). Há aqui, portanto, uma
teleologia do acabamento, da perfeição, do completar-se nisso que é
próprio da noção de ντελέχεια (do adjetivo ντελής, concluído, completo,
perfeito) no pensamento do Estagirita. Portanto, podemos depreender
do texto aristotélico que a ε δαιμονία é aquela atividade, tanto quanto
possível para o homem, que se ajusta à virtude dianoética sumamente
superior, o νος, cuja realização se dá pelo θεωρεν. É desde tal atividade de realização da contemplação que o homem se depara com sua
possibilidade e seu limite para ser feliz (SANGALLI, 1998, p. 81-83):
de fato, o θεωρεν atua como estando presente em nós algo de divino e
que, em última instância, constituiria a perfeita e acabada felicidade.23
21 Palavra que deve ser entendida como movimento de realização do que é mais
apropriado, pois essa “atividade”, no grego, já traz em si também a significação de
vigor, de eficácia e da própria virtude.
22 O que não significa, absolutamente, apatia; ao contrário: a contemplação
(θεωρεν) é pura atividade, a ação mais elevada da alma humana.
23 Não devemos, contudo, deixar de assinalar que Aristóteles não ignora as
circunstâncias adventícias da vida. Podemos ser felizes dentro da completude do fazer
mais próprio, isto é, o fazer excelente da obra; daí Aristóteles trazer a completude do
homem para o âmbito da ação humana, para o que dele depende. Contudo, isso não
significa converter absolutamente tudo em nosso alvedrio, o que seria desconsiderar
o papel da sorte, da fortuna, dos deuses etc. Por isso, o detentor hipotético de uma
“felicidade perfeita” aparece identificado com o termo μάκαριος, e não ε δαίμων. Em
suma: a ε δαιμονία é algo que, a despeito das intervenientes variáveis, admitidas pelo
Estagirita, o homem tem que poder alcançar por ele mesmo; não pode estar fundada em
algo heterônomo, tanto quanto não pode ser, mesmo no homem, um algo, uma posse.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
Conclusão
Diante do que brevemente expusemos, parece-nos lícito dizer que
é possível entrever a existência de elementos da tradição filosófica pagã
que se entrelaçam, extrapolando muitas vezes os meros significados
etimológicos usados para a designação de felicidade. Se no De beata vita
Agostinho elege o termo beatitudo para descrever aquilo que nos textos
cristãos gregos se coadunava com μακαρία, não o faz se distanciando
totalmente da escolha neoestoica do mesmo vocábulo tampouco se
afastando completamente das reverberações “eudaimônicas” que as
reflexões do neoplatonismo, do platonismo e do aristotelismo primitivos realizaram quanto ao tema: sob a beatitudo agostiniana, ao menos
desse primeiro Agostinho sobre o qual nos debruçamos aqui, restam
elementos de todos estes precedentes. Principalmente em dois de seus
mais fundamentais aspectos: o agir virtuoso e a contemplação, complementos para uma fé recém-adquirida (trata-se de um neoconverso) e
que conjuga os valores morais aos teoréticos para, junto com o decisivo
papel da graça de Deus, promover o alcance da vida feliz.
Dentro dos limites do De beata vita, aquela posse de Deus citada
apenas brevemente mais acima só é factível se uma série de condições
impostas por aqueles valores também for observada. Será mesmo
possível perceber elementos de um esforço por parte de Agostinho,
que já aqui, apenas no princípio de suas reflexões filosóficas, antevê
aquilo que seria estabelecido com rara precisão numa futura e célebre
fórmula: “compreenda para crer, creia para compreender”24 (AGOSTINHO, 2010, 43, 9). Ou seja, desde o início, o propósito beatífico de
Daí não se resumir a uma virtude, mas se dar de acordo com ela. Daí também esse
termo, ε δαιμονία, estar predominantemente vinculado ao humano, cabendo à μακαρία
uma maior referência à vida bem-aventurada dos deuses e dos mortos, ainda que
permaneça uma proximidade entre ambos os significados (cf. Ética a Nicômaco, I, X).
24 “Intellige ut credas, crede ut intelligas”.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
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Adriano Beraldi
nosso filósofo já estava posto: alcançar pela fé nas Escrituras a razão
que elas abrigavam, o que incluía, em Agostinho, instâncias filosóficas
da tradição pagã. Trata-se, enfim, de uma fé que busca a sua inteligência e, assim, alcança a felicidade plena em Deus, conforme se encontra
registrado em várias passagens ao longo de pelo menos seus escritos
iniciais. Mas, por ora, diante do exposto, podemos afirmar que neste
“primeiro Agostinho” a beatitudo, a μακαρία grega, não exclui a ε
δαιμονία; ao contrário, a subsume e retrabalha pela via latina, “corrigindo-a” em função do cristianismo, numa original compreensão
da filosofia: uma via de acesso bastante privilegiada para a vida feliz.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confessiones. In: S. Aurelii Augustini Opera Omnia,
Editio Latina. PL 32. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/
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______. Confissões. In: Os Pensadores (coleção). Tradução de J. Oliveira
Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
______. Contra os acadêmicos, a ordem, a grandeza da alma e o mestre.
Tradução de Frei Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008a.
______. Contra acadêmicos Libri tres. In: S. Aurelii Augustini Opera Omnia,
Editio Latina. PL 32. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/
contracc>. Acesso em: 2 set. 2009b.
______. De beata vita: la vie heureuse. Introduction, texte critique,
traduction, notes e tables par J. Doignon. Paris: Bibliothèque
Augustinienne 4/1. Les oeuvres de Saint Augustin,1986.
______. De beata vita Liber unus. In: S. Aurelii Augustini Opera Omnia,
Editio Latina. PL 32. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/
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Adriano Beraldi
SOME PHILOLOGICAL PREMISES TO THE UNDERSTANDING OF THE MEANING OF BEATITUDE IN SAINT
AUGUSTINE’S ‘DE BEATA VITA’
Abstract
In this article we aim to clarify the meaning of the term beatitudo for the
“young” Augustine through a philological resource, more exactly through
an etymological way. This resource aims a better understanding of the
thinker’s conception on the theme of happiness at the time of his early
writings, particularly in the work De beata vita, written in the year of 386.
We understood that this aspect, though little explored, is an interesting
introductory way to the aforesaid work, as well as to other works written
during the Augustinian intellectual production period known as “Cassiciacum Dialogues”.
Key words: Beatitudo,ε δαιμονία, μακαρία, etymology, paganism, Christianity.
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ALGUNS ASPECTOS DA RECEPÇÃO DO
PENSAMENTO ZUBIRIANO NA IBERO-AMÉRICA1
Everaldo Cescon*
Resumo
Exposição descritiva de algumas temáticas – o conceito de Filosofia, uma
nova concepção de realidade a partir da noção de inteligencia sentiente e a via
para o conhecimento de Deus – desenvolvidas pelos discípulos de Xavier
Zubiri. Análise do prolongamento do pensamento zubiriano em Ellacuría,
Pintor-Ramos e Torres Queiruga. Aponta-se a possibilidade de aprofundar o
diálogo de Zubiri com K. Rahner, com o pensamento judaico (Rosenzweig
e Lévinas) e com alguns filósofos pós-modernos (Derrida e Vattimo).
Palavras-chave: Filosofia contemporânea, fenomenologia, Xavier Zubiri,
ontologia.
Introdução
A seguir, procuramos traçar, em linhas gerais, um perfil da influência de Zubiri sobre alguns dos seus discípulos, a saber: I. Ellacuría,
A. Pintor-Ramos e A. Torres Queiruga. Apontamos, ainda, para a
possibilidade de aprofundar o diálogo de Zubiri com K. Rahner,2 com
o pensamento judaico3 e com alguns pós-modernos.4
1 Texto originalmente publicado em Dialegesthai, Rivista Telematica di Filosofia,
[in linea], anno 10 (2008) [inserito il 30 luglio 2008], disponibile su World Wide Web:
<http://mondodomani.org/dialegesthai/>, [76 KB], ISSN 1128-5478.
* Pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Doutor em Teologia
pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Professor no PPGFil – Mestrado em
Ética – da Universidade de Caxias do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]
2 Veja-se o esboço sucinto realizado por Solari, 2001, p. 517-635.
3 Sobretudo: Rosenzweig, 1985; Lévinas, 1977, 1987, 1991.
4 Sobretudo DERRIDA, 1996; VATTIMO, 1996a, 1996b.
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Everaldo Cescon
Zubiri (1980, 1982a, 1982b, 1983, 1984, 1985, 1999b) foi colhido
pela morte quando ainda trabalhava em sua “trilogia teologal”. No
entanto, a sua publicação foi sendo preparada pelo trabalho sério e
competente de seus discípulos, na “Fundación Xavier Zubiri”, em Madri. Além disso, os discípulos se dedicam à investigação das temáticas
zubirianas, procurando explicitar progressivamente seu pensamento.
Atualmente, percebe-se inclusive uma tentativa de prolongamento do
pensamento zubiriano. Por isso, procuraremos analisar a interpretação
e o aprofundamento dos seus discípulos, embora, por uma questão
de espaço, tivemos de nos limitar a I. Ellacuría, A. Pintor-Ramos e
A. Torres Queiruga. A escolha não foi aleatória, mas baseada na produção literária destes e na sua repercussão. Trata-se de um trabalho
árduo e empenhativo, cujo objetivo é fornecer um guia para o aprofundamento de Zubiri.
1 Estudos introdutórios
Dentre os estudos introdutórios à obra do filósofo basco, convém
destacar “Aproximación a la obra completa de Xavier Zubiri”, de I.
Ellacuría. O artigo, publicado logo após a morte de Zubiri, pretende
ser “uma primeira aproximação à obra”; determinar “a consistência
e as características da filosofia zubiriana”; e, por fim, percorrer o
conjunto de sua obra, publicada e inédita, para ter uma ideia geral do
modo e dos temas tratados pelo filósofo (ELLACURÍA, 1983, p. 965).
I. Ellacuría considera Zubiri “o maior metafísico espanhol depois
de Francisco Suárez (1548-1617)”. Pretendeu fazer filosofia pura, à altura dos tempos, pensando sobre o todo das coisas reais enquanto reais.
Sua filosofia consistiu em conceituar o que é a realidade, tanto natural
quanto pessoal, tanto social quanto histórica e, dessa forma, a realidade
em sua consideração transcendental. Assim, afastamos, imediatamente,
a possibilidade de qualificar a filosofia zubiriana de “filosofia teológica
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
ou uma teologia filosófica”. Para Ellacuría, Zubiri realizou, sobretudo,
“uma metafísica intramundana, ainda que sua ‘mundanidade’ esteja
aberta a realidades transmundanas” (ELLACURÍA, 1983, p. 968).
Ao qualificar o tipo de filosofia realizado por X. Zubiri, Ellacuría
enfatiza seu rechaço a toda a tentativa de considerá-lo um neoescolástico, ou um neoaristotélico, ou, ainda, um conservador eclético.
Ele considera a filosofia zubiriana “uma crítica radical de toda a
filosofia anterior, que leva Zubiri a abordar todos os problemas sob
outra perspectiva, terminando numa nova visão da realidade”. Embora apreciasse o esforço intelectual do passado, Zubiri manteve um
grande distanciamento das teses fundamentais da tradição filosófica,
pois esta entrara num “processo de logificação da inteligência e num
correspondente processo de entificação da realidade” (ELLACURÍA,
1983, p. 974-975).
Na terceira parte de seu artigo, Ellacuría agrupa a filosofia zubiriana em torno de seis grandes blocos temáticos: a filosofia da inteligência, o tema da realidade, Deus como estrito problema filosófico,
estudos antropológicos, estudos cosmológicos e a história da filosofia.
Naturalmente, a sistematização de Ellacuría não contempla as obras
póstumas (ZUBIRI, 1986, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996a, 1996b,
1997, 1998, 1999a, 1999c).
A. Pintor-Ramos já publicou inúmeros trabalhos sobre o pensamento de X. Zubiri (conforme pode ser verificado nas referências
bibliográficas no final deste artigo). Segundo Diego Gracia, “foi um
dos poucos filósofos espanhóis que dedicaram anos da sua vida a
situar corretamente Zubiri na filosofia europeia do nosso século”
(GRACIA, 1993, p. 17). Como estudos introdutórios, destacamos
um pequeno volume sobre a Génesis y formación de la filosofía de Zubiri,
publicado em 1979, e Zubiri (1898-1983), publicado em 1996.
No primeiro, conforme o próprio autor sublinha no “Prólogo a
la segunda edición”, procura fornecer alguns “elementos básicos para
poder entrar, com alguma garantia, nas obras maduras de Zubiri”
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Everaldo Cescon
(PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 10). Pintor-Ramos não pretende “entrar
diretamente no núcleo sistemático, ou nos problemas característicos”
da filosofia zubiriana (PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 15), mas apenas
“indicar os diferentes momentos da atividade filosófica de Zubiri, contextualizando-os no marco da filosofia da época” (PINTOR-RAMOS,
1996a, p. 18, 117). É o olhar de um historiador a partir de quatro datas-chave: 1921, 1928, 1942 e 1962. Para este autor, a filosofia de Zubiri só
é possível graças à mediação prolongada dos problemas que ocuparam
a filosofia contemporânea: “nova conceituação da consciência como
intencionalidade objetiva, nova relação da consciência com o desvelamento do ser, superação final do ser como momento já derivado de
uma realidade elementar” (PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 120).
Em 1986 Pintor-Ramos publica um artigo específico sobre a filosofia de Zubiri no pós-guerra (1986c, p. 11), compreendendo o período
posterior à guerra civil espanhola, de 1939 a 1962. No texto, o autor
procura mais uma vez retificar certas distorções em torno da figura pública de Zubiri. O problema em debate afeta três âmbitos fundamentais:
[...] o choque da atitude intelectual de Zubiri com as rígidas diretrizes
ideológicas oficiais, o choque de seu pensamento conhecido publicamente com a proclamada filosofia “oficial” e, finalmente, o choque do
pensamento religioso de Zubiri com o que era então considerado o pensamento oficial da Igreja espanhola (PINTOR-RAMOS, 1986c, p. 9).
Um dos esclarecimentos realizados por Pintor-Ramos gira em torno do pretenso “apoliticismo” de Zubiri: “Não significa indiferença
pela dimensão social do homem – tema tratado em sua filosofia –,
nem pelos problemas da sociedade em que vive; significa a decisão
consciente de não entrar na luta política e, a este respeito, manter-se
numa atitude de ‘independência’” (PINTOR-RAMOS, 1986c, p. 9).
Pintor-Ramos considera “exagerado” dizer que Zubiri tenha assumido
um “exílio interior”, pois foi posto à margem dos canais de expressão
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
e difusão das ideias e precisou recorrer a cursos privados para garantir
recursos mínimos.
O segundo trabalho introdutório ao pensamento do filósofo basco publicado por A. Pintor-Ramos foi entregue ao mercado editorial
em 1996. Em Zubiri (1898-1983), Pintor-Ramos procura “introduzir
‘em’ Zubiri, determinando as forças intelectuais que alimentam seu
pensamento e as linhas básicas nas quais estas se canalizam” (PINTOR-RAMOS, 1996b, p. 54). A própria estrutura da obra e a “seleção
de textos” ressaltam a centralidade da “realidade” no pensamento de
Zubiri, fator que leva Pintor-Ramos a concluir: o leitor, malgrado
as dificuldades, será “[...] compensado pelo novo modo de situar-se
diante da realidade, que tal filosofia propicia”. Outro mérito desta
filosofia reside na “implacável exigência de rigor”, que a converte
num dos instrumentos formativos mais adequados do nosso tempo
para habituar a mente a proceder com rigor e precisão (PINTOR-RAMOS, 1996b, p. 54).
No mesmo ano, Pintor-Ramos também publicou Realidad y sentido
desde una inspiración zubiriana (1993c). No “Prólogo”, Diego Gracia
demonstra que a obra se situa numa “fase de prolongamento do
pensamento zubiriano, mediante desenvolvimentos que Zubiri não
realizou” (GRACIA, 1993, p. 21). O próprio Pintor-Ramos afirma
que sua obra se move em duas linhas complementares: uma, de “[...]
pôr à prova as virtualidades do pensamento zubiriano por caminhos
que o filósofo não explorou suficientemente”; e outra, de “[...] elevar,
à altura de seu pensamento, temas ainda não abordados de modo
suficientemente radical” (PINTOR-RAMOS, 1993, p. 24-25). Todos
os temas tratados se relacionam com a moral e a história. No livro de
Pintor-Ramos, a moral e a história “[...] aparecem sistematicamente
conectadas, a partir do centro axial determinado pela questão do
‘sentido’ na filosofia de Zubiri” (PINTOR-RAMOS, 1993, p. 26).
A tese final do primeiro capítulo é que “o ato noológico primordial, a impressão de realidade, é sumamente complexo. Tem uma
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estrutura, às vezes, intelectiva; outras, sentimental; e outras ainda,
volitiva” (GRACIA, 1993, p. 19). O segundo e o terceiro capítulos
são dedicados à ética. Procuram ver qual a possível fundamentação
zubiriana da ética.5 O capítulo seguinte se situa num nível diferente
dos anteriores. Os três primeiros se ocupavam dos componentes
básicos do ato de apreensão primordial da realidade. Este último se
ocupa de um momento ulterior, o do logos. “É o momento no qual
aparecem as coisas-sentido e, com elas, a linguagem. Portanto, este é
o nível no qual torna-se possível conectar a filosofia zubiriana com
todas as análises fenomenológicas do sentido e com os movimentos
da filosofia hermenêutica” (GRACIA, 1993, p. 20). O quinto e o último capítulos são dedicados à filosofia e sua história.
Sendo prolongamento do pensamento zubiriano, Realidad y sentido
desde una inspiración zubiriana supõe, como referência constante, seu livro
anterior, Realidad y verdad: las bases de la filosofía de Zubiri (PINTOR-RAMOS, 1994b) – “[...] uma introdução ao pensamento de Zubiri
centrando-se no núcleo básico de ideias, no qual os múltiplos problemas
concretos estão enraizados” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 15). Pintor-Ramos afirma que Realidad y verdad expõe suas seguranças, contendo
um argumento completo e sistemático, ao passo que Realidad y sentido
expõe suas esperanças e suas dúvidas, explorando caminhos mal definidos. “Se o primeiro poderia seguir, sendo válido, ainda que os esboços
do segundo estivessem equivocados, o segundo careceria de qualquer
consistência sem o primeiro” (PINTOR-RAMOS, 1993c, p. 25-26).
Em Realidad y verdad, Pintor-Ramos toma um tema concreto – a
verdade –, segue seu desenvolvimento e analisa seu alcance para
compreender a filosofia zubiriana. A verdade aparece como um
5 Ética y Estética en Xavier Zubiri procura manifestar o lugar da ética e da estética
no pensamento zubiriano e a conceituação específica que Zubiri faz delas no conjunto
de sua obra, bem como a influência que seu pensamento exerceu sobre estas questões
na filosofia espanhola do século XX.
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
tema explícito ao longo de toda a obra de Zubiri. É um dos temas
mais clássicos e permanentes da filosofia de todos os tempos. Através do estudo aprofundado deste tema, Pintor-Ramos confronta o
pensamento de Zubiri com algumas das abordagens mais clássicas
da história da filosofia. Desta forma, precisa a posição do Autor e,
simultaneamente, indica possíveis direções nas quais se poderia prolongar seu pensamento.
A obra é uma “‘[...] introdução’ que pretende acentuar criticamente o substrato básico, ao qual todo leitor e estudioso de Zubiri
precisará remeter-se, para apropriar-se de seu pensamento e avaliá-lo
com rigor” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 16). Ao longo dos seis capítulos que compõem Realidad y verdad, Pintor-Ramos demonstra as
três características tradicionais da filosofia, às quais Zubiri procura ser
fiel: a “radicalidade”, a “ultimidade” (ultimidad) e a qualificação “teorética” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 345-355). Como consequência
desta última, destaca-se, na concepção zubiriana de filosofia, o “rigor”. Em todos os escritos zubirianos existe uma densidade de ideias
expressas com todo o rigor da concatenação lógica, um interminável
afã de “precisão”, “claridade” e “concisão”. Nesta linha, aparecem
os recursos estilísticos de Zubiri: neologismos léxicos e semânticos,
busca de novos termos técnicos, entre outros.
2 A ideia de filosofia
As teses filosóficas de Zubiri foram aprofundadas sobretudo
por I. Ellacuría (1964a, p. 305-307, 483-508; 1964b, p. 97-155; 1965a;
1965b; 1966, p. 245-286; 523-548; 1970, p. 459-523; 1974a, p. 479-514;
1974b, p. 5-7; 1975, p. 109-112; 1976, p. 49-137; 1978, p. 949-950;
1980, p. 45; 1981, p. 126-139; 1983, p. 965-983; 1984, p. 37-66; 1986,
113-131; 1988, p. 633-650; 1991). Contudo, o seu brutal assassinato,
junto com outros cinco companheiros, por uma unidade da Fuerza
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Everaldo Cescon
Armada de El Salvador, pôs “[...] um trágico ponto final num projeto intelectual que pretendia oferecer uma interessante interpretação,
em perspectiva latino-americana, do pensamento de Xavier Zubiri”
(GONZÁLEZ, 1991, p. 11). De acordo com E. Solari (2001, p. 517635), ninguém aprofundou a recepção de Zubiri na América Latina.
No entanto, é certo que alguns discípulos viveram e ensinaram na
América Latina, sobretudo I. Ellacuría e G. Marquínez Argote, e outros tantos filósofos e teólogos da libertação reconhecem a influência
de Zubiri: J. C. Scannone, J. Sobrino, E. Dussel, A. González, entre
outros. Parte importante da filosofia produzida na América Latina
depende – direta ou indiretamente – de Zubiri.6
Segundo A. González, Filosofía de la realidad histórica é “[...] uma
peça-chave para compreender não só a produção estritamente filosófica de Ellacuría, como também seu pensamento teológico e
sociopolítico” (GONZÁLEZ, 1991, p. 11). A obra é uma tentativa
de fundamentar o conceito teórico de “práxis histórica” a partir da
análise estrutural das suas notas constitutivas: da matéria até à pessoa,
do indivíduo até à sociedade. Nesse sentido, a principal contribuição
de Ellacuría, de nítida matriz zubiriana, é a concepção da práxis humana como apropriação e transmissão de possibilidades. Para Diego
Gracia, é importante destacar que a tese zubiriana de que “o homem
precisa assumir a realidade”, em Ellacuría, transforma-se em outra: “o
ser humano está obrigado a assumir a realidade e a se assumir com ela.
Este é o imperativo ético” (GRACIA, 1991, contracapa). A história,
para ele, é o lugar da realização da ética.
Ellacuría apresenta a realidade histórica como um grau da
realidade que compreende todos os demais: na realidade histórica
está presente a realidade física (o movimento da Terra, as mudanças
Cf. Marquínez Argote, 1987, p. 69-80; Domínguez-Miranda, 1997, p. 624-687;
Scannone, 1993, p. 93-105.
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
climáticas, os limites físicos do homem), a realidade orgânica (plantas,
frutos, plantações, as necessidades do homem enquanto organismo
vivo), a realidade animal (o homem é um animal, ainda que distinto
dos demais animais), a realidade humana em seus níveis pessoal,
psicológico, familiar, grupal, social e político-econômico. Nenhum
nível da realidade compreende os posteriores (por exemplo, nos
vegetais não há nada de animalidade ou de humanidade), e em cada
nível estão os anteriores (por exemplo, no animal está o físico e o
orgânico) (cf. ELLACURÍA, 1970, p. 521-522). Daí se segue, em
Ellacuría, uma paixão pela história, pois nela resulta abarcado todo
o real. Uma paixão por interpretar a história e agir nela. A história
é nossa própria realidade em sua dinamicidade; uma realidade
essencialmente aberta, por fazer, que se está fazendo, que já começou
a fazer-se.
Sua paixão pela história levou-o a buscar um novo modo de fazer
também teologia, a partir da realidade: a “teologia histórica”. Esta
consiste em refletir sobre a fé a partir do presente histórico (e sobretudo a partir das situações desumanas que requerem uma atenção
especial) e refletir sobre o presente histórico a partir da fé, não só para
compreender o presente, como também para incidir nele, tornando-o mais humano. Nesse sentido, a Teologia da Libertação seria o que
academicamente se costuma denominar uma “teologia fundamental”,
ou seja, uma reflexão acerca dos fundamentos da fé e do método a
utilizar em sua elaboração.
Filosofía de la realidad histórica aprofunda teses já mencionadas
em 1970, data da publicação do longo artigo intitulado “La idea de
filosofía en Xavier Zubiri” (cf. ELLACURÍA, 1970, p. 461-523).
Nesse artigo I. Ellacuría investiga a ideia de filosofia em Xavier Zubiri, respeitando o seu progresso e o seu desenvolvimento. Divide a
abordagem em duas seções: a primeira abarca os escritos anteriores
a 1962; a segunda analisa a obra Sobre la esencia (ELLACURÍA, 1970,
p. 461-462).
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No seu entender, Zubiri acede à ideia de filosofia por três caminhos: “[...] pela análise do que é filosofar como atitude singular do
homem; pela contraposição da filosofia à ciência moderna; e pela
discussão do objeto da filosofia” (ELLACURÍA, 1970, p. 462, 520).
“Só no fim de cada filosofia se chega a saber o que ela é”. Foi o que
ocorreu com Zubiri. À medida que seu pensamento foi avançando,
sua ideia da filosofia também foi se esclarecendo. “A filosofia é, para
ele, metafísica. O metafísico é o sistema transcendental e dinâmico
da realidade” (ELLACURÍA, 1970, p. 522, 523). Quanto ao objeto,
a filosofia zubiriana investiga as coisas “tal como são” presentes ao
homem, para descobrir nelas o que é a realidade. “Seu objeto não é
a realidade em geral, mas o caráter físico, distinto e estruturalmente
modulado da realidade, determinado pela função transcendental das
distintas coisas, ‘tal como são’” (ELLACURÍA, 1970, p. 523).
3 Inteligência senciente
Como sempre ocorre na filosofia, uma nova concepção de realidade implica uma nova concepção de inteligência (cf. PINTOR-RAMOS, 1982, p. 204, 218). Assim, depois de Sobre la esencia, Zubiri
publica a trilogia Inteligencia sentiente. Logo após a publicação do
primeiro volume (ZUBIRI, 1984), Ellacuría comenta “La nueva obra
de Zubiri” (ELLACURÍA, 1981, p. 126-139), que encerra o que o filósofo basco podia pensar sobre o problema do inteligir, do conhecer e
do saber. O primeiro volume tinha autoridade suficiente para merecer
a atenção de Ellacuría e, no ano seguinte, de Pintor-Ramos (1982,
p. 201-218). Ademais, a segunda e a terceira partes são prossecução
dos temas básicos tratados na primeira. Ellacuría pretende dar uma
contribuição à apresentação do trabalho de Zubiri, oferecendo uma
pequena introdução contextual ao seu estudo, assim como fizera com
Sobre la esencia (cf. ELLACURÍA, 1965a). Divide seu trabalho em
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
duas seções: uma sobre o significado sociocultural da obra de Zubiri;
e outra sobre o seu significado intelectual.
A contribuição intelectual de Zubiri está contida numa “única
ideia” (ZUBIRI, 1984, p. 14): “A intelecção humana é formalmente
mera atualização do real na inteligência senciente” (ZUBIRI, 1984,
p. 13). Em breves páginas, Ellacuría analisa os dois conceitos fundamentais desta proposição: “inteligência sentiente” e “atualização”.
Zubiri refuta radicalmente a oposição entre o sentir e o inteligir, que,
consequentemente, levava à dicotomia entre o homem e a realidade.
Para ele, a inteligência possui um caráter senciente. “Não significa
que a inteligência está indissolúvel, permanente e estruturalmente
entrelaçada com o sentimento. Senciente se refere […] aos sentidos,
à sensibilidade” (ELLACURÍA, 1981, p. 134). Zubiri assumiu a sensibilidade como acesso à verdadeira realidade. E mais do que isso: “Os
sentidos nos fornecem os distintos e complexos modos de inteligir”
(ELLACURÍA, 1981, p. 135). Ou seja, cada sentido, em função de seu
órgão, “[...] me apresenta a realidade de forma diferente” (ZUBIRI,
1984, p. 100).
O segundo grande conceito é a intelecção como mera atualização do real. De acordo com Ellacuría, para realizar uma crítica
radical do conceptualismo e do abstracionismo, Zubiri precisou
elaborar uma nova categoria, a categoria de “atualidade”. Nosso
Autor insiste que, desde os gregos, a filosofia cometeu o grave erro
da “logificação da inteligência”. A razão foi reduzida basicamente
à capacidade de gerar conceitos abstratos, convertendo-se, dessa
forma, no que Zubiri denomina “inteligência concipiente”. Consequentemente, é preciso realizar uma reviravolta através da “inteligização do logos”. “Isto significa que a principal e radical função
da inteligência é deixar-se apoderar pela realidade ‘sentientemente’
apreendida, ficar apoderada por ela, de modo a que as demais funções intelectivas se desenvolvam a partir desta radical implantação
na realidade” (ELLACURÍA, 1981, p. 136).
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A. Pintor-Ramos, por sua vez, pretende “[...] destacar o horizonte
a partir do qual se pode afrontar o estudo da obra”: “[...] colocação
adequada na trajetória de seu autor, identificação do problema ou
problemas básicos em debate, importância histórica de tal problemática, e alcance de sua abordagem para o pensamento do filósofo”
(PINTOR-RAMOS, 1982, p. 202).
Ao longo da história da filosofia, o problema do conhecimento
sempre se concentrou na dualidade das suas fontes: sensibilidade e
inteligência. No entanto, para Pintor-Ramos, Zubiri não pretende
contrapor uma nova teoria às teorias tradicionais, mas “[...] antepor
a toda a possível teoria uma análise elementar e completa dos fatos”
(PINTOR-RAMOS, 1982, p. 207). O problema não é a dualidade, pois
tal abordagem já supõe uma hipótese: “A sensibilidade humana e a
animal são fundamentalmente idênticas” (PINTOR-RAMOS, 1982,
p. 207). Este é o fio condutor de toda a obra (ZUBIRI, 1984, p. 12,
14, 20, 21, 25, 82, 123, 143, 145, 156, 202, 203, 252, 285).
Para entender a obra é preciso ter sempre presente que o problema de fundo é a constituição formal da intelecção. Logo, para Pintor-Ramos, “mais que de ‘inteligência sentiente’, rigorosamente falando,
se trataria de ‘intelecção sentiente’” (PINTOR-RAMOS, 1982, p. 212,
215). De acordo com ele, e apoiando-se em indicações do próprio
Zubiri (cf. 1984, p. 26, 126, 133, 242, 247), a obra pode ser dividida em
três blocos: “[...] apresentação do tema, síntese do percurso e enlace
com temas ulteriores que continuariam a análise”;7 “[...] análise da
‘intelecção sentiente’, de todos e de cada um de seus componentes”;8
e “[...] a intelecção tanto como ato quanto como resultado”.9
Capítulos I, IX e X.
Capítulos II, III e IV.
9 Capítulos V, VI, VII e VIII. Divisão apresentada em A. Pintor-Ramos, 1982,
p. 212-213.
7
8
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
4 O conhecimento de Deus
O tema de Deus foi a preocupação constante e o motor secreto do
pensamento metafísico de Zubiri (cf. TORRES QUEIRUGA, 1989, p.
141). Desde 1935, data em que Zubiri anunciou o tema da “religação”
(ZUBIRI, 1999b, p. 417-454) até 1984, quando El hombre y Dios
culminou sua abordagem, muitos se ocuparam deste filão zubiriano.10
No momento, vamos nos deter em A. Torres Queiruga (1963, 14-15;
1988a, p. 93-140; 1988b, p. 138-152; 1989, p. 141-171; 1990; 1993, 121164; 1995, p. 157-174; 1996a, p. 167-185), que julgamos ser, pelo número de trabalhos, o que mais aprofundou o tema de Deus em Zubiri.
Comecemos pelo período de penetração no pensamento zubiriano, analisando a sua tese de habilitação à cátedra de filosofia – Noción,
Religación, Trascendencia. Na “Presentación” García-Sabell destaca que
Torres Queiruga salva a realidade filosófica do pensador basco, junto
com a de Amor Ruibal: “[...] duas criaturas ocupadas em fundamentar
o nosso ser no Ser supremo” (GARCÍA-SABELL, 1990, p. XXVI).
De fato, o teólogo galego realiza um confronto entre o pensamento
sintético de Amor Ruibal e o analítico de Xavier Zubiri. Zubiri “[...]
mostra mais explicitamente e com maior exatidão as conexões com
a marcha atual da filosofia” (TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 9).
Naturalmente, o elenco que segue não inclui os trabalhos de Alluntis, (1985)
p. 32-47; Andrés Fernandez, (1966) 125-153; Aniz Iriarte, (1986) 237-268; Baciero,
1985) 173-182; Benítez, 1970; Borragán Torre, (1986) 253-277; Cruz Hernández,
1967, p. 231-243; Diaz, (1993) 165-193; Ellacuría; Pintor-Ramos, 1996; Erdozaende
Vicente, (1980) 24-36; Gil Ortega, (1989) 158-182; Garcia-Alos, 1983) 265-289; Gómez
Cambres, 1982, p. 223-269; 1945, p. 173-183, 230-236, 251-254; 1993; Gonzalez (1993)
273-315; González Álvarez, (1987) p. 57-65; Gonzalez, 1993, p. 7792; Gracia, (1981)
61-78; Gregorio, (1976) 269-305; López Quintas, (1968) 103-116; Llenin Iglesias, 1990;
Marías, 1944; Martínez Santamarta, 1980, p. 97-116; 1981; Pelegri, (1988) 462-495;
Rivera de Ventosa, (1970) 18-23; 1989, p. 583-590; (1993) 55-119; 1985, p. 67-76; (1992)
467-525; Rovaletti, 1992; Sáez Cruz, 1991; Sánchez-Gey Venegas, 1996, p. 167-185;
Torres Queiruda, (1989) 141-171; 1995, p. 157-174; (1986) 301-309; (1988) 93-140;
138-152; (1993) 121-164; (1963) 14-15; 1990.
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A aproximação do pensamento dos dois não pretende transformar
Zubiri numa espécie de comentarista de Amor Ruibal, mas libertar
seu pensamento do perigo do “escolasticismo”. Diante da “atomização da atividade filosófica” na península ibérica (TORREVEJANO,
1987. p. 79), Torres Queiruga pretende colaborar na “[...] criação de
uma tradição filosófica que assegure a confluência acumulativa dos
distintos esforços” (TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 10, 11).
No horizonte de rompimento com o escolasticismo e de “retorno
às coisas mesmas”, nasce a concepção de conhecimento prévia a qualquer conceito e à distinção sujeito–objeto (TORRES QUEIRUGA,
1990, p. 78).11 E, olhando mais concretamente para a abordagem zubiriana do problema de Deus, Torres Queiruga enumera os seguintes
passos: (1) apresentação do tema da “religação”: “En torno al problema de Dios”, 1936; (2) análise da sua articulação com a questão das
“provas” da existência de Deus: “Introducción al problema de Dios”,
1963; e (3) implicações antropológicas e religiosas: El hombre y Dios,
1984 (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 82-83).
De acordo com Torres Queiruga, a concepção de conhecimento primordial em Zubiri baseia-se na valorização da “sensação”:
como modo cognoscitivo que permite à realidade ser ela mesma,
apresentar-se “de per si” (de suyo); e como garantia da presença do real
na atividade cognoscitiva. Definitivamente, a sensação interessa não
enquanto torna presente um “conteúdo” determinado, mas enquanto,
nesse conteúdo, torna presente a “realidade” (ZUBIRI, 1984).12 Com
o conceito “de per si”, Zubiri pretende preservar a dignidade do real
desmembrando-o da sua relação com o homem.13 É um momento de
Cf. García-Sabell, 1990, p. XVIII; Martínez Gómez, 1981, p. 515-543, 538.
Cf. Torres Queiruga, 1990, p. 102, 106.
13 “Hemos mantenido enérgicamente la tesis del ser como acto ulterior de lo
real, la actualidad de lo real como momento del mundo, independiente de que haya o
no haya hombres” (ZUBIRI, 1985, p. 438).
11
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
autonomia em relação ao homem. No entanto, para Torres Queiruga,
mais do que garantir a autonomia do real, o “de per si” mostra a sua
estrita dependência do homem, pois seria justamente a formalidade
humana (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 122).
Outro marco fundamental de Zubiri analisado por Torres Queiruga é “[...] o acesso primário a Deus: ‘religação’ e conhecimento
espontâneo”. El hombre y Dios se encontra bastante determinado pela
referência à “religação”. Diante dessa constatação, o teólogo galego
procura estabelecer um certo distanciamento, unido a uma busca de
“contextualização”, para evitar o “imperialismo hermenêutico” desta
categoria (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 185-195). No capítulo
oitavo de sua tese (TORRES QUEIRUGA, 1990 p. 329-378),14 declara:
“Depois de um estudo demorado, estou convencido de que sua
contribuição mais interessante e nova, mais original e fecunda diante
do problema de Deus não está na ‘religação’, mas […] na atenção que
dedica ao aspecto vivencial e experiencial do conhecimento divino”.
Em outras palavras, “as relações entre a fé e o conhecimento, em
sua aplicação a Deus, adquirem uma unidade tão íntima e orgânica, a
partir de dentro da própria abordagem, que constituem uma autêntica
sementeira para a teologia” (TORRES QUEIRUGA, (1989), p. 142).
Torres Queiruga analisa “o acesso do homem a Deus”,15 de
acordo com a seguinte estrutura: as condições de possibilidade desse
acesso; a fé como meio de sua realização; as relações entre a inteligência e a fé; e questões complementares. As condições desse acesso
estão “[...] na radical abertura de ambos [Deus e o homem] ao real
enquanto real”: de Deus, enquanto fundamento último, e do homem,
enquanto essência aberta (cf. ZUBIRI, 1998, 182-183; 186-187; TORRES QUEIRUGA, 1989, p. 144). Embora haja uma “presença divina
14 O texto foi publicado um ano antes da tese doutoral (cf. TORRES
QUEIRUGA (1989) 141-171).
15 Capítulo 4 de El hombre y Dios, p. 179-204.
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prévia” em cada um de nós, o acesso pleno só é produzido mediante
a resposta do homem, mediante a “entrega” (ZUBIRI, 1998, p. 194197). De acordo com Torres Queiruga, Zubiri se serve da “causalidade pessoal” para aprofundar a ideia de acesso pleno (TORRES
QUEIRUGA, 1989, p. 150). Trata-se de uma intuição semelhante à
“teonomia” de Paul Tillich: “[...] a razão autônoma unida à sua própria
profundidade” (TORRES QUEIRUGA, 1983, p. 529-541).16
Quanto à abordagem zubiriana da fé, na interpretação de Torres
Queiruga, o filósofo basco parte da manifestação da insuficiência da
definição tradicional de fé. A fé passa a ser “entrega a uma pessoa”17
e, como tal, adesão pessoal, certeza firme e opção livre (ZUBIRI,
1998, p. 218-221). A intenção primária de Zubiri é afirmar a unidade
conhecimento–fé, apesar da diferença. De acordo com o filósofo
basco, tal unidade se revela em “vontade de verdade real”, que se
distingue conforme a índole da realidade a que se dirige (ZUBIRI,
1998, p. 244, 248, 250-251, 252). A vontade de verdade real, por sua
vez, se manifesta como “vontade de ‘fundamentalidade’”. Mais do
que mera possibilidade, é uma “atitude” de entrega ao fundamento
buscado (ZUBIRI, 1998, p. 256-258). Contudo, atualmente se verifica certa dissociação – a dissociação daqueles que se proclamam
“religiosos”, mas vivem considerando Deus “[...] como uma realidade em e por si mesma, e nada mais” (ZUBIRI, 1998, p. 260). A
partir dessa perspectiva, Zubiri explica o agnosticismo, a indiferença
e o ateísmo.
Além da tese de habilitação, devemos mencionar, ainda que brevemente, o estudo sobre “El hombre como experiencia de Dios en
Zubiri” (TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 167-185). Nele, Torres
16 Obviamente Torres Queiruga, ao citar Tillich, refere-se a P. Tillich, Teología
sistemática I, Barcelona 1972, p. 116.
17 “O assentimento a um juízo fundado no testemunho de outro” (ZUBIRI,
1998, p. 211-212).
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
Queiruga faz uma abordagem genérica sobre a “experiência”, e efetua
a análise da “religação” como radicação experiencial e da experiência
de Deus: o “modo” de experiência e a condição de possibilidade.
Tratar da “experiência” de modo genérico já é complicado; aplicá-la
diretamente a Deus é quase impossível. No entanto, Zubiri chega a
expressões de rara precisão, partindo de dois ângulos principais: a sua
gnosiologia da “sensação” e o seu conceito de “causalidade pessoal”
(TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 177). Lendo Zubiri, percebe-se a
presença viva e influente do ambiente teológico renovador, concretamente através de Karl Rahner, e do projeto idealista, mais precisamente de Hegel (TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 175).
Depois da fase de penetração no pensamento de Xavier Zubiri,
Torres Queiruga inicia uma fase de prolongamento de aspectos da
concepção zubiriana (cf. TORRES QUEIRUGA, 1977, 1987, 1991,
1992a, 1992b, 1995, 1996b, 1996c, 1998a, 2000a). Num pequeno opúsculo de 1991, Torres Queiruga (1991) vale-se de quatro metáforas para
manifestar “o rosto de Deus em nossa história”, “o fundamento do
ser” (P. Tillich), “o grande companheiro” (A. Whitehead), “a negra”
(teologia feminista) e “Pai/Mãe” (Jesus de Nazaré).
O rosto de Deus descrito pelo teólogo galego, especialmente a
partir da primeira e da segunda metáforas, assemelha-se ao descrito
por Zubiri como a realidade acedida no final do processo intelectivo
do homem. Alguns conceitos chegam a ser idênticos. Veja-se, por
exemplo, a manifestação de “[...] Deus como fundamento e fonte do
ser” (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 13 23, 32). Consequentemente:
“Deus não está fora, mas dentro” (TORRES QUEIRUGA, 1991,
p. 13); “Deus está sendo através de nós, manifestando-se em nós e
empurrando-nos para que caminhemos, avancemos e sejamos mais”
(TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 14); “Deus ‘é/faz’ todas as coisas”
(TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 14-15). Junto com a concepção de
Deus, Torres Queiruga aborda outras temáticas de nítida conotação
zubiriana: a história religiosa da humanidade como uma busca do
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rosto verdadeiro de Deus (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 6); a
progressividade da revelação como resultado da finitude de nossa
inteligência e de nossa liberdade (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 8);
a existência do mal como resultado da finitude da realidade (TORRES
QUEIRUGA, 1991, p. 21).
Em 1997, o teólogo galego retoma a temática da evolução do
dogma, pois sente a necessidade de repensar todo o conjunto da fé.
O desafio atual, para ele, é retraduzir globalmente o cristianismo (cf.
TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 20).18 As palavras e as proposições
têm significado em seu contexto: se este muda, aquelas o perdem.
Os conceitos teológicos estavam justificados no contexto em que
surgiram, mas hoje adquirem um significado diferente. “Se se quer
seguir mantendo o que a Bíblia ensina, impõe-se […] uma transformação radical da linguagem” (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 19).
A solução é “[...] mudar o vocabulário e, sobretudo, introduzir os
significados, explicitamente, na nova rede conceptual” (TORRES
QUEIRUGA, 1996b, p. 25).19 Implica duas coisas: “um profundo e
verdadeiro respeito pelo passado” e “uma necessária modéstia”, pois
se trata de uma tarefa lenta, que só poderá ser realizada por toda a
comunidade dos fiéis (cf. TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 28).
O grande objetivo de Torres Queiruga é repensar o problema de
Deus. Ajudar a descobrir um Deus digno do homem: amor sem limites;
anti-mal; que quer que cumpramos nossas obrigações morais (TORRES
QUEIRUGA, 1996b, p. 14-15). “Sua intenção é tornar consciente o
novo modo com que experimentamos, hoje, Deus, tratando, assim, de
vivenciar sua verdadeira relação conosco” (TORRES QUEIRUGA,
Na mesma linha, pode-se ver Torres Queiruga,1977a.
E conforme 1996b, p. 26, 27. Ao longo da obra, Torres Queiruga traduz o
significado de três conceitos teológicos: “a moral e a religião” (p. 163-200); “Deus ‘castiga’
o pecador com o ‘fogo eterno’ do inferno” (p. 201-246; cf. 1995); e “o ser humano foi
criado ‘para a glória de Deus’” (p. 247-294). Conforme também 2000b, p. 209, 211.
18
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Alguns aspectos da recepção do pensamento Zubiriano na Iberoamérica
1996b, p. 22). Consequentemente, será preciso compreender o sentido
real da religião, rompendo o dualismo entre o sagrado e o profano,
entre o que pertence a Deus e o que nos pertence. “Quando a pessoa
humana se compreende a partir da ação criadora divina, tudo se torna
santo e profano” (TORRES QUEIRUGA, 1996b, contracapa). Assim,
na primeira parte, Torres Queiruga procura repensar o problema de
Deus, criador do céu e da terra, e de criadores. A partir dessa “fundamentação”, com grande “coerência interna”, ele repensa a relação entre
moral e religião, a questão da culpa e do perdão e, finalmente, a oração
de petição (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 15).20 Não se trata de
um “juízo”, mas de uma análise estritamente “objetiva”, preocupada
somente com os efeitos.
Em 1998 o teólogo galego publica uma série de reflexões
procurando aproximar-se do problema real de Deus, na modernidade,
visto que, nela, a abordagem do problema de Deus sofre uma divisão
decisiva (TORRES QUEIRUGA, 1998a, p. 9, 17). Na modernidade
inicia-se um fenômeno de importância capital: “o ateísmo”. Sua
perspectiva é “dialógica”, pois busca “[...] o que afeta a todos”,
cruzando facilmente a fronteira que a modernidade estabeleceu entre
a filosofia e a teologia. Teologicamente, procura esclarecer, a partir
de “dentro”, “[...] o que lhe parece o sentido autêntico do religioso
na cultura atual”.21 Filosoficamente, manifesta a sua crítica como
questionador “externo”, “[...] como desafio e estímulo à reflexão
sobre o religioso”.22 A dinâmica interna vai “[...] do ‘problema’ radical,
que se apresenta com o início da modernidade, às ‘dificuldades e
prospectivas’ que marcam a situação atual, passando por algumas
‘propostas concretas’ que podem ajudar a vislumbrar o que está em
jogo” (TORRES QUEIRUGA, 1998, p. 15).
20
21
22
E conforme contracapa.
Como também em 1979; 1992a; 1996b; 1998a, p. 11.
Como também em Torres Queiruga, 1990; 1992b; 1998a, p. 11.
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Torres Queiruga apresenta quatro propostas concretas: 1) a obra
de John H. Newman, que “[...] examina a possibilidade – lógica e
psicológica – da fé em Deus”; 2) o ensaio de Heidegger, que “[...]
torna evidente a polaridade do problema: a máxima ausência aponta
à possibilidade da máxima presença”; 3) a proposta de Zubiri que,
“como alternativa à proposta heideggeriana”, evidencia o realismo
espanhol; e 4) a parábola de Flew, para retomar “[...] o problema
da objetivação da transcendência e a consequente pergunta acerca
da possibilidade e legitimidade da ‘linguagem religiosa’” (TORRES
QUEIRUGA, 1998, p. 16-17).
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SOME ASPECTS OF THE RECEPTION OF THE ZUBIRIAN
THOUGHT IN IBERO-AMERICA
Abstract
Descriptive exposition of some themes – the concept of Philosophy, a new
conception of reality from the notion of sentient intelligence and the way to
the knowledge of God – developed by Xavier Zubiri’s disciples. Analysis
of the development of the zubirian thought in Ellacuría, Pintor-Ramos and
Torres Queiruga. It is suggested the possibility to deepen the dialogue of
Zubiri with K. Rahner, with the Jewish thought (Rosenzweig and Levinas)
and with some postmodern philosophers (Derrida and Vattimo).
Key words: Contemporary philosophy, phenomenology, Xavier Zubiri,
ontology.
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LA CONCEPCIÓN ACERCA DEL SER HUMANO:
FUNDAMENTO DEL HUMANISMO EN EL
PENSAMIENTO MARXISTA CUBANO DE LA
PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX
Freddy Varona Domínguez*
Resumen
A partir de la comprensión del humanismo como concepción, enfoque,
modo de pensar y hacer, centrados en los seres humanos (hombres, mujeres, niños, niñas), en su lucha continua por emanciparse de todo tipo de
opresión y limitación a sus capacidades y potencialidades, así como en su
afán por poseer mejores cualidades, en este artículo el autor profundiza
en la esencia humanista del pensamiento marxista cubano de la primera
mitad del siglo XX y va a lo que considera la base del humanismo que lo
recorre: La concepción del ser humano, y lo hace para destacar algunas
de sus características más significativas y revelar aquellas que no pocas
veces existen de modo implícito en las ideas de los pensadores marxistas
cubanos. Conforma su texto con el desarrollo de los siguientes tópicos:
La esencia social del ser humano, su pertenencia a clases y grupos sociales, el individuo y la sociedad en la concepción acerca del ser humano, la
fuerza humana interna, la visión del ser humano en su cultura y en los
nexos con el tiempo, mediante los cuales expone sus consideraciones con
una visión crítica.
Palabras-claves: Humanismo, Hombre, Ser humano, Pensamiento marxista
cubano.
* Doctor en Ciencias Filosóficas, profesor de la Universidad de Holguín – Cuba,
Asesor Nacional de Filosofía del Ministerio de Educación Superior de la República
de Cuba.
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El humanismo es una de esas categorías polémicas y de extraordinaria riqueza sustentada en una policromática bibliografía, donde se
destacan los estudios filosóficos, psicológicos, pedagógicos y artísticos, mediante los cuales cobra su condición de concepción, enfoque,
modo de pensar y manera hacer. No obstante esta gama de matices,
lo esencial y distintivo de él está dado por el lugar protagónico de los
hombres y las mujeres, vistos individual o colectivamente, así como
por el espíritu desalienador y de mejoramiento humano, que se manifiesta, explícita o implícitamente, en consideraciones, propósitos
y proposiciones para hacer realidad. Todo esto se sostiene en una
determinada concepción acerca del ser humano, de ahí la atención
esmerada que se le brinda en este texto dedicado al pensamiento
marxista cubano.
Para fundamentar la validez del estudio del pensamiento de cualquier pueblo no es necesario usar muchos argumentos o explicaciones.
Esta aseveración categórica se basa en una evidencia: Las especificidades, propósitos, influencias foráneas, modos de exposición, entre otras
características, constituyen temas de notoria fertilidad investigativa,
capaces de brindar una notable variedad de conocimientos en dependencia de muchos factores, entre los cuales están las intenciones del
estudioso y su punto de vista: filosófico, historiográfico, económico,
sociológico, por sólo mencionar algunos. Además, su valía no depende
tan sólo de su contribución a la solución de problemas existentes, sino
también de su espíritu renovador, de las vías que abre hacia el futuro,
del alcance de su proyección.
La semántica del vocablo pensamiento gira alrededor de la palabra
idea y sus múltiples significados: imagen, representación, conocimiento, concepto, opinión, juicio. Con esa amplitud y polisemia es posible
utilizarlo vinculado tanto a alguien en particular, como a un grupo
social, una sociedad en pleno, un pueblo, un período histórico, una
obra. En correspondencia con ello, cuando en el presente texto se
habla de pensamiento cubano, se trata de ideas, pero específicamente
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
de aquellas que, conformen o no un sistema teórico, están recogidas
en escritos que, elaborados dentro o fuera de Cuba, la autoría pertenece a quienes se reconocen a sí mismos como cubanos o cubanas.
En el mismo cosmos que forma el pensamiento cubano tiene
su espacio el pensamiento marxista cubano, con sus peculiaridades,
méritos, limitaciones, entre otros rasgos, que pueden ser atractivos a
la mirada de diferentes estudiosos para conocerlo con mayor hondura y así aquilatar su presencia en la historia y la cultura de Cuba, su
vigencia y su capacidad para encaminar la patria a niveles superiores
en todos los sentidos.
Es crucial puntualizar desde el inicio, que el hecho de hablar de
pensamiento marxista no significa reduccionismo ni limitación a la
obra de Carlos Marx y Federico Engels, sino que al mismo tiempo
que la abarca, incluye el desarrollo posterior de la teoría de ambos.
La existencia del pensamiento marxista cubano ya rebasa con
creces la centuria y no ha sido tímida ni ha estado ubicada exclusivamente en recovecos intelectuales, antes bien, distintivos suyos han
sido desde su inicio la participación activa y entusiasta de sus representantes en la vida del país y la revelación palmaria de sus ideales
y cosmovisión. De ahí su presencia en todo el cosmos intelectual y
práctico de Cuba (de donde a su vez se nutre): la filosofía, la política,
la economía, el derecho, el arte, la literatura, la ciencia; en resumen:
la sociedad y la cultura cubanas. Sobre la base de estas características
no ha de provocar asombro el asegurar que la obra de los pensadores
marxistas cubanos es copiosa, de gran riqueza y diversidad; tampoco
ha de motivar extrañeza el aseverar que el listado con los nombres de
dichos pensadores puede tener una significativa extensión.
En el presente texto se estudia a los siguientes pensadores marxistas
cubanos: Carlos Baliño López (1848-1926), Julio Antonio Mella (19031929), Rubén Martínez Villena (1899-1934), Juan Marinello Vidaurreta
(1898-1977), Blas Roca Calderío (1908-1987), Raúl Roa García (19071982) y Carlos Rafael Rodríguez (1913-1997). En la elección de estas
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Freddy Varona Domínguez
figuras fueron definitorios el alcance, profundidad, amplitud, actualidad
y riqueza teórica marxista de su obra; no fue un requisito insalvable el
hecho de ser miembro del primer partido marxista cubano.
Para ganar concreción y profundidad, el presente estudio se limita
al período que se inicia con el surgimiento del pensamiento marxista
cubano (ocurrido durante las últimas décadas del siglo XIX) y termina a mediados del siglo XX, porque a partir de los años cincuenta
dicho pensamiento entra en una nueva etapa de su desarrollo con la
presencia de Fidel Castro Ruz.
En el pensamiento marxista cubano, en general y, por supuesto,
también en el que se desarrolla durante la primera mitad del siglo XX,
el humanismo tiene carácter fundamental y, aunque el grueso de su
riqueza la mayoría de las veces está implícita, su consubstancialidad
se capta continuamente en los principios y finalidad. No obstante
la importancia del humanismo en el pensamiento de marras, aún es
insuficiente su estudio, lo cual se hace evidente en la cantidad y variedad de escritos acerca de él, aún por debajo de su grandeza como
característica básica y definitoria, así como de sus potencialidades
para provocar y sostener reflexiones, no sólo en torno a lo evidente,
sino sobre todo acerca de lo subyacente, lo tácito, con la finalidad de
revelarlo.
Primordial es enfatizar que en el pensamiento marxista cubano de
la primera mitad del siglo XX, junto con el humanismo que lo recorre
hasta convertirse en parte clave de su esencia se funden la firmeza de
ideas y la destreza de expresión, la belleza artística y la profundidad
teórica, la concordancia entre la apertura sugerente y la afirmación
categórica. Vale agregar que las reflexiones que componen este texto
tienen como intención destacar el interés de estos pensadores por la
cultura y la historia cubanas, así como la vigencia y perennidad de la
lucha de los hombres y mujeres por la eliminación de cualquier fuerza
que los oprima, limite o denigre, por su mejoramiento como seres humanos y por una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas.
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
Durante la primera mitad del siglo XX en el pensamiento marxista
cubano se desarrolla una concepción acerca del ser humano que toma
concreción en la patria al afianzarse de manera raigal en la sociedad, la
historia y la cultura de Cuba, en estrechas relaciones con la economía,
las leyes jurídicas, la moral, el arte, la literatura, entre otras esferas de
la vida, donde los nexos primarios son práctico-trasformadores, sin
que por ello sean relegados a niveles inferiores los cognoscitivos y
axiológicos, tampoco los comunicativos.
Esta concepción existe mayormente de modo implícito y aunque
su soporte es la categoría filosófica hombre con la abstracción que lleva
en sí al ascender a elevados niveles filosóficos, su contenido esencial
es concreto, dado por el pueblo cubano, con sus características surgidas en el quehacer diario. Este hecho propicia que los pensadores
marxistas cubanos capten al hombre no sólo como poseedor de un
cuerpo físico, que le da numerosas facultades, y un cosmos interior
con infinita extensión, sino asimismo como sujeto de su actividad, lo
que condiciona que lo aprehendan en sus relaciones con los objetos
y otros sujetos.
1 El hombre es un ser social que forma
parte de clases y grupos sociales
La esencia humanista del pensamiento marxista cubano no tiene
su apoyatura en la exaltación del individuo aislado y ahistórico. En él
es básica la consideración de que el protagonismo humano es posible
sólo en el marco social, donde hombres y mujeres unidos poseen un
poder ilimitado. A tono con esta afirmación tiene lugar la convicción
que explicita Raúl Roa García en 1939 cuando asegura que “la teoría
del hombre aparte, de la inteligencia pavoneándose sobre los partidos
y sobre las clases sociales, elaborada por el Renacimiento, no es más
que una leyenda” (ROA, 1966, 308).
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Freddy Varona Domínguez
En los momentos iniciales del pensamiento marxista cubano,
cuando aún no han salido a la luz los aportes de Lenin al marxismo, no
hay una idea precisa acerca de la categoría “clase social”. Esta aseveración se evidencia en la obra de Carlos Baliño López, quien sostiene en
1905 que la “clase de color” debía ser una clase proletaria (BALIÑO,
1976, 87), conclusión a la que seguramente llega por ser semejante la
situación socio-económica de los obreros y la de los cubanos de piel
negra. El modo como Carlos Baliño emplea el concepto clase social
demuestra una vez más la importancia de la elaboración teórica y de
los conceptos como herramientas de trabajo. El cimiento que en 1905
necesita este pensador cubano sale a la luz en 1919, cuando Lenin
(LENIN, 1961, t. 3, 228) publica su definición de clase social.
Importante para el marxismo es el desarrollo que el pensador
y político ruso le da al concepto de clase social, al proporcionarle
los parámetros decisivos y precisos para delimitarlas. Entre dichos
parámetros están el lugar que los hombres y mujeres ocupen en
un sistema de producción social históricamente determinado, las
relaciones en las cuales se hallan con respecto a los medios de
producción, el papel que desempeñan en la organización social del
trabajo y el modo y cantidad en que reciben la parte de la riqueza
social de que disponen.
La visión clasista hace posible que las características humanas
puedan ser entendidas con mayor profundidad al agrupar al hombre
a partir de una base concreta: su posición en las relaciones sociales
dada de un modo particular sobre todo por el lugar que ocupa en
la producción de bienes materiales y con respecto a los medios con
los que produce, todo lo cual es determinante en última instancia en
cuanto a las necesidades, intereses, fines y medios para realizarlos.
De este modo, representa una contribución de incalculable valía para
desentrañar los vericuetos de la esencia deshumanizadora del capitalismo y las vías para su eliminación. Pero a su vez, apunta al obrero
como la principal fuerza productora, mayor víctima de la explotación
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
capitalista y del espíritu inhumano burgués y, consiguientemente, eje
central de la actividad revolucionaria, capaz de darle al humanismo
nuevos matices que no se reducen a su cosmos clasista, pues se abre
a todos los trabajadores, a su inclusión en las transformaciones de la
sociedad y la cultura por un futuro verdaderamente humanista.
La referencia a las clases sociales no deshumaniza al marxismo y,
de hecho, tampoco al pensamiento marxista cubano. El énfasis en la
pertenencia clasista no conduce a ignorar ni menospreciar la condición
humana, ni representa la ubicación en el centro de la atención teórica
y práctica de un concepto que no incluye al hombre. Por el contrario,
la visión centrada en las clases sociales si ciertamente no destaca a un
hombre aislado, sí se centra en el hombre visto pluralmente, es decir,
los seres humanos (de los dos sexos y cualquier edad) y los tipos de
agrupaciones en las cuales desarrolla su vida.
La determinación clasista lleva implícita una visión histórico-concreta. Esta aseveración no significa que se niegue el concepto
general de hombre, pero no es lo que prevalece en el pensamiento
marxista cubano, lo común es que más que hablar del hombre se hable
del obrero, el burgués, el campesino, el pequeño burgués. Pero como
también es significativa la pertenencia a grupos sociales, ya sea por la
edad, el sexo o por las características de la faena a la cual se dedica,
suele estar presente la alusión a los intelectuales, los estudiantes y las
mujeres. Todo lo cual le da un nuevo matiz a la lucha contra la alienación y por el mejoramiento humano, es decir, da nuevas tonalidades,
más reales, al humanismo que irriga a este pensamiento cubano.
Pero si es característico del humanismo en el pensamiento marxista cubano la aprehensión humana mediante clases y grupos sociales,
este rasgo en sí no es lo más significativo, sino las consideraciones y
conclusiones a las cuales llegan los pensadores, que es lo que verdaderamente constituye el pensamiento marxista cubano, cuya condición de cubano la obtiene por tener como sustento las condiciones
específicas cubanas, amén de otros aportes.
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Acorde con la esencia proletaria del marxismo, los obreros constituyen la piedra angular de la concepción acerca del hombre y del
humanismo que le es consustancial. De los obreros se subraya su
carácter revolucionario, su capacidad de realizar grandes transformaciones y su misión histórica de crear una sociedad sin explotadores,
donde los hombres y mujeres puedan desarrollarse plenamente y
satisfacer sus necesidades.
La economía dependiente y atrasada de Cuba, junto a sus graves
problemas sociales, como el desempleo y las difíciles condiciones de
trabajo, conducen a que en el propósito emancipador de los obreros
coincidan sus intereses clasistas con los de la nación. Ya en 1924 J. A.
Mella destaca que los obreros representan el porvenir, porque luchan
por los ideales de todo el pueblo: destruir el capital extranjero enemigo
de la nación, establecer un régimen de hermandad, de gente sencilla
y acabar con los ricos. Señala: “La causa del proletariado es la causa
nacional. El es la única fuerza capaz de luchar con probabilidades de
triunfo por los ideales de liberación en la época actual. [...] Él anhela
establecer un régimen de hombres de pueblo [...] no quiere cambiar
al rico extranjero por el rico nacional (MELLA, 1975, 124).
Sobre esa base toma consistencia el pedido que Mella le hace a los
obreros de Cuba: Sentirse herederos y continuadores del patriotismo
de los cubanos precedentes, a pesar de que muchos de ellos fueron representantes de otras clases sociales. De este modo, Mella es el primer
pensador marxista cubano que insiste en la significación de la historia
de la patria no como añoranza por el pasado, sino como resorte que
apunta al futuro (MELLA, 1977, 77; ROCA, 43, 30; RODRÍGUEZ,
1987, t. 3, 45).
En pos del objetivo de construir una patria mejor en todos los
sentidos, constituye una constante el pedido de lograr la unidad interna de la clase obrera y entre ella y los obreros, los campesinos y
los estudiantes, para lograr un mundo sin separaciones clasistas, ni
anhelos desmedidos por las riquezas materiales, las cuales llegan a
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
supeditar a hombres y mujeres. Los pensadores marxistas cubanos
destacan que sólo entonces podrá ser realizada plenamente la concepción humanista de la sociedad y la cultura. Con frecuencia subrayan
que para lograr ese propósito es obligatorio realizar transformaciones
radicales, en las que no puede perderse de vista la composición clasista
ni la significación que en ella tiene la base económica. La importancia
de esta última y de las acciones prácticas en el empeño de alcanzar
cambios sociales radicales no disminuye el lugar del aspecto ideológico, antes bien, éste se refuerza a medida que se despliega la revolución.
Es común en este pensamiento cubano el establecimiento de
nexos entre la condición semifeudal del país y las características más
marcadas de la clase obrera. El análisis cimero de estas relaciones lo
ofrece Carlos Rafael Rodríguez (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 28) en
1941 cuando señala de la clase obrera los siguientes rasgo: numéricamente débil, de corta existencia en el país, ligada a una producción
de escaso nivel técnico que propicia una explotación más brutal, formada en su mayoría por antiguos campesinos y artesanos arruinados,
lo cual sirve a su vez de condición propicia para la presencia en sus
miembros de la psicología pequeño burguesa y con ella del anarquismo y el reformismo en el movimiento obrero cubano. A partir de
las condiciones de Cuba se estructura la relación entre los intereses
clasistas y los de la nación.
Otra clase social que acapara la atención de los pensadores marxistas cubanos durante la primera mitad del siglo XX es la de los campesinos, a quienes conciben como aliados de los obreros. En este caso
también se destaca el mencionado estudio de Carlos Rafael Rodríguez
y junto a él el que realiza Blas Roca Calderío por esa misma época, que
publica en 1943 (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 25). De los campesino
destacan como rasgos característicos los vínculos de su existencia
con la condición semifeudal de Cuba, su condición de explotados
por los latifundistas y terratenientes cubanos y norteamericanos, el no
emplear mano de obra asalariada en el cultivo de la tierra (acción que
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llevan a cabo con su familia), su composición heterogénea (campesinos ricos, medios y pobres) y la cercanía de los campesinos pobres,
por el tipo de actividad productiva, a los aparceros, arrendatarios y
precaristas, quienes no escapan de la atención de dichos pensadores
cubanos, como tampoco ocurre con los semiproletarios, de quienes
el rasgo más significativo que señalan es la oscilación de sus intereses
entre los de los obreros y los de los pequeños burgueses.
En el pensamiento de marras se capta a los campesinos en la
explotación a que estaban sometidos y en las difíciles condiciones de
vida y de trabajo. Esta situación económico-social se ve como motor
de su participación en la lucha revolucionaria, tanto por aspiraciones
propiamente clasistas, como por transformaciones sociales de mayor
alcance. En este pensamiento cubano no sólo se habla del hombre
trabajador, del que vive de su trabajo, eso sería una limitación de incalculables consecuencias tanto en lo teórico como en lo práctico. De
tal modo, se tiene en cuenta a los opresores y explotadores. En este
caso, otra de las clases sociales que ocupa un significativo lugar en el
pensamiento de marras es la burguesía. De ella se subraya su afán de
riquezas y, resultante de ello, su espíritu deshumanizado, su corrupción
moral y su entreguismo al imperialismo norteamericano. Sobre la base
de este rasgo se yergue el criterio de no llamarla burguesía nacional. En
relación con esta clase social, por su profundidad, sobresalen de igual
modo los estudios realizados por Carlos Rafael Rodríguez a finales de
la década del treinta y principio de la del cuarenta, donde dentro de sus
particularidades subraya la heterogénea composición, pues “tiene múltiples agrupamientos, con intereses contradictorios entre sí debido a sus
relaciones especiales hacia la economía” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 15).
Carlos Rafael Rodríguez no observa a la burguesía en bloque.
Este procedimiento discernidor comienza a aplicarse a partir de la
corrección realizada por los comunistas cubanos en el VI Pleno de
su organización, celebrado el 21 y 22 de octubre de 1935 cuando
entienden que había que penetrar las entrañas de la burguesía para
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
conocerla más profundamente y observar sus diferencias y divisiones
internas. Resulta significativo acotar que Carlos Rafael reconoce la
posibilidad de la parte más seria y cautelosa de la burguesía nativa de
desarrollar ideas progresistas relacionadas con la paz, la democracia
y la independencia económica del país.
Carlos Rafael Rodríguez, luego de estudiar profundamente la
burguesía en Cuba, la subdivide en dos grandes grupos: el comercial
y el industrial. Del primero señala que su núcleo más importante está
formado por el sector importador, que es el intermediario entre los pequeños comerciantes y los exportadores extranjeros (RODRÍGUEZ,
1987, t. 1, 16). De los importadores señala que se enriquecían gracias a
la débil y servil economía cubana y a su casi nula diversificación industrial. Por tal razón, caracteriza a los importadores como un grupo de
hombres quienes no podían apoyar el desarrollo económico cubano,
porque atentaba contra sus intereses cardinales y los califica como
enemigos de la liberación nacional. No escapa a su atención que la
burguesía comercial estaba formada fundamentalmente por extranjeros, lo cual incrementaba su desinterés por el progreso de Cuba. El
estudio de este subgrupo lo apoya en la sociedad cubana, por lo cual
tiene en cuenta a hombres verídicos, específicamente comerciantes
que existían entonces en el país, de los cuales subraya la explotación
a la que sometían a los almacenistas, quienes a su vez explotaban al
pueblo mediante los precios de los productos.
El grupo de la burguesía industrial lo divide Carlos Rafael en
dos subgrupos: el azucarero y el no azucarero. Apunta al primero
de ellos dos como el más desarrollado y poderoso, ligado a su vez
al imperialismo norteamericano, porque realiza el producto que
ellos con prioridad le exigían a Cuba. No ha de olvidarse que en la
década del 40, cuando este pensador realiza sus estudios sobre la
composición clasista cubana, el azúcar constituía alrededor del 80
por ciento del valor de las exportaciones del país (ROCA, 1943,
25), como consecuencia del monocultivo y la monoproducción.
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En el subgrupo azucarero (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 20) destaca
dos sectores, uno formado por los grandes productores extranjeros
radicados en Cuba y otro integrado por los cubanos. De estos últimos considera que son los que tienen la posición privilegiada en el
sistema económico semicolonial y subraya de ellos su sometimiento
a cierta explotación de los imperialistas a través de las medidas restrictivas, pero inmediatamente apunta que este grupo de hombres
siempre resuelven sus contradicciones con los imperialistas yanquis
mediante compromisos y adulaciones, por eso al mismo tiempo
apunta que se encuentran estrechamente vinculados a la política
del imperialismo y representan un papel reaccionario en la lucha
del pueblo por sus reivindicaciones sociales y por la total soberanía
cubana. En este mismo subgrupo señala la existencia de productores
menos poderosos, que chocaban con los grandes hacendados, por
eso su propio interés los puede empujar a la lucha más directa con
el imperialismo, al lado del interés nacional.
En el subgrupo industrial no azucarero, Carlos Rafael subraya los
lazos que atan a estos hombres a la libertad económica de Cuba como
condición para su desarrollo y enriquecimiento. Por ello los ve como
un elemento de cierta importancia en la lucha por la independencia,
a pesar de su espíritu marcadamente vacilante ante las sublevaciones
populares. En torno a los terratenientes y latifundistas también tienen
criterios los pensadores marxistas cubanos. Interesante es que para
ellos no pierden su condición de humanos a pesar de su esencia inhumana, que es uno de los aspectos que con más frecuencia enfatizan.
Como soporte de las reflexiones centradas en este asunto apuntan que
la mayoría de los latifundios estaba en manos de compañías extranjeras,
las que poseían miles de caballerías de tierra y subrayan que ambos grupos estaban vinculados a las condiciones semifeudales de la agricultura
en Cuba y a las fuerzas imperialistas (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 26).
En lo referente al aspecto clasista de la aprehensión del ser humano de los pensadores marxistas cubanos durante la primera mitad
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
del siglo XX merecen un aparte sus ideas en torno a las clases medias.
En este caso salta a la vista la opinión que acerca de ellas tiene Julio
Antonio Mella en 1928 (MELLA, 1975, 472) en cuanto a su carácter
revolucionario, pues no diferencia posiciones ideológicas de sus integrantes y por ende, de ellos sólo ve actitudes negativas con respecto
a la lucha. Esta opinión de J. A. Mella se debe al momento histórico,
cuando, por un lado, el fascismo se desarrollaba en Italia y Alemania
apoyado en dichas clases y por otro, las mismas no habían demostrado
sus posibilidades revolucionarias. Además, acerca de ellas todavía no
existían profundos estudios realizados a la luz del marxismo.
Con el paso de los años cambia la opinión acerca de las clases
medias y sus posibilidades revolucionarias y humanistas, en lo cual es
determinante el VII congreso de la Internacional Comunista, celebrado en 1935, donde se rechaza por falsa la concepción del fascismo
como movimiento pequeño burgués. A partir de este año, en el pensamiento marxista cubano descuella la caracterización de las clases
medias por su posición vacilante con respecto a la burguesía y a los
obreros, a pesar de ser explotada por el gran capital, y se subraya la
conveniencia de incorporarlas a la lucha por transformaciones sociales
revolucionarias, humanistas, beneficiosas a los trabajadores.
En el pensamiento marxista cubano la delimitación de estas clases
tiene lugar sobre la base del criterio de la condición determinante de
las relaciones de producción. Acorde con ello, cuando se habla de
estas clases, Carlos Rafael Rodríguez y Blas Roca destacan en ellas a
la pequeña burguesía, que conciben como la clase social que agrupa
a “aquellos que no teniendo la posibilidad de ser grandes burgueses –
poseedores de una gran fábrica, de un gran comercio, etc. – tampoco
se consideran, o no lo son de veras, asalariados, obreros de la industria moderna” (ROCA, 1943, 48). La pequeña burguesía señalan que
existe en el campo y la ciudad y que se diferencia internamente en la
industrial, la comercial y la agrícola. De ellas Carlos Rafael apunta que
“siente sobre sí la explotación de los grandes importadores [...] Pero
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está unida a la forma de explotación del pueblo a través del comercio
y de la usura” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 27).
Es común en el pensamiento marxista cubano considerar que
dentro de los rasgos característicos más significativos de la pequeña
burguesía están el individualismo y su posición vacilante con respecto
al socialismo y al capitalismo, por lo que, Sobre todo a partir de 1935
se ve como fuerza con posibilidades revolucionarias.
El estudio acerca de las clases sociales que realizan los pensadores
marxistas cubanos tiene en sí una gran significación histórica y teórica, sobre todo por la caracterización que realizan de la composición
clasista cubana desde posiciones marxistas, pero en ello no radica su
mayor importancia, sino en el procedimiento que emplean consistente en la interrelación de dos aspectos: los intereses propiamente
clasistas dialécticamente enlazados a su fundamento económico y la
posición que cada clase social tiene con respecto a la independencia
de Cuba y sus vínculos con los Estados Unidos, o sea, que no desaparece ni se decolora la atención hacia la gran necesidad histórica
cubana: la solución de la contradicción imperialismo norteamericano-independencia nacional.
2 Los grupos sociales en la concepción
acerca del hombre
En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del
siglo XX la concepción acerca del hombre como ser social asimismo
se apoya en grupos sociales delimitados por los conocimientos, la
edad, el sexo, entre otros. Dentro de ellos sobresalen la intelectualidad,
el estudiantado y las mujeres. Acerca de los intelectuales se configura
una sólida concepción que es muestra de la destacada posición que
este grupo social ocupa en dicho pensamiento cubano. En ello incide
especialmente el aumento del número de intelectuales en las filas del
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en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
Partido Comunista de Cuba durante la lucha contra la tiranía del presidente Gerardo Machado (1871-1939. Fue presidente de la República
entre 1925 y 1933). La gran atención dada a los hombres dedicados
a los quehaceres intelectuales responde asimismo a la necesidad de
difundir la teoría marxista, desarrollarla y llevarla a la práctica creadoramente. De ahí la intención de formar dirigentes o cuadros, como
también se les llama, que pudieran guiar al movimiento obrero en la
revolución.
En el pensamiento marxista cubano de esta época no abundan las
definiciones, pero sí pueden hallarse consideraciones profundas que
sin alejarse de la esencia del marxismo resultan ser novedosas, como
la que ofrece Julio Antonio Mella en 1924 con respecto a la intelectualidad. Este joven pensador concibe al intelectual con dos rasgos
determinantes: primeramente, es un trabajador, pero un trabajador
de pensamiento; segundo, desprende su condición de intelectual de
su actitud social específica, porque considera que esa denominación
solo la merece quienes ponen su pluma para combatir las iniquidades.
A quienes no cumplen con ese requisito los llama tartufos (MELLA,
1975, 88), a pesar de dedicarse a una profesión que se centre en el
empleo del intelecto. Mella ubica a los intelectuales en la revolución o
en la reacción. No reconoce posiciones intermedias que den margen
a la neutralidad o a una salida apolítica, pues les exige a los hombres
y mujeres que se definan en el ámbito socio-político; en este caso no
admite ambigüedad. Esta idea suya se yergue como principio que
encuentra continuación en los sucesivos pensadores marxistas cubanos, es decir, establece la base de la relación de sus compañeros de
pensamiento con este grupo social.
Dentro de los intelectuales, en el pensamiento de marras se les
da especial atención a los profesores universitarios. Ello está dado en
gran medida por su deber de moldear el porvenir patrio. Julio Antonio
Mella rechaza a quienes con su indiferencia o silencio no hacen otra
cosa que apoyar las políticas retrógradas y destaca que por lo general
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ese tipo de hombres se dedicaba a plagiar conocimientos y a seguir
acríticamente las líneas de las academias extranjeras. La causa de esa
afirmación está en que en ese período era grande la cifra de profesores
reaccionarios o de indiferentes a los problemas de la sociedad cubana
y en particular a los relacionados con la política.
Julio A. Mella destaca en los profesores universitarios su tendencia a las posiciones reaccionarias por ser defensores de la propiedad
individual y de los privilegios sociales. Sobre esta base, en 1928, refuta
la tesis del ARPA1 acerca de la intelectualidad como base social de la
revolución. Ya cuatro años antes, en 1924, Mella pide un nuevo tipo de
profesor universitario, al cual le da la distinción honorífica de Maestro,
quien es, según afirma, aquel que “forma el carácter del alumno, y
por lo tanto, el que moldea, como artista hábil el futuro de la sociedad en su aula [...] Es aquel que no se olvida nunca” (MELLA, 1975,
118),2 por tanto en su criterio, el verdadero profesor es quien reúne
méritos no sólo intelectuales o profesionales, sino ante todo morales,
quien sabe marchar con el tiempo e interpretar las necesidades del
momento histórico y ponerse al servicio de ellas, pero, y esto es muy
importante, el verdadero profesor para Mella es quien es capaz de
llegar a los sentimientos de sus estudiantes, y quien con sus virtudes
deviene guía inolvidable.
Durante la revolución de los años 30, el escaso o nulo espíritu
revolucionario de los intelectuales varía, porque a medida que se agudiza la lucha contra la tiranía de Gerardo Machado aumenta entre ellos
1 Alianza Revolucionaria Popular Americana, organización latinoamericana de
los años 20 del siglo XX, dirigida por el peruano Víctor Raúl Haya de la Torre, cuyos
objetivos latinoamericanistas no estaban claramente definidos, como tampoco lo
estaban sus propósitos de integrar las ideas de Bolívar y las de Marx y Engels.
2 La esencia reaccionaria, entreguista y antipopular de muchos intelectuales, sobre
todo los graduados en el extranjero, fue condenada por varios pensadores marxistas,
entre ellos Rubén Martínez Villena. Ver Martínez, 1978, t. 2, 254. Las características
aristocráticas de los intelectuales formados fuera del país fueron también expuestas por
Elías Entralgo, autor no marxista que vivió esos años. Ver Elías Entralgo, 1996, 35.
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
el número de quienes se comprometen con la revolución, movidos por
el hecho de haber comprendido las exigencias del momento histórico.
Son continuadores de Mella y al igual que él atribuyen la condición
de intelectual no sólo a quien realiza un trabajo mental altamente
calificado y con una producción de elevadas magnitudes espirituales,
sino a quien se dedica a ese trabajo, pero que lo llevan a niveles superiores al vincularlo a las exigencias político-sociales del momento,
en función de las cuales debían poner su caudal de saber y junto a él
toda su sensibilidad, rasgos estos que ven como indispensables para
desempeñar tareas revolucionarias mayores.
Los conocimientos de los intelectuales, su profundidad de pensamiento y amplitud espiritual como cualidades que le permiten ver
más lejos, así como su facultad para entender y explicar de un modo
más hondo y completo cuanto sucedía a su alrededor, son rasgos de
la intelectualidad altamente valorados en el pensamiento marxista
cubano, donde se subraya la necesidad de utilizarlos en aras de la
revolución y del futuro mejor. “El intelectual, por su condición de
hombre dotado para ver más hondo y lejanamente que los demás,
está obligado a hacer política” (ROA, 1977, 17), afirma Raúl Roa en
1931, una época harta de problemas y peligros para el pueblo cubano
debidos a la enorme crueldad de la tiranía machadista, por lo cual entonces se precisa una activa participación política y es de esa necesidad
que se hace eco Raúl Roa.
Pero años más tarde, en 1938, cuando las condiciones políticas
han variado en cierto sentido a favor de la democracia, sin sobrepasar
verdaderamente los límites permitido por la condición neocolonial
cubana, Juan Marinello afirma enfáticamente que “el hombre de letras y arte es, y debe ser, ante todo, un hombre; es decir, un elemento
socialmente activo, llamado a una función todo lo alta y distinguida
que se quiera, pero no aislada del hecho social” y más adelante en
el mismo texto puntualiza que “si política es sumar el esfuerzo del
escritor y del artista plástico a toda obra de superación humana, de
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mejoramiento por todos los ángulos, claro está que somos políticos
y debemos seguirlo siendo”(MARINELLO, 1989, 222). La obra de
los intelectuales, sobre todo la artística, se evalúa con lauros por su
calidad, pero se aprecia aún más si junto con su excelencia es capaz
de enriquecer espiritualmente a la humanidad, si contribuye con su
desalienación y mejoramiento. Esto constituye un principio que está
presente en una parte considerable de este pensamiento cubano.
En años sucesivos los pensadores marxistas cubanos mantienen
su posición con respecto al compromiso social de los intelectuales,
sin hacer dejación, en lo esencial, del principio establecido por Mella,
pero en correspondencia con las condiciones históricas concretas. En
1946 Juan Marinello asevera que los intelectuales pueden manifestarse
en relación con la revolución mediante dos vías: una, como partícipe
directo, como protagonista de la misma o, dos, con su obra al servicio
del quehacer revolucionario, de la cultura y la sociedad, pues “no se
trata de que un intelectual sea un dirigente político, aunque el que
tenga disposiciones y decisión para ello puede y debe serlo; se trata
de que el intelectual caiga del lado de una solución colectiva en la que,
de una parte, mantenga y exalte su inevitable hombría y, de la otra,
trabaje por la mejor dignidad de su tarea específica” (MARINELLO,
1977, 143). Esta misma posición la expresa Carlos Rafael Rodríguez
dos años después, en 1950, cuando afirma que para que el escritor y el
artista manifiesten su fidelidad al pueblo no existe una única vía, que
sería la de dedicarse exclusivamente a la lucha, pues ya había llegado
el momento cuando el hombre de letras y el artista revolucionario
podían “servir sus deberes civiles con su literatura y su plástica, sin
renunciar a la condición de genuinos creadores artísticos” (RODRÍGUEZ, 1987, t.. 3, 322).
Al intelectual comprometido con la revolución le es formulado,
además, un pedido mayor, el de desplegar con la amplitud y sinceridad su capacidad racional y sentimental para percibir las aspiraciones
y necesidades de los hombres trabajadores. En ello el paradigma es
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
José Martí, porque fue capaz de escuchar la voz de la humanidad y de
su patria y propiciarles a los cubanos una obra portadora de lo más
íntimo de su vida y de la más elevada calidad.
Entre los numerosos ejemplos de la admiración profesada a José
Martí se puede mencionar dos textos, uno de Julio A. Mella, que data
de 1926 (MELLA, 1975, 267), donde recalca al hombre de pensamiento, amante de América Latina e incansable luchador por el bienestar
de los hombres trabajadores y humildes de su patria. El otro de esos
escritos es de Juan Marinello, quien asevera en 1942 que
Gran artista nuestro será el que, con la posesión plena y gozosa de
la buena tradición y de las culturas más alejadas, se abrace a nuestro
pueblo para pedirle la humana respuesta a sus dolores y a sus esperanzas. Gran escritor nuestro será aquel que tenga oídos para oír nuestro
clamor cubano [...] ¿Qué hizo José Martí que no fuera esto? (MARINELLO, 1977, 124)
En este pensamiento cubano se reverencia con mayor fuerza la
obra de los hombres de pensamiento, arte, literatura y ciencia cuando
estos se relacionan de algún modo con los problemas de los explotados, para denunciarlos y exigir su eliminación. Méritos relevantes se
le atribuye a quienes toman conciencia de las urgencias de su época
y actúan de acuerdo con ellas. No es un principio político, es una
orientación para razonar y remover las fibras de la sensibilidad. Pero
no por ello se niega ni menosprecia la calidad innata del creador, antes
bien, se le concede gran valía, porque es ella la que hace posible la
excelencia de la obra, que nunca ha de ser descuidada. Esta idea está
presente en una cantidad considerable de escritos de los pensadores
marxistas cubanos.
Sin apartarse de estas líneas directrices: el cuidado de la calidad
de la obra y la preocupación por la solución de los problemas de
los hombres y las mujeres humildes, Juan Marinello, después de
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sumergirse en la obra de Miguel Navarro Luna y Nicolás Guillén en
los años treinta, pone ante los intelectuales dos principios morales:
uno enlazado a la identidad cultural que consiste en que a partir del
carácter nacional de su obra logre originalidad y universalidad y, dos,
comunicación con la multitud. En resumen: La creación ha de salir
al mundo con el peso de la tierra que ha surcado y transportar males
y remedios, ahí aparece la novedad que la impulsa y que es al mismo
tiempo un desafío, como lo es lograr la atención y entendimiento de
las grandes masas desde la cumbre de la calidad. Esto exige valentía,
por eso piensa que para lograrlo es preciso aprender a ser hombre, es
decir, a tener la valentía y la decisión atribuidas por la sociedad a los
miembros del sexo masculino (MARINELLO, 1989, 305). La unidad
con las masas y la comunicación con ellas es considerada como deber
del intelectual por otros pensadores marxistas cubanos.
Como parte del pedido que se les hace a los intelectuales de
atender su compromiso social, en los años treinta se les incita a que
traten en sus obras las diferencias sociales debidas a los colores de la
piel. El pedido, dirigido sobre todo a los artistas y escritores, lleva en
sí la recomendación de que, sin olvidar el mestizaje antillano, sea visto
no sólo con un prisma artístico, buscando agradarles a los europeos
y norteamericanos, sino desde la perspectiva social, y devenga una
denuncia a la discriminación racial (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 451).
Es notable el reconocimiento que se le da al intelectual que ha
decidido tomar el camino de la revolución y con ello mostrar su
ruptura con los explotadores, así como su disposición de ponerse al
servicio de los explotados. En este camino se unen a la política, el
arte, la ciencia y la faena educadora. No significa consagración a las
obligaciones propias del político, ni abandono de su labor creadora y
mucho menos olvido de la excelencia de su obra, consideración esta
que se yergue no sólo sobre el ejemplo de José Martí, pues modelos
a seguir también son Montalvo, Heredia, Sarmiento, Mariátegui y
otros, incluidos sus compañeros de lucha Julio Antonio Mella y Rubén
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
Martínez Villena. De este último se subraya el alto vuelo de su obra
y sus cualidades de escritor, así como la conjugación de ambas con la
sensibilidad política (ROA, 1977, 16).
Los pensadores marxistas cubanos durante este período les piden
a los intelectuales no sólo virtuosismo de procedimientos en la obra,
también en el pensamiento y la conducta, sustentado todo ello en el
amor puro a la patria y el optimismo en el futuro, como cualidad positiva
de rango supremo. La figura histórica a la cual recurren más frecuentemente como ejemplo de tales méritos es José Martí. La aspiración es
lograr intelectuales defensores no sólo de los obreros y la justicia social,
sino también de la patria. Esta es la base de la concepción acerca del
hombre intelectual, la cual tiene similitud con la de Antonio Gramsci,
quien al hablar del intelectual orgánico subraya dos aspectos:
Primero, estar unido a las masas hasta formar con ellas un gran bloque
intelecto-moral, donde tiene la responsabilidad de la realización de la
teoría. Segundo, su unidad con la clase social que le da origen, debido
a que él le proporciona “homogeneidad y conciencia de su propia
función, no sólo en el campo económico, sino también en el social y
político” (GRAMSCI, 1973, 338; ACANDA, 1991, 20).
En la concepción de Gramsci la intelectualidad no es un grupo
social con absoluta independencia, porque de ella está desterrada la
evasión con respecto a los asuntos socio-políticos y la contraposición
entre el hombre o mujer que se dedican a esferas intelectuales, como la
ciencia, el arte, el pensamiento, y quienes se desempeñan en la política.
Con ello manifiesta su desacuerdo con la contradicción entre la acción
y la reflexión, entre el ejecutivo y el pensador. A su vez es expresión
del espíritu revolucionario que ha de poseer la transformación radical
(cultural) de la sociedad.
Los pensadores marxistas cubanos refieren con énfasis la esencia
humanista de la obra educadora y de los hombres y mujeres encarREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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gados de ella. La relacionan con la marcha de las transformaciones
económico-sociales y sus nuevas exigencias, las cuales han de repercutir en toda la cadena educacional, sobre todo en la universidad y
de igual modo en los distintos sectores intelectuales. Gran significación le conceden. La importancia que le atribuyen a La Alta Casa de
Estudios tiene como fuente los nexos entre la cultura, la sociedad,
la educación y los destinos de la patria, no obstante, los hombres y
mujeres son el centro de las reflexiones, pues son los realizadores y
consumidores de esos resultados provechosos. Pero el intelectual no
es el único protagonista en este pensamiento cubano, junto a él están
los hombres y mujeres pertenecientes al estudiantado.
La mayor cantidad de reflexiones en torno a los estudiantes
aparece entre mediados de las décadas del 20 y del 30. Esta afirmación no significa que posteriormente hayan sido ignorados. Esta
marcada atención la propicia en gran medida la actividad estudiantil
revolucionaria de esos años, la cual se incrementa ante todo por
dos grandes factores: Uno externo: el movimiento estudiantil de la
universidad argentina de Córdoba; y otro interno: la lucha contra
el tirano Gerardo Machado. El movimiento estudiantil surgido en
1918 en la universidad de Córdoba contribuye al nacimiento de una
nueva generación de latinoamericanos, al dotar a los estudiantes de
Latinoamérica de un lenguaje común, a pesar de poseerse en cada
país exigencias peculiares. Bajo su influencia surgen núcleos estudiantiles dedicados a estudiar el marxismo y a difundirlo, así como
se afianza la unidad entre los estudiantes y la clase obrera (MARIÁTEGUI, 1973, 194). El otro factor que condiciona el aumento de la
atención de los pensadores marxistas cubanos hacia el estudiantado
es la actividad revolucionaria estudiantil contra el tirano Gerardo
Machado. No pocos estudiantes mueren entre 1925 y 1933 en la lucha revolucionaria contra un gobierno cuyo presidente ha quedado
en la historia cubana como uno de los más asesinos de Cuba y toda
América Latina.
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
En una especie de martirologio recogen los pensadores marxistas
cubanos la entrega de sí mismos que hacen los estudiantes a la revolución cubana. En él brillan como ejemplos hombres reales devenidos
héroes por el empeño de alcanzar transformaciones, muchas veces
no exclusivamente universitarias, también sociales. Entre ellos están
Rafael Trejo, Gabriel Barceló y, como una cumbre de modelo a seguir:
Julio Antonio Mella, de quien se destaca que “supo en todo momento
ajustar su pensamiento a su conducta” (ROA, 1933, 3).
En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del
siglo XX, Julio A. Mella tiene un sitio especial, pues al mismo tiempo
que sus continuadores lo admiran como estudiante, además de como
luchador y pensador y estudian su pensamiento y acciones, él mismo
tiene ideas en torno a los estudiantes que merecen un espacio especial.
Su relación con ellos es estrecha desde los primeros momentos de su
vida universitaria. Sus cualidades de dirigente le propician el apoyo de
sus compañeros y deviene presidente de la Federación de Estudiantes,
cargo que a su vez lo une a ellos, en quienes ve una cantera inagotable
de héroes y mártires patriotas.
La simpatía y admiración que siente Mella por los estudiantes se
corresponde con la significación que le da a la educación y a su papel
en la consolidación de la independencia cubana. Similar a Mariátegui,
no se limita a la aspiración de cambios universitarios, pues comprende el carácter primario de la transformación social. La Universidad
Popular “José Martí”, fundada por él, es muestra de su confianza en
los estudiantes, de su unidad con los obreros y de su convencimiento
del nexo cultura-emancipación social. En 1928 Mella afirma que “los
estudiantes: son los más revolucionarios dentro de los trabajadores
intelectuales” (MELLA, 1975, 382), o sea, que los considera como
parte de la intelectualidad, por lo cual considera que por sus intereses
y aspiraciones no pertenecen a la clase obrera y que en comparación
con esta clase social su espíritu revolucionario es ínfimo y disminuye
al graduarse, porque la inmensa mayoría de ellos pasa a engrosar las
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filas de la burguesía, por eso, no deja de reconocer que entre ellos hay
grupos enemigos de la revolución.
Otro grupo social atendido también con esmero son las mujeres,
lo cual muestra que en la concepción acerca del ser humano no sólo
se tiene en cuenta el sexo masculino. De ellas se habla enfáticamente de su organización, coraje y otras cualidades positivas. En varias
oportunidades se convoca a intensificar el trabajo partidista con ellas,
sobre todo a partir del II congreso Nacional del PCC (20-22 de abril
de 1934), cuando comenzó a ser reconocida con mayor fuerza la capacidad de las féminas (MARINELLO, 1941, 380; ROCA, 1946, 152).
Los pensadores marxistas cubanos emplean la distinción genérica
de hombres y mujeres, para evitar la disolución de un sexo en el otro.
Esta diferenciación se manifiesta en no pocas ocasiones, como en uno
de los análisis que hace Carlos Rafael Rodríguez a Antonio Maceo.
En este texto que data de 1952, su autor ve al Titán de Bronce “junto
a los hombres y mujeres de su piel oscura, humillados todavía por
la infamante desigualdad que él y sus compañeros quisieron borrar
para siempre en nuestra tierra” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 151;
MARTÍNEZ, 1978, 260).
Que los humanos sean concebidos como seres sociales y miembros de clases y grupos sociales no perturba la existencia de otra
característica del pensamiento marxista cubano de esta etapa histórica
y es que no pocas veces al hablar de alguien en específico se hace
mayor distinción de su obra en beneficio de la humanidad que de su
pertenencia clasista. Muchos pueden ser los ejemplos para ilustrar esta
afirmación, pero sobresalen unas palabras de Raúl Roa, que datan de
1949, dedicadas a Gabriel Barceló. De él destaca que por su actividad
revolucionaria rompió “con la vida muelle y rosada que la perspectiva burguesa le brindaba, se ofrendó a los pobres y a los oprimidos”
(ROA, 1977, 673).
Aunque en el pensamiento marxista cubano, específicamente
hasta mediados del siglo XX, se concibe al ser humano en su marco
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
clasista, muchas veces se hace referencia a dos grandes polos opuestos:
explotadores y explotados. A estos últimos también se les llama masa
humilde, masa popular o simplemente pueblo. De éste Mella afirma
en 1928 que está formado por “obreros, guajiros, clases medias – es
decir quien sufre sobre sus espaldas el ‘nacionalismo’ y el ‘proteccionismo’ de los aliados del capital extranjero: la citada burguesía
industrial cubana” (MELLA, 1975, 405).3 Nueve años más tarde, en
1937, J. Marinello enfatiza la importancia del pueblo y de las masas
populares cuando al comentar las novelas Don Segundo Sombra, La
Vorágine y Doña Bárbara pregunta
¿Por qué no ambicionar para nuestras tierras, parajes de sorpresa, donde
las grandes opresiones están criando las ansias impares, el creador que
nos da la tonalidad del hombre como Güiraldes, las hambres, todavía
a tientas, de nuestras masas como Rivera y el sigilo crítico y vigilante
como Rómulo Gallego? [...] Pertrechados con las armas de estos tres
relatos grandes, daríamos el salto que quieren y merecen nuestros
pueblos (MARINELLO, 1977, 99).
La atención que los pensadores marxistas cubanos le dan a las
grandes masas populares denota un humanismo de consistencia popular colmada por la realidad nacional que le sirve de entorno. En él
es pilar la praxis socio-cultural como expresión de la situación cubana
del momento. De las masas populares reconocen su importancia para
el desarrollo de toda obra social y su condición de fuente surtidora
de héroes (ROA, 1950, 338).
3 Es grande el número de artículos o ensayos contendientes de la polarización
de los hombres en explotadores y explotados. Una muestra elocuente es el libro de B.
Roca Los fundamentos del socialismo en Cuba, publicado por primera vez en 1943. En
esta obra el pueblo cubano y las masas populares de Cuba constituyen la línea central de
atención. Ver Blas Roca. Los fundamentos del socialismo en Cuba, La Habana, Editorial
Páginas, 1943, 155 p. Otro ejemplo es el artículo de R. Roa Dictadura y democracia en
América, de 1950, donde destaca la participación activa del pueblo. Este trabajo puede
localizarse en 15 años después, La Habana, Editorial Selecta, 1950, p. 308
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3 El individuo y la sociedad en la
concepción acerca del hombre
Desde su surgimiento y hasta mediados del siglo XX, en el pensamiento marxista cubano la concepción acerca del hombre no se limita
a las clases y grupos sociales, sino que tiene otras dos características.
Una de ellas es el reconocimiento del individuo y el respeto que se le
profesa. En 1905 Carlos Baliño reconoce la relación armónica entre
los individuos y la sociedad; sostiene que en la realización de los objetivos del colectivo, cada hombre es importante y que la conciencia
social clasista se logra cuando cada uno forma la suya propia, así afirma: “Cuando, mejor organizada la sociedad, no tenga el hombre que
dedicar casi todas sus energías a la sórdida lucha por el mendrugo [...]
podrá desarrollar su individualidad con una libertad y una amplitud
desconocidas en la sociedad actual” (BALIÑO, 1976, 123).
Este criterio Carlos Baliño lo mantiene a lo largo del tiempo,
como lo muestran estas palabras suyas de 1922, cuando reflexiona que
Para que nunca la masa trabajadora pueda ser vendida como un rebaño
(…) precisa hacer mucha conciencia individual, llevar la propaganda liberadora a los más apartados rincones del país; una propaganda que haga
comprender a cada obrero que debe capacitarse para guiarse a sí mismo,
teniendo su criterio propio, su idealidad propia, su esfuerzo propio que
sumará al esfuerzo común sin perder su individualidad, realizando la
variedad en la unidad (BALIÑO, 1976, 170).
Es de señalar que aunque entre los marxistas es un principio inviolable la subordinación irremediable de los intereses individuales a
los de la clase obrera y el Partido, en un texto que data de 1949, Raúl
Roa cita a Fernando de los Ríos (1879-1949): “La urgencia actual es
la reconquista de la unidad del hombre: el hombre como científico, el
hombre como sujeto emocional, el hombre refinado en su querer, el
hombre capaz no sólo de gozar de una poesía sino capaz de sentir la
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
avidez de leerla.” Más adelante, en el mismo texto de Roa y sobre la
base de las palabras de ese político e intelectual español, el pensador
cubano refiere la importancia de la universidad en la formación de las
cualidades del ser humano, pero sobre todo sentencia que es preciso
“reintegrar al hombre sus potencias arrebatadas, enriqueciendo sin
cesar su individualidad” (ROA, 1950, 339). Es decir, que en el pensamiento marxista cubano no se niega al individuo ni la importancia de
atenderlo con sus especificidades y singularidades, aunque no es el fin
supremo de sus aspiraciones, que se centra en los grupos humanos,
sobre todo la clase obrera y sus aliados en el empeño de construir una
sociedad nueva y superior.
Julio A. Mella, R. Martínez Villena, Juan Marinello, Blas Roca y
Carlos Rafael Rodríguez no niegan al individuo ni lo menosprecian,
pero brindan la mayor atención a la sociedad y en ella a las clases y
grupos sociales, así como al partido comunista. En este caso sobresalen Rubén Martínez Villena y Blas Roca Calderío. Aunque R. Martínez Villena se destaca porque subraya insistentemente la fuerza del
colectivismo, reconoce la necesidad de respetar el derecho de expresar
libremente el pensamiento y la voluntad individual (MARTÍNEZ,
1978, 292) no disuelve al individuo en la significación que le da a
las clases y grupos sociales y reconoce la significación de las convicciones, gustos, aspiraciones e ideales de los hombres por separado;
no obstante la referencia no es abstracta, ahistórica e individualista.
Individuo y sociedad conforman una unidad dialéctica que se expresa
con grandeza mediante la subjetividad, como fuerza interna humana.
En cuanto a Blas Roca vale una reflexión similar, que se apoya en
sus siguientes palabras: “Un partido vale siempre tanto como valen
sus hombres y un partido que tiene a un hombre del valor de Jesús
Menéndez, es un partido que vale de verdad” (ROCA, 1978, 189).
Una segunda característica es que en el pensamiento marxista
cubano la actividad individual no constituye un objeto en sí y sólo acapara la atención cuando es una sobresaliente entrega a la lucha contra
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la alienación y por el mejoramiento humano, asimismo, de un modo
especial, cuando se interconecta con el amor a la patria. Con esos méritos como fundamento existen reflexiones en torno a hombres, cuyos
nombres pueden formar un extenso listado. En este caso es preciso
apuntar que Carlos R. Rodríguez, y sobre todo Juan Marinello y Raúl
Roa destacan frecuentemente, de modo individual, a hombres reales,
con sus particularidades y su obra. De hecho, no hablan de un hombre
indefinible e indefinido pues los aprehenden en sus relaciones sociales.
Carlos R. Rodríguez atiende a los individuos que con su obra han
beneficiado de algún modo a la humanidad. Juan Marinello brinda
elevada atención a aquellos que se han dedicado a la obra literaria, en
la cual subraya la maestría en el idioma, como ocurre con Hernández Catá; la capacidad de los personajes de reflexionar la inquietud
latinoamericana, como es el caso de Ricardo Güiraldes; o de captar
el modo de hablar popular, propio de Nicolás Guillén. Marinello
también tiene en alta estima a los creadores de otras manifestaciones
artísticas: Pablo Picasso, Carlos Enríquez, Víctor Manuel, entre otros.
Por su parte, Raúl Roa destaca, además, a quienes se han entregado
a una meritoria labor educacional, como Rafael Trejo, Julio A. Mella,
Gabriel Barceló, José Ingenieros.
En la atención al individuo están presentes las características clasistas. Así ocurre en los estudios sobre pensadores de relevante talla
histórica, como José de La Luz y Caballero y Enrique José Varona, a
quienes ubican en el tiempo en que vivieron y en el marco clasista al cual
pertenecieron. Ven a José de la Luz como un indiscutible ideólogo de la
burguesía a la cual perteneció y de la cual obtuvo sus mejores amigos,
así como también lo fue E. J. Varona., de quien asimismo subrayan su
patriotismo y sus logros educacionales (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 89).
Especial simpatía acapara el dirigente de los obreros en la lucha
revolucionaria, de quien no olvidan su condición de hombre ni de
individuo. La atención no la reducen al frío cumplimiento de sus tareas
revolucionarias, pues abarca su capacidad de amar y de relacionarse
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en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
con las masas que dirige. No pocos líderes obreros despiertan interés,
entre ellos está J. A. Mella, Rubén Martínez Villena y Lenin. De ellos
subrayan su capacidad intelectual, amplitud espiritual y consagración
incondicional a la lucha (MARTÍNEZ, 1978, t. 2, 307).
La importancia dada al individuo también queda en evidencia con
la referencia a rasgos individuales de hombres que se destacan por su
dación humana. En este caso sobresalen las consideraciones de Raúl
Roa, quien subraya los rasgos del carácter, como el coraje de Ernesto
Alpízar, la nobleza de Pablo de la Torriente-Brau, el modo de ser
huraño de Luís Felipe Rodríguez, y asimismo le da gran importancia
a su historia, contradicciones y debilidades, como cuando reflexiona
acerca de Martínez Villena, Ramón Roa, entre otros.
La referencia a rasgos individuales de los individuos toma presencia asimismo en cuanto al aspecto físico. Nuevamente se destacan las
valoraciones de Raúl Roa. Una muestra son sus criterios acerca de Gabriel Barceló. De este joven revolucionario dice que “tenía la mirada
fúlgida, la frente amplia, la palidez del asceta, el gesto másculo y la voz
de trueno;” de José Joaquín Palma asegura que tenía “reverberantes
los ojos azules, tempestuosa la cabellera castaña” (ROA, 1977, 673).
La aprehensión multiabarcadora del individuo propicia el interés
por las relaciones de amigos y familiares y por aquellos que se destacaron negativamente por hacerle daño a la humanidad; a quienes
se condena fuertemente. En lo concerniente al trabajo partidista
tampoco es olvidado el individuo, ya que es común la opinión de que
este tipo de faena ha de alcanzar a cada militante y a todo aquel que
esté bajo la influencia comunista.4 Cabe apuntar que “la universalidad
4 Estos aspectos aparecen diseminados en una gran cantidad de obras, no
obstante, puede verse: de Raúl Roa. Los extraños amores de Edgar Allan Poe, en
Retorno a la alborada, edic. cit., p. 443; de C. R. Rodríguez. José Manuel Mestre: la
filosofía en La Habana, en Letra con filo, t. 3, edic. cit., p. 73 - 87; de Julio A. Mella.
El asno con garras, en Artículos y discursos, en Documentos y artículos, edic. cit.,
p. 251 – 254, de Blas Roca. Palabras sobre la decisión, en Fundamentos, No. 54, La
Habana, febrero de 1946, p. 141.
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de lo humano no niega su singularidad, por el contrario se manifiesta
de forma histórica. Luego, el humanismo tiene necesariamente que
alcanzar al hombre concreto, en su condición de individuo perteneciente a un grupo social históricamente determinado y a la personalidad individualizada con sus especificidades” (FUNG, 1990, 179).
La múltiple atención que los pensadores marxistas cubanos dan al
individuo patentiza que el humanismo desplegado en su pensamiento
está irrigado por la idea de que la lucha por una sociedad y una cultura
verdaderamente humanas no ha de ser sólo una decisión colectiva en
correspondencia con determinadas condiciones históricas, sino que
ha de ser asimismo el fruto de una elección libre y consciente de cada
individuo.
4 Fuerza humana: conjugación de
posibilidades y realizaciones
En fecha tan temprana como es 1904, Carlos Baliño destaca
la fuerza espiritual y la potencia de la voluntad humana al afirmar:
“Cuando la mayoría, no solo de los obreros del taller, sino de todos
los proletarios, esté dispuesta a realizar este cambio, no habrá poder
humano que lo impida” (BALIÑO, 1976, 67). Una intelección de
esta naturaleza es testimonio de la andanza de su realizador por senderos erigidos con la aceptación de la fuerza humana en todas sus
dimensiones, de la valía del hombre como simbiosis de posibilidades
y realizaciones centradas en el presente y proyectadas al mañana.
En no pocos textos, Carlos Baliño enfatiza la significación del
ansia por romper el régimen opresor capitalista y la construcción de
uno humanista (BALIÑO, 1976, 105). En relación con esta lucha refiere la abnegación, la valentía y la capacidad de sacrificarse sin temor
a las torturas y las humillaciones. La fuerza humana, la disposición, la
voluntad y entrega de los hombres y mujeres recorre toda la obra del
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
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joven pensador Julio Antonio Mella como un espíritu que los impulsa
a la lucha. Mella cree en la capacidad de esos hombres a quienes ve
como luchadores continuos en pos de la realización de sus objetivos
sociales centrados en la creación de una patria nueva.
En 1926, en plena época de auge revolucionario, Mella le dice a
los compañeros de la Universidad Popular que “hay derecho a tener
fe y a estar pletóricos de esperanzas para el porvenir” (MELLA, 1975,
227). En ese mismo texto subraya la valentía, la rebeldía y la disposición a entregarse para conseguir un fin y, junto a ello, la dedicación a
aprender a realizar lo que se desea, que en este caso es la eliminación
del régimen explotador burgués.
Pero esta concepción no tuvo un curso lineal en el pensamiento
marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX. En 1927,
en un texto donde analiza diversas temáticas de las relaciones entre
la URSS y los países imperialistas, Rubén Martínez Villena muestra
la siguiente concepción acerca del hombre: “El marxismo eleva a la
categoría de axioma el siguiente postulado: ‘La conciencia del hombre es desplazada por el hecho histórico objetivo externo. De modo
que bien poco es el valor de sus deseos, anhelos, afanes, voliciones,
en el desarrollo inexorable de los procesos sociales’” (MARTÍNEZ,
1978, 185).
Según las anteriores palabras de Martínez Villena, cabe señalar
en primer lugar que concibe el marxismo como un corpus inalterable, formado por axiomas, es decir, por postulados cuya certeza se
demuestra por su claridad y evidencia, sin necesidad de ninguna otra
demostración y, por consiguiente, sin que admita críticas ni cuestionamientos. Y en segundo lugar, que el hombre depende de las condiciones objetivas, las cuales lo atan o mueven irremediablemente. No
obstante, no se puede pasar por alto que esta afirmación del joven
marxista va enfilada contra los intentos de las fuerzas reaccionarias
para frenar la obra revolucionaria, pero de todos modos, a la luz de
esas consideraciones a los hombres y mujeres sólo les quedaba seguir
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los cambios inevitables, marcados por las condiciones objetivas favorables al surgimiento de un nuevo régimen social, así que no valía
ninguna obra humana en pos del retroceso, en contra de las leyes de
la historia, pues todo intento contra ellas era inútil. Fatalmente, a tono
con su opinión, tampoco el hombre podía actuar de ningún modo a
favor del progreso, sólo le quedaba esperar por el curso de las leyes
objetivas.
Este criterio y sobre todo este enfoque no se mantuvieron inalterables en el pensamiento de Rubén Martínez Villena. Seis años más
tarde, en 1933, al referirse a unos militantes del Partido Comunista
Español sentencia que ellos “fueron incapaces de evolucionar al compás del movimiento revolucionario español” (MARTÍNEZ, 1978,
211). En ese análisis, junto con la aceptación de la incapacidad de esos
hombres, reconoce la capacidad y fuerza humanas en medio de las
condiciones objetivas. Esos militantes pudieron transformarse, pero
no quisieron o no pudieron, es decir, ya entonces concibe al hombre
no como un simple producto de las condiciones externas, no como
algo incapaz de imponerse a las leyes objetivas y actuar sobre ellas (a
favor o en contra), pero conscientemente, con su capacidad racional
y sus sentimientos.
Excepto esta aseveración de Martínez Villena, en este pensamiento cubano durante esta etapa histórica, la apoyatura de las disímiles
reflexiones está en el carácter decisivo, en última instancia, de las
relaciones económicas, con lo cual se subraya que el hombre no es
una marioneta y que la economía no es el súmmum omnipotente y
regidor implacable del destino humano. Así se le da gran atención a
la moral, los gustos, la aptitud de decisión, entre otros aspectos en los
cuales sobresale el reconocimiento que le dan a la subjetividad. Sobre
este fundamento captan al hombre con su capacidad de aprehender
las necesidades del momento y de actuar en correspondencia con
ellas, con su fuerza y poder para impulsar a sus semejantes a hacerlo,
sin ignorar sus posibilidades reales.
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
El hombre en este pensamiento cubano no es un resultado automático de las transformaciones económicas. Un ejemplo de ello
son las siguientes palabras de Carlos R. Rodríguez cuando en 1943
refuta a quienes sostienen que los marxistas sólo piensan en el factor
económico. A propósito asevera:
¿Quiere esto decir que los historiadores marxistas afirmamos que los
promotores de la guerra del 68 actuaron simplemente siguiendo los
dictados de un interés económico mezquino, sin que obraran en ellos
ideales? ¿Sostenemos acaso que las acciones en Céspedes y Aguilera,
Agramonte y Zambrana, no se producían por amor a la independencia
de Cuba, sino por el cálculo estrecho de pesos y centavos? (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 38).
Carlos Rafael Rodríguez destaca el significativo papel de la subjetividad mediante el reconocimiento de la competencia humana para
encaminarse a la realización de sus fines, de un modo consciente y
con independencia relativa, es decir, si negar el condicionamiento
mutuo entre lo objetivo y lo subjetivo ni el papel determinante de lo
material, sobre lo cual la subjetividad actúa de diversas maneras. En
ese mismo texto de 1943 asevera: “Si los hombres no fueran «agentes
del proceso histórico» capaces con su actuación de impulsarlo o retrasarlo, la historia quedaría estancada” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 43).
En el pensamiento marxista cubano al subrayar la actuación del
hombre sobre la realidad objetiva se valora altamente su fuerza espiritual. Así gozan de reconocimiento los personajes que se destacaron
por poseerla, como José Martí, quien aparece frecuentemente como
ejemplo por su persistente imposición a sus posibilidades físicas y
por aprovechar las condiciones objetivas a favor de la lucha revolucionaria y actuar conscientemente sobre ellas. También es destacable
la referencia a Rubén Martínez Villena, con respecto al cual Juan
Marinello afirma en 1935 que para aquilatar sus valores excepcionaREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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Freddy Varona Domínguez
les “hay que centrarse no sólo en su momento, sino en su espíritu”
(MARINELLO, 1935, 17), idea ésta que expresa más de una vez con
diferentes palabras.
Consideraciones similares a las anteriores existen acerca de Carlos
Marx y el pensador español Fernando de los Ríos, entre otros con
cuyos nombres se puede formar un largo listado. La heroicidad en el
quehacer cotidiano es arduamente apreciada, de ese modo se sostiene
la opinión de que a pesar de la importancia que ejerza una acción y de
sus resultados, lo más significativo es el “sentido íntimo, animador, de
esa heroicidad” (MARINELLO, 1937, 10), tal y como asevera Juan
Marinello en el Discurso que pronuncia en la clausura del II congreso
internacional para la defensa de la cultura, celebrado en Valencia el 1ro
de julio de 1937. A tono con ello, la fuerza de voluntad, la insistencia,
la consagración y el amor son tenidas como grandes características
humanas, altamente reconocidas.
Con las anteriores cualidades como lente hay no pocas reflexiones
y conclusiones. Un ejemplo a tener en cuenta es el criterio de Blas
Roca expuesto en 1940 a propósito del XV aniversario de la existencia
del partido de los comunistas cubanos. Blas destaca que su fundación
tuvo lugar con un escaso número de asistentes: sólo cuarenta, que se
sobrepusieron a la difícil situación política de Cuba y que a lo largo de
los años su obra ha sido guiada por el amor, la abnegación y el espíritu
de sacrificio que les permitió a los comunistas resistir torturas y evadir
persecuciones. No por ello ignora o subestima los errores cometidos
por sus militantes debido al desconocimiento teórico y a una visión
no suficientemente profunda de la sociedad (ROCA, 1940, 660).
El sueño con un futuro mejor, la entrega espiritual a alcanzarlo
y la confianza en el mejoramiento humano que proporciona la moral
exhiben la importancia que se le brinda a la subjetividad, que no se
abstrae de las condiciones objetivas, las necesidades de la sociedad
y la cultura, las posibilidades reales y la actividad práctica conscientemente planificada, como muestran las siguientes palabras de Raúl
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
Roa expresadas en 1949: “No basta embriagarse con la reverberante
perspectiva de un futuro mejor para que este advenga graciosamente
como regalo de Pascuas. Ni basta tampoco darle rienda suelta a la fe,
al entusiasmo y a la acción si no se adopta, como punto de partida,
un severo examen de conciencia y un solemne compromiso con las
exigencias que dimanan de la realidad” (ROA, 1949, 74).
Sobre la base de las condiciones objetivas, el entusiasmo tiene una
significativa presencia en el pensamiento de referencia e irriga el humanismo que le es consustancial. En textos dirigidos a la organización
partidista se enfatiza todo trabajo encaminado a elevarlo y a sembrar
optimismo. Un medio para lograr ese propósito es la emulación entre
sus miembros, concebida como una vía óptima para impeler a los
apáticos y rezagados e incentivar a los mejores a hacer realidad lo que
hasta ese momento era solamente posibilidad.
“La emulación hace que la disciplina, el cumplimiento de los
deberes [...], nazcan de los propios militantes, [...], como una consecuencia natural de su comprensión de la importancia de cada tarea
emprendida” (ROCA, 1943b, 71). Con ella, es decir, la emulación,
se persigue el nacimiento, desde lo más profundo del alma de cada
hombre y mujer, del interés por el cumplimiento de las tareas y el
impulso al mejoramiento de cada miembro del partido, por su propio
beneficio y por el del trabajo partidista, el cual es más eficaz cuando
lo realizan hombres y mujeres mejor preparados.
En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del
siglo veinte se valora la subjetividad con una mayor intensidad cuando
toda su dimensión está al servicio de la humanidad, la cual es la encargada de reconocer el mérito y, lo más importante, de culminar el propósito de quien se mantuvo fiel a sus fines humanistas. Con entereza y
convicción se subraya que si la muerte de alguien remueve las entrañas
humanas e impulsa hacia la acción transformadora en beneficio de los
hombres y mujeres del pueblo, su significación es mayor. Así abunda
la referencia a la muerte de Rafael Trejo y de otros revolucionarios,
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Freddy Varona Domínguez
como también se recalca la culminación de una vida cuando conduce a
interiorizar la necesidad del momento y actuar en correspondencia con
ella. Largo puede ser el listado de tales acicates. Uno de ellos es Máximo
Gorki, de quien en 1937 Juan Marinello dice que “sale de la vida amado
por la justicia del mundo” (MARINELLO, 1937a, 7).
A lo largo de la primera mitad del siglo XX, el humanismo en
el pensamiento marxista cubano tiene su fundamento en hombres
y mujeres reales, concretos, que se desenvuelven en su actividad, la
cual es un verdadero cause donde demuestran quienes son, exhiben
su poderío físico y espiritual, hacen realidad sueños y conforman los
ideales que los impulsan a nuevas realizaciones, atendiendo la historia,
la sociedad y la cultura cubanas.
5 Visión del hombre en su cultura
y en los nexos con el tiempo
Los rasgos de la concepción acerca del hombre en el pensamiento
marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX se deben en
gran medida a que toma cuerpo y vida a partir de la malla relacional
que forman la sociedad cubana, la historia y la cultura. En torno a esta
última existe toda una concepción que se caracteriza por su amplitud
y por aprehenderla como un todo, aunque tiene sus especificidades
en determinados pensadores.
En 1924 Julio A. Mella considera que “nuestra cultura y nuestros
esfuerzos tienen como fin revolucionar las conciencias de los hombres
de Cuba para formar una nueva sociedad.” Y más adelante en el mismo texto asegura que “la cultura es la única emancipación verdadera
y definitiva” (MELLA, 1975, 101). De estas ideas se desprende que
para este joven pensador la cultura no es un todo abstracto, sino una
totalidad ennoblecedora, capaz de actuar sobre la conciencia y moldear
a los hombres y las mujeres para que puedan crear un mundo mejor,
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
verdaderamente humanista. Cuatro años después, en 1928, una vez más
Mella enlaza la cultura al futuro de Cuba, específicamente a su desarrollo, destaca los conocimientos, la obra educacional y el arte. Sobre esta
base, se lamenta de que el saber se quede en la posesión de personas que
muy poco o nada le aportan a la patria, que no resuelven sus problemas,
como el analfabetismo o la necesidad de diversificar la industria, y que
convierten las obras artísticas en productos para comerciar. Afirma:
Cuando se desea elevar el nivel cultural de la nación, no llegamos a dar
más que fábricas de parásitos profesionales sin lograr la resolución del
pavoroso problema de los millones de analfabetos, y el más terrible aún
del atraso de nuestros conocimientos técnicos, base fundamental para una
cultura nacional sólida. Cuando se quiere hacer arte, se busca quien lo ha
de pagar, y entonces se le hace a su gusto burgués (MELLA, 1975, 452).
Condena que en esos momentos la cultura no es lo que él desea:
un universo favorable al desarrollo de Cuba y a la lucha contra la
desalienación y por el mejoramiento humano, sino un escenario que
condiciona el surgimiento de rasgos humanos negativos, que engendra
el capitalismo.
En el pensamiento de marras la cultura no es un simple adorno,
un manojo de hechos y frutos para lucir orgullosamente, es resultado
del hombre, quien simultáneamente es su mayor beneficiario. Por eso
en 1935 Carlos Rafael Rodríguez recalca “el servicio humano a que
la cultura será indudablemente destinada” (RODRÍGUEZ, 1987, t.
3, 656) y Juan Marinello en 1941, con motivo del primer aniversario
de la muerte del escritor cubano Alfonso Hernández Catá, asegura
que en un futuro “la cultura ha de ser la natural y universal proyección del hombre, porque se habrán roto las sujeciones miserables que
entraban el vuelo del pensamiento y las aventuras libérrimas del arte”
(MARINELLO, 1989, 338). En esta idea de Marinello está presente
una concepción amplia e integradora de la cultura.
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Freddy Varona Domínguez
Aquí amerita recordar las palabras del pensador español Fernando de los Ríos que Raúl Roa cita en 1949, porque su intención era
volver a concebir al hombre integralmente, sin divorciar lo racional y
lo sentimental, sin contraponer el científico y el artista, sin restringir
su universo espiritual ni sus gustos (ROA, 1950, 338). En el mismo
año 1949 Raúl Roa afirma:
La cultura no es una categoría abstracta ni una entidad metafísica. Ya sé
que para muchos es sólo eso. Y para otros, goce privilegiado de espíritu
superior. Ni una cosa ni otra es la cultura. La cultura es un producto
social. Y porque lo es, a la sociedad ha de revertir sus frutos. El acceso
individual a la misma debe estar en consecuencia, garantizado a todos
(ROA, 1949, 74).
De un pensamiento que se yergue desde esa altitud no ha de
asombrar su propósito inaplazable de formar una nueva sociedad para
con ella realizar el ideal de creación de una cultura superior, humanista,
que no es ajena a los cambios económicos.
En el pensamiento marxista cubano no cabe duda del carácter
determinante, en última instancia, del factor económico y de su incidencia en la cultura. En 1935, en un escrito dedicado a Mella, Carlos
Rafael Rodríguez establece nexos entre el desarrollo cultural, específicamente ente la ansiedad cultural de los maestros y alumnos, con el
orden económico y formula una interrogante que ratifica las anteriores
conexiones: “¿No se advierte que la verdadera cultura criolla sólo podrá surgir cuando la economía tenga asiento mayor?” (RODRÍGUEZ,
1987, t. 3, 660) No obstante la significación que le otorgan al factor
económico, no lo absolutizan, porque entienden que una revolución
en la conciencia es tan necesaria como la que debe realizarse en las
relaciones económicas y hasta cierto punto más importante y difícil.
Pero no basta con aprehender al hombre en la malla que forman
la cultura, la sociedad y la historia si no se atienden las exigencias que
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
cada momento histórico trae consigo, las cuales no son exclusivamente cubanas. De este modo, lo universal y lo nacional se conjugan
dialécticamente en este pensamiento cubano. Una evidencia de esta
característica está en la siguiente afirmación de Juan Marinello en 1937
con respecto a Antonio Maceo, donde está presente el espíritu martiano: “La figura histórica no es sólo humanidad; es humanidad más
la realidad que le tocó en suerte superior. Una cosa y otra - hombre
y tiempo - no pueden explicarse separadamente [...] la definición [...]
del rumbo del líder, está determinado por la pugna entre el arrastre
tradicional y una interpretación de lo presente en función de lo futuro”
(MARINELLO, 1937b, 21).
La aprehensión del hombre en estrecha relación con las exigencias
de la historia, con los nexos entre ella, la sociedad y la cultura, con el
peso de la economía, es favorecida por la importancia que se le otorga
a la actividad, donde se capta la alienación a la cual están sometidos
los hombres y mujeres cubanos, muchos de los cuales se convierten
en “cosas que deben andar,” (MARINELLO, 1977, 47) y por, consiguiente, donde gana fundamento la convicción de la urgencia de
transformar la sociedad cubana. Es, de ese modo, como brota desde
sus entrañas la esencia desalienadora de este pensamiento cubano.
Con este cimiento, la concepción acerca del ser humano, que
está en el fundamento del humanismo que recorre el pensamiento
marxista cubano en esta etapa histórica, se ubica concretamente en
Cuba y constituye una aprehensión del hombre como sujeto de la
actividad, donde tienen gran significación las necesidades, intereses,
fines y medios de satisfacerlos (PUPO, 1990, 28) El reconocimiento
de las leyes objetivas no conduce a la negación ni al menosprecio de
la subjetividad.
En el pensamiento marxista cubano al hombre se le reconoce y
destaca la infinita capacidad espiritual y física, que lo hace un ser de
inagotables perspectivas y caminos a andar, con disposición para proponerse insistentemente metas por las cuales lucha para hacerlas realidad
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Freddy Varona Domínguez
y con tendencia a mejorarse a sí mismo y a perfeccionar todo cuanto
está a su alrededor y, con mayor intensidad, lo que es capaz de crear.
Es el ser humano un complejo sistema de posibilidades y realizaciones.
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THE CONCEPTION CONCERNING HUMAN BEING: BASE OF
HUMANISM IN THE CUBAN MARXIST THOUGHT OF THE
FIRST HALF OF THE 20TH CENTURY
Abstract
From the understanding of humanism as conception, focus, way of thinking and doing, centred in the human beings (men, women, boys, girls), in
their continuous struggle to emancipate from every kind of oppression and
limitation to their capabilities and potentialities, as well as in their enthusiasm
to possess better attributes, in this article the author delves into the humanist
essence of the Cuban Marxist thought in the first half of the 20th century
and he goes to what he considers the base of humanism to which he appeals:
the conception of human being, and he does it to highlight some of his most
significant characteristics and to reveal those that not hardly ever exist in an
implicit way in the ideas of the Cuban Marxist thinkers. He adapts his text
with the development of the following topics: the social essence of human
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo
en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
being, his pertinence to class and social groups, the individual and the society
in the conception concerning the human being, the internal human force, the
vision of human being in his culture and in the linkages through the ages,
before which he exposes his considerations with a critical vision.
Key words: Humanism, Man, Human Being, Cuban Marxist Thought.
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MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA
COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE1
Renato Almeida de Andrade*
Resumo
O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico,
visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra.
Buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de
suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso
transformá-la. O método não comparece como um fim em si mesmo,
mas como um meio necessário para se alcançar o concreto pensado. De
posse desta compreensão o homem pode intervir racionalmente sobre
a história. A imersão na teoria marxiana nos propicia a compreensão de
diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos
proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação
dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. A apreensão e
compreensão da realidade como totalidade dialética nos faculta desvendar
o real e contribui para sua transformação.
Palavras-chave: Marx, método, história, dialética.
Uma parte deste trabalho foi apresentada como requisito da disciplina Teoria
Sociológica do Professor Yves Lesbaupin do Mestrado em Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Como este texto foi escrito antes do meu livro (O enfrentamento
da questão social e o terceiro setor: o serviço social e suas condições de trabalho nas ONGs.
Vila Velha: Univila, 2006.), alguns trechos foram publicados naquele livro.
* Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Assistente Social na
Prefeitura Municipal da Serra.
1
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Introdução
O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda
sua obra. Neste texto buscamos captar algumas destas concepções
dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. Dessa forma, a apreensão
e a compreensão da realidade contribuem para a definição dos caminhos a serem trilhados na intervenção dos indivíduos em sua própria
realidade. Este ato é ontologicamente tão importante quanto a compreensão do real. Nas palavras de Marx (2003), em suas teses sobre
Feuerbach, “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.
Nestes períodos em que as crises cíclicas do capitalismo se tornam
mais frequentes, mundializadas e duradouras é que se verifica a atualidade do pensamento marxiano, em especial seu método. Entendemos
que o potencial heurístico, transformador e revolucionário do seu
método atualiza criticamente o modo como a sociedade entende as
formas antagônicas e reais do sistema capitalista, para pensar e intervir
nesse sistema com uma atitude transformadora.
Na abertura do capítulo “Burgueses e Proletários” do Manifesto
Comunista, Marx e Engels (1999) afirmam que a “história de todas as
sociedades que já existiram é a história de luta de classes”. Esta afirmação indica a preocupação deles com a compreensão da história e,
na verdade, com a intervenção do homem na história. No início deste
texto traremos alguns elementos do momento histórico, do contexto
em que Marx viveu, lutou e escreveu suas concepções e seu método.
1 Pensando o mundo burguês
Com o declínio do sistema de produção feudal e a agonia da idade
média, grandes transformações ocorrem no seio da sociedade. Essas
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Renato Almeida de Andrade
alterações se mostram muito claras no mundo da produção e na forma
de apropriação pelo homem dos recursos naturais necessários à sua
manutenção. As transformações, que se deram em todos os campos
da sociedade, tiveram na Revolução Francesa um marco histórico e
político e contribuíram para a instalação do modo de pensar burguês. As mudanças ocasionadas nas relações sociais de produção, no
mundo da produção e reprodução da força de trabalho, chamadas de
“Revolução Industrial”, deram origem ao mundo burguês, o mundo
contemporâneo.
Neste “novo mundo”, segundo Netto (1993), a economia e a
sociedade são organizadas de modo particular, submetidas ambas a
uma estratégia global (a da burguesia) e a uma lógica específica (a da
valorização do capital). Configura-se assim, a partir dessa estratégia e
dessa lógica, um novo padrão de vida social, centralizado na civilização
urbano-industrial.
Essas transformações não se deram de forma harmônica, se
deram de forma dolorosa. Imagine o artesão perdendo o controle
sobre a concepção, a produção e a venda de seus produtos, o trabalhador se alienando do fruto do seu trabalho, não mais se reconhecendo na sua criação, a burguesia se consolidando com o aumento
do comércio, das navegações, da industrialização e da subjugação
do proletariado.
Na França a burguesia buscou apoio de outras camadas da população para conseguir a igualdade, a liberdade e a fraternidade:
Desde o início da Revolução Francesa, porém, a contradição existente
entre esta burguesia – que já gozava dos benefícios do sistema capitalista que se estruturava – e as demais camadas da população que nada
ou quase nada possuíam era visível. Os burgueses aceitavam lutar lado
a lado com o restante do povo francês contra a nobreza e o clero, mas
não tinham a menor intenção de com elas dividir o poder, após a vitória
(SPINDEL, 1985, p. 21).
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Os críticos franceses atacavam a monarquia, a religião e o absolutismo, atribuindo-lhes o aumento crescente da miséria da maioria
da população, e parte do povo também via dessa forma a realidade
social daquele período. O povo terminou por aliar-se à burguesia e
logo percebeu que continuou a ser explorado, só que de uma forma
diferente e muito mais alienante. Neste mundo burguês a exploração
é constante, mas a emancipação da humanidade é impossível, pois
a ideia de que todos são iguais perante a lei é apenas uma forma de
igualdade jurídica, ela não se traduz em igualdade econômico-social.
A miséria se alastrou como um vírus por toda a parte no “novo
mundo burguês”, o único personagem imune a esta doença foi a própria
burguesia, que se enriqueceu dia a dia com a pobreza e o sofrimento
alheios. Enquanto existir a propriedade privada (pois esta beneficia a
parte da população que possui meios de produção e exclui uma massa,
dona da força de trabalho, que é submetida aos mandos e desmandos
dos “possuidores”), a maior parte da população ficará condenada a um
regime de superexploração e de pobreza permanentes.
Em meio a toda essa turbulência social gerada no período, surge
uma classe, a que Marx atribui o verdadeiro caráter revolucionário,
o proletariado; aquela que conseguirá reverter os rumos da história,
levando o homem à sua libertação. Libertação não no ângulo da burguesia, mas sim de “viver” o mundo da necessidade (dar conta do
necessário à sobrevivência, como comer, beber, dormir), para saborear
em plenitude o mundo da liberdade (fazer a história, revolucionar,
criar, ser um homem emancipado).
De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por
natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita.
O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades,
para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado,
sejam quais forem a forma da sociedade e o modo de produção. [...]. Mas
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esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o
desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino
genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade
(MARX apud ANTUNES, 2009, p. 171-172, grifo nosso).
Por estas e outras questões é que a tese do fim da história não
encontra fundamento na teoria marxiana nem entre os estudiosos
marxistas contemporâneos. Tratar o momento atual como o fim da
história é fortalecer o ideal conservador que a burguesia instalou para
manter seu domínio de classe; ela assumiu esta mudança, renunciando
aos seus ideais emancipadores e revolucionários citados por Marx e
Engels (1999) em O Manifesto Comunista.
Tendo a possibilidade de utilizar as três principais correntes do
pensamento que vinham se desenvolvendo na Europa no século
passado (a dialética – filosofia clássica alemã –, a economia política
– inglesa – e o socialismo – francês), Marx estabelece relação entre
elas e as complementa em suas obras. Sem a inspiração nessas três
correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas ideias teria
sido impossível (SPINDEL, 1985, p. 30).
Discutir o método, como já apresentamos, não é das tarefas
mais fáceis, visto que ele não se descola da teoria social de Marx,
não tem autonomia em relação a essa teoria; portanto, é inseparável
dela. A imersão do método em Marx na teoria marxiana nos propicia
a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma
estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade
e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir
alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade,
a contradição e a mediação.
1.1 A dialética
A dialética é um conceito desenvolvido pelo filósofo clássico alemão Hegel. Trata-se de uma concepção sobre o princípio de evolução
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
da natureza e da sociedade, infinitamente mais rico, complexo e real do
que aqueles que eram admitidos pelos demais filósofos de sua época.
Na afirmação da dialética hegeliana, cada conceito possui em si o seu
contrário, cada afirmação, a sua negação (SPINDEL, 1985, p. 31).
Marx era um filósofo materialista, e Hegel era um filósofo idealista. Para os idealistas, era o pensamento, a ideia, que criava a realidade;
o espiritual e o absoluto eram forças que se moviam por si mesmas e
que movimentavam todo o Universo (daí a necessidade de um espírito
superior, de uma criação do mundo, pois as ideias é que determinam
a natureza). Já para Marx e Engels, que aprofundaram as ideias materialistas contidas na crítica que Ludwig Feuerbach dirigira ao idealismo
de Hegel, o movimento do pensamento era apenas um reflexo do
real, pois, na medida em que era produto do cérebro humano e que
o homem era, ele próprio, produto da natureza, o pensamento não
poderia deixar de ser também um produto da natureza (SPINDEL,
1985, p. 32). Por essa natureza materialista do pensamento de Marx,
sua dialética diferia da de Hegel.
Em primeiro lugar, como materialista, interessava-lhe descobrir
a base material daquelas sociedades, religiões, impérios etc. A ele
importava saber qual era a base econômica que sustentava estas sociedades: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem
produzia e assim por diante (SPINDEL, 1985, p. 34).
Com esta visão materialista foi possível se distanciar da dialética
idealista de Hegel e superá-la, visto que, para Marx (1982, p. 18), “as
categorias exprimem [...] formas de modos de ser, determinações de
existência, [...] aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse
sujeito”. Assim se verifica que a própria sociedade não começa a partir
do momento em que o homem tem consciência dela. Essas categorias não surgem no cérebro, elas têm existência própria na realidade
material; são apreendidas; são uma reprodução mental do real.
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“A dialética trata da ‘coisa em si’. Mas a ‘coisa em si’ não se manifesta diretamente ao homem”. Com esta afirmação Karel Kosik
(1976) apresenta a dialética da totalidade concreta e nos alerta para a
necessidade de nos aproximarmos da “coisa em si”, pois esta não é
visível ao olhar desatento do homem no seu dia-a-dia. O “[...] pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa”;
com isso Kosik não apenas distingue duas formas e dois graus de
conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.
Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob
o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato
sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo;
apresenta-se como campo em que se exercita a sua atividade prática
sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da
realidade. No trato utilitário das coisas [...] o indivíduo “em situação”
cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema
correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade
(KOSIK, 1976, p. 10).
A partir da dialética podemos perceber as transformações e contradições da sociedade burguesa e de todas as sociedades anteriores.
Para Marx e Engels (apud SPINDEL, 1985, p. 35-36), a estrutura
político-jurídica e a ideologia (entendia esta como o sistema de ideias
e costumes) são o resultado das relações estabelecidas pelos homens
em um determinado momento da História, e correspondem a um
certo estágio das forças produtivas. Para Marx,
[...] na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social (MARX, 1982, p. 25).
Um dos fundamentos do pensamento marxista é a ideia de que a
luta entre as classes é o motor da história. Levando em consideração
esse fundamento e o fato de que não é a consciência do homem que
determina o seu ser social e sim o seu contrário, o seu ser social (os
processos em que se insere no dia-a-dia da produção e reprodução
de sua vida material) é que determina a sua consciência, podemos
inferir, assim como Marx, que, ao mudar a base econômica, a estrutura da sociedade, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda
a imensa superestrutura (política, ideológica etc.) erigida sobre ela. O
marxismo não se prende apenas a compreender a história da humanidade ou apenas perceber que a luta de classes move a história; ele é
uma proposta de transformação da ordem vigente (burguesa) numa
nova ordem, em que já não existe propriedade privada, explorados e
exploradores; propõe a criação de uma sociedade sem classes, uma
sociedade de iguais.
1.2 A pseudoconcreticidade
Para perceber o real, o fenômeno, precisamos nos distanciar do
censo comum, dos “pré-conceitos”, “pré-disposições” e ilusões causadas por uma cortina de ideologias.
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a
atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes,
assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da
pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976, p. 11).
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A essência está contida no fenômeno, e este se constitui em essência e é por ela formado. Existe uma inter-relação segundo a qual a
essência existe a partir de um fenômeno e este se torna compreensível
no momento em que se encontra a essência. Para a compreensão do
fenômeno é necessário fazer um detour (desvio) e chegar à essência,
ou seja, ao elemento fundante do fenômeno.
O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma
realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim
fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação
íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria
reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta
naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde (KOSIK,
1976, p. 12, grifo nosso).
O fenômeno se manifesta imediatamente, primeiro e com maior
frequência, não se oculta, é perceptível, portanto, àquele que dilui o véu
da ideologia, vendo além da pseudoconcreticidade. Para conseguir ultrapassar o fenômeno na direção do entendimento e apreensão da essência
[...] o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente
possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de
ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si” e
de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam
imediatamente (KOSIK, 1976, p. 13, grifo nosso).
A busca da essência das coisas é a tarefa principal da ciência; este
esforço para encontrar a coisa em si não se prende às ideias anteriores,
pois, se a aparência do fenômeno e sua essência coincidissem diretamente, como afirma Marx, a ciência não mais teria utilidade. Este
entendimento da essência se baseia na decomposição do todo em
partes, isto compreende o encontro com o conhecimento.
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Porém, o fato de essência, fenômeno e aparência não coincidirem,
não implica que sejam polaridades. Pelo contrário, elas não existem
de forma autônoma. “[...] toda aparência ou fenômeno é essência que
aparece, toda essência aparece de algum modo, nenhuma das duas pode
estar presente sem esta relação dinâmica e contraditória” (LUKÁCS,
1979 (2):84) (PONTES, 1995, p. 83).
Deve-se buscar a unidade entre fenômeno e essência, do que é
secundário e do que é a essência, já que só através dessa unidade o
fenômeno pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter
específico da coisa. No caminho desse conhecimento, há uma tentativa
de isolar a essência do todo; o secundário não é deixado de lado como
irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico (do todo) ou
secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Em Kosik (1976, p. 14-15), a ciência e todo o conhecimento visam a
um objetivo e “todo agir é ‘unilateral’, já que visa a um fim determinado
e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação,
desprezando outros, temporariamente” (grifo nosso).
O homem apreende a realidade a partir do momento em que ele
sabe que cria a própria realidade humana (faz a história). Olhar para
a natureza não cria conhecimento, nem o simples fato de contemplá-la. O censo comum (pensamento comum, fruto da práxis utilitária; a
familiaridade com as coisas e com o aspecto superficial destas) possibilita que uma criança possa crescer e sobreviver no mundo, mas essa
ideia a priori dos fatos não possibilita uma compreensão, um detour
no encontro da essência para a desmistificação do todo, numa atitude
inversa à da contemplação, pois aí já se percebem as contradições das
partes do todo, do concreto (unidade da diversidade):
O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações,
isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento
como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida
também da intuição e da representação (MARX, 1982, p. 14).
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A partir do conhecimento crítico dialético, do encontro com a essência num processo de compreensão do todo, o homem (em especial o
operariado) pode perceber as contradições presentes e crescentes no
mundo capitalista burguês, a exploração do homem pelo homem; a
propriedade privada de uns, contra a “pobreza privada” de muitos; o
consumo alienante e alienado etc. Essas contradições, entre outras,
segundo Marx, conduziriam inevitavelmente à agudização da luta
entre as classes fundantes do capitalismo, o que consequentemente
provocaria a ruptura com o modo de produção burguês, a ascensão
ao poder dos proletários e a implantação do socialismo.
Com a tomada de poder pela classe operária haveria um período
de articulação e construção das bases do socialismo, chamado de
“Ditadura do Proletariado”; neste momento seriam utilizadas as estruturas burguesas, como o próprio Estado, para executar as tarefas
necessárias à extinção de toda a divisão de classes, do próprio Estado
e de toda a propriedade privada.
1.3 A totalidade
Para entender totalidade não basta tomar todos os fatos e colocá-los num mesmo bloco para observação. A totalidade é dialética, é a
unidade do diverso. Deve-se tratar a realidade como um todo estruturado no qual qualquer fenômeno pode ser racionalmente cindido
em partes e compreendido na sua essência. Para Pontes (1995, p. 70),
a “totalidade é uma categoria concreta. É própria da constituição do
real. É a essência constitutiva do real; por isso, ontológica”.
Segundo Kosik (1976), a totalidade foi elaborada na Filosofia
Clássica Alemã como um dos conceitos centrais para distinguir polemicamente a dialética da metafísica.
A posição da totalidade, que compreende a realidade nas suas íntimas
leis e revela, sob a superfície e a causalidade dos fenômenos, as conexões
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
internas, necessárias, coloca-se em antítese à posição do empirismo, que
considera as manifestações fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a
compreensão dos processos evolutivos da realidade (KOSIK, 1976, p. 33).
A realidade é pensada e entendida como concreticidade, em Kosik (1976). Esta realidade é um todo que possui sua própria estrutura
(assim, não é caótico); ela se desenvolve (portanto, não é imutável, se
move) e vai se criando (não comparece como um todo perfeito e acabado, em que só se movem as formas de ordenar suas partes isoladas).
Na compreensão da dialética da totalidade as partes estão em relação de interação interna e também de conexão entre si e com o todo.
Na construção do conhecimento da realidade busca-se ir às partes, à
procura da essência do todo; no retorno à concreticidade verifica-se que
as contradições das partes e a correlação destas se estruturam, dando
forma e concretude ao movimento do real pensado. Neste movimento,
bem diferente do que defendia Hegel, o processo de conhecimento não
se confunde com a realidade; nele a realidade está posta e passa a ser
conhecida; este conhecimento não é anterior à realidade.
Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de
fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de
concretização que procede do todo para as partes e das partes para o
todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos,
da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade;
e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os
conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente,
atinge a concreticidade (KOSIK, 1976, p. 41-42).
O concreto pensado não pode ser considerado imutável (petrificado) nem observado como “a perfeição”, “completo”, visto por
cima das partes, pois as partes são partes do todo e o todo “se cria
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a si mesmo na interação das partes”, o todo não é melhor ou mais
concreto que as partes.
Para Kosik (1976), pode-se visualizar três concepções fundamentais do todo ou da totalidade no decurso da história do pensamento
filosófico:
1) a concepção atomístico-racionalista, de Descartes até Wittgenstein, que
concebe o todo como totalidade dos elementos e dos fatos mais
simples;
2) a concepção organicista e organicístico-dinâmica, que formaliza o todo
e afirma a predominância e a prioridade do todo sobre as partes
(Schelling, Spann);
3) a concepção dialética (Heráclito, Hegel, Marx), que concebe o real
como um todo estruturado que se desenvolve e se cria (KOSIK,
1976, p. 42-43, grifo nosso).
O conhecimento da realidade histórica se dá por um processo
de apropriação teórica (interpretação crítica dos fatos). O conhecimento se realiza no ato de encontrar na realidade a possibilidade de
transformar a totalidade concreta (concreto concreto) em totalidade
abstrata (concreto pensado). Nesse processo a dificuldade é manter
as características do concreto concreto no concreto pensado, não diminuindo nem degenerando seus aspectos fundantes. Segundo Kosik
(1976, p. 50), a “criação da totalidade como estrutura significativa é,
portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o
conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e partes”.
A totalidade concreta é a forma de conhecer o real, a partir de
uma concepção dialético-materialista. Resumidamente, este método é
[...] um processo indivisível cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno,
e o conhecimento da sua autêntica objetividade; em segundo lugar,
conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta
de modo característico a dialética do individual e do humano em geral;
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e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ele ocupa no
seio do corpo social (KOSIK, 1976, p. 52).
Para chegarmos à totalidade utilizamos a teoria; esta faz uma aproximação, porém, não nos fornece a totalidade, pelo menos não nos
garante que a encontramos, só o tempo e a história nos mostrarão a
verdade. Essa teoria fornece boas indicações, por exemplo, quanto há
totalidade, a teoria dialética recomenda que nós prestemos atenção ao “recheio”
de cada síntese, quer dizer, às contradições e mediações concretas que a síntese
encerra (KONDER, 1991, p. 44).
Para chegarmos ao conhecimento das partes do todo, precisamos de uma noção (síntese) ao menos incompleta sobre o todo. Esta
noção incompleta nos possibilita um conhecimento parcial do todo,
mas que nos aproximará do entendimento de cada parte (elemento)
do todo; estaremos, assim, chegando a uma maior compreensão das
partes e, por conseguinte, clareando e aprofundando nossa noção do
todo, como diria Hegel, da verdade.
1.4 A contradição
A contradição se expressa na realidade, pois esta é cindida pelo
conflito, ou seja, pela constante mudança ou pela intenção dessa
mudança. Ela é também a luta dos contrários, porta elementos de
manutenção e ruptura, a tese e a antítese. Assim como nenhum corpo
se conserva inerte no Universo, a sociedade também se encontra em
constante movimento.
A realidade é dinâmica, o real se encontra em constante mutação;
por isso devemos perceber as contradições como sendo este processo
de total instabilidade do ser, das relações sociais e dos fenômenos. Tudo
o que há no mundo pode ser transformado, tudo muda de lugar, forma
ou atitude. E quais as contradições contidas nesses movimentos?
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O homem, através do trabalho, pode modificar a si e ao mundo,
tornando-se novo homem num novo mundo. Nesse processo o homem faz história (segundo Marx, n’O 18 Brumário de Luiz Bonaparte,
não nas condições de sua escolha), cria e transforma a vida material.
As contradições permeiam esse fazer e contribuem para que essa ação
se torne conhecida e inteligível.
O mundo está em constante mudança, e a contradição contribui
nesse processo de criar e recriar a história. Precisamos também seguir
o conselho de Diderot apud Konder (1991), para que não sejamos
enganados:
No suplemento à Viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot
aconselhava seus leitores: “Examinem todas as instituições políticas,
civis e religiosas; ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênero
humano subjugado, a cada século mais submetido ao jugo de um
punhado de meliantes”. E recomendava: “Desconfiem de quem quer
impor a ordem” (KONDER, 1991, p. 17).
O pensamento dialético é obrigado, segundo Konder (1991), a
um paciente trabalho de identificar gradualmente as contradições
concretas e as mediações específicas, que são partes do tecido e que
dão vida a cada totalidade.
Essa dialética, para Coutinho apud Konder (1991, p. 46),
[...] não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas
do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre
elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político)
como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem
no seio da sociedade enquanto totalidade).
A contradição é a categoria essencial do materialismo dialético, é
a lei fundamental da dialética, é a unidade de luta dos contrários. As
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
leis da dialética, escritas por Engels, podem nos possibilitar entender
melhor essa categoria da contradição em Marx:
a) Lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa). As coisas
mudam, mas não mudam no mesmo ritmo:
[...] o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações
quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o
exemplo da água que vai esquentando, vai esquentando, até alcançar
cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso (KONDER, 1991, p. 58).
b) Lei da interpenetração dos contrários. Nesta lei tudo tem a ver com
tudo,
[...] os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes
níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem
ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em
conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes
(KONDER, 1991, p. 58).
c) Lei da negação da negação. O movimento geral da realidade faz
sentido, não é absurdo,
[...] não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se
perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre
afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua
negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação
como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma
síntese, é a negação da negação (KONDER, 1991, p. 59).
Nesta unidade de luta dos contrários se percebe a importância
da contradição, visto que esta categoria possibilita o movimento, a
mudança, a superação. Se todas as coisas estivessem dadas, escritas,
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definidas e imutáveis, a vida poderia perder parte do seu sentido, visto
que o futuro já estaria predestinado, e as pessoas não precisariam ou
não poderiam querer ter ou ser mais do que já têm ou são. Para esta
visão de imutabilidade e de solidez que alguns possuem, Marx e Engels
(1999, p. 14) afirmam o seguinte: “Tudo que é sólido derrete-se no ar
[...] e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato
suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes”,
ou seja, tanto a estrutura quanto a superestrutura podem ser alteradas,
e assim são transmutadas todas as relações sociais de produção.
1.5 A mediação
A categoria da mediação expressa as relações concretas existentes
entre as partes de um todo.
A mediação é o caminho existente, percorrido e (ou) passível de
ser percorrido, para se conhecerem as correlações concretas e dialéticas entre as partes do todo estruturado.
Como exemplo de mediação Marx coloca o trabalho como sendo o principal mediador entre o homem e a natureza e entre este e a
própria sociedade.
Assim, as mediações criadas historicamente na complexa relação homem-natureza são indicadores seguros e fecundos, do ponto de vista histórico-social, porque efetivamente constituem-se na expressão concreta do
evolver do processo de enriquecimento humano, na sua dinâmica de
objetivar-se no mundo e incorporar tais objetivações; na sua saga de
buscar mediações cada vez menos “degradadas e bárbaras” e cada vez
mais humano-igualitárias, tanto no plano do ser social quanto no plano
do controle da natureza (PONTES, 1995, p. 78-79).
Em Pontes (1995) percebemos como a categoria mediação traz
à tona, segundo Hegel, o “verdadeiro” como sendo um resultado:
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
A mediação em face da totalidade, segundo o autor, é responsável pela
articulação dinâmica, processual entre as partes na sua ação recíproca e o
todo, considerando que cada parte se constitui em uma totalidade parcial,
também complexa. Daí a justificativa da afirmação de que “a mediação
é que faz com que o verdadeiro seja resultado” (Hegel, 1987:14), o que
significa, ser fruto de um processo, de múltiplas passagens, de moventes
articulações multilaterais e complexas (PONTES, 1995, p. 55).
O trabalho humano é uma mediação que humaniza o próprio ser
humano.2 Pontes (1995, p. 78) vê as mediações como sendo “expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza
e consequentemente das relações sociais daí decorrentes, nas várias
formações sócio-humanas que a história registrou”.
Todos os objetos são frutos da mediação. Percebemos em Lukács
apud Pontes (1995, p. 79) que a categoria mediação possui esta
dimensão ontológica:
Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que
neste sentido [...] não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste
ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem
que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito [...].
Entendendo a categoria mediação, perceberemos que os fenômenos não estão isolados, as partes do todo a este pertencem justamente
porque possuem uma mediação com a sua estrutura, ou então não
seriam partes do todo, seriam objetos externos e sem sentido. A mediação mostra o não isolamento das partes; isto implica que sempre
haverá possibilidade de superação de barreiras entre as partes, pois a
É na mediação trabalho que o homem se aproxima da natureza, transforma
essa natureza e a si próprio, criando, assim, novas mediações.
2
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síntese é o resultado dessa interação; assim sendo, é o que se apresenta
mais próximo da verdade.
Para Pontes (1995), a mediação tem um alto poder de dinamismo
e articulação entre as partes do todo, e sem as mediações o método
dialético se petrifica. A mediação é
[...] responsável pelas moventes relações que se operam no interior de
cada complexo relativamente total e das articulações dinâmicas e contraditórias entre estas várias estruturas sócio-históricas. Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva de totalidade.
Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica das mediações
através da razão, o método, que é dialético, se enrijece, perdendo, por
conseguinte, a própria natureza dialética (PONTES, 1995, p. 81).
O autor de Mediação e Serviço Social (PONTES, 1995) sintetiza que a
apreensão da essência do todo corresponde necessariamente à captura
das mediações que são o locus da dialética aparência-essência.
A razão não se contenta com a identidade e a diversidade abstratas próprias da positividade do real. Busca as mediações submersas no plano
fenomênico.
Para superar o mundo da aparência necessário se faz negá-lo, daí a necessidade do caráter negativo da razão (PONTES, 1995, p. 82).
Como já discutimos no item 1.3 – Totalidade –, o todo é estruturado, não é caótico. Ele é formado por partes, e estas estão num
constante movimento. Entre as partes existem ligações (mediações)
moventes, ligações que informam o real. As essências parciais presentes nas partes, ao serem sintetizadas, fazem emergir a essência total
do todo. A mediação nos eleva da percepção dos fatos (abstrato) à
apreensão do movimento das partes até chegarmos ao real mediatizado (concreto pensado).
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Num determinado estudo, poderíamos pensar nos dados coletados
como peças de um quebra-cabeça desmontado, cujo fenômeno é
o que se pode ver nelas, e esta disposição não é um caos; ela é um
emaranhado de peças3 que dá forma a uma figura, mas a essência
ainda não está na figura que se forma ao fim da montagem do quebra-cabeça. A essência seria a substância da figura em si (que nem sempre
se expressa na sua forma), influenciada por todas as contradições do
processo de montagem, imersa em mediações situadas entre as peças
do quebra-cabeça. Nessas mediações não está a forma final da figura,
mas sim o conteúdo de possibilidades e rupturas que se poderia ter ao
se querer organizar, racionalmente, uma dada situação, um momento
da realidade, chegando, assim, à sua concretude.
Considerações
Viver é interferir na história. A partir deste debate sobre o método
podemos inferir que estar no mundo é participar da vida de forma
adaptativa ou transformadora. Estar vivo nos propicia entender parte
do que está à nossa volta e de alterar esta realidade da forma como
nos for possível.
O presente texto não esgota o debate sobre o método, nem sobre sua aplicação na práxis humana. Muitas questões que discutimos
aqui podem e devem receber um maior aprofundamento por parte
dos que vislumbram a construção de uma nova sociedade, para além
do reino da necessidade, alcançar o reino da liberdade. Para além de
comer, beber e dormir, o homem pode ser o construtor da realidade,
de sua própria história.
3
Peças estas que devem ser consideradas como partes do todo, já decomposto.
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Renato Almeida de Andrade
Na busca da essência é preciso ir além do nível da empiria, pois,
segundo Guerra (1995, p. 200), esta “análise não ultrapassa a aparência dos fenômenos, ou, como afirma Lukács, ‘no empirismo está
contido um ontologismo ingênuo (...) uma valorização instintiva da
realidade imediatamente dada, das coisas singulares e das relações de
fácil percepção’ [...]”.
É necessária a apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética, para não nos adequarmos ou enquadrarmos à “ordem”
ou aos “novos tempos”. Esta compreensão nos faculta desvendar o
real e contribui para sua transformação.
A história é feita pelos homens e a simples percepção teórica do real não
os transforma em agentes revolucionários, o compromisso ético-político
com as classes que hoje vivem da venda de sua força de trabalho é um
dos principais elementos na tomada de decisão em função de uma transformação estrutural da sociedade (ANDRADE, 2006, p. 166).
Em Gramsci (1988) encontra-se força inspiradora para a luta, a
partir dele percebemos que o “pessimismo da inteligência”, na averiguação do real até então dado, precisa ser corretamente mediado
pelo “otimismo da vontade”, numa busca incessante da ansiada “nova
sociedade”. “Nesta, não só a produção será coletiva, mas também o
será a repartição dos resultados dela” (ANDRADE, 2006, p. 160).
Referências
ANDRADE, Renato Almeida de. O Enfrentamento da questão social e o
terceiro setor: o Serviço Social e suas condições de trabalho nas ONGs.
Vila Velha: Univila, 2006.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação
e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 6. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo:
Cortez, 1995.
KONDER, Leandro. O que é dialética. 22. ed. São Paulo: Brasiliense,
1991.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o
rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
______. Teses sobre Feuerbach. Disponível em: http://www.marxists.org/
portugues/marx/18
45/tesfeuer.htm. Acesso em: 10/04/2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista.
5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
NETTO, José Paulo. O que é marxismo. 8. ed. São Paulo: Brasiliense,
1993.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez;
Belém: Universidade da Amazônia, 1995.
SPINDEL, Arnaldo. O que é socialismo. 15. ed. São Paulo: Brasiliense,
1985.
MARX AND HIS METHOD: BEYOND THE UNDERSTANDING
OF THE HISTORY OF HUMANITY
Abstract
The debate about the method in Marx is not in a specific book, considering
that it is intrinsic to his social theory, but diluted in all his work. We search to
captivate some of these conceptions disposed in some of his works. To Marx,
it is not enough to understand reality, it is necessary to change it. The method
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Renato Almeida de Andrade
does not appear as an end in itself, but as a means necessary to achieve the
concrete thought. With this understanding man can intervene rationally on
history. The immersion in the Marxian theory propitiate us the understanding
of several categories. These ones, organized in structured way, can provide us
the understanding of reality and of ways for its transformation. In this text we
will discuss some subject matters about the dialectics, the pseudoconcreticity,
the totality, the contradiction and the mediation. The apprehension and the
understanding of reality as dialectic totality facilitate us to reveal the reality
and contribute to its transformation.
Key words: Marx, method, history, dialectic.
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MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA
COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE1
Renato Almeida de Andrade*
Resumo
O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico,
visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra.
Buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de
suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso
transformá-la. O método não comparece como um fim em si mesmo,
mas como um meio necessário para se alcançar o concreto pensado. De
posse desta compreensão o homem pode intervir racionalmente sobre
a história. A imersão na teoria marxiana nos propicia a compreensão de
diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos
proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação
dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. A apreensão e
compreensão da realidade como totalidade dialética nos faculta desvendar
o real e contribui para sua transformação.
Palavras-chave: Marx, método, história, dialética.
Uma parte deste trabalho foi apresentada como requisito da disciplina Teoria
Sociológica do Professor Yves Lesbaupin do Mestrado em Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Como este texto foi escrito antes do meu livro (O enfrentamento
da questão social e o terceiro setor: o serviço social e suas condições de trabalho nas ONGs.
Vila Velha: Univila, 2006.), alguns trechos foram publicados naquele livro.
* Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Assistente Social na
Prefeitura Municipal da Serra.
1
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Introdução
O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda
sua obra. Neste texto buscamos captar algumas destas concepções
dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. Dessa forma, a apreensão
e a compreensão da realidade contribuem para a definição dos caminhos a serem trilhados na intervenção dos indivíduos em sua própria
realidade. Este ato é ontologicamente tão importante quanto a compreensão do real. Nas palavras de Marx (2003), em suas teses sobre
Feuerbach, “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.
Nestes períodos em que as crises cíclicas do capitalismo se tornam
mais frequentes, mundializadas e duradouras é que se verifica a atualidade do pensamento marxiano, em especial seu método. Entendemos
que o potencial heurístico, transformador e revolucionário do seu
método atualiza criticamente o modo como a sociedade entende as
formas antagônicas e reais do sistema capitalista, para pensar e intervir
nesse sistema com uma atitude transformadora.
Na abertura do capítulo “Burgueses e Proletários” do Manifesto
Comunista, Marx e Engels (1999) afirmam que a “história de todas as
sociedades que já existiram é a história de luta de classes”. Esta afirmação indica a preocupação deles com a compreensão da história e,
na verdade, com a intervenção do homem na história. No início deste
texto traremos alguns elementos do momento histórico, do contexto
em que Marx viveu, lutou e escreveu suas concepções e seu método.
1 Pensando o mundo burguês
Com o declínio do sistema de produção feudal e a agonia da idade
média, grandes transformações ocorrem no seio da sociedade. Essas
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Renato Almeida de Andrade
alterações se mostram muito claras no mundo da produção e na forma
de apropriação pelo homem dos recursos naturais necessários à sua
manutenção. As transformações, que se deram em todos os campos
da sociedade, tiveram na Revolução Francesa um marco histórico e
político e contribuíram para a instalação do modo de pensar burguês. As mudanças ocasionadas nas relações sociais de produção, no
mundo da produção e reprodução da força de trabalho, chamadas de
“Revolução Industrial”, deram origem ao mundo burguês, o mundo
contemporâneo.
Neste “novo mundo”, segundo Netto (1993), a economia e a
sociedade são organizadas de modo particular, submetidas ambas a
uma estratégia global (a da burguesia) e a uma lógica específica (a da
valorização do capital). Configura-se assim, a partir dessa estratégia e
dessa lógica, um novo padrão de vida social, centralizado na civilização
urbano-industrial.
Essas transformações não se deram de forma harmônica, se
deram de forma dolorosa. Imagine o artesão perdendo o controle
sobre a concepção, a produção e a venda de seus produtos, o trabalhador se alienando do fruto do seu trabalho, não mais se reconhecendo na sua criação, a burguesia se consolidando com o aumento
do comércio, das navegações, da industrialização e da subjugação
do proletariado.
Na França a burguesia buscou apoio de outras camadas da população para conseguir a igualdade, a liberdade e a fraternidade:
Desde o início da Revolução Francesa, porém, a contradição existente
entre esta burguesia – que já gozava dos benefícios do sistema capitalista que se estruturava – e as demais camadas da população que nada
ou quase nada possuíam era visível. Os burgueses aceitavam lutar lado
a lado com o restante do povo francês contra a nobreza e o clero, mas
não tinham a menor intenção de com elas dividir o poder, após a vitória
(SPINDEL, 1985, p. 21).
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Os críticos franceses atacavam a monarquia, a religião e o absolutismo, atribuindo-lhes o aumento crescente da miséria da maioria
da população, e parte do povo também via dessa forma a realidade
social daquele período. O povo terminou por aliar-se à burguesia e
logo percebeu que continuou a ser explorado, só que de uma forma
diferente e muito mais alienante. Neste mundo burguês a exploração
é constante, mas a emancipação da humanidade é impossível, pois
a ideia de que todos são iguais perante a lei é apenas uma forma de
igualdade jurídica, ela não se traduz em igualdade econômico-social.
A miséria se alastrou como um vírus por toda a parte no “novo
mundo burguês”, o único personagem imune a esta doença foi a própria
burguesia, que se enriqueceu dia a dia com a pobreza e o sofrimento
alheios. Enquanto existir a propriedade privada (pois esta beneficia a
parte da população que possui meios de produção e exclui uma massa,
dona da força de trabalho, que é submetida aos mandos e desmandos
dos “possuidores”), a maior parte da população ficará condenada a um
regime de superexploração e de pobreza permanentes.
Em meio a toda essa turbulência social gerada no período, surge
uma classe, a que Marx atribui o verdadeiro caráter revolucionário,
o proletariado; aquela que conseguirá reverter os rumos da história,
levando o homem à sua libertação. Libertação não no ângulo da burguesia, mas sim de “viver” o mundo da necessidade (dar conta do
necessário à sobrevivência, como comer, beber, dormir), para saborear
em plenitude o mundo da liberdade (fazer a história, revolucionar,
criar, ser um homem emancipado).
De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por
natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita.
O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades,
para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado,
sejam quais forem a forma da sociedade e o modo de produção. [...]. Mas
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esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o
desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino
genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade
(MARX apud ANTUNES, 2009, p. 171-172, grifo nosso).
Por estas e outras questões é que a tese do fim da história não
encontra fundamento na teoria marxiana nem entre os estudiosos
marxistas contemporâneos. Tratar o momento atual como o fim da
história é fortalecer o ideal conservador que a burguesia instalou para
manter seu domínio de classe; ela assumiu esta mudança, renunciando
aos seus ideais emancipadores e revolucionários citados por Marx e
Engels (1999) em O Manifesto Comunista.
Tendo a possibilidade de utilizar as três principais correntes do
pensamento que vinham se desenvolvendo na Europa no século
passado (a dialética – filosofia clássica alemã –, a economia política
– inglesa – e o socialismo – francês), Marx estabelece relação entre
elas e as complementa em suas obras. Sem a inspiração nessas três
correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas ideias teria
sido impossível (SPINDEL, 1985, p. 30).
Discutir o método, como já apresentamos, não é das tarefas
mais fáceis, visto que ele não se descola da teoria social de Marx,
não tem autonomia em relação a essa teoria; portanto, é inseparável
dela. A imersão do método em Marx na teoria marxiana nos propicia
a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma
estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade
e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir
alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade,
a contradição e a mediação.
1.1 A dialética
A dialética é um conceito desenvolvido pelo filósofo clássico alemão Hegel. Trata-se de uma concepção sobre o princípio de evolução
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
da natureza e da sociedade, infinitamente mais rico, complexo e real do
que aqueles que eram admitidos pelos demais filósofos de sua época.
Na afirmação da dialética hegeliana, cada conceito possui em si o seu
contrário, cada afirmação, a sua negação (SPINDEL, 1985, p. 31).
Marx era um filósofo materialista, e Hegel era um filósofo idealista. Para os idealistas, era o pensamento, a ideia, que criava a realidade;
o espiritual e o absoluto eram forças que se moviam por si mesmas e
que movimentavam todo o Universo (daí a necessidade de um espírito
superior, de uma criação do mundo, pois as ideias é que determinam
a natureza). Já para Marx e Engels, que aprofundaram as ideias materialistas contidas na crítica que Ludwig Feuerbach dirigira ao idealismo
de Hegel, o movimento do pensamento era apenas um reflexo do
real, pois, na medida em que era produto do cérebro humano e que
o homem era, ele próprio, produto da natureza, o pensamento não
poderia deixar de ser também um produto da natureza (SPINDEL,
1985, p. 32). Por essa natureza materialista do pensamento de Marx,
sua dialética diferia da de Hegel.
Em primeiro lugar, como materialista, interessava-lhe descobrir
a base material daquelas sociedades, religiões, impérios etc. A ele
importava saber qual era a base econômica que sustentava estas sociedades: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem
produzia e assim por diante (SPINDEL, 1985, p. 34).
Com esta visão materialista foi possível se distanciar da dialética
idealista de Hegel e superá-la, visto que, para Marx (1982, p. 18), “as
categorias exprimem [...] formas de modos de ser, determinações de
existência, [...] aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse
sujeito”. Assim se verifica que a própria sociedade não começa a partir
do momento em que o homem tem consciência dela. Essas categorias não surgem no cérebro, elas têm existência própria na realidade
material; são apreendidas; são uma reprodução mental do real.
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“A dialética trata da ‘coisa em si’. Mas a ‘coisa em si’ não se manifesta diretamente ao homem”. Com esta afirmação Karel Kosik
(1976) apresenta a dialética da totalidade concreta e nos alerta para a
necessidade de nos aproximarmos da “coisa em si”, pois esta não é
visível ao olhar desatento do homem no seu dia-a-dia. O “[...] pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa”;
com isso Kosik não apenas distingue duas formas e dois graus de
conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.
Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob
o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato
sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo;
apresenta-se como campo em que se exercita a sua atividade prática
sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da
realidade. No trato utilitário das coisas [...] o indivíduo “em situação”
cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema
correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade
(KOSIK, 1976, p. 10).
A partir da dialética podemos perceber as transformações e contradições da sociedade burguesa e de todas as sociedades anteriores.
Para Marx e Engels (apud SPINDEL, 1985, p. 35-36), a estrutura
político-jurídica e a ideologia (entendia esta como o sistema de ideias
e costumes) são o resultado das relações estabelecidas pelos homens
em um determinado momento da História, e correspondem a um
certo estágio das forças produtivas. Para Marx,
[...] na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social (MARX, 1982, p. 25).
Um dos fundamentos do pensamento marxista é a ideia de que a
luta entre as classes é o motor da história. Levando em consideração
esse fundamento e o fato de que não é a consciência do homem que
determina o seu ser social e sim o seu contrário, o seu ser social (os
processos em que se insere no dia-a-dia da produção e reprodução
de sua vida material) é que determina a sua consciência, podemos
inferir, assim como Marx, que, ao mudar a base econômica, a estrutura da sociedade, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda
a imensa superestrutura (política, ideológica etc.) erigida sobre ela. O
marxismo não se prende apenas a compreender a história da humanidade ou apenas perceber que a luta de classes move a história; ele é
uma proposta de transformação da ordem vigente (burguesa) numa
nova ordem, em que já não existe propriedade privada, explorados e
exploradores; propõe a criação de uma sociedade sem classes, uma
sociedade de iguais.
1.2 A pseudoconcreticidade
Para perceber o real, o fenômeno, precisamos nos distanciar do
censo comum, dos “pré-conceitos”, “pré-disposições” e ilusões causadas por uma cortina de ideologias.
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a
atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes,
assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da
pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976, p. 11).
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Renato Almeida de Andrade
A essência está contida no fenômeno, e este se constitui em essência e é por ela formado. Existe uma inter-relação segundo a qual a
essência existe a partir de um fenômeno e este se torna compreensível
no momento em que se encontra a essência. Para a compreensão do
fenômeno é necessário fazer um detour (desvio) e chegar à essência,
ou seja, ao elemento fundante do fenômeno.
O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma
realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim
fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação
íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria
reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta
naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde (KOSIK,
1976, p. 12, grifo nosso).
O fenômeno se manifesta imediatamente, primeiro e com maior
frequência, não se oculta, é perceptível, portanto, àquele que dilui o véu
da ideologia, vendo além da pseudoconcreticidade. Para conseguir ultrapassar o fenômeno na direção do entendimento e apreensão da essência
[...] o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente
possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de
ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si” e
de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam
imediatamente (KOSIK, 1976, p. 13, grifo nosso).
A busca da essência das coisas é a tarefa principal da ciência; este
esforço para encontrar a coisa em si não se prende às ideias anteriores,
pois, se a aparência do fenômeno e sua essência coincidissem diretamente, como afirma Marx, a ciência não mais teria utilidade. Este
entendimento da essência se baseia na decomposição do todo em
partes, isto compreende o encontro com o conhecimento.
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Porém, o fato de essência, fenômeno e aparência não coincidirem,
não implica que sejam polaridades. Pelo contrário, elas não existem
de forma autônoma. “[...] toda aparência ou fenômeno é essência que
aparece, toda essência aparece de algum modo, nenhuma das duas pode
estar presente sem esta relação dinâmica e contraditória” (LUKÁCS,
1979 (2):84) (PONTES, 1995, p. 83).
Deve-se buscar a unidade entre fenômeno e essência, do que é
secundário e do que é a essência, já que só através dessa unidade o
fenômeno pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter
específico da coisa. No caminho desse conhecimento, há uma tentativa
de isolar a essência do todo; o secundário não é deixado de lado como
irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico (do todo) ou
secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Em Kosik (1976, p. 14-15), a ciência e todo o conhecimento visam a
um objetivo e “todo agir é ‘unilateral’, já que visa a um fim determinado
e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação,
desprezando outros, temporariamente” (grifo nosso).
O homem apreende a realidade a partir do momento em que ele
sabe que cria a própria realidade humana (faz a história). Olhar para
a natureza não cria conhecimento, nem o simples fato de contemplá-la. O censo comum (pensamento comum, fruto da práxis utilitária; a
familiaridade com as coisas e com o aspecto superficial destas) possibilita que uma criança possa crescer e sobreviver no mundo, mas essa
ideia a priori dos fatos não possibilita uma compreensão, um detour
no encontro da essência para a desmistificação do todo, numa atitude
inversa à da contemplação, pois aí já se percebem as contradições das
partes do todo, do concreto (unidade da diversidade):
O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações,
isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento
como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida
também da intuição e da representação (MARX, 1982, p. 14).
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A partir do conhecimento crítico dialético, do encontro com a essência num processo de compreensão do todo, o homem (em especial o
operariado) pode perceber as contradições presentes e crescentes no
mundo capitalista burguês, a exploração do homem pelo homem; a
propriedade privada de uns, contra a “pobreza privada” de muitos; o
consumo alienante e alienado etc. Essas contradições, entre outras,
segundo Marx, conduziriam inevitavelmente à agudização da luta
entre as classes fundantes do capitalismo, o que consequentemente
provocaria a ruptura com o modo de produção burguês, a ascensão
ao poder dos proletários e a implantação do socialismo.
Com a tomada de poder pela classe operária haveria um período
de articulação e construção das bases do socialismo, chamado de
“Ditadura do Proletariado”; neste momento seriam utilizadas as estruturas burguesas, como o próprio Estado, para executar as tarefas
necessárias à extinção de toda a divisão de classes, do próprio Estado
e de toda a propriedade privada.
1.3 A totalidade
Para entender totalidade não basta tomar todos os fatos e colocá-los num mesmo bloco para observação. A totalidade é dialética, é a
unidade do diverso. Deve-se tratar a realidade como um todo estruturado no qual qualquer fenômeno pode ser racionalmente cindido
em partes e compreendido na sua essência. Para Pontes (1995, p. 70),
a “totalidade é uma categoria concreta. É própria da constituição do
real. É a essência constitutiva do real; por isso, ontológica”.
Segundo Kosik (1976), a totalidade foi elaborada na Filosofia
Clássica Alemã como um dos conceitos centrais para distinguir polemicamente a dialética da metafísica.
A posição da totalidade, que compreende a realidade nas suas íntimas
leis e revela, sob a superfície e a causalidade dos fenômenos, as conexões
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
internas, necessárias, coloca-se em antítese à posição do empirismo, que
considera as manifestações fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a
compreensão dos processos evolutivos da realidade (KOSIK, 1976, p. 33).
A realidade é pensada e entendida como concreticidade, em Kosik (1976). Esta realidade é um todo que possui sua própria estrutura
(assim, não é caótico); ela se desenvolve (portanto, não é imutável, se
move) e vai se criando (não comparece como um todo perfeito e acabado, em que só se movem as formas de ordenar suas partes isoladas).
Na compreensão da dialética da totalidade as partes estão em relação de interação interna e também de conexão entre si e com o todo.
Na construção do conhecimento da realidade busca-se ir às partes, à
procura da essência do todo; no retorno à concreticidade verifica-se que
as contradições das partes e a correlação destas se estruturam, dando
forma e concretude ao movimento do real pensado. Neste movimento,
bem diferente do que defendia Hegel, o processo de conhecimento não
se confunde com a realidade; nele a realidade está posta e passa a ser
conhecida; este conhecimento não é anterior à realidade.
Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de
fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de
concretização que procede do todo para as partes e das partes para o
todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos,
da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade;
e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os
conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente,
atinge a concreticidade (KOSIK, 1976, p. 41-42).
O concreto pensado não pode ser considerado imutável (petrificado) nem observado como “a perfeição”, “completo”, visto por
cima das partes, pois as partes são partes do todo e o todo “se cria
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a si mesmo na interação das partes”, o todo não é melhor ou mais
concreto que as partes.
Para Kosik (1976), pode-se visualizar três concepções fundamentais do todo ou da totalidade no decurso da história do pensamento
filosófico:
1) a concepção atomístico-racionalista, de Descartes até Wittgenstein, que
concebe o todo como totalidade dos elementos e dos fatos mais
simples;
2) a concepção organicista e organicístico-dinâmica, que formaliza o todo
e afirma a predominância e a prioridade do todo sobre as partes
(Schelling, Spann);
3) a concepção dialética (Heráclito, Hegel, Marx), que concebe o real
como um todo estruturado que se desenvolve e se cria (KOSIK,
1976, p. 42-43, grifo nosso).
O conhecimento da realidade histórica se dá por um processo
de apropriação teórica (interpretação crítica dos fatos). O conhecimento se realiza no ato de encontrar na realidade a possibilidade de
transformar a totalidade concreta (concreto concreto) em totalidade
abstrata (concreto pensado). Nesse processo a dificuldade é manter
as características do concreto concreto no concreto pensado, não diminuindo nem degenerando seus aspectos fundantes. Segundo Kosik
(1976, p. 50), a “criação da totalidade como estrutura significativa é,
portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o
conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e partes”.
A totalidade concreta é a forma de conhecer o real, a partir de
uma concepção dialético-materialista. Resumidamente, este método é
[...] um processo indivisível cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno,
e o conhecimento da sua autêntica objetividade; em segundo lugar,
conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta
de modo característico a dialética do individual e do humano em geral;
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ele ocupa no
seio do corpo social (KOSIK, 1976, p. 52).
Para chegarmos à totalidade utilizamos a teoria; esta faz uma aproximação, porém, não nos fornece a totalidade, pelo menos não nos
garante que a encontramos, só o tempo e a história nos mostrarão a
verdade. Essa teoria fornece boas indicações, por exemplo, quanto há
totalidade, a teoria dialética recomenda que nós prestemos atenção ao “recheio”
de cada síntese, quer dizer, às contradições e mediações concretas que a síntese
encerra (KONDER, 1991, p. 44).
Para chegarmos ao conhecimento das partes do todo, precisamos de uma noção (síntese) ao menos incompleta sobre o todo. Esta
noção incompleta nos possibilita um conhecimento parcial do todo,
mas que nos aproximará do entendimento de cada parte (elemento)
do todo; estaremos, assim, chegando a uma maior compreensão das
partes e, por conseguinte, clareando e aprofundando nossa noção do
todo, como diria Hegel, da verdade.
1.4 A contradição
A contradição se expressa na realidade, pois esta é cindida pelo
conflito, ou seja, pela constante mudança ou pela intenção dessa
mudança. Ela é também a luta dos contrários, porta elementos de
manutenção e ruptura, a tese e a antítese. Assim como nenhum corpo
se conserva inerte no Universo, a sociedade também se encontra em
constante movimento.
A realidade é dinâmica, o real se encontra em constante mutação;
por isso devemos perceber as contradições como sendo este processo
de total instabilidade do ser, das relações sociais e dos fenômenos. Tudo
o que há no mundo pode ser transformado, tudo muda de lugar, forma
ou atitude. E quais as contradições contidas nesses movimentos?
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O homem, através do trabalho, pode modificar a si e ao mundo,
tornando-se novo homem num novo mundo. Nesse processo o homem faz história (segundo Marx, n’O 18 Brumário de Luiz Bonaparte,
não nas condições de sua escolha), cria e transforma a vida material.
As contradições permeiam esse fazer e contribuem para que essa ação
se torne conhecida e inteligível.
O mundo está em constante mudança, e a contradição contribui
nesse processo de criar e recriar a história. Precisamos também seguir
o conselho de Diderot apud Konder (1991), para que não sejamos
enganados:
No suplemento à Viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot
aconselhava seus leitores: “Examinem todas as instituições políticas,
civis e religiosas; ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênero
humano subjugado, a cada século mais submetido ao jugo de um
punhado de meliantes”. E recomendava: “Desconfiem de quem quer
impor a ordem” (KONDER, 1991, p. 17).
O pensamento dialético é obrigado, segundo Konder (1991), a
um paciente trabalho de identificar gradualmente as contradições
concretas e as mediações específicas, que são partes do tecido e que
dão vida a cada totalidade.
Essa dialética, para Coutinho apud Konder (1991, p. 46),
[...] não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas
do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre
elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político)
como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem
no seio da sociedade enquanto totalidade).
A contradição é a categoria essencial do materialismo dialético, é
a lei fundamental da dialética, é a unidade de luta dos contrários. As
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
leis da dialética, escritas por Engels, podem nos possibilitar entender
melhor essa categoria da contradição em Marx:
a) Lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa). As coisas
mudam, mas não mudam no mesmo ritmo:
[...] o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações
quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o
exemplo da água que vai esquentando, vai esquentando, até alcançar
cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso (KONDER, 1991, p. 58).
b) Lei da interpenetração dos contrários. Nesta lei tudo tem a ver com
tudo,
[...] os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes
níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem
ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em
conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes
(KONDER, 1991, p. 58).
c) Lei da negação da negação. O movimento geral da realidade faz
sentido, não é absurdo,
[...] não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se
perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre
afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua
negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação
como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma
síntese, é a negação da negação (KONDER, 1991, p. 59).
Nesta unidade de luta dos contrários se percebe a importância
da contradição, visto que esta categoria possibilita o movimento, a
mudança, a superação. Se todas as coisas estivessem dadas, escritas,
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definidas e imutáveis, a vida poderia perder parte do seu sentido, visto
que o futuro já estaria predestinado, e as pessoas não precisariam ou
não poderiam querer ter ou ser mais do que já têm ou são. Para esta
visão de imutabilidade e de solidez que alguns possuem, Marx e Engels
(1999, p. 14) afirmam o seguinte: “Tudo que é sólido derrete-se no ar
[...] e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato
suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes”,
ou seja, tanto a estrutura quanto a superestrutura podem ser alteradas,
e assim são transmutadas todas as relações sociais de produção.
1.5 A mediação
A categoria da mediação expressa as relações concretas existentes
entre as partes de um todo.
A mediação é o caminho existente, percorrido e (ou) passível de
ser percorrido, para se conhecerem as correlações concretas e dialéticas entre as partes do todo estruturado.
Como exemplo de mediação Marx coloca o trabalho como sendo o principal mediador entre o homem e a natureza e entre este e a
própria sociedade.
Assim, as mediações criadas historicamente na complexa relação homem-natureza são indicadores seguros e fecundos, do ponto de vista histórico-social, porque efetivamente constituem-se na expressão concreta do
evolver do processo de enriquecimento humano, na sua dinâmica de
objetivar-se no mundo e incorporar tais objetivações; na sua saga de
buscar mediações cada vez menos “degradadas e bárbaras” e cada vez
mais humano-igualitárias, tanto no plano do ser social quanto no plano
do controle da natureza (PONTES, 1995, p. 78-79).
Em Pontes (1995) percebemos como a categoria mediação traz
à tona, segundo Hegel, o “verdadeiro” como sendo um resultado:
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
A mediação em face da totalidade, segundo o autor, é responsável pela
articulação dinâmica, processual entre as partes na sua ação recíproca e o
todo, considerando que cada parte se constitui em uma totalidade parcial,
também complexa. Daí a justificativa da afirmação de que “a mediação
é que faz com que o verdadeiro seja resultado” (Hegel, 1987:14), o que
significa, ser fruto de um processo, de múltiplas passagens, de moventes
articulações multilaterais e complexas (PONTES, 1995, p. 55).
O trabalho humano é uma mediação que humaniza o próprio ser
humano.2 Pontes (1995, p. 78) vê as mediações como sendo “expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza
e consequentemente das relações sociais daí decorrentes, nas várias
formações sócio-humanas que a história registrou”.
Todos os objetos são frutos da mediação. Percebemos em Lukács
apud Pontes (1995, p. 79) que a categoria mediação possui esta
dimensão ontológica:
Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que
neste sentido [...] não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste
ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem
que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito [...].
Entendendo a categoria mediação, perceberemos que os fenômenos não estão isolados, as partes do todo a este pertencem justamente
porque possuem uma mediação com a sua estrutura, ou então não
seriam partes do todo, seriam objetos externos e sem sentido. A mediação mostra o não isolamento das partes; isto implica que sempre
haverá possibilidade de superação de barreiras entre as partes, pois a
É na mediação trabalho que o homem se aproxima da natureza, transforma
essa natureza e a si próprio, criando, assim, novas mediações.
2
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síntese é o resultado dessa interação; assim sendo, é o que se apresenta
mais próximo da verdade.
Para Pontes (1995), a mediação tem um alto poder de dinamismo
e articulação entre as partes do todo, e sem as mediações o método
dialético se petrifica. A mediação é
[...] responsável pelas moventes relações que se operam no interior de
cada complexo relativamente total e das articulações dinâmicas e contraditórias entre estas várias estruturas sócio-históricas. Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva de totalidade.
Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica das mediações
através da razão, o método, que é dialético, se enrijece, perdendo, por
conseguinte, a própria natureza dialética (PONTES, 1995, p. 81).
O autor de Mediação e Serviço Social (PONTES, 1995) sintetiza que a
apreensão da essência do todo corresponde necessariamente à captura
das mediações que são o locus da dialética aparência-essência.
A razão não se contenta com a identidade e a diversidade abstratas próprias da positividade do real. Busca as mediações submersas no plano
fenomênico.
Para superar o mundo da aparência necessário se faz negá-lo, daí a necessidade do caráter negativo da razão (PONTES, 1995, p. 82).
Como já discutimos no item 1.3 – Totalidade –, o todo é estruturado, não é caótico. Ele é formado por partes, e estas estão num
constante movimento. Entre as partes existem ligações (mediações)
moventes, ligações que informam o real. As essências parciais presentes nas partes, ao serem sintetizadas, fazem emergir a essência total
do todo. A mediação nos eleva da percepção dos fatos (abstrato) à
apreensão do movimento das partes até chegarmos ao real mediatizado (concreto pensado).
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
Num determinado estudo, poderíamos pensar nos dados coletados
como peças de um quebra-cabeça desmontado, cujo fenômeno é
o que se pode ver nelas, e esta disposição não é um caos; ela é um
emaranhado de peças3 que dá forma a uma figura, mas a essência
ainda não está na figura que se forma ao fim da montagem do quebra-cabeça. A essência seria a substância da figura em si (que nem sempre
se expressa na sua forma), influenciada por todas as contradições do
processo de montagem, imersa em mediações situadas entre as peças
do quebra-cabeça. Nessas mediações não está a forma final da figura,
mas sim o conteúdo de possibilidades e rupturas que se poderia ter ao
se querer organizar, racionalmente, uma dada situação, um momento
da realidade, chegando, assim, à sua concretude.
Considerações
Viver é interferir na história. A partir deste debate sobre o método
podemos inferir que estar no mundo é participar da vida de forma
adaptativa ou transformadora. Estar vivo nos propicia entender parte
do que está à nossa volta e de alterar esta realidade da forma como
nos for possível.
O presente texto não esgota o debate sobre o método, nem sobre sua aplicação na práxis humana. Muitas questões que discutimos
aqui podem e devem receber um maior aprofundamento por parte
dos que vislumbram a construção de uma nova sociedade, para além
do reino da necessidade, alcançar o reino da liberdade. Para além de
comer, beber e dormir, o homem pode ser o construtor da realidade,
de sua própria história.
3
Peças estas que devem ser consideradas como partes do todo, já decomposto.
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Na busca da essência é preciso ir além do nível da empiria, pois,
segundo Guerra (1995, p. 200), esta “análise não ultrapassa a aparência dos fenômenos, ou, como afirma Lukács, ‘no empirismo está
contido um ontologismo ingênuo (...) uma valorização instintiva da
realidade imediatamente dada, das coisas singulares e das relações de
fácil percepção’ [...]”.
É necessária a apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética, para não nos adequarmos ou enquadrarmos à “ordem”
ou aos “novos tempos”. Esta compreensão nos faculta desvendar o
real e contribui para sua transformação.
A história é feita pelos homens e a simples percepção teórica do real não
os transforma em agentes revolucionários, o compromisso ético-político
com as classes que hoje vivem da venda de sua força de trabalho é um
dos principais elementos na tomada de decisão em função de uma transformação estrutural da sociedade (ANDRADE, 2006, p. 166).
Em Gramsci (1988) encontra-se força inspiradora para a luta, a
partir dele percebemos que o “pessimismo da inteligência”, na averiguação do real até então dado, precisa ser corretamente mediado
pelo “otimismo da vontade”, numa busca incessante da ansiada “nova
sociedade”. “Nesta, não só a produção será coletiva, mas também o
será a repartição dos resultados dela” (ANDRADE, 2006, p. 160).
Referências
ANDRADE, Renato Almeida de. O Enfrentamento da questão social e o
terceiro setor: o Serviço Social e suas condições de trabalho nas ONGs.
Vila Velha: Univila, 2006.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação
e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 6. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo:
Cortez, 1995.
KONDER, Leandro. O que é dialética. 22. ed. São Paulo: Brasiliense,
1991.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o
rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
______. Teses sobre Feuerbach. Disponível em: http://www.marxists.org/
portugues/marx/18
45/tesfeuer.htm. Acesso em: 10/04/2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista.
5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
NETTO, José Paulo. O que é marxismo. 8. ed. São Paulo: Brasiliense,
1993.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez;
Belém: Universidade da Amazônia, 1995.
SPINDEL, Arnaldo. O que é socialismo. 15. ed. São Paulo: Brasiliense,
1985.
MARX AND HIS METHOD: BEYOND THE UNDERSTANDING
OF THE HISTORY OF HUMANITY
Abstract
The debate about the method in Marx is not in a specific book, considering
that it is intrinsic to his social theory, but diluted in all his work. We search to
captivate some of these conceptions disposed in some of his works. To Marx,
it is not enough to understand reality, it is necessary to change it. The method
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does not appear as an end in itself, but as a means necessary to achieve the
concrete thought. With this understanding man can intervene rationally on
history. The immersion in the Marxian theory propitiate us the understanding
of several categories. These ones, organized in structured way, can provide us
the understanding of reality and of ways for its transformation. In this text we
will discuss some subject matters about the dialectics, the pseudoconcreticity,
the totality, the contradiction and the mediation. The apprehension and the
understanding of reality as dialectic totality facilitate us to reveal the reality
and contribute to its transformation.
Key words: Marx, method, history, dialectic.
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COSMOPOLITISMO E INTEGRAÇÃO
SUL-AMERICANA
Giuseppe Tosi*
Resumo
O autor postulará em seu artigo a importância e os limites da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Sua fragilidade se encontra, sobretudo, no
âmbito das relações internacionais. Com base nesta fragilidade o autor procurará expor duas possíveis respostas ao problema das relações entre as nações:
a do realismo político (da qual fazia parte Maquiavel e outros pensadores) e a
do cosmopolitismo (vinculada aos iluministas e Kant). A perspectiva cosmopolita, com suas pretensões universalistas, não obstante os limites que apresenta, é a alternativa mais promissora para o presente e o futuro das relações
internacionais. Contudo defende a importância do respeito à singularidades
nacionais ou regionais, o fim da dominação entre as nações, e a necessidade
de se construir na América Latina, sociedades civis fortes, organizad as para
participar de uma sociedade internacionais mais justa e humana.
Palavra chaves: Realismo, cosmopolitismo, globalização, América Latinas.
Introdução
Quando perguntaram a Norberto Bobbio qual teria sido o acontecimento mais importante do século XX, ele declarou que o evento
do qual este século terrível, talvez o pior da história da humanidade,
poderia ter sido salvo era a Declaração Universal dos Direitos Huma-
* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba
e Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da mesma universidade.
E-mail: [email protected].
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nos, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
em Paris (BOBBIO, 1986; 1988). Bobbio, que não era acostumado
a um fácil otimismo e não tinha ilusões sobre a história, enxergava,
porém, naquele acontecimento a possibilidade de uma virada epocal
da história mundial a lembrar-lhe a “profecia” de um pensador que,
200 anos antes, havia pressentido aquele momento: Immanuel Kant.
Tratava-se da afirmação do que Kant chamava de Estado Republicano
(e que nós hoje preferimos chamar de Estado Democrático de Direito) e de sua projeção no âmbito das relações internacionais, numa
perspectiva cosmopolita.
A constituição e difusão do Estado de Direito na modernidade, em
que ele teve sucesso, garantiu algumas das condições mínimas para a
convivência civil previstas pelos jusnaturalistas. Garantiu, como propunha Hobbes, a ordem e a segurança interna com o monopólio legítimo
da força e a eliminação dos corpos intermediários e dos conflitos endêmicos que haviam marcado o longo período da Idade Média. Garantiu
também, como pensavam Locke e os liberais, um conjunto de direitos
civis e políticos, embora somente para uma minoria de cidadãos. O
socialismo, agindo contra o liberalismo, conseguiu ampliar os direitos
civis e políticos e criar um novo conjunto de direitos econômicos, sociais
e culturais. Por isso, o Estado de Direito, apesar de todos os defeitos e
limitações, é a herança política mais preciosa que o Ocidente deixou para
o resto do mundo, a partir das lições retiradas da sua secular experiência
de guerra e de violência (COSTA; ZOLO, 2006).
Porém, o Estado de Direito não logrou no âmbito das relações
internacionais o mesmo sucesso conseguido no âmbito interno:
enquanto internamente o soberano conseguia impor o monopólio
legítimo da força, destruindo, assimilando e homogeneizando os
antigos corpos intermediários feudais e criando assim as condições
para uma ordem interna, do ponto de vista das relações internacionais,
durante um longo período da história moderna e contemporânea, o
que prevaleceu foi o estado de natureza entre as nações.
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Cosmopolitismo e integração Sul-Americana
Diante desta questão crucial do ponto de vista da filosofia política
e da filosofia do direito, temos duas grande respostas ou propostas para
o direito internacional, que chamaremos de realistas e cosmopolitistas.
1 Realismo e cosmopolitismo
O realismo político não era desconhecido dos antigos: o verdadeiro fundador desta maneira de pensar a política foi o grande historiador ateniense Tucídides em A guerra do Peloponeso, e o contraste
entre idealistas e realistas já estava presente nos debates travados por
Sócrates com os sofistas Trasímaco e Cállicles, que Platão traçou de
maneira magistral no Górgias e na República (PORTINARO, 1999).
Porém, é a partir de Maquiavel que o realismo assume as suas
características e feições principais: uma antropologia pessimista em
relação à natureza humana, questionando-lhe a suposta bondade;
uma crítica às teorias utópicas que pretendem apresentar “principados e repúblicas nunca vistos nem conhecidos”; um papel relevante
e positivo (e de qualquer maneira irrenunciável) que assume a força
e o conflito nas relações entre os indivíduos e entre os Estados, e a
centralidade dos Estados soberanos como principais, senão únicos,
titulares de direito público internacional.
A tradição realista, desde Maquiavel até Max Weber e Carl Schmitt, passando por Hobbes e Hegel, pensa a política internacional
em termos de equilíbrio de relações de força e de hegemonia entre
Estados soberanos, e é crítica e céptica com relação aos projetos filosóficos, como o de Kant, que imaginam uma república universal ou
um governo mundial regido por um direito superior ao direito estatal,
um direito de tipo cosmopolita (SCHMITT, 1991; ZOLO, 1995; 2000;
2002, p. 47-57; 2005).
A tradição cosmopolita remonta aos estoicos, mas encontra o seu
grande representante no Iluminismo, especialmente em Kant. Para o
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idealismo transcendental kantiano, a política pertence ao âmbito das
“ideias” ou “ideais” de razão; ela se ocupa das condições de possibilidade da convivência humana, apontando não simplesmente para “o
que é”, mas para a forma como tais relações “deveriam ser”: ou seja,
para um fim. Esse telos é, para Kant, no âmbito do direito interno, a
criação do Estado Civil Republicano, e no âmbito do direito externo,
a realização do direito cosmopolita como garantia da paz perpétua
entre as nações (TERRA, 1995; ROHDEN, 1997).
O raciocínio cosmopolita encontra o seu ponto de força no que
se costuma chamar de domestic analogy. Partindo do pressuposto hobbesiano do estado de natureza, Kant detecta um vazio jurídico nas
relações entre as nações que se comportam entre si como se continuassem num permanente estado de guerra, interrompido somente por
períodos de trégua, mas não de verdadeira paz. Este vazio jurídico
deve ser preenchido com um novo tipo de direito, superior ao direito
público externo, que Kant chama de jus cosmopoliticum: um direito supranacional segundo o qual não somente os Estados, mas também os
indivíduos seriam sujeitos de direito internacional no âmbito de uma
instituição política mundial (KANT, 1993). O “projeto filosófico” de
Kant em À Paz perpétua propõe uma Federação Mundial de Estados
Nacionais livremente constituída, regida pelo direito cosmopolita
(KANT, 1986; 1990).
No século XX as teorias kantianas encontraram um grande número de seguidores. Na filosofia política e do direito, o “globalismo
jurídico” (ZOLO, 1998, p. 133-148) é hoje uma corrente da teoria
do direito e da política institucional em larga medida hegemônica, e
numerosos filósofos, políticos, juristas, moralistas e teólogos aderem
a uma visão cosmopolita das relações internacionais; pensamos no
maior filósofo do direito do século XX, Hans Kelsen (1990), em
Norberto Bobbio (1995), em Eric Weil (1990, IV cap.), em Jürgen
Habermas (2002; 2006), em John Rawls (2002; 2003), em Hans Küng
(1992; 1999) e em Luigi Ferrajoli (2006; 2007), entre outros.
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Cosmopolitismo e integração Sul-Americana
2 O projeto cosmopolita
Para que esse projeto não seja uma mera ilusão, mas corresponda a
uma tendência real da sociedade mundial nesta época de globalização, é
preciso que se realizem pelo menos quatro condições fundamentais: a)
uma integração econômica e social mundial com fluxo de mercadorias
e de pessoas e informações sempre mais estreita; b) uma sociedade
civil global; c) instituições jurídicas e políticas globais; d) um sistema
de valores ético-políticos compartilhados tendencialmente universais.
A tese que defenderemos neste ensaio é a de que a maioria dessas
condições está se dando na atualidade, ainda que de forma desigual, e
que a visão cosmopolita constitui a alternativa mais promissora para o
presente e o futuro das relações internacionais no mundo globalizado.
2.1 O mercado mundial e a economia-mundo
A primeira consideração óbvia é o reconhecimento de que se
aprofundam sempre mais os laços que estreitam o mundo: aumentam
todos os dias as redes econômicas, as comunicações, o fluxo comercial
e financeiro, as migrações dos povos e a difusão das informações e dos
modelos de comportamento ocidentais no mundo. Este processo começou nos séculos XV e XVI, com os grandes descobrimentos geográficos, que proporcionaram as condições para a criação de uma história
mundial. No século XX, com as duas guerras mundiais, a história da
Europa se converte efetivamente na história do mundo (weltgeschichte), e
na segunda metade do século, sobretudo após o fim do comunismo e a
aceleração dos processos de integração mundial, temos uma economia
mundial sempre mais inter-relacionada e interdependente (ZOLO,
2004; HIRST; THOMPSON, 1998; IANNI, 1997).
Outro aspecto a ser considerado é que a aceleração do processo
de globalização provocou um aumento das situações de risco em
âmbito mundial. Vivemos, como afirma Ulrich Beck, numa socieREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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dade de risco (risikogesellschaf) (BECK, 2001). Há o risco de uma
catástrofe ecológica que pode subverter o equilíbrio natural do planeta; continua sempre ameaçador o risco de uma destruição atômica
da civilização (CARRETTO, 2005); a instabilidade dos mercados
financeiros pode provocar um colapso econômico inesperado com
efeitos dominó sobre a economia mundial, como demonstrou a
recente e ainda não superada crise financeira e econômica desencadeada em 2008; há o risco de terrorismo, nome genérico e ambíguo
para indicar um sistema complexo em que se dão várias formas de
violência política em âmbito global (entre as quais deveríamos também incluir o terrorismo promovido pelos Estados). E poderíamos
enumerar uma série de riscos que têm em comum o fato de serem
sempre fenômenos globais, como as “máfias internacionais” e o
crime organizado em escala planetária.
Diante deste quadro, é evidente a insuficiência dos Estados nacionais para encontrar soluções a esses problemas, que passam “por
cima” de suas fronteiras. O Estado moderno encontrava a sua razão
de ser na delimitação clara de um território sobre o qual se propunha
estabelecer seu domínio, com fronteiras bem precisas, que ele podia
controlar e administrar. Com a crise e, em alguns casos, com a abolição das fronteiras, devido aos fenômenos resultantes da globalização,
entra em crise e em declínio também o Estado nacional, até há pouco
tempo todo poderoso.1
1 De fato, já existem várias organizações internacionais e supranacionais que
decidem os principais assuntos da pauta, tanto governamentais (OIG), como o
FMI e o Banco Mundial ou a OMC, quanto não governamentais (OING) com fins
lucrativos, como as empresas multinacionais. Tais instituições, porém, não atuam numa
lógica “cosmopolita”, mas de mercado e de lucro, que não diminui as desigualdades
econômicas e sociais provocadas pela globalização.
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Cosmopolitismo e integração Sul-Americana
2.2 A sociedade civil global (Global civil society)
Outra condição indispensável para a realização do projeto cosmopolita é a criação de uma sociedade civil global, composta por
uma rede organizada verticalmente (porém não hierarquicamente)
desde o bairro até as Nações Unidas e horizontalmente numa presença territorial capilar dentro das nações e entre as nações, num
processo que é, ao mesmo tempo, local e global, numa perspectiva de
“globalização alternativa” dos direitos, de denúncia dos malefícios da
globalização e de procura de alternativas teóricas e práticas (CAFFARENA, 2001). Esse conceito somente recentemente passou a fazer
parte das ciências sociais, sobretudo pela influência dos movimentos
não governamentais no-global, e começa a ser estudado e tematizado
no meio acadêmico (GLOBAL CIVIL SOCIETY, 2001; 2002; 2003;
2004). Sua expressão mais evidente são os fóruns sociais mundiais,
iniciados em Porto Alegre em 2000, que deram origem a numerosos
fóruns regionais em várias partes do mundo.
2.3 As instituições políticas e jurídicas globais
A constituição dessa sociedade civil global é de fundamental
importância para o projeto cosmopolita, porém não consegue dar
conta da questão sem a presença de instituições políticas de globalização alternativa. É sempre mais consensual a consideração de que os
problemas suscitados pela globalização exigem uma resposta global,
que não pode mais ser encontrada nos estreitos limites dos Estados
nacionais, mas exige instituições globais que possam suprir as deficiências dos Estados nacionais. Este fato não significa o fim dos Estados
nacionais, que ainda têm um papel importante a desempenhar pela
sua proximidade com o cidadão, mas indica o predomínio da política
internacional sobre a interna, inspirado, quanto menos, no princípio
da subsidiariedade (FERRARESE, 2000).
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2.4 Os direitos humanos como ética tendencialmente universal
Finalmente, o processo constante de integração somente poderá
ter êxito se se conseguir estabelecer um diálogo entre as civilizações,
evitando assim o choque entre elas (HUNGTINGTON, 1997). Para
tanto, é preciso, no respeito das tradições e das identidades de cada
cultura, encontrar um sistema de valores mínimos compartilhados,
um overlapping consensus, como diria Rawls (2002), como premissa para
uma convivência pacífica na Terra. Nesta perspectiva, os direitos humanos constituem, se não propriamente um novo ethos mundial, pelo
menos um progresso da “autoconsciência da humanidade”, e podem
converter-se no ponto de interseção e de consenso (um verdadeiro
consensum gentium) entre diversas doutrinas filosóficas, crenças religiosas e costumes culturais. Entendidos em todas as suas dimensões, os
direitos humanos podem constituir “o conteúdo material” de uma
ética pública, ou, pelo menos, o terreno de discussão essencial para
sua constituição (CASSESE, 1994).
3 Entre cosmopolitismo e realismo:
poliarquia ou regionalização
É difícil dizer qual teoria estaria interpretando melhor hoje a
situação das relações internacionais. Segundo Bobbio, a partir da
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948,
seria levada a cabo a esperança kantiana de um progresso jurídico
da humanidade, cujo signum prognosticum e rememorativum seria a existência deste conjunto de direitos universais que tornariam realidade
o ponto de vista cosmopolita (weltbürgerlich), preconizado por Kant
(BOBBIO, 1992). Segundo Habermas, estariam sendo criadas as
condições para uma Weltinnenpolitik (política interna do mundo)
(HABERMAS, 2006).
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Mas as pretensões universalistas dos cosmopolitistas estão presentes mais nos documentos e nas declarações do que na realidade.
As sistemáticas e maciças violações dos direitos humanos aumentam
com a mesma velocidade dos atos de assinatura de tratados e são tão
universais quanto as declarações que os proclamam. Pareceria assim
que os direitos humanos nada mais seriam do que mera retórica vazia
ou mera justificação ideológica para os jogos de poder das grandes
potências. A própria incapacidade da ONU de impedir a invasão e
ocupação do Iraque por parte dos Estados Unidos, feita à revelia das
normas do direito internacional e especificamente da Carta das Nações Unidas, e a divisão provocada na própria União Europeia (EU)
sobre a guerra são exemplos emblemáticos de impasse entre as duas
grandes e contrastantes concepções das relações internacionais que
convivem nos dias atuais.
De fato, seria ingênuo afirmar que as condições para a realização
do projeto cosmopolita estejam se dando de forma satisfatória no
panorama político internacional, tampouco que o cosmopolitismo seja
a ideologia dominante nas relações internacionais e nas institucionais
políticas globais supranacionais. Aliás, tudo indica que o papel dos
Estados nacionais como sujeitos do direito internacional não diminuiu e que a “dialética” entre os povos, ou seja, a guerra, continua a
prevalecer no direito internacional: a tentativa de impor uma ordem
unilateral por parte dos Estados Unidos, após a vitória no que eles
consideram a III guerra mundial, é um exemplo claro desta lógica
hobbesiana que ainda governa o mundo.
Ao mesmo tempo, porém, é possível constatar que a pretensão
dos Estados Unidos de impor uma pax americana nos moldes da pax
romana se encontra também mais nos documentos e nos desejos dos
“neo” e “theo” conservadores da administração dos Estados Unidos do que na realidade efetiva das coisas. O mundo é por demais
complexo e multilateral para que uma potência, porquanto superior
e poderosa econômica e militarmente, possa controlá-lo sozinha,
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impondo uma ordem unilateral (NEES, 2002). A dificuldade dos Estados Unidos e de seus aliados em manter o controle de dois países
pobres e prostrados por décadas de guerras como o Afeganistão e
o Iraque é um sinal da debilidade desse projeto imperial hegemônico, ao ponto de alguns analistas já falarem em “declínio do Império
Americano”, ou de “crise terminal” da hegemonia norte-americana
(WALLERSTEIN, 2003).
Se uma visão cosmopolita tende a confundir os desejos com a
realidade, uma visão meramente “realista” das relações internacionais
também não consegue dar conta de todos os fenômenos complexos que
a globalização tem provocado. De fato, as duas lógicas – “cosmopolitas”
e “realistas” – coexistem no cenário internacional sem que nenhuma
consiga prevalecer sobre a outra. Se eliminarmos as posições mais extremas do espectro político, o cosmopolitismo puro e o imperialismo puro,
podemos encontrar mais pontos de contato entre o cosmopolitismo
e o realismo do que se possa imaginar. Talvez os conceitos de “caos”
(ARRIGHI; SILVER, 2001), de “anarquia ordenada” ou de “poliarquia” poderiam ser mais adequados para descrever a situação atual das
relações internacionais, nas quais se dá uma disputa entre vários centros
de poderes difusos que ninguém pode controlar totalmente.
Neste contexto muito complexo, adquirem uma crescente importância os blocos regionais entre os Estados para permitir uma melhor
participação nos processos de globalização. Na verdade, o “projeto
filosófico” kantiano da paz perpétua se aplica mais à Europa Unida do
que propriamente ao sistema das Nações Unidas. Em muitos aspectos,
estas se assemelham mais a uma nova Santa Aliança das potências que
controlam o Conselho de Segurança do que propriamente à Federação
de Estados livres imaginada por Kant (ZOLO, 1998).
Poderíamos até afirmar que a União Europeia é a realização quase
literal do sonho kantiano referido em À paz perpétua. Com efeito, os
três “artigos definitivos para o estabelecimento da paz perpétua entre
as nações” parecem ter servido de guia para a formação da União Eu176
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ropeia. O primeiro artigo define que cada Estado tem que se dar uma
constituição republicana, o que chamaríamos hoje de democrática:
de fato para poder participar da EU é preciso respeitar e praticar os
princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (o que cria
problemas para a entrada de países como a Turquia). O segundo artigo
prega a necessidade de uma Federação de Estados Republicanos, criada
por livre e espontânea vontade dos Estados soberanos, sem a existência
de um único poder estatal superior e dominante; é o que aconteceu com
a criação e a expansão dos Estados da União Europeia através de uma
adesão feita pelos governos e referendada pela população. O terceiro
artigo prega a necessidade de as relações entre os Estados da Federação
serem reguladas por um direito cosmopolita; é o que está acontecendo
paulatinamente, sobretudo a partir da criação de uma Constituição
europeia que limita os poderes dos Estados soberanos (apesar dos impasses atuais, que representam um momento de redefinição, mas não
de falimento do projeto de constituição europeia).2
Apesar dos impasses e das dificuldades, este processo de integração tem garantido o maior período de paz e estabilidade social e política da Europa em toda a sua história milenar, e poderá se consolidar
na medida em que a União Europeia consiga elaborar uma verdadeira
política exterior unificada e criar uma força militar unificada, que se
somem à política econômica e monetária: a recente aprovação por
unanimidade (2009) do Tratado de Lisboa vai nesta direção.
A criação de blocos regionais inaugura um processo de progressiva delegação de poderes por parte dos Estados a organismos “inter”
e “supra” nacionais, através do princípio da subsidiariedade. O pressuposto teórico desse processo pode encontrar-se, uma vez mais, na
intuição kantiana, ao concordar que as consequências desastrosas das
Ver: AA.VV. Kant e l’idea di Europa: atti del Convegno Internazionale di Studi.
Genova 6-8 maggio 2004, Genova: Il Melangolo, 2005.
2
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guerras e o aumento dos riscos em âmbito planetário (que podem por
em perigo a própria sobrevivência da espécie humana) constituem um
poderoso argumento a favor da cooperação entre as nações, uma vez
que, como afirmou o filósofo alemão, “a terra é redonda”, e os homens têm que conviver necessariamente uns com os outros (KANT,
1993). Se a integração não for movida pelo desejo da paz, pelo menos
o seja pelo temor da guerra e da catástrofe global.
4 Globalização e integração latino-americana
É com esse olhar que queremos terminar este ensaio, investigando
a situação atual da América Latina, especificamente da América do
Sul, no processo de globalização, à luz da perspectiva cosmopolita.
Neste sentido, parece-nos importante ressaltar que estamos vivendo
um momento positivo para o subcontinente do ponto de vista econômico, social, político e cultural.
Um primeiro aspecto a ser considerado é a superação da época
sombria das ditaduras militares. A América Latina pagou um preço
muito alto pela guerra fria durante o trágico período das ditaduras
militares, que, entre outros efeitos funestos, bloquearam o processo “fisiológico” de desenvolvimento democrático das sociedades
latino-americanas do ponto de vista econômico, social e político.
Afortunadamente, os regimes autoritários e ditatoriais constituem
uma página virada na história recente do subcontinente, e a influência
dos militares na vida política desses países é cada vez menor – com
algumas lamentáveis exceções, como o caso da Colômbia e, mais
recentemente, de Honduras.3
Paradoxalmente, podemos afirmar hoje que são os Estados Unidos o país
do continente americano onde o complexo industrial-militar e a ideologia militarista
condicionam a política, mais do que nas sociedades latino-americanas.
3
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Esse fenômeno deve ser visto num contexto mais amplo, de progressiva diminuição da violência política no subcontinente. Hoje na
América Latina estão ausentes as quatro principais formas de violência
política explícita: a guerra entre os Estados, a guerra civil interna aos
Estados, o terrorismo e a guerrilha revolucionária. Não se registram
casos de guerra entre nações ou de guerra civil propriamente dita;
tampouco existem focos de guerrilha como resposta “de esquerda”
às ditaduras nem grupos terroristas atuantes, com exceção dos que
atuam na Colômbia, onde é muito difícil distinguir guerrilha de narcotráfico e de terrorismo.
Devemos também considerar que, apesar das fragilidades, nos
últimos 20/25 anos os países da América do Sul continuaram vivendo
sob regimes democráticos. Neste sentido, após o declínio da onda
neoliberal, algo de realmente novo e promissor está acontecendo no
panorama político latino-americano, com a constituição de governos
democráticos, na sua maioria expressiva, de esquerda e de centro-esquerda, que constituem uma tendência hegemônica do atual cenário
político latino-americano: algo inédito na história do subcontintente.
É evidente que ainda persistem problemas estruturais crônicos e
seculares: as graves e profundas desigualdades sociais não desaparecem de um dia para outro; os grupos criminais organizados se fortalecem cada dia mais com a expansão do tráfico de drogas; à diminuição
das formas de violência política se contrapõe o aumento espantoso da
violência do crime organizado, que se torna um fenômeno capilar, cotidiano e difuso em forte crescimento; a violação dos direitos humanos
por parte dos agentes do Estado continua através da prática da tortura,
herança dos períodos autoritários; persistem elementos de fragilidade
nos planos econômicos provocados pela enorme dívida interna e
internacional. Todos esses fenômenos indicam uma permanente e
preocupante fragilidade do Estado de Direito na América Latina; e a
tentação de soluções autoritárias e antidemocráticas, tanto de direita
como de esquerda, é sempre uma possibilidade e uma ameaça real ao
processo de consolidação da democracia.
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Diante da violência sempre crescente, a população pode optar
por menos liberdade em troca de mais segurança; diante das desigualdades sociais, o “povo”, guiado por líderes populistas, pode achar
que a democracia representativa é um obstáculo para a realização da
democracia substancial, e deve ser superada por formas radicais de
democracia participativa, direta ou plebiscitária.
Neste contexto, assiste-se ao retorno de uma experiência política
que parecia superada historicamente na América Latina: o populismo.
Fenômeno de difícil definição e polimorfo, o populismo faz parte da
tradição política latino-americana, pelo menos a partir dos anos 1930.
Ele pode ser definido, de modo muito grosseiro, como uma forma
política em que a figura do líder carismático se impõe na sua relação
direta com as massas populares, dispensando a mediação (ou tendo
uma fraca mediação) das instituições típicas da democracia representativa. Para utilizar os termos da distinção clássica de Weber, é o
prevalecer do poder carismático sobre o poder burocrático, típico das
modernas sociedades desenvolvidas (LACLAU, 2005).
O populismo pode ter, e geralmente tem, aspectos autoritários,
mas não é necessariamente a antítese da democracia, como afirmam os
seus detratores, nem a forma mais alta de democracia, como afirmam
os seus defensores. Pode ser visto como uma maneira de incluir social
e politicamente as massas populares no regime democrático quando
as instituições da democracia representativa não conseguem realizar
esta integração e tendem a ser exclusivistas e elitistas, como aconteceu na história passada e recente da América Latina. O populismo,
segundo uma feliz definição, é o “espelho em que a democracia pode
contemplar a si mesma, mostrando todas as suas imperfeições”, mas
que é parte do processo de democratização, mesmo quando reflete “a
cara feia do povo” que as elites sempre quiseram esconder e excluir
(PANIZZA, 2009, p. 49).
Mas isso não vale somente para a América Latina. Desde a antiga
Grécia, sempre foi difícil distinguir claramente e demarcar os limites
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entre democracia e demagogia. Ao final, o princípio moderno de todo
poder democrático (representativo, direto, participativo ou da competição entre elites) encontra o seu fundamento na “soberania popular”
e na vontade da maioria, e seus limites, nos direitos das minorias.
Achar um equilíbrio entre esses dois pilares do Estado de Direito, de
tal forma que a democracia não se torne uma ditadura da maioria, é
algo que sempre foi difícil na história das democracias, não somente
latino-americanas (BOBBIO, 1988). Não é por acaso que o populismo está reaparecendo como categoria analítica para interpretar não
somente as experiências latino-americanas, mas também europeias e
norte-americanas, sobretudo a partir dos trabalhos de Ernesto Laclau
e Chantal Mouffle (PANIZZA, 2009).4
Ao final, apesar das diferentes formas e declinações da democracia na América Latina e das suas fragilidades, o fato importante é que
começa a ser enfrentado o grande desafio histórico das sociedades
latino-americanas: conjugar a democracia política “formal” com a democracia social “substancial”, permitindo a inclusão econômica, política e social de grandes massas da população secularmente excluídas da
riqueza e do poder. O momento é oportuno para conciliar o que sempre foi separado na história do subcontinente: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais (CARVALHO, 2001).
As ditaduras e os regimes autoritários “outorgaram” alguns direitos sociais, mas à custa da repressão dos direitos civis, e os regimes
“liberais” garantiram algumas liberdades civis e políticas em detrimento dos direitos sociais, sobretudo no período da onda neoliberal.
4 Além dos numerosos exemplos de políticas populistas nos países ocidentais
apresentados e analisados, presentes no livro organizado por Francisco Panizza (2009),
podemos citar Umberto Eco, que, no seu livro A passo de caranguejo, definiu o governo
do primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi como “populismo mediático”, alertando
para o fato de que não se trataria somente de um fenômeno limitado à política italiana,
mas de um modelo que pode encontrar seguidores em outros países e circunstâncias
(ECO, 2006).
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Este processo de conciliação histórica entre liberdade e igualdade
passa necessariamente pelo fortalecimento do Estado, que tradicionalmente na América Latina foi “ocupado e privatizado” pela classe dominante, que o utilizava para seus fins particulares. Fortalecer o Estado
significa, portanto, “desprivatizá-lo”, tornando-o um agente público a
serviço do interesse coletivo; mas não somente isso. É preciso também
uma presença do Estado na esfera econômica em sentido amplo como
fator de redistribuirão da renda, da terra e da riqueza produzida em
geral, que sempre esteve nas mãos das classes dominantes. Os direitos
econômicos e sociais constituem a grande dívida de nossas sociedades,
que devem ser resgatadas através dos mecanismos de redistribuição,
desde um mais justo sistema fiscal até a garantia de uma renda mínima
de cidadania para os mais necessitados. De certa forma, esses direitos
possuem uma prioridade ontológica, uma vez que sem eles os cidadãos não podem exercer plenamente os seus direitos civis e políticos.
Porém, não podemos olvidar a necessidade de uma forte intervenção do Estado para a garantia dos direitos civis e políticos, o que passa
necessariamente pela retomada do monopólio da força legítima por
parte do Estado para garantir o direito fundamental ao mesmo tempo
individual e social, que é o direito à vida em todas as suas dimensões.
Outra característica tradicional das nossas sociedades é a ausência de una sociedade civil forte e organizada para se contrapor
dialeticamente ao Estado. Neste sentido, devemos reconhecer que a
sociedade latino-americana fez grandes passos nesta direção, sobretudo a partir da luta contra as ditaduras militares, período em que
se forjaram, através da luta pela redemocratização, as organizações
não governamentais de defesa dos direitos humanos. Hoje podemos
dizer que existe uma sociedade civil sempre mais forte e presente de
maneira capilar, articulada em âmbito nacional e internacional, que
vincula movimentos sociais de resistência e que constitui um elemento
indispensável para o estabelecimento de um efetivo – e não somente
retórico – Estado de direito na região.
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Um outro grande desafio se coloca no plano internacional. A
América Latina sempre teve um déficit de instituições internacionais
fortes e significativas. Isto se deve a vários fatores, entre eles, talvez,
um certo nacionalismo exasperado dos países latino-americanos e a
interferência da potência dominante, os Estados Unidos, que aplicaram com competência a política do divide et impera.
Mas, nas última década, está aparecendo algo novo na cena política
latino-americana, ou seja, o processo de integração regional, que é, ao
mesmo tempo, físico, geográfico, econômico, político, social e cultural.
Do ponto de vista econômico, está em movimento a ampliação do
Mercosul, com a entrada da Venezuela, e, do ponto de vista político,
a constituição da União das Nações Sul-americanas (Unasul).5 É um
processo que pode oferecer uma saída para os grandes problemas
regionais.
Depois do fim da guerra fria, esta é a grande novidade geopolítica
sul-americana: estão se dando, de maneira real, as condições objetivas
e a vontade política para a realização do sonho bolivariano da “Pátria
Grande”, que durante séculos havia ficado no plano meramente retórico. É um processo longo e cheio de dificuldades, que depende ainda
de algumas contingências históricas e que não é irreversível; mas é um
projeto que assume um valor estratégico crucial para a inserção da
América do Sul no processo de globalização. O fracasso das políticas
Presidentes e representantes dos 12 países da América do Sul assinaram
em Brasília, no dia 23 de maio de 2008, o tratado de criação da União das Nações
Sul-americanas, a Unasul. A Unasul reúne os 12 países da América do Sul e visa
aprofundar a integração da região. Por suas riquezas naturais, a América do Sul é
importante internacionalmente como um dos principais centros produtores de energia
e de alimentos do planeta. A iniciativa da criação de um órgão nos moldes da Unasul
foi apresentada, oficialmente, numa reunião regional em 2004, em Cuzco, no Peru.
O projeto recebeu o nome de Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), mas o
nome foi modificado para Unasul durante a Primeira Reunião Energética da América
do Sul, realizada no ano de 2007 na Venezuela.
5
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neoliberais e o surgimento de governos de centro-esquerda em países
como Argentina, Venezuela, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador e Peru constitui hoje um eixo político que pode dar sustentação
real a este processo.
Ao final, os países da América Latina possuem entre si mais
semelhanças históricas, econômicas, sociais e culturais que os da
União Europeia, o que não deixa de ser um fator facilitador para a
integração regional. O processo é e continuará sendo complexo e
longo, com avanços e recuos, como acontece também com a União
Europeia, mas está aberto o caminho a ser seguido para as próximas
décadas.
De alguma forma estaria assim sendo realizado o sonho bolivariano, mas também kantiano, de uma Federação de Estados Republicanos governada por um direito cosmopolita que garanta uma paz
estável duradoura. O roteiro a ser seguido está claramente definido
pelos três artigos de À paz perpétua: a constituição de regimes democráticos (por isso a importância da “cláusula democrática” para a
admissão dos países no bloco); adesão livre à Federação de Estados,
com a criação de instituições econômicas e políticas comuns, e adoção
do direito cosmopolita, ou seja, de uma carta de princípios comuns,
que garanta os fundamentos jurídicos e políticos da União.
Para o sucesso deste projeto é fundamental – como dizia Kant
referindo-se ao povo francês de sua época – que exista um povo “forte
e ilustrado” capaz de se tornar o centro dessa Federação; posição que
cabe, por óbvios motivos, ao Brasil, como líder natural e aglutinador
desse projeto. Mas para isso é preciso também que o Brasil deixe de
virar as costas ao resto da América Latina e inicie uma aproximação
cultural e uma integração social, e não somente econômica e política,
com os outros países do continente.
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Cosmopolitismo e integração Sul-Americana
Concluindo
O processo de globalização das relações internacionais é algo
irreversível e pode ser enfrentado de várias maneiras. Uma delas é
confiar a tarefa de sua regulamentação à mão invisível do mercado
e, quando esta se mostrar insuficiente, entregá-las à luva de ferro da
intervenção armada dos exércitos das nações mais ricas e poderosas
para defender seus “interesses vitais” em qualquer parte do mundo,
numa lógica de potência e de choque de interesses, portadora de conflitos e guerras consideradas, em última instância, como inevitáveis
e até benéficas para “o progresso” da humanidade. Este processo
pode levar a humanidade à paz perpétua que aparecia ironicamente
na insígnia da taberna descrita por Kant e que inspirou o título de seu
tratado: a paz dos cemitérios.
A saída é promover um rede alternativa de instituições internacionais e supranacionais – tanto da esfera estatal como da sociedade civil
– com força suficiente para enfrentar os problemas que o mercado
cria e que os Estados não podem resolver, permitindo assim melhor
distribuição da riqueza em âmbito internacional e retirando as raízes
mais profundas da violência e da guerra. Nesta perspectiva, os Estados
nacionais não desapareceriam, continuariam tendo um papel próprio
na garantia dos direitos e das identidades locais de seus cidadãos, mas
delegariam a organismos supranacionais, com base no princípio de
subsidiariedade, a busca de soluções dos conflitos e dos problemas
que superem suas fronteiras, sobre a base do reconhecimento de uma
cidadania não somente nacional, mas cosmopolita.
Se o Estado de Direito, apesar de todas as suas limitações, conseguiu garantir internamente a ordem e os direitos fundamentais sem
recorrer à violência, ou recorrendo à violência do uso legítimo da força,
a grande tarefa do século XXI será a de realização de um Estado de Direito Mundial que supere a anarquia e o estado de natureza entre os Estados e promova uma governance política dos processos de globalização.
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Giuseppe Tosi
Sob o ponto de vista da filosofia, esta parece ser a única proposta
racional, quase uma “exigência” da razão numa época de globalização,
um verdadeiro “imperativo categórico” de um pensamento que queira
estar à altura de sua época e de seus problemas, sem renunciar a uma
justificação universalista de seus fundamentos. Não sabemos, porém,
se a razão prevalecerá na história, não temos mais a crença religiosa
na Providência nem a confiança iluminista de um fim “recôndito da
natureza”, ou a certeza historicista de que “a Razão governa a história”. Talvez seja necessário uma catástrofe: uma grave crise do sistema financeiro global, um colapso ecológico, um atentado terrorista
“atômico”, ou algo parecido, para que a humanidade possa tomar o
caminho que a razão lhe indica. Enquanto isso, nossa tarefa é continuar lutando com todas as nossas forças para que os princípios de
uma “razoável” (senão próprio racional) convivência humana possam
prevalecer. Neste sentido, a verdadeira distinção não está entre os realistas e os cosmopolitistas, mas entre aqueles que defendem o status
quo, as injustiças e desigualdades criadas pelo processo de globalização,
e os que propõem uma sociedade internacional mais equânime e justa
para o maior número de pessoas e povos.
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COSMOPOLITISM AND SOUTH AMERICAN INTEGRATION
Abstract
The author will postulate in his article the importance and the limits of the
Universal Declaration of Human Rights. Its fragility is found, especially, in
the ambit of the international affairs. Based on this fragility, the author will
search to show two possible answers to the problem of the relations among
nations: the one of the political realism (which Maquiavel and other thinkers
took part of) and the one of the cosmopolitism (linked to the illuminists and
Kant). The cosmopolitan perspective, with its universalist pretentions, despite
the limits that it presents, is the most promising alternative for the present and
the future of the international affairs. However, it defends the importance of
respect to the national and regional singularities, the end of the domination
among nations, and the necessity to build in Latin America, strong civil societies, organized to participate of a fairer and human international society.
Key words: Realism, cosmopolitism, globalization, Latin America
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A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO E
DO PENSAMENTO FRACO DE GIANNI VATTIMO
NA EPISTEMOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO
Jorge Luis Vargas dos Santos*
Resumo
A Filosofia da Religião, enquanto disciplina, contribui significativamente com
a epistemologia do Ensino Religioso (ER). Ao romper com o exclusivismo
e com o inclusivismo, assegura o pluralismo religioso, salvaguarda o estudo
dos fenômenos religiosos presentes nas diversas culturas da humanidade e
colabora com a emancipação do ER na perspectiva das Ciências das Religiões. Já o pensamento fraco, tal como é entendido por Vattimo, ao recusar
a concepção metafísica objetivista, estável e estrutural do ser e da religião,
fundamenta que o mundo pós-metafísico pluralista e democrático no qual
vivemos não mais se deixa interpretar por um pensamento que deseja unificá-lo a qualquer custo em nome de uma verdade definitiva. Sua reflexão sugere
à filosofia e ao ER a não mais buscar encontrar a ordem objetiva do mundo,
uma verdade absoluta, mas harmonizar a via hermenêutica com a realidade.
Pretendemos neste trabalho pensar a contribuição da Filosofia da Religião e
do pensamento fraco na epistemologia do ER.
Palavras-chave: Filosofia da Religião, epistemologia, ensino religioso,
pensamento fraco.
Introdução
O que se pretende com este estudo é demonstrar como a Filosofia
da Religião e o pensamento fraco1 podem contribuir na epistemologia do
* Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória, mestrando em
Ciência da Religião pela Faculdade Unida de Vitória – FUV.
1 Por pensamento fraco Vattimo entende o discurso sobre a realidade, de uma fala
unívoca, que, fundada sobre a metafísica, pode reclamar extensão e profundidade universais
a uma forma fraca de “experimentar” a realidade, na qual história e cultura situam todo
discurso, impedindo-o de qualquer pretensão de falar para além do próprio horizonte.
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
Ensino Religioso. Ou seja, na elaboração de um conhecimento que em
si e por si salvaguarde o Ensino Religioso nas escolas públicas e nas
escolas privadas na perspectiva das Ciências das Religiões, em busca
de uma disciplina autônoma e ético-crítica.
A relevância deste estudo deve-se ao próprio horizonte histórico
que nos situamos. O ER na história da educação está contemplado em
pelo menos três tendências predominantes: o catequético, o teológico
e o das Ciências das Religiões.
Pensar no estudo das religiões na perspectiva das Ciências das
Religiões implica erigir fundamentos claros e objetivos que sustentem
o ER enquanto um estudo do fenômeno religioso em pé de igualdade
com as demais áreas de conhecimento.
Outrora vivemos num tempo de mudanças. A pós-modernidade,
caracterizada pelo fim da metafísica, pela desaparição de dogmas, pela
fragmentação das cosmovisões e pela pluralidade ideológica, cultural
e religiosa, entre outros fenômenos, exige de nós um pensamento
sistêmico que leve em consideração a pluralidade.
A filosofia grega nos deixou alguns legados cardeais no processo
de conhecimento: a busca insaciável da sabedoria, que a priori se dá
através da admiração, do assombro e do espanto; a dúvida; as indagações básicas e dialéticas da atitude filosófica: o que é? por que é? como
é? etc. Enquanto disciplina, a Filosofia da Religião, fundamentada em
tais legados, estuda as religiões de um ponto de vista abrangente. Sua
epistemologia nos ajuda na superação do exclusivismo e do inclusivismo religioso em busca do pluralismo religioso.
O “pensamento fraco” do filósofo contemporâneo Gianni Vattimo, que ratifica não ser mais possível sustentar uma filosofia absoluta
acerca do homem sobre Deus, sobre a religião etc. e a própria Filosofia da Religião nos ajudarão a sistematizar uma epistemologia do ER
fundamentada nas Ciências das Religiões, visando fundamentalmente
à formação integral dos educandos.
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Jorge Luis Vargas dos Santos
1 Filosofia da religião
A busca do sentido do Universo é objeto de indagações desde os
filósofos pré-socráticos. Tais pensadores, também denominados de
fisiólogos, se ocuparam em investigar a origem da physis, ou seja, do
Universo. Insatisfeitos com as respostas míticas, os primeiros filósofos inauguram uma vontade insaciável do ser pensante: compreender a totalidade das coisas. Com o advento da Filosofia, a sabedoria
torna-se o valor mais precioso na polis. Questões antes indiscutíveis,
como política, ética, religião etc., tornam-se o centro dos debates
filosóficos.
A Filosofia da Religião nasce nesta ambiência, caracterizada pela
supra-assunção da razão em detrimento do mito. Naquela época já
eram levantadas questões até hoje debatidas nos diversos campos do
conhecimento: Qual a origem do Universo? De onde vêm os seres?
Para onde vamos após a morte? Por que tudo muda? Diretamente ligado à Filosofia da Religião era possível levantar questões como: um ser
supremo (Deus) existe? O que é a religião? Como se explica o mal? etc.
A religião é tão antiga como a humanidade. Ela está presente nas
culturas desde o surgimento dos primeiros grupos de homens.
Em seu sentido geral e sociocultural, a religião é um conjunto cultural
suscetível de articular todo um sistema de crenças em Deus ou num
sobrenatural e um código de gestos, de práticas e de celebrações rituais.
Toda religião acredita possuir a verdade sobre as questões fundamentais
do homem, mas apoiando-se sempre numa fé ou crença (JAPIASSUÉ;
MARCONDES, 2006, p. 239).
A grande contribuição que a Filosofia da Religião oferece ao
ER é a busca dialética de uma totalidade, no seu caso específico, das
questões intrínsecas no campo da religião. Alias, é a totalidade que
move o pensamento filosófico em todas as suas vertentes. Segundo
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
Ives Gandra Martins Filho, para o estudo filosófico da religião vários
são os métodos utilizados:
Método histórico-crítico comparativo – comparar as várias religiões no
tempo e no espaço, buscando seus traços comuns e suas diferenças específicas, para verificar o que constitui a essência do fenômeno religioso;
Método Filológico – mediante o estudo comparado das línguas, busca
encontrar nas línguas parentes o que pensavam e acreditavam os povos
antes de se dividirem em línguas distintas (quais as palavras utilizadas
para descrever e expressar o sagrado e suas raízes comuns); Método
Antropológico – reconstruir o passado religioso com base na etnologia,
estudando os povos primitivos atuais (suas instituições, crenças, rituais e
tradições). A filosofia da religião deve conjugá-los, para obter a melhor
soma de elementos para chegar às suas conclusões sobre a essência das
manifestações religiosas e suas características universais. Método metafísico – busca o fundamento do fenômeno religioso (MARTINS, 2006, p. 7).
Tal metodologia é cardeal para a epistemologia do ER, pois
rompe com todo o exclusivismo e com todo o inclusivismo religioso
em prol do pluralismo religioso. Além do mais, capacita o docente de
ER a dinamizar suas aulas, focalizando a dimensão plurirreligiosa e o
fenômeno religioso em toda a sua complexidade.
A disciplina Filosofia da Religião, ao pesquisar o fenômeno religioso em sua complexidade, colabora com a sistematização da epistemologia do ER enquanto área de conhecimento. Rosa Gitana e João
Décio ratificam tal afirmação ao dizer: “Um segmento de abordagens
busca os fundamentos do fenômeno religioso na sua constituição nuclear, bem como sua estrutura e função, através de disciplinas como
a História Comparada, a Fenomenologia e a Filosofia da Religião”
(SENA, 2006, p. 127).
Enfim, a estruturação epistemológica das Ciências das Religiões
fundamentada no estudo da Filosofia da Religião e das demais disciplinas garantirá ao ER um conhecimento totalizante da religião:
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Jorge Luis Vargas dos Santos
Com esse conjunto multidisciplinar, as Ciências das Religião constroem
um saber sobre o fenômeno religioso, vivido e representado em suas
múltiplas faces e dimensões, e sempre presente e atuante no conjunto de
existência humana. Configura-se, assim, um campo epistêmico próprio
que tem como objeto de estudo o fenômeno religioso, caracterizado pela
pluralidade metodológica utilizada e fundamentada numa nova arquitetura para a construção do conhecimento. Rompem com a investigação
monolítica, separada, verticalmente estabelecida, e horizontalizam-se,
na parceria com diversos ângulos de focalização de seu objeto de estudo – a religião –, transdisciplinarizando-se de forma radical e, com isso,
buscando negar a fragmentação e a linearidade do conhecimento sobre
o fenômeno religioso (SENA, 2006, p. 128).
As investigações filosóficas acerca do fenômeno religioso presente na diversidade cultural rompem com pelo menos dois modelos de
ER: o catequético e o teológico. O primeiro é herança do catolicentrismo e do protestancentrismo. Pois seu maior objetivo é a doutrinação
dos educandos em vista da expansão das Igrejas. Já o segundo modelo,
apesar da cosmovisão plurirreligiosa, esconde em si uma catequese
disfarçada, visto que a teologia é apologética e teoriza em nome de
uma determinada religião.
Outros dois autores, Costella e Oliveira, escrevem sobre a contribuição filosófica para a epistemologia do ER:
A Epistemologia do Ensino Religioso abre a religião à investigação
filosófica num diálogo esclarecedor, que não pretende dissolvê-la, mas
reconhecer seu sentido. Assumindo-se a religião não tanto como um
fato objetivo – como faz o cientista que pretende descrevê-la e explicá-la –, mas como uma forma eminente da experiência humana, pode-se
reconhecer nela sua originária congenialidade à filosofia, que assume a
forma de uma relação dialógica – integração na diferença –, com mútuo reconhecimento das respectivas instâncias de verdade. Esse caráter
dialógico da relação entre filosofia e religião pode ser caracterizado em
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
dois níveis conexos. Um nível mais geral, como duas dimensões da experiência; outro mais existencial, como duas modalidades da pessoa, ao
mesmo tempo crente e pensante (COSTELLA; OLIVEIRA, 2007, p. 54).
Já na concepção de Segundo, a Filosofia da Religião tem a finalidade de mediar o círculo hermenêutico entre a fé e a ciência/tecnologia:
Difícil saber qual dos dois tem mais razão. Mas a linguagem filosófica
terá encontrado sua razão de ser enquanto puder mediar o círculo hermenêutico que se desenvolve entre sistemas de significação (fé) e sistemas
de eficácia (ciência/tecnologia). Para aceder a tal lugar, ela conta com
duas prerrogativas essenciais: (a) trabalha um rico conteúdo de dados
transcendentes, distinguindo-se, portanto, das ciências propriamente
ditas; (b) não obstante isso, ela não quer assumir tais dados como uma
tradição, e esforça-se para submeter cada um deles ao controle da razão;
e por isso se diferencia das religiões (SEGUNDO, 1997, p. 414).
O ER “aprende” com a Filosofia da Religião, que, ao suscitar
reflexões acerca da história das religiões, dos seus ritos e orações,
das suas revelações e doutrinas, deve levar os estudantes a peceber
que não precisamos de uma religião una. “Certamente a sociedade
não necessita de uma religião unitária, nem de uma ideologia única.
Necessita, porém, de normas, ideais e objetivos que interliguem todas
as pessoas e que todos sejam válidos” (HANS HUNG, 1993, p. 9).
O filósofo e teólogo Leonardo Boff, ao desenvolver o conceito
de resiliência na ecopedagogia, nos ajuda a ver no ER uma luz para a
paz entre as religiões e a humanidade. Boff nos apresenta a resiliência como caminho de transformação do negativo para o positivo, do
deformado para o estado original.
Resiliência comporta dois componentes: resistência face às adversidades,
capacidade de manter-se inteiro quando submetido a grandes exigências
e pressões e em seguida é a capacidade de dar volta por cima, aprender
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Jorge Luis Vargas dos Santos
da derrota e reconstruir-se, criativamente, ao transformar os aspectos
negativos em novas oportunidades e em vantagens (BOFF, 2007).
Enfim, a contribuição da Filosofia da Religião com a epistemologia do ER, para além da pesquisa dos fenômenos da religião no campo
da razão e do conhecimento, deve ser instrumento eficaz na formação
ético-crítica dos discentes, sendo corresponsável na construção de
uma sociedade mais dialógica, respeitosa e sustentável.
2 Pensamento fraco
Por pensamento fraco Vattimo pretende discursar sobre a realidade, passando de uma fala unívoca, que, fundada sobre a metafísica,
pode reclamar extensão e profundidade universais, para uma forma
fraca de “experimentar” a realidade, na qual história e cultura situam
todo discurso, impedindo-o de qualquer pretensão de falar para além
do próprio horizonte.
Pensamento débil [...] significa não tanto, ou não essencialmente, uma
ideia do pensamento mais consciente dos seus limites, que abandona
as pretensões das grandes visões metafísicas globalizantes, etc.; mas
sobretudo uma teoria do debilitamento como traço constitutivo do
ser na época do fim da metafísica (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 25).
Ao compreender o pensamento fraco, a filosofia direciona o pensamento a uma forma “fraca” de experimentar a realidade, evitando
qualquer pretensão de responder aos anseios da realidade atual fora do
próprio horizonte, na qual história e cultura estão situadas em todo o
discurso. Nesta concepção, afirma-se, pois, a necessidade de renunciar
a todas as categorias fortes na tradição filosófica, para erigir um fundamento sólido que reconheça o ser e a religião independentemente
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
de suas contradições, sem impor verdades que o limite de expressar
sua singularidade.
Ora, se a verdade não é um dado objetivo, mas um puro ato interpretativo, o sujeito, em Vattimo, assim como a religião, descobre-se
finito e histórico e não se considera mais como estável, provido de
uma estrutura eterna, indissolúvel, mas se reconhece como um ser
de possibilidades, aberto ao horizonte histórico no qual é mais um
intérprete.
Vattimo percebe que o enfraquecimento do pensamento tem suas
raízes no próprio cristianismo, sendo mesmo o cerne da mensagem
cristã.
Se reconhecer que o sentimento redentor da mensagem cristã desdobra-se precisamente da dissolução das pretensões da objetividade, a Igreja
poderia finalmente sanar até mesmo o confronto entre verdade e caridade
que a tem como assediada no curso da história [...]. A verdade, que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem a
verdade da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia
também não é um manual de antropologia e ou de teologia. A revelação
escritural não é feita para nos fazer saber sobre o cosmo, como Deus é,
quais são a “naturezas” das coisas ou da geometria – e, para salvar-nos,
assim, por meio do “conhecimento” da verdade. A única verdade que as
Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer
nenhuma desmistificação – visto que não é um anúncio experimental,
lógico, metafísico, mas sim um apelo prático – é a verdade do amor, da
caritas (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 71).
O “pensamento fraco”, que está situado numa época hermenêutica, pode oferecer à teologia, à espiritualidade e ao ER, o retorno
do fenômeno religioso e a possibilidade de resgatar sua historicidade
num contexto pós-moderno, que, segundo Vattimo, abre caminho à
tolerância e à diversidade.
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Jorge Luis Vargas dos Santos
Vattimo insiste que o pensamento fraco pode acelerar o retorno
da religião na pós-modernidade. Em outras palavras, a filosofia de
Vattimo almeja superar o pensamento forte a partir do pensamento
fraco, que, por sua vez, se funda na reconstrução dos conceitos fundamentais da Filosofia da Religião. Pensamento fraco este que ainda
está escondido nas fortes estruturas da religião. Para apresentarmos
o pensamento fraco (que se dá através da ruptura entre o mundo metafísico e o pensamento forte), teremos que percorrer o caminho de
reconstrução, realizado por Vattimo, do conceito de morte de Deus
e fim da metafísica e do conceito de secularização.
2.1 Morte de Deus e fim da metafísica
Com referência ao conceito de morte de Deus e fim da metafísica,
Vattimo entende que o anúncio de Nietzsche de que “Deus morreu”
inaugura um novo período da história da filosofia, pressupõe a morte
de uma estrutura epistemológica linguístico-religiosa sobre a qual
foram erigidos os cânones da teologia cristã, sobretudo dogmática,
ao longo de quase toda a história do cristianismo, e o “retorno” do
fenômeno religioso. Quando anunciou que “Deus morreu”, Nietzsche
não estava interessado em categorizar que Deus não existe. A morte
de Deus significou para Nietzsche que não há, a respeito de sua existência, um fundamento definitivo. Nada mais. Como disse Heidegger:
“Assim, a expressão ‘Deus morreu’ significa: o mundo suprassensível
não tem poder eficiente. Não desperdiça nenhuma vida. A Metafísica,
ou seja, para Nietzsche, a filosofia ocidental entendida como platonismo chegou ao fim” (TRTIGNON, 1990, p. 83).
Na era pós-metafísica a filosofia só pode admitir que “tudo é
interpretação”, o “real” é sempre relativo, e a “verdade” não pode ser
definitiva e una. A desmistificação da “verdade absoluta” e o advento
de uma nova etapa na história da filosofia, chamada era da interpretação, inclui inúmeras possibilidades para romper com os preconceitos
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
culturais, e, por conseguinte, abandonar a construção e estruturação
do consenso no diálogo, que, de forma dialética, estrutura-se a partir do reconhecimento de tudo aquilo que temos em comum como
patrimônio religioso, cultural, histórico e, até mesmo, das aquisições
técnico-científicas.
Para o cristianismo a constatação da morte de Deus, e, posteriormente, a morte da metafísica, pode significar a libertação da dimensão
metafórica da linguagem, possibilitando um resgate da experiência
originária. Vattimo entende o pensamento nietzschiano da morte de
Deus como uma abertura à possibilidade de crer em Deus, sobretudo,
a partir do enfraquecimento ou “kenotização”.
E, pois bem, hoje parece que um dos principais efeitos filosóficos da
morte do Deus metafísico e do descrédito geral, ou quase, em que caiu
todo tipo de fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um
terreno fértil para a possibilidade renovada da experiência religiosa. Tal
possibilidade retorna [...] por meio da libertação da metáfora. É um pouco como se, no final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a criação de
muitos novos deuses: na Babel do pluralismo de fins da modernidade e
do fim das metanarrativas, se multiplicaram as narrativas sem um centro
ou uma hierarquia (TROTIGNON, 1990 p. 25).
Com o fim das metanarrativas e o surgimento de novas narrativas,
o pensamento forte, de cunho metafísico e essencialista, das verdades
absolutas, que incansavelmente enquadrava o ser num sistema fechado,
impedindo-o de transcender, dificilmente será evocado numa realidade
complexa, em que se reconhece em todos os seus matizes a diversidade
e o respeito incondicional pela a religião, pelo outro sexo, pelo homossexual, pelo indivíduo de outra cor, de outro credo, de outras regiões,
de outra facção política, de outra religião, de outra etnia etc.
A modernidade e a pós-modernidade salvaguardam a morte
de Deus e o fim da metafísica. Na nova ambiência, a pluralidade
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Jorge Luis Vargas dos Santos
ideológica, cultural e religiosa não mais se deixa interpretar por um
pensamento totalitário compreendido como uma verdade única, que
padroniza o ser. Com isso, cabe à filosofia pensar o ser como evento.
Com base na experiência do pluralismo pós-moderno, podemos somente
pensar o ser como evento, enquanto a verdade não mais pode ser o reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histórica que
devemos ouvir e à qual somos chamados a dar uma resposta. Tal concepção da verdade não é válida apenas para a teologia e para a religião, mas,
igualmente, para grande parte das ciências hoje (VATTIMO, 2004, p. 13).
Enfim, supra-assumir a ideia do absoluto em busca do diálogo
entre as diferentes religiões não só superou as hipóteses pessimistas
do fim da religião como ratificou a necessidade do ER na educação
básica do Brasil.
2.2 Secularização
Outro aspecto do pensamento fraco é o conceito de secularização. O descobrimento das leis da natureza foi uma das causas do
fenômeno da secularização, que repercutiu profundamente no campo
religioso. A secularização consiste em reconhecer a “justa autonomia
das realidades terrenas”, que têm suas leis próprias, seu valor próprio,
independentemente da religião.
A secularização foi um processo de “dês-secularização” do mundo, declínio da religião, maior conformidades das pessoas a “este
mundo”, desacoplamento entre sociedade e religião, transposição de
crenças e instituições religiosas para formas não religiosas e abandono
do compromisso com valores e práticas tradicionais.
No campo religioso encontramos inúmeros discursos radicalistas
e fundamentalistas condenando o secularismo como o grande culpado
pelo abandono da religião. Já a filosofia de Vattimo identifica na secula200
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
rização o retorno da religião, sobretudo do cristianismo, pois, ao romper
com o pensamento forte e desvincular o homem da hierarquia fechada e
de qualquer limite, aproxima a religião da essência do Evangelho anunciado por Jesus Cristo, a caridade. Nunca na história da humanidade
tanto se falou em respeito ao outro. A secularização contribui com o
retorno da religião quando acolhe o outro independentemente de suas
contradições, reconhecendo não haver mais um estereótipo uno que
enquadre o ser humano. Ela é expressão clara e objetiva do reconhecimento de direitos iguais para as culturas e as religiões.
É verdade que no ápice da secularização muitas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, pois, em
crise, abriram mão de sua identidade para se adaptarem às supostas
exigências do mundo secularizado.
Na visão de Vattimo, a secularização quebra o dogmatismo imperante nas instituições religiosas e abre um leque de possibilidades
que vai para além das normas e leis que imperam nas instituições.
A secularização encarnada na imanência da realidade intramundana
contradiz a crença que busca a “salvação” meramente em termos
transcendentais, extramundanos.
Enfim, no caso do Ocidente, a dessacralização ajudou a purificar
a imagem de um Deus que manipula os fenômenos como marionetes
e convidou o homem a ser mais responsável. Ajudou o religioso a
cultivar uma espiritualidade encarnada no já e no ainda não, supra-assumindo a espiritualidade tradicional legalista e desumanizadora.
Considerações finais
A filosofia da religião, com suas inquietações e o conceito de pensamento fraco em Vattimo, compreendida como parte de um todo do
pensamento sistêmico, possibilitará ao ER uma epistemologia clara e
objetiva do estudo do fenômeno religioso.
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O ER pode “aprender” com a filosofia da religião uma forma
específica de sistematizar o saber, supra-assumindo qualquer postura
absoluta que inviabiliza o diálogo, garantindo no espaço-tempo da
pós-modernidade a pluralidade.
O saber filosófico não se contenta apenas com aquilo que aparece
no fenômeno religioso; a investigação ultrapassa a imanência em busca
da transcendência. Sua tarefa não é reduzir a religião a mera ilusão ou
delírio da humanidade, mas investigar o fenômeno religioso presente
na vida social da contemporaneidade.
Temos um grande desafio, pensar e sistematizar uma formação
continuada dos professores habilitados em ER, a fim de evitar um
retrocesso nessa área de conhecimento, que por muitos anos permaneceu situada na periferia do saber.
Precisamos de docentes preparados para refletir com os estudantes o ER, disciplina autônoma. A Filosofia da Religião é uma das
disciplinas que irá salvaguardar a emancipação do ER.
Movidos pela criticidade, podemos superar o discurso fechado,
radical e fundamentalista da religião, em troca de um discurso aberto,
flexível e respeitoso. Tal movimento nos permitirá buscar equilíbrio
entre fé e razão, mergulhando no mistério que nos envolve, o transcendente.
Oxalá a epistemologia do ER nos ajude a enxergar a religião com
os olhos de Dalai Lama. Uma vez, ao encontrar-se com Dalai Lama,
Boff perguntou-lhe qual seria a melhor religião. Ele respondeu: “A
melhor religião é aquela que nos faz melhores, mais amorosos, mais
abertos aos outros”.
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
THE CONTRIBUTION OF PHYLOSOPHY OF RELIGION
AND OF WEAK THOUGHT OF GIANNI VATTIMO IN THE
EPISTEMOLOGY OF RELIGIOUS TEACHING
Abstract
The Philosophy of Religion, as a subject, contributes significantly to the
epistemology of Religious Teaching (RT). Breaking off the exclusiveness
and the inclusiveness ensures the religious pluralism, safeguards the study of
religious phenomena found in several cultures of humanity and contributes
to the emancipation of the RT in the perspective of the Sciences of Religions. But the weak thought, just as it is understood by Vattimo, by refusing
the objectivist metaphysic, stable and structural conception of being and of
religion, justifies that the post-metaphysical pluralist and democratic world in
which we live does not allow itself to be interpreted anymore by a thought
that wishes to unify it, at any cost, in the name of a final truth. Its reflection
suggests to the philosophy and to the RT not anymore to search to find the
objective order of the world, an absolute truth, but to harmonize the hermeneutic way to reality. We intend in this work to think the contribution of the
Philosophy of Religion and of the weak thought in the epistemology of RT.
Keywords: Philosophy of Religion, epistemology, religious teaching, weak
thought.
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TEÓRICOS DO SAGRADO:
ALGUMAS CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES
Alessandro Vescovi*
Resumo
Esta pesquisa tem por objetivo discutir as concepções acerca do sagrado e de
sua manifestação, em vista de ter elementos diagnósticos sobre religiosidade.
Por fim, foi proposta uma construção simbólica a respeito do sagrado e suas
manifestações, que não expressam uma construção fiel de uma imagem, mas
uma possível compreensão de pessoas e grupos.
Palavras-chave: Sagrado, religiosidade, Dukheim, profano.
Introdução
O tema proposto traz consigo a intenção de fazer uma análise
acerca do sagrado, suas concepções e manifestações bem como sobre
a religião pós-moderna, sobre as religiões e a dialética do sagrado a
partir de teóricos contemporâneos. Tal análise possibilita-nos uma
construção simbólica a respeito do sagrado e suas manifestações,
excluindo qualquer intenção acerca de uma possível construção fiel
de uma imagem, mas uma possível compreensão teórica.
O sagrado
A discussão sobre o sagrado é pertinente, principalmente quando
percebemos na história que diversos intelectuais estão sendo instigados por uma espécie de ressacralização do mundo, a retomar tal
* Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. Mestre em
História Social das Relações Políticas pela UFES.
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
discussão, a fim de superar algumas respostas clássicas e trazer para
os nossos dias novas discussões e possibilidades de compreensão do
sagrado. Sendo assim, tomaremos nessa discussão alguns teóricos
como referencial, dentre eles, Durkheim, Otto, Elíade, Marques,
Caillois, Bastide e Girard.
Se lermos Durkheim discutindo se a religião é um produto de
causas sociais ou não, poderemos perceber que a reflexão acerca do
sagrado e das religiões não passa pela perspectiva da falsidade, mas
da verdade ao modo de cada uma.
As representações religiosas são representações coletivas que exprimem
realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior dos grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer
alguns estados mentais desses grupos. Mas, então, se as categorias são
de origem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos
os fatos religiosos: também elas devem ser coisas sociais, produtos do
pensamento coletivo. Como, no estado atual de nossos conhecimentos
desses assuntos, devemos evitar toda tese radical e exclusiva, pelo menos
é legítimo supor que sejam ricas em elementos sociais (DURKHEIM,
1996, p. XVI).
É nesta perspectiva das representações religiosas que Durkheim
expressa sua compreensão do sagrado como um gênero oposto ao
profano. Para ele:
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas,
apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das
coisas, reais ou ideais, que os homens concebem, em duas classes, em
dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos
que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem. A divisão
do mundo em dois domínios compreendem, um, tudo o que é sagrado,
outro, tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são representações ou
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Alessandro Vescovi
sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sagradas,
as virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, suas relações
mútuas e com as coisas profanas (DURKHEIM, 1996, p. 20).
É a partir dessa compreensão bipolar de mundo, que distingue
o sagrado do profano, que Durkheim discorre sobre o sagrado, afirmando que:
Por coisas sagradas, convém não entender simplesmente esses seres
pessoais que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, uma árvore,
uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, uma casa, em uma palavra,
uma coisa qualquer pode ser sagrada. Um rito pode ter esse caráter; inclusive, não existe rito que não o tenha em algum grau. Há palavras, frases,
fórmulas que só podem ser pronunciadas pela boca de personagens
consagrados, há gestos e movimentos que não podem ser executados
por todo o mundo... O círculo de objetos sagrados não pode, portanto,
ser determinado de uma vez por todas; sua extensão é infinitamente
variável conforme as religiões (DURKHEIM, 1996, p. 20).
Durkheim (1996, p. 32) conclui que uma religião é um sistema
solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é,
separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada Igreja, todos aqueles que a elas aderem.
Possivelmente a leitura de Durkheim nos levará também a compreender que não são os estados individuais que explicam os fatos
sociais, mas são estes que facilitam a compreensão dos primeiros. A
fim de ampliar essa discussão, busquemos dialogar agora com Otto.
De acordo com ele:
O sagrado, no sentido completo da palavra, é, portanto, para nós uma
categoria composta. As partes que a compõem são, por um lado, os seus
sentimentos racionais e, por outro, os seus elementos irracionais. Consi208
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
derada em cada uma destas duas partes, ela é uma categoria puramente
a priori (OTTO, 2005, p. 149).
O pensamento de Otto aponta para a compreensão da categoria
do sagrado no seu aparecimento histórico, ou seja, contextualizado,
a ponto de afirmar que é no princípio da evolução que se constitui a
história das religiões, e a partir daí podemos perceber noções como
puro e impuro, a crença e o culto dos mortos, a crença e o culto aos
espíritos, a magia, as lendas, os mitos e muito mais. Otto, em suas
percepções, chega a afirmar que:
Uma coisa é acreditar na existência do suprassensível, outra é fazer
dele uma experiência vivida; uma coisa é ter a ideia do sagrado, outra
é percepcioná-lo e descobri-lo como um fator ativo e operante que se
manifesta pela sua ação. Todas as religiões, e a própria religião, estão
intimamente convencidas de que a segunda hipótese se pode produzir:
afirmam que não somente a voz interior, a consciência religiosa, o leve ao
murmúrio do espírito no coração, o sentimento, a intuição e a aspiração
da nossa alma são testemunhos do suprassensível, mas que este pode
aparecer em certos fatos, em certos acontecimentos, em certas pessoas,
as quais, por sua vez, são provas efetivas da sua manifestação; afirmam
que, juntamente com a revelação interna por meio do espírito, existe uma
revelação externa do divino. Estes fatos convincentes, estas manifestações
da revelação sensível do sagrado, chamam-se, na linguagem da religião,
sinais (OTTO, 2005, p. 149).
Por tudo isso, Otto afirma que a religião realiza-se primeiramente
na evolução histórica do espírito humano; em segundo momento,
em virtude da própria disposição, em terceiro lugar, sobre o estabelecimento da comunhão com o sagrado no conhecimento, na alma e
na vontade. Para ele, a religião é um produto da história. Se, por um
lado, ela desenvolve a disposição para o conhecimento do sagrado,
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Alessandro Vescovi
por outro, ela própria é, em algumas das partes, a manifestação do
sagrado; sendo assim, não há religião “natural” em oposição às religiões históricas e, menos ainda, uma religião inata. Tais afirmações nos
levam a crer que, para Otto, o sagrado é uma realidade que aparece
fora do eu.
Segundo Elíade (2005, p. 15), o sagrado se manifesta sempre como
uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais, e a primeira
definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano, e
que o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta,
se mostra como algo absolutamente diferente do profano.
Elíade (1998, p. 37), ao escrever Tratado de história das religiões,
afirma que até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços
de uma valorização religiosa do mundo. Para ele, que é historiador
das religiões, é na experiência do sagrado que o homem descobre a
realidade do mundo dos significados e a ambiguidade de todo o resto.
A leitura de Elíade, em sua obra O sagrado e o profano, facilita a
percepção de que as sociedades tradicionais vivem uma espécie de
oposição entre o caos e o cosmos, entre o território habitado e um
mundo desconhecido, e que, diante de tal oposição, o sagrado revela
a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação,
fixando limites e estabelecendo a ordem.
É nessa realidade que o homem se divide, ou ao menos perpassa
o sagrado e o profano, e também percebe um tempo sagrado e um
tempo profano.
O homem religioso vive assim em duas espécies de tempo, das quais a
mais importante, o tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal
de um tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos
ritos. Esse comportamento em relação ao tempo basta para distinguir o
homem religioso do homem não-religioso. O primeiro recusa-se a viver
unicamente no que, em termos modernos, chamamos de “presente
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
histórico”; esforça-se por voltar a unir-se a um tempo sagrado que, de
certo pondo de vista, pode ser equiparado à eternidade... Ora, o que se
pode constatar relativamente a um homem não-religioso é que também
ele conhece uma certa descontinuidade e heterogeneidade do tempo.
Também para ele existe o tempo predominantemente monótono do
trabalho e o tempo do lazer e dos espetáculos, numa palavra, o “tempo
festivo”. Também ele vive em ritmos temporais variados e conhece
tempos diferentemente intensos: quando escuta sua música preferida
ou, apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada, ele experimenta,
evidentemente, um ritmo temporal diferente de quando trabalha ou se
entedia (ELÍADE, 1998, p. 64).
Diante das contradições em que o ser humano se encontra, é possível observar com mais clareza algumas posturas diante do sagrado
e da própria vida humana. Por tudo isso, parece que Elíade acaba por
entender o sagrado como uma experiência e, por isso, algo que está
no próprio ser humano.
Conforme Marques, podemos dizer que a religião é a revalorização do sagrado.
Em todas as religiões, cristãs ou não, a revalorização do sagrado é fundamental para a perpetuação, manutenção e a subsistência. Ela se dá por
meio da iniciação que na maioria das vezes pode ser feita com batismo,
código, dança, unções, festas, comemorações, rituais, cantos, visões, orações, etc. Mesmo nas religiões mais “antigas” encontramos esse tipo de
revalorização como forma de perpetuar o culto (MARQUES, 2005, p. 21).
Tal afirmação de Marques nos possibilita observar a presença de
um espaço mágico-simbólico em todas as religiões, mesmo naquelas
ditas mais racionais. Dessa forma podemos entender que as religiões
revelam uma modalidade do sagrado e ao mesmo tempo uma situação do homem em relação ao sagrado. E que esta realidade nos leva
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Alessandro Vescovi
a crer que todas as religiosidades estão imersas no sagrado ou em sua
dialética, que nos possibilita novos sagrados, novos profanos e outras
milhares de sacralidades sem o absurdo de maltratá-las e querer o uso
exclusivo da verdade.
De acordo com Gil Filho, ao tratar do sagrado como coração da
experiência religiosa:
O fenômeno religioso pode ser percebido pela sua materialidade através
dos sentidos enquanto paisagem religiosa, porém, quando concebemos
uma realidade, também destinamos a ela uma existência puramente
intelectual. Sendo assim, os adjetivos de um fenômeno fazem parte
desse âmbito: o mundo dos atributos e da nomeação. Do mesmo
modo, as realidades do mundo da existência não são intrinsecamente
não-sagradas. Em muitas culturas, vários elementos da paisagem natural
são tidos como sagrados, na medida em que fazem parte do mundo
da criação. Por exemplo, na cultura religiosa zoroastriana, desde o século V a.C. até sua expressão tardia na Pérsia e na Índia, os elementos
da natureza, a terra, a água e o fogo são considerados sagrados, nas
culturas religiosas africanas, como a cultura Ioruba, a natureza possui
uma sacralidade essencial. No budismo Theravada, o sagrado se apresenta de forma mais impessoal presente no Dhamma. Já nas tradições
judaico-cristã e islâmica, o sagrado se distingue como a realidade de
um Deus pessoal que revela sua vontade ao homem através da história
(GIL FILHO, 2006, p. 21).
Para Caillois (1988, p. 181), o sagrado é visto como uma categoria, uma qualidade do ser. Não uma qualidade inata. É um acréscimo
que sobrevém e transforma, dando novo significado ao objeto. Não
é um valor moral, mas tem função própria: manter o ser, conservar
a realidade. Seguramente, ultrapassa os limites da religião, embora
possa coexistir e tenha coexistido com ela. Manifesta-se, sobretudo,
como interdito e festa.
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
A leitura de Caillois, em O homem e o sagrado, possibilita-nos a recuperação de uma postura mais dialógica e da ideia de que na verdade
a superação da dialética entre o puro e o impuro se constrói quando
estabelecemos a oposição entre o sagrado e o profano. Nessa linha de
raciocínio ele nos provoca a questionar e quem sabe superar a ideia clássica de um simbolismo religioso como algo puro, ou melhor, purificado.
Tais autores buscaram o significado do sagrado, e essa iniciativa
nos permite chegar a uma conclusão parcial a respeito do tema, sinalizando que a vivência do sagrado possivelmente contribui para que o
ser humano aprofunde e enriqueça seu próprio desenvolvimento. Tal
compreensão pode ser percebida também se examinarmos algumas
religiões e suas respectivas dinâmicas na história da humanidade, e
consequentemente as posturas humanas no desenvolvimento dessas
religiões.
De acordo com Passos, podemos organizar uma tipologia religiosa a partir da relação estabelecida entre a dimensão do sagrado e
a do profano da seguinte forma:
Tabela 1 – Tipologia Religiosa
DINÂMICA / Naturalistas
RELIGIÕES
Transcendentais
Históricas
Esferas
Mistura
Distinção rígida
Reciprocidade
Contato
Imediato
Mediato
Mediato
Delimitação
Panteísmo
Tempo, espaço e
pessoas sagradas
Sagrado
antropológico
Ação ritual
Envolvimento Hierofania e ordem Memória e ética
e eficácia
Cosmovisão
religiosa
Totalidade
sagrada
Retorno ao
princípio sagrado
Criação e redenção
Fonte: Passos (2006, p. 75)
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Alessandro Vescovi
A apresentação do quadro acima, elaborado por João Décio Passos na obra Como a religião se organiza, da coleção Temas do Ensino
Religioso, ao tratar da relação entre o sagrado e profano, traz contribuições à medida que nos leva a observar que as tipologias religiosas
apresentam também a função de resumir a pluralidade e facilitar a
compreensão. Para Passos:
As tipologias religiosas escondem sempre, em sua generalidade, a realidade singular. No caso, muitas religiões ficam de fora, assim como
as misturas entre os modelos descritos. Os três tipos apresentados são
somente um exercício de verificação dos modos de relacionamento entre
o sagrado e o profano; captam três tipos de sistemas religiosos a partir
de alguns aspectos relacionados a suas estruturas internas, à relação
com o mundo e à ação ritual. As religiões naturalistas são aquelas que
têm a natureza como a realidade sagrada imediata e com a qual se pode
estabelecer relações imediatas por meio de rituais... As religiões transcendentais organizam seus sistemas a partir da distinção rígida entre as
esferas sagrada e profana, como realidades distintas em suas naturezas, e
postulam regras e métodos de volta a uma ordem primordial perdida... As
aqui denominadas “religiões históricas” caracterizam as religiões semitas
de um modo geral, ao menos em suas matrizes primordiais (PASSOS,
2006, p. 76).
Se a discussão a respeito do sagrado envolve uma questão que
parte de uma iniciativa individual para o social, ou o contrário, ou a
indagar até que ponto a história e a cultura influenciam nas diversas
práticas diante do sagrado, parece-nos que um possível diálogo entre
os autores acima nos remeteria a inúmeras contradições. À medida
que tratamos do sagrado, por diversas vezes nos remetemos ao profano; ao discutirmos o puro, nós nos deparamos com o impuro; ao
pensarmos o interior, somos lançados ao exterior; ao abordarmos a
morte, somos abordados pela vida; ao refletirmos sobre a natureza,
214
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
observamos a cultura; ao visualizarmos o caos, imaginamos a ordem;
ao questionarmos a violência, clamamos pela paz; enfim, um possível
diálogo nos apresentaria uma ambivalência que perpassa por vezes a
teoria e por vezes a prática.
São as percepções anteriores que nos levam a ratificar a contribuição dos teóricos. Toda a contribuição de Durkheim, ao estudar
os fatos sociais, pode ser reconhecida quando compreendemos que,
para ele, a religião é coisa eminentemente social e as representações
religiosas, dentre elas os ritos e as diversas práticas tidas como sagradas, são representações coletivas.
A contribuição de Otto acerca do sagrado deu-se à medida que o
autor percebeu a existência do sagrado enquanto uma forma simples,
no entanto, numa experiência de tensão e oposição entre o racional
e o não racional.
As reflexões de Elíade sinalizam para a experiência do sagrado
como algo relacionado à compreensão de ser, sentido e verdade. Tal
referencial teórico se confirma também quando o autor nos leva a
crer que nem toda experiência religiosa deve ser compreendida como
uma experiência do sagrado, e que nem toda experiência do sagrado
é uma experiência religiosa. Já as reflexões de Marques se justificam
quando ele afirma que todos os tipos de religiosidade estão imersos
no sagrado ou em sua dialética.
Tais reflexões estão presentes nas diversas sociedades e também
entre os jovens. Já a leitura de Caillois nesta pesquisa nos remeterá
à atração existente entre o sagrado e o profano, quando afirma que
tanto um quanto o outro são necessários para o desenvolvimento da
vida. Enfim, tais autores contribuirão para facilitar nossas leituras e
considerações, buscando alertar-nos para essa dialética que envolve o
sagrado, e, ao mesmo tempo, iluminarão nossas observações acerca
de fatores como a individualidade, a coletividade, a história, o racional
e o não racional, o ser e o sentido.
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215
Alessandro Vescovi
Considerações finais
Parece-nos que os pressupostos teóricos de Durkheim e Elíade
perpassam diversas práticas e compreensões que são encontradas nas
sociedades. Se, por um lado, entendem o sagrado como algo distante
do profano, através de experiências individualizadas e contemplativas,
por outro, é mister que tal relação seja analisada e entendida de maneira
contextualizada. A concepção durkheimiana sobre o religioso é social,
e, apesar das experiências individualizadas e expressas em diversas respostas, é no grupo ou numa instituição social que tais experiências são
compartilhadas, e, neste caso, a família, a escola e a igreja são algumas
das instituições que exprimem realidades coletivas. Da mesma forma,
a concepção de Elíade acerca de uma possível união entre o sagrado
e o profano pode ser observada nas festas, nos ritos e iniciações, nos
símbolos e no homem que experimenta sua existência na criação.
Referências
CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano: essência das religiões. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
GIL FILHO, Sylvio Fausto. O sagrado: essência do fenômeno
religioso. Revista Diálogo. São Paulo: Paulinas, 2006.
MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do
sagrado. São Paulo: Madras, 2005.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 206-217, jan./jun. 2011
Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
OTTO, Rudolf. O sagrado: perspectivas do homem. Lisboa: Edições
70, 2005.
PASSOS, João Décio. Como a religião se organiza – tipos e processos –
temas do ensino religioso. São Paulo: Paulinas, 2006.
THEORISTS OF THE SACRED: SOME CONCEPTIONS AND
PERCEPTIONS
Abstract
This research aims to discuss the conceptions about the sacred and its manifestations, considering that there are diagnostic elements about religiosity.
At last, it was proposed a symbolic construction concerning the sacred and
its manifestations, which do not express an exact construction of an image,
but a possible comprehension of people and groups.
Key words: Sacred, religiosity, Durkheim, profane.
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
OTTO, Rudolf. O sagrado: perspectivas do homem. Lisboa: Edições
70, 2005.
PASSOS, João Décio. Como a religião se organiza – tipos e processos –
temas do ensino religioso. São Paulo: Paulinas, 2006.
THEORISTS OF THE SACRED: SOME CONCEPTIONS AND
PERCEPTIONS
Abstract
This research aims to discuss the conceptions about the sacred and its manifestations, considering that there are diagnostic elements about religiosity.
At last, it was proposed a symbolic construction concerning the sacred and
its manifestations, which do not express an exact construction of an image,
but a possible comprehension of people and groups.
Key words: Sacred, religiosity, Durkheim, profane.
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CAMPO E CIDADE: UMA ABORDAGEM
SOCIOLÓGICA NO PRIMEIRO TESTAMENTO
Adriano de Souza Viana*
Resumo:
Este artigo apresenta uma abordagem sociológica do Primeiro Testamento.
Ele descreve sucintamente a interpretação sociológica da Bíblia e elucida
variadas citações, em que são percebidos conflitos entre grupos urbanos e
grupos rurais. É observado no desenvolver do texto que a Bíblia narra de
maneira mais acentuada posturas contrárias à cidade, defendendo os interesses
do grupo do campo.
Palavras-chave: Campo, cidade, abordagem sociológica, luta de classes.
Introdução
Na pesquisa bíblica temos uma diversidade de métodos interpretativos que nos possibilitam olhar de maneiras diferenciadas para os
textos das Sagradas Escrituras. Dentro dos variados métodos, ainda
temos uma riqueza plural de abordagens de que podemos nos valer
para melhor fazer uma aproximação hermenêutica.1
Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória; Pós-graduado
em Teologia Bíblica pela Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo – RS,
em parceria com o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), graduando em Teologia pelo
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (IFTAV).
1 Aqui é importante fazer referência ao documento da PONTIFÍCIA
COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, n. 134, em que é explanado
de forma sintética e densa o que a Igreja Católica pressupõe sobre os limites e as
qualidades dos métodos exegéticos e interpretativos nos últimos anos.
*
218
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
Este artigo propõe-se a um corte interpretativo que permita verificar no Primeiro Testamento a organização social mais elementar da
humanidade ao longo da história, que distribui as populações entre o
setor rural e o urbano. Essa organização aparece em vários textos bíblicos. Com uma abordagem sociológica da Bíblia podemos ver com mais
clareza a realidade vivida pelo povo de Israel e pelos povos vizinhos
no que se refere à tensão entre os grupos sociais rurais e os urbanos.
A abordagem sociológica, que será a base deste ensaio, terá um prisma marxista. Sendo assim, apresentar-se-á a luta de classes como chave
de leitura para adentrar nas salas antigas desse casarão que é a bíblia.
Alguns leitores poderiam se perguntar se é possível fazer esse tipo
de interpretação. Com tranquilidade a resposta positiva é dada. Sim,
pode-se olhar para esse tema e se valer de recursos hermenêuticos da
sociologia para descrever o contexto que subjaz ao texto.
No que se refere ao tema da oposição entre as classes rurais e
as urbanas nos textos bíblicos, alguns autores nos ajudam a dar os
primeiros passos.
Na Bíblia, especialmente no Primeiro Testamento, essa tensão entre
cidade e campo está muito presente. Nos seus traços fundamentais, o
relato da caminhada do povo de Israel nas Escrituras é uma história
anticitadina, escrito na perspectiva da roça.
Na cidade morava especialmente a classe dirigente. Diferentemente
de nossas cidades, onde mora também a maioria da população pobre
(GASS, 2005, p. 26).
Aqui, nota-se que a perspectiva que se defende é a do grupo rural.
Pode-se afirmar que a origem dos autores dos textos sagrados era
o ambiente social do campesinato, ligado à agricultura e à pecuária
como modos de produção e subsistência. Devido a isso, a maioria
dos textos de tradições mais antigas apresenta uma visão negativa da
cidade, e de tudo o que dela deriva.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
219
Adriano de Souza Viana
Serão apresentados dois tópicos neste artigo para o desenvolvimento das ideias propostas. Num primeiro momento será exposta a
interpretação sociológica da Bíblia, com algumas opiniões relevantes
para sua compreensão. Num segundo momento serão descritos variados exemplos de conflitos entre as classes urbanas e as rurais nos
textos do Primeiro Testamento.
1 A interpretação sociológica da Bíblia
Diante do desafio de apresentar uma abordagem sociológica no
Primeiro Testamento, dando destaque à relação entre campo e cidade,
é fundamental que se descreva o método que foi escolhido para tal
ensaio bíblico-teológico.
A interpretação sociológica da Bíblia não é propriamente um método, mas sim uma abordagem dentro de um método mais amplo, que é
o método histórico-crítico (Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA,
2006. p. 37).2 No entanto, alguns especialistas afirmam que se pode falar
diretamente de um “método sociológico”, como é o caso de Valter Luiz
Lara, que explica sucintamente as características desse método:
O método sociológico é complementar da análise histórico-crítica, pois
quer perceber a sociedade como um todo que está por trás do texto e
que se deixa captar no próprio texto. É um método que visa reconstruir o
comportamento coletivo típico das relações humanas em suas estruturas,
conflitos e funções (LARA, 2010, p. 57).
Lara desenvolve sua apresentação do método sociológico com
base nos estudos de John Elliot, que demonstra com clareza “o caráter
2
220
Cf. também LARA, 2010, p. 44-49.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
exegético e os elementos crítico e científico do método sociológico”
(LARA, 2010, p. 57). Elliot considera a análise sociológica como uma
“fase da tarefa exegética”. Portanto, a análise crítica da Bíblia tende a
também usar essa abordagem como complemento de outros elementos críticos, como a crítica literária, a textual e a redacional.
No uso da interpretação sociológica da Bíblia, há diversificadas
tendências entre estudiosos.3 Alguns desenvolveram uma sociologia
funcionalista a partir de Émile Durkheim. Outros basearam suas
interpretações numa sociologia compreensiva de Max Weber. E outros, ainda, fizeram a opção por uma concepção dialética a partir do
pensamento de Karl Marx. Desenvolveremos melhor, neste ensaio,
a terceira tendência.
Todavia, é importante que se disserte sobre os pontos positivos
e os negativos da abordagem sociológica para o estudo das Sagradas
Escrituras. Para isso, o documento 134 da Pontifícia Comissão Bíblica,
do ano de 1993, intitulado “A interpretação da Bíblia na Igreja” é um
instrumento sóbrio e eficaz.
O referido documento admite que
Os textos religiosos estão unidos por uma conexão de relação recíproca
com as sociedades nas quais eles nascem. Esta constatação vale evidentemente para os textos bíblicos. Consequentemente, o estudo crítico da
Bíblia necessita um conhecimento tão exato quanto possível dos comportamentos sociais que caracterizam os diversos ambientes nos quais
as tradições bíblicas se formaram. Esse gênero de informação sócio-histórica deve ser completado por uma explicação sociológica correta, que
interprete cientificamente, em cada caso, o alcance das condições sociais
de existência (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 66-67).
3
Cf. O Capítulo 5 de LARA, 2010.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
221
Adriano de Souza Viana
Portanto, a abordagem sociológica é reconhecida como necessária
para o enriquecimento do estudo crítico e sério da Bíblia.
No primeiro terço do século XX a Escola de Chicago estudou a situação
sócio-histórica da cristandade primitiva, dando assim à crítica histórica
um impulso apreciável nesta direção. No decorrer dos vinte últimos anos
(1970-1990), a abordagem sociológica dos textos bíblicos tornou-se parte
integrante da exegese (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006,
p. 67).
A ciência sociológica dá modelos que permitem aos historiadores
das épocas bíblicas uma significativa capacidade de renovação, embora esses modelos acabem sendo alterados para serem aplicados à
realidade estudada.
O texto do documento também avalia os riscos e limites da abordagem sociológica para a exegese bíblica.
Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, é previsível encontrar algumas dificuldades logo que se
quer aplicar seus métodos a ambientes históricos que pertençam a um
passado longínquo. Os textos bíblicos e os extra-bíblicos não fornecem
forçosamente uma documentação suficiente para dar uma visão de conjunto da sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a dar
mais atenção aos aspectos econômicos e aos institucionais da existência
humana do que às suas dimensões pessoais e religiosas (PONTIFÍCIA
COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 69).
Dessa forma, podemos assumir uma postura interpretativa com
maior consciência do enfoque que se escolhe para elucidar uma interpretação. No presente artigo propomos uma abordagem sobre o
tema. Porém, ela pode se apresentar com limites e lacunas. Não é absoluta. Talvez se enfatizem demasiadamente as estruturas econômicas
222
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
e societárias em detrimento dos aspectos propriamente teológicos e
religiosos que o texto bíblico se propõe a narrar.
Faz-se, aqui, a opção por correr o risco em propor uma interpretação com limites. No entanto, são apresentadas as razões do método
que se escolheu e se prossegue na exposição do tema do ensaio.
1.1 A perspectiva sociológica de Karl Marx
– luta de classes
Expostas as características definidoras da interpretação sociológica da Bíblia, desenvolver-se-á agora, de forma mais densa, a
perspectiva sociológica de Karl Marx, que é uma das tendências das
abordagens sociológicas que se usa para o estudo de textos bíblicos
no método histórico-crítico.
Para a apresentação dessa tendência de pesquisa nas ciências
bíblicas é fundamental a referência a um autor clássico do estudo
sociológico da Bíblia hebraica.
No âmbito do Antigo Testamento, ficou famoso o equilibrado estudo de
N. K. Gottwald sobre as origens de Israel (The Tribes of YHWH, Nova
York, Orbis Books, 1979), que procura explicar o surgimento do povo
de Israel mediante o modelo das oposições cidade/campo, agricultores/
classes urbanas cananéias (sic), isso é, por meio do sistema de luta de
classes (BÍBLIA, 2005, p. 215).
Fica claro que Gottwald foi o que melhor estudou e apresentou
uma abordagem marxista da história de Israel numa releitura dos textos bíblicos a partir de um método específico. Ele foi o que melhor
desenvolveu uma perspectiva sociológica com base no pensamento
de Karl Marx.
Marx propõe “uma concepção dialética, conflitiva e fundamentalmente econômica das relações sociais (LARA, 1010, p 61)”. Para ele,
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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Adriano de Souza Viana
As classes sociais não são meros agrupamentos sociais, mas grupos
com interesses e posições objetivamente definidas na relação direta
que estabelecem entre si, mediante o lugar que ocupam na apropriação dos meios de produção e na esfera da divisão social do trabalho.
Os conflitos de ordem cultural, intelectual e religiosa são vistos como
produtos dos conflitos sociais básicos na esfera da ordem econômica
e social (LARA, 2010, p. 62).
Com base nessa postura sociológica de Marx, que enfatiza a luta
ideológica entre as classes de uma sociedade, é que Gottwald interpreta a relação entre campo e cidade. Ele propõe olhar para essas
realidades como dois grupos em conflito, que apresentam interesses
diferentes, e em alguns casos, teologias diferentes, pois apresentam
maneiras antagônicas de se relacionar com seu “Deus”.
Neste modo de examinar a situação política no antigo Oriente Próximo,
é a cidade que permanece em posição oposta à região rural; as classes
monárquicas e aristocráticas centralizadoras e estratificadas discordam
das populações de camponeses e pastores. Quer a população rural se
ocupasse em primeiro lugar na lavoura, quer na pecuária, quer em alguma
associação das duas, todas elas partilhavam muito mais em comum do
que faziam com as elites urbanas. Sem dúvida, a população rural poderia admitir, relutantemente, que as obrigações para com a autoridade
central eram inevitáveis – ou até, às vezes, que valia a pena pelo lucro
em segurança que proporcionava, caso as extorsões se mantivessem até
um limite tolerável ou caso alternativa de sujeição a uma potência ainda
mais onerosa de fora fosse com isso impedida. De qualquer forma, a
região rural não admitia, inquestionavelmente, este domínio por parte
da cidade (GOTTWALD, 1986, p. 455-456).
Sendo assim, vê-se que podemos nos aproximar de alguns textos
bíblicos do Primeiro Testamento e ver neles um conflito implícito de
um contexto social. Gottwald nos ajuda a ler com um olhar crítico,
que tem como base a matriz sociológica marxista, para interpretarmos
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
as Sagradas Escrituras. Ao buscarmos resgatar a relação entre campo
e cidade na Bíblia hebraica, podemos observar com mais clareza a
disputa ideológica entre o grupo urbano e o grupo rural, que numa
leitura sem um método específico pode passar despercebida.
Para finalizar este tópico do presente artigo, é importante destacar
que também outros estudiosos se propõem a descrever essa relação
entre grupos sociais. Com isso tentam reconstruir o contexto social
que os textos bíblicos apresentam explícita ou implicitamente.
José Airton da Silva, escrevendo sobre a temática da leitura socioantropológica das Sagradas Escrituras, faz a seguinte observação
(que vai ao encontro da ideia que aqui se desenvolve):
Já o sociólogo alemão Ferdinad Tönnies (1855-1936) formulou a distinção, torna clássica, entre dois tipos básicos de organização social: a
comunidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellschaft). As relações de
comunidade, típicas de grupos de caçadores/coletores e hordas – portanto, grupos relativamente pequenos e pré-industriais – baseiam-se na
coesão nascida do parentesco, das práticas herdades dos antepassados
e dos fortes sentimentos religiosos que unem o grupo. Já as relações de
sociedade são típicas de grupos que vivem vida urbana desenvolvida,
organizam-se em Estados e possuem uma complexa divisão do trabalho
(SILVA, 2009, p. 393).
Portanto, a relação entre campo e cidade pode em outros estudos
ser apresentada como uma relação entre “comunidade” e “sociedade”.
Isso fica evidente na distinção proposta por Ferdinard Tönneies. Aqui,
faz-se a opção de manter os conceitos campo e cidade.
2 Campo e cidade no Primeiro Testamento
Percorramos agora as variadas citações bíblicas que nos apresentam o conflito entre campo e cidade. As perícopes citadas seguirão
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Adriano de Souza Viana
a tradução e notas da Bíblia de Jerusalém. A apresentação seguirá uma
ordem canônica. Todavia, é importante deixar claro que esse ensaio
não esgota o assunto nas Sagradas Escrituras; foram escolhidos os
textos mais relevantes para esta pesquisa.
2.1 Gn 4, 1-17 – Caim e Abel
A primeira narrativa bíblica que nos mostra o conflito estabelecido entre grupos sociais distintos está logo nas páginas iniciais do
livro de Gênesis. A famosa disputa entre os dois filhos de Adão e Eva,
do capítulo quatro, é o texto que introduz toda nossa reflexão de uma
abordagem sociológica do Primeiro Testamento.
Numa leitura desatenta e sem um método mais específico, quando
lemos Gn 4, 1-17 percebemos apenas uma briga entre dois irmãos,
que termina num fratricídio, ou seja, um irmão mata outro irmão.
Porém, o texto vai muito além. Com ajuda da abordagem sociológica
podem-se destacar alguns detalhes do texto que às vazes nos passam
despercebidos.
Em primeiro lugar, é de notar a apresentação que o texto faz dos
dois irmãos. O versículo 2 é fundamental: “Abel tornou-se pastor de
ovelhas e Caim cultivava o solo”. Com isso fica claro que estamos
falando de dois grupos sociais distintos, os pastores e os agricultores.
Um grupo nômade, que vivia da domesticação de pequenos rebanhos,
que celebrava suas festas familiares com a carne de cordeiro. E outro
grupo sedentário, que praticava a agricultura, que celebrava suas festas
com o fruto do solo, o pão, o vinho.
Pode-se afirmar que os autores dessa narrativa bíblica tendem claramente a defender o grupo dos pastores. Provavelmente os autores
dessa história, que teve uma longa transmissão na cultura oral antes de
se tornar texto escrito, eram descendentes de pastores. Devido a isso, o
texto exalta teologicamente o pastor Abel, que agrada a Deus, e diminui
o camponês Caim, que não agrada a Deus e torna-se um assassino.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
No entanto, o texto afirma em sua teologia que Deus faz uma
aliança de proteção a Caim, ou seja, Deus ama e protege também os
camponeses e seus descendentes.
Em segundo lugar, ao olhar para o versículo 17, vemos algo que
nos interessa mais substancialmente. Caim é apresentado como aquele
que “tornou-se um construtor de cidade”. Esse detalhe é importante.
O conflito anteriormente estabelecido entre dois grupos rurais (pastores e camponeses) agora é transferido para uma rixa diferenciada. O
assassino invejoso é o grande pai da “cidade”. Para o autor do texto, os
ambientes urbanos não se originam de algo que agrada a Deus, mas sim
das limitações humanas, dos defeitos mais repugnados numa sociedade.
Dessa maneira, nota-se no texto de Gn 4 conflito entre grupos
sociais diferentes, em que marcadamente se exalta o grupo do interior
rural ligado à pecuária e à vida pastoril.
2.2 Gn 11, 1-9 – Babel
Outro texto paradigmático para entendermos a relação entre
campo e cidade na Bíblia está também nas narrativas míticas de suas
primeiras páginas. Gn 11, 1-9 narra a pretensão ambiciosa e fracassada
dos grupos urbanos. Segundo esse texto, o povo da cidade pretendia
chegar ao céu pelas suas próprias forças. Com essa ideia, mostra-se
também a pretensão de suplantar o próprio Deus: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamos
um nome e não sejamos dispersos sobre a terra!”
A narrativa é também um contra-mito, pois quer ser uma resposta
irônica à exaltada Babilônia (LÓPES, 1998, p. 27). O texto joga com a
assonância do nome da capital (Bab-ilim = “Porta de Deus”) e o verbo
balal (= “confundir”). Babel é a porta da confusão. O texto mostra
que Deus decide descer e fomentar confusão entre os construtores
da cidade e os da torre. O desentendimento das línguas é um mito
etiológico para explicar as origens dos variados idiomas dos povos,
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Adriano de Souza Viana
mas também pode ser visto como uma crítica campesina à cidade, pois
é nela que moram as pessoas que querem ser “deuses” e “deusas”, e
que na verdade só disseminam a confusão entre todos.
2.3 Gn 12, 10ss – mulheres objetos sexuais; Gn 20; Gn 26
Uma narrativa que se repete no livro do Gênesis é fundamental
para expor o desafeto entre campo e cidade. Essa narrativa se encontra em Gn 12, 10ss; Gn 20 e Gn 26. Os três textos citados falam de
pastores que vão à cidade em tempos de fome e temem que o povo
da cidade, com o intuito de lhes roubar as mulheres, os mate.
Não nos deteremos na historicidade factual dos textos, apenas
apontaremos o que nos interessa para olharmos o contexto social dos
povos ligados a Israel e sua construção étnica.
Lendo os textos referidos, notamos que a avaliação que se faz
do povo da cidade não é a melhor. As narrativas apontam que os
grupos urbanos são violentos, pouco hospitaleiros, e que matam as
pessoas do interior para explorar sexualmente suas mulheres. Essa
interpretação pode parecer, num primeiro momento, exagerada. No
entanto, se levarmos em conta que a mesma narrativa se repete três
vezes em Gênesis, é de supor com grande segurança que isso fazia parte
do contexto de vida (Sitz in leben) daqueles povos.
Mais uma vez vemos a postura anticitadina do texto da Bíblia.
A perspectiva que mostra Deus ficando do lado do povo da roça é
clara. Principalmente nesse caso, Deus defende as mulheres. Numa
cultura patriarcal, androcêntrica, as mulheres sofriam de maneira mais
acentuada a discriminação e a dor dos conflitos sociais.
2.4 Gn 13 – Ló nas cidades, Abraão no campo
Continuando nossa apresentação dos variados conflitos entre a
classe urbana e a rural, nas Sagradas Escrituras vemos uma referência
também no capítulo 13 de Gênesis.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
Temos uma riqueza a ser vasculhada nessa perícope, porém, tem-se que ser sucinto. O texto quer ser também um mito etiológico que
fala da origem do conflito entre israelitas, descendentes de Abraão,
e moabitas e amonitas, descendentes de Ló. Abraão está ligado ao
grupo que fica no campo, na criação de ovelhas; Ló, seu sobrinho,
vai em direção às cidades e se estabelece nelas.
O texto fala que tudo foi resolvido com a separação do tio e do
sobrinho. “Assim eles se separam um do outro. Abrão estabeleceu-se na terra de Canaã e Ló estabeleceu-se nas cidades da Planície; ele
armou suas tendas até Sodoma. Ora, os habitantes de Sodoma eram
grandes criminosos e pecavam contra Iahweh.”
Depois do conflito, Deus faz aliança com Abraão, que ainda é apresentado como Abrão, e ele vai se estabelecer em um lugar sagrado, um
lugar de culto. Aqui, faz-se a seguinte observação: “O lugar sagrado da
árvore grande de Mambre é marcado pelo conflito de Abraão com Ló.
Conflito entre cidade e campo (Gn13,18)” (GALLAZZI, 2007, p. 187).
Com isso, já introduzimos o tópico seguinte, que fala da avaliação
bíblica da cidade de Sodoma e Gomorra, cidades onde foi morar Ló.
2.5 Gn 19 – Sodoma e Gomorra
Como citamos acima, Gn 13,13 afirma que “os habitantes de
Sodoma eram grandes criminosos e pecavam contra Iahweh”. Nota-se que o texto diz que os habitantes da cidade são criminosos e desagradam a Deus, na mesma lógica que se apresentou Caim. É uma
crítica camponesa aos grupos urbanos.
Gn 19 apresenta as cidades de Sodoma e Gomorra como os centros da perdição e dos males que podem existir sobre a face da terra.
Por isso, o texto afirma que Deus decide destruir definitivamente
essas duas cidades.
Não há como fazer grandes conjeturas históricas sobre essas
cidades. Aqui importa apenas demonstrar que com uma abordagem
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Adriano de Souza Viana
sociológica vê-se o conflito entre campo e cidade. E que os textos são
críticos aos grupos urbanos e exaltam os grupos camponeses.
2.6 Js 12 – vitória sobre os reis das cidades-Estado
Outra referência clara ao conflito entre o campo e a cidade está
nas narrativas míticas do Livro de Josué. De maneira generalizada podemos falar que o texto narra a conquista da Terra Prometida após a
vitória sobre as cidades-Estado cananeias.
Percebe-se que o texto tem a intenção de afirmar que, para que a
promessa de Deus se realize, é preciso que as estruturas urbanas que
causam opressão e escravidão sejam destruídas. Pois, do contrário, a
experiência do Êxodo e da Aliança não será realizada como promessa
na terra.
A nova organização da vida do povo passa também pela superação e destruição de tudo o que vem da cidade, dos grupos urbanos
vassalos do Egito. Partindo disso, Js 12 apresenta a lista de todos os
reis das cidades-Estado que foram vencidos. Não há historicidade
nessas narrativas, há apenas uma intenção teológica de afirmar que
Deus apoia o conflito dos camponeses oprimidos contra os opressores do mundo urbano cananeu. Provavelmente, muitas das cidades
cananeias não foram destruídas pelos hebreus, como a arqueologia
ajuda compreender hoje.
2.7 Os profetas e a cidade – Is 1,21ss; Mq 1,6; 3,12; Ez 16, 23
De maneira bem breve, é importante destacar as críticas de alguns
profetas feitas às cidade, sobretudo às capitais.
Em Is 1,21ss nota-se que a capital Jerusalém é apresentada como
infiel a Deus, prostituta e povoada de assassinos. Toda a corrupção e o
mal são descritos pelo profeta nas suas críticas à cidade. No Segundo
Testamento temos um pouco da herança dessa profecia agressiva a
Jerusalém; em Lc 13, 31-35 encontramos a crítica de Jesus à capital.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
Miqueias, contemporâneo de Isaías, também esperava a ruína das
capitais. Em Mq 1,6 temos o desejo de que Samaria, a capital do reino
do norte, se transforme em uma plantação de vinhas, ou seja, seja
dominada pelos camponeses. E em Mq 3,12 temos a mesma profecia,
o mesmo desejo descrito para Sião, onde está a capital de Jerusalém.
Na mesma avaliação negativa da capital e da cidade, o profeta
Ezequiel narra a história simbólica de Jerusalém em tempo de exílio
e a apresenta como uma prostituta, uma infiel, onde há o “acúmulo
de toda maldade” (Ez 16, 23).
Portanto, os textos proféticos também são críticos das sociedades
urbanas, embora não se tenham limitado somente a elas. Eles também
fizeram suas críticas aos grupos rurais que espalharam o mal sobre a
terra de Israel.
2.8 Campo e cidade no Cântico dos cânticos
Finalizando essa exposição de textos do Primeiro Testamento que
nos ajudam a remontar o conflito social entre campo cidade, destaca-se
uma chave de leitura para interpretação do Cântico dos cânticos.
Nesse texto onde o eu lírico principal é uma mulher, Sulamita,
vemos algumas perícopes e detalhes que nos ajudam a reconstruir um
contexto conflitivo e mostrar a luta entre a classe rural e a urbana.
Em Ct 1, 5-7 temos a apresentação de Sulamita como uma camponesa ligada à agricultura e ao pastoreio. Elementos sociais de divisão
do trabalho que já apareciam em Gn 4, aqui são condensados.
Ct 3, 2-3 dá a entender que na cidade ela não encontra o amado.
Ou seja, essa camponesa que busca seu amado, buscando a paz, tentando dar-lhe paz4 e receber paz com ele, não consegue fazer isso na
Cf. RIZZANTE, 1995, n. 21. O referido artigo também pode se lido em
GALLAZZI, 2008, p. 53-60.
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Adriano de Souza Viana
cidade. O amor não pode ser encontrado na cidade. A paz não pode
ser experimentada na cidade.
Por fim, quando ela insiste em buscar o amor e a paz na cidade,
é agredida pelos guardas. Ct 5, 7 fala da agressão que a camponesa
sofre pela estrutura militar dos grupos urbanos.
Com uma abordagem sociológica podemos destacar desses
versículos em Cântico dos cânticos elementos que nos fazem refletir
sobre os conflitos que existiam entre e os grupos rurais e os grupos
urbanos. E, como afirmamos no tópico 2.3, é de considerar que as
mulheres sofriam de maneira mais acentuada a discriminação e a dor
dos conflitos sociais.
Conclusão
Em suma, ao chegar ao fim deste ensaio, conclui-se que o conflito
entre cidade e campo está marcado nas páginas do Primeiro Testamento e que os textos se apresentam numa lógica bastante avessa à
cidade. No entanto, não se pretende absolutizar essa visão. Não se
quer criar uma imagem negativista da vida urbana ou dos grupos citadinos. Sabe-se que a vida urbana é a que predomina na organização
social hodierna.
Mas, também, é de notar que, quando essa estrutura se torna
opressora e causa o mal, tanto aos grupos do interior como às minorias urbanas, é de se esperar que faça críticas eficazes e sérias, para
que reavaliemos nossa organização em sociedade.
Portanto, a abordagem sociológica das Sagradas Escrituras tem
muito a contribuir com os estudos teológicos. Este ensaio apenas
propôs-se a um corte epistêmico para um primeiro contato com essa
abordagem.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
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Oikos, 2008b.
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paz: uma chave de leitura do Cântico dos Cânticos. In.: Ribla, n. 21.
Petrópolis: Vozes, 1995.
COUNTRY AND CITY: A SOCIOLOGIC APPROACH IN THE
OLD TESTAMENT
Abstract:
This article presents a sociologic approach of the Old Testament. It describes concisely the sociologic interpretation of the Bible and elucidates
several quotations, in which conflicts between urban groups and rural
groups are perceived. It is observed in the development of the text that
the Bible narrates, in a more highlighted manner, postures against the city,
defending the interests of the group from the country.
Keywords: Country, city, sociologic approach, class struggle.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS
Título – Local – Periodicidade
1.Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral
2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da
PUC-Rio – Bimestral
3.Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral
4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral
5.Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
6.Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento –
RJ. – Semestral
7.Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral
8.Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo
Superior – Semestral
9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral
10.Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA –
Semestral
11.Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
12.Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral
13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia
e Bioética – Semestral
14.Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral
15.Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUCSP -Semestral
16.Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ
– Semestral
17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral
18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral
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Revistas em Permutas
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral
20.Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral
21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO
– Anualmente
22.Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES –
Semestral
23.Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica
Batista de Campinas – Semestral
24.TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral
25.Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral
26.Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral
27.Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL
Título – Local – Periodicidade
1.Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador
– Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA
Título – Periodicidade
1. Caros Amigos – Mensal
2.Concilium – Bimestral
3. Estudos Bíblicos – Trimestral
4. Família Cristã – Mensal
5. Grande Sinal – Bimestral
6. Mundo e missão – Mensal
7. Perspectiva Teológica – Quadrimestral
8. REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral
10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral
11. Revista Vitória – Bimestral
12.RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana –
Trimestral
13.SEDOC – Bimestral
14. Tempo e presença – Bimestral
15. Revista de Koinoina – Bimestral
16.Síntese – Quadrimestral
CADERNOS
Título – Periodicidade
1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS
Título – Local – Periodicidade
1.Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral
2.Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral
3.Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche –
Bimestral
4.Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús
Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral
5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del
Vaticano – Quadrimestral
6. Il Regno: Bologna – Quinzenal
7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral
8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
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Revistas em Permutas
9.Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia –
Trimestral
10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral
11.Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências
Morales – Madrid – Trimestral
12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral
13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral
14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral
15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française
– França – Trimestral
16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral
17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral
18.Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França
– Trimestral
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