colombo e a demanda de jerusalém

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COLOMBO
E A DEMANDA
DE JERUSALÉM
Carol Delaney
Columbus and The Quest for Jerusalem
Traduzido do inglês por
Luís Santos
Conteúdos
Prólogo
Introdução :: As paixões de Colombo
11
13
Capítulo Um :: Prenúncios do Apocalipse
23
Capítulo Dois :: Descobrir os “segredos do mundo”
45
Capítulo Três :: O plano começa a ganhar forma
73
Capítulo Quatro :: O sonho torna-se realidade
103
Capítulo Cinco :: Dias de maravilha
131
Capítulo Seis :: Triunfo e desastre
163
Capítulo Sete :: Paixões rebeldes: As colónias
197
Capítulo Oito :: Paraíso encontrado e perdido
225
Capítulo Nove :: Privilégios e profecias: A aposta de Colombo no futuro
249
Capítulo Dez :: Encalhado
269
Capítulo Onze :: A paixão final: Desilusão e morte
295
O depois :: Colombo, Apocalipse e Jerusalém
311
Agradecimentos
323
Apêndice :: O que aconteceu aos principais intervenientes
325
Notas
333
9
Capítulo Um
Prenúncios do Apocalipse
Cristóvão Colombo nasceu dois anos antes de um acontecimento que
viria a mudar o mundo e, em grande medida, a estabelecer o rumo
da vida do navegador. A queda de Constantinopla às mãos dos otomanos, em 1453, foi um golpe do qual a cristandade nunca conseguiu
recuperar totalmente. Essa cidade gloriosa – sede do Império Bizantino durante mais de mil anos e da Hagia Sophia (Igreja da Santa
Sabedoria), a mais famosa igreja do cristianismo – ficou em ruínas,
com o imperador morto e os habitantes chacinados ou aprisionados.
Quando a notícia do saque chegou à Europa, Eneas Silvio Piccolomini, que anos depois se tornaria o papa Pio II, descreveu a queda da
cidade como sendo “a perda de um dos dois olhos da Igreja” – sendo
o outro Roma1.
Constantinopla fora um importante ponto de paragem para os
peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, acima de tudo por ser o
repositório de uma série de relíquias sagradas. Os peregrinos ansiavam por poder ver objetos como os fragmentos da Verdadeira Cruz;
os restos mortais de Ana, a mãe da Virgem Maria; e os ossos de São
Lucas, trazidos de Jerusalém por Helena, mãe de Constantino I, fundador e primeiro imperador da cidade epónima. Helena, que fizera a
sua peregrinação a Jerusalém em 326, também encontrara o local
onde Jesus fora enterrado e ordenara que aí se construísse uma
igreja, o Santo Sepulcro.
Além da sua herança religiosa, Constantinopla era também a base
de mercadores europeus, em especial os genoveses, que dominavam
23
COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
Bó
sfo
ro
o comércio com o Oriente graças aos seus entrepostos em portos
do mar Negro. Agora, em meados do século XV, com a queda de
Constantinopla, a rota comercial com o Oriente e a rota de peregrinação com Jerusalém ficara encerrada para o Ocidente. Tal como
Jerusalém, Constantinopla estava nas mãos dos muçulmanos. Na
luta entre o cristianismo e o islamismo, os muçulmanos pareciam
estar a vencer. Muitos cristãos viram este facto como sinal de que o
fim do mundo se aproximava rapidamente. Sobre a Europa caía uma
mortalha.
Os otomanos, por seu lado, estavam jubilantes. Tinham finalmente
capturado a “Kizil Elma” (Maçã Vermelha ou Dourada) dos seus
sonhos2. Embora desde há algum tempo os muçulmanos se viessem
a espalhar pela Ásia Menor, os otomanos, conhecidos entre eles como
ghazis, ou guerreiros sagrados, tinham chegado mais longe. Em 1326
alcançaram o mar de Mármara, podendo ver Constantinopla do outro
lado. Almejavam esse prémio não só por causa dos edifícios imponentes, do luxo e dos conhecimentos, e da importância simbólica, mas
também devido à sua posição estratégica.
Constantinopla, atual Istambul, situa-se nas colinas sobranceiras
ao ponto onde se encontram três cursos de água: o mar de Mármara,
que atravessa os Dardanelos em direção ao Egeu; o Corno Dourado,
Mar Negro
Mar de
Mármara
Mar Egeu
Mar de
Mármara
Mar
Mediterrâneo
Localização estratégica de Constantinopla. Mapa preparado por Lynn Carlson, GISP.
24
PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
uma enseada no mar de Mármara que divide a cidade; e o Bósforo,
um estreito que liga o mar de Mármara ao mar Negro. Assim, quem
controlasse Constantinopla deteria o poder sobre as viagens e o
comércio a partir dos portos do mar Negro com destino aos do Mediterrâneo e mais além. Embora o Império Bizantino se tivesse contraído consideravelmente ao longo dos anos, pouco mais abrangendo
do que a própria cidade, Constantinopla era considerada inexpugnável. Era protegida por quilómetros de muralhas de pedra com mais de
quatro metros de espessura e doze de altura, entremeadas com torres
regulares com o dobro da altura. Havia três linhas de muralhas ao
todo, cada uma separada por um fosso. Essas fortificações viriam a
ser postas à prova. Já por várias vezes os otomanos tinham tentado
tomar a cidade, mas sem qualquer êxito. Contudo, nunca desistiram
dos planos, tendo estabelecido objetivos a longo prazo. Em preparação
do cerco a Constantinopla tinham conquistado vastas extensões de
território na Europa: de Gallipoli a Adrianópolis, de Varna, no mar
Negro, à Grécia, e depois ao Kosovo e à Bósnia, em torno do Adriático
a partir de Itália, até que Constantinopla ficou cercada.
O ambicioso jovem sultão conhecido como Mehmet II decidiu
que a “Maçã” estava finalmente madura para ser colhida. Em finais
de 1452 levou o seu exército de mais de 80 mil homens desde a capital, em Adrianópolis, até Constantinopla. Instalou as tropas em
Rumeli Hisari, uma fortaleza que os seus engenheiros tinham
construído rapidamente nas margens do Bósforo, poucos quilómetros a norte das muralhas da cidade. Rumeli Hisari, ou “fortaleza
romana”, foi edificada no ponto mais estreito do Bósforo, conhecido
como Boğazkesen (corta pescoços), exatamente à frente da Anadolu
Hisari, a fortaleza anatólia, construída pelo seu bisavô, Beyazid I.
A partir dessas duas fortificações, os otomanos poderiam intercetar
quaisquer navios chegados do mar Negro, cobrando tarifas ou confiscando os bens transportados e capturando as tripulações. No início de 1453 estavam prontos para dar início ao cerco.
Nos acampamentos otomanos, as fogueiras ardiam a noite inteira e
os soldados eram deixados num estado violento constante graças ao
ritmo dos tambores, às notas agudas da zurna e aos brados de guerra
que dificultavam o sono dos habitantes da cidade. Dispuseram igual25
COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
mente os canhões e deram início a um bombardeamento incessante
das muralhas, numa estratégia de “choque e temor”.
O barulho e a vibração das armas, as nuvens de fumo, o
impacto devastador de pedra contra pedra assustavam os
defensores veteranos. Para a população civil era um vislumbre do apocalipse iminente e o castigo pelos pecados… [era]
segundo um cronista otomano, “como o terrível sopro das
trombetas da ressurreição”3.
Face a toda esta atividade, os bizantinos no interior da cidade
ficaram aterrorizados. O imperador Constantino XI escreveu uma
carta desesperada ao papa Nicolau V, onde prometia unificar as
Igrejas Ortodoxa Oriental e Católica Ocidental, caso o Santo Padre
enviasse prontamente reforços. Embora tanto os católicos como os
ortodoxos fossem cristãos, a inimizade entre eles era de longa data,
com origem na divisão dos dois ramos no século XI. Contudo, a
“unidade” não representaria a igualdade entre os dois ramos, mas
sim a submissão da Igreja Ortodoxa à supremacia de Roma. Muitos bizantinos consideravam-no um preço demasiado elevado a
pagar pelo apoio de Roma, mas estavam em grande inferioridade
numérica. Embora a população da cidade rondasse as 40 mil pessoas, só poderiam contar, no máximo, com 5 mil gregos disponíveis para a guerra. É verdade que lá residiam igualmente cerca de
2 mil estrangeiros – alguns venezianos e florentinos, mas na sua
maioria genoveses que viviam em Gálata, do outro lado do Corno
Dourado, na parte grega da cidade –, mas a sua lealdade não era
garantida, já que se tratava de cristãos latinos e não ortodoxos,
como os gregos.
Mesmo assim, segundo uma carta enviada pelo papa ao arcebispo
Leonardo, que fora convocado de Quios para ajudar nas negociações
para a unificação, o imperador e o senado tinham concordado com
a união, a qual foi aparentemente confirmada em meados de dezembro de 14524 . Durante um breve período, as hostilidades amainaram
um pouco, se não entre sacerdotes e teólogos, pelo menos entre o
povo em risco da cidade. Festejaram quando, em janeiro de 1453,
26
PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
um navio genovês chegou à cidade, carregado de alimentos, abastecimentos e 700 soldados – 400 de Génova e três centenas da colónia
de Quios, uma ilha no mar Egeu. A chegada garantiu um incentivo
bem necessário ao moral de quem se encontrava na cidade, especialmente ao saberem que entre os soldados de Quios se encontrava
Giovanni Giustiniani, qualificado para a fortificação e reparação de
muralhas danificadas. Sabendo que essa competência seria essencial durante o cerco que se avizinhava, o imperador bizantino Constantino XI elevou-o rapidamente a imediato. Alguns dos genoveses
em Gálata juntaram-se para combater ao lado de Giustiniani,
enquanto outros correram para o navio, esperando poder regressar
a Génova. Claro que a maioria dos genoveses em Constantinopla
não queria perder o comércio lucrativo com a colónia do mar Negro
em Caffa, na Crimeia. Luciano Spinola, um dos mais destacados
mercadores, convenceu-os a permanecerem neutros, na esperança
de que os otomanos, tal como os bizantinos, fossem apreciadores de
luxos como o caviar e o esturjão que forneciam através dos seus
negócios.
Chegou a primavera. As cegonhas regressaram da temporada passada em África e o perfume das rosas encheu o ar e as igrejas. Contudo, esses sinais alegres não dissipavam o mal-estar de quem se
encontrava encurralado no interior da cidade. A juntar à ansiedade,
no início de abril, a Semana Santa, alguns pequenos terramotos
abalaram-lhes ainda mais os nervos já de si instáveis. Os soldados de
Mehmet desde há semanas que provocavam pequenas escaramuças
ao longo das muralhas, como forma de cansar os cristãos antes da
invasão. Apesar do seu número reduzido, os cristãos mantiveram
uma certa vantagem durante algum tempo. O fogo dos canhões otomanos tinha danificado as muralhas sem as destruir, e quando os
soldados as tentavam escalar, os cristãos derrubavam-nos com pedras.
Mesmo assim, os ataques constantes e a vigilância permanente exauriram os defensores.
Como estratégia alternativa, os otomanos começaram a abrir túneis
sob as muralhas. Os bizantinos depressa descobriram alguns dos
túneis e lançaram-lhes fogo, capturando soldados e obrigando-os a
revelar a localização de outras escavações. Tinham igualmente noção
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COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
de dois pontos vulneráveis nas muralhas – um no Portão de São
Romano, situado numa depressão causada pelo rio Lico, e o outro
num ponto em que as muralhas se juntavam e descreviam um
ângulo reto, por trás do Palácio de Blaquerna. Os otomanos decidiram concentrar-se no Portão de São Romano, pois a depressão deixava as torres a um nível mais baixo do que as colinas opostas, e
também por o leito do rio dificultar a construção de um fosso maior.
De imediato posicionaram o seu canhão monstruoso. Tinha mais de
oito metros de comprimento – sendo provavelmente o maior canhão
construído na altura – e era capaz de projetar uma bola de pedra com
quase quinhentos quilos contra a muralha, ou por cima desta. Nunca
se vira nada assim. Os otomanos demoliram parte da muralha, mas
durante a noite, Giustiniani e os seus ajudantes conseguiram repará-la, tendo o assalto prosseguido.
Perto do Corno Dourado, a frota otomana encontrava-se igualmente num impasse. Cientes de que a cidade era mais vulnerável
através do Corno Dourado, os bizantinos tinham disposto um enorme
dique de correntes, concebido por um genovês, ao longo da entrada,
impedindo assim que os navios otomanos entrassem e atacassem
ambos os lados da cidade. Foi uma estratégia inteligente, mas não
uma panaceia, já que precisavam desesperadamente de mais soldados
e suprimentos da Europa.
Em Roma, o papa atrasara o envio de ajuda. Partira do princípio
de que a cidade estava bem fortificada e não acreditava que Deus a
deixasse cair nas mãos dos infiéis, estando à espera de uma garantia
de que a “unificação” entre as Igrejas Grega e Romana se consumasse antes de enviar ajuda. Em finais de março, o papa enviou
finalmente três navios genoveses, mas as embarcações foram apanhadas por uma tempestade perto de Quios e só chegaram a Constantinopla a 20 de abril, altura em que enfrentaram uma frota de
navios e de trirremes otomanos. Aqueles que se encontravam em
terra, entre eles Constantino e Mehmet, nada puderam fazer além
de assistir ao desenrolar da batalha. Contra todas as probabilidades,
os marinheiros genoveses conseguiram repelir os navios otomanos
e passar pelo dique que lhes fora aberto, entrando no Corno Dourado,
onde descarregaram os suprimentos tão necessários5. O êxito dos
28
PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
genoveses embaraçou profundamente Mehmet II, que respondeu
com uma forma engenhosa de contornar o dique.
A meio da noite de 22 de abril, os otomanos levaram a cabo uma das
mais espantosas manobras militares da altura, talvez mesmo de todos
os tempos. Sobre troncos ensebados fizeram rolar 72 navios desde o
Bósforo, sobre a colina de Gálata até ao Corno Dourado, no interior do
dique, de onde poderiam facilmente bombardear a cidade. Quando os
cristãos acordaram e viram o que acontecera devem ter pensado que
estavam condenados. No entanto, milagrosamente, continuariam a
repelir os otomanos durante mais um mês.
A doze de maio, as forças otomanas atacaram as muralhas do palácio com milhares de soldados e, segundo Nicolò Barbaro, testemunha
do sucedido, “estes cães turcos” investiram com “brados ferozes, como
era seu hábito, e com sons de castanholas e tamborins… levaram a
cabo um forte ataque contra as muralhas do palácio, pelo que a maioria dos que se encontravam na cidade julgaram que nessa noite a
cidade estaria perdida”6. Contudo, os cristãos mantiveram a crença de
que Deus não permitiria que a cidade caísse nas mãos dos “pagãos
malvados”, pelo menos até que se concretizasse uma profecia, atribuída ao primeiro Constantino. O imperador vaticinara que a cidade
nunca seria derrotada até que a “lua nascesse escurecida”, e como tal
nunca acontecera, os habitantes da cidade continuavam esperançosos.
Todavia, duas semanas depois, a esperança chegou ao fim. A 24
de maio verificou-se um eclipse lunar, seguido de chuva torrencial,
nevoeiro e uma luz estranha que pairou sobre Hagia Sophia. Entre os
cidadãos aterrorizados espalhou-se o rumor de que “chegara o tempo
do Anticristo”, o que significava que o fim do mundo estava próximo.
Na Bíblia, o Anticristo é identificado como sendo um líder poderoso
que chegará nos últimos dias para tentar as pessoas a afastarem-se da
sua fé7. Seguir-se-á uma enorme batalha e o Anticristo será derrotado.
Cristo vai regressar para julgar tanto os vivos como os mortos e o mundo
vai acabar. Para os habitantes de Constantinopla seria fácil de imaginar
que Mehmet era o Anticristo e que o final dos tempos chegara.
Nesse momento crucial, Mehmet tentou o imperador Constantino
com condições para a rendição. Constantino recusou e ao convocar
o povo a Hagia Sophia, alertou que a grande batalha pelo destino do
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COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
mundo estava iminente. Disse-lhes que deveriam preparar-se para
morrer pela fé, pelo país, pela família e pelo soberano. Encorajados
pelas palavras do imperador, os cristãos gregos e latinos uniram-se
contra o inimigo comum, os muçulmanos. Depois de comungarem
juntos, os homens regressaram aos seus postos e as mulheres levaram água para os refrescar e recolheram pedras que seriam lançadas
contra o inimigo.
Na noite de 28 de maio, após 54 dias de cerco contínuo, o acampamento otomano ficou envolto num silêncio aterrador. Os gregos rezaram para que os otomanos tivessem desistido. Contudo, pela alvorada, quando o sol incidia diretamente nos olhos dos cristãos, os
janízaros8, o corpo de elite das forças otomanas, atacaram as muralhas, seguindo-se uma batalha feroz. Mesmo assim, os cristãos resistiram. Quando o imperador percebeu que o seu comandante-chefe
desaparecera, “foi, muito agitado, ver para onde tinha ido” e descobriu que Giustiniani fora ferido por uma flecha e abandonara o posto
nas ameias. Quando o encontrou, o imperador suplicou: “Imploro-te;
a tua fuga vai encorajar outros a fazer o mesmo. O teu ferimento não
é mortal; suporta a dor e fica no teu posto como um homem, tal como
prometeste fazer.” No entanto, Giustiniani fugiu e “enquanto fugia
percorreu a cidade a gritar ‘os turcos entraram na cidade!’9”. Ao ouvir
isso, muitos dos habitantes entraram em pânico e abandonaram os
seus postos para o seguir, na esperança de fugirem a bordo dos
navios. Posteriormente houve quem acreditasse que, se Giustiniani
tivesse ficado, a cidade talvez não tivesse sido perdida. Constantino e
os seus homens continuaram a lutar corajosamente. Diz-se que o
imperador, declarando que preferia morrer a combater pela cidade do
que viver entre os infiéis, desmontou do cavalo e se juntou à refrega.
Foi visto pela última vez, de espada em riste, a desaparecer na multidão. Pouco depois do seu desaparecimento, a muralha foi trespassada. Os soldados otomanos conseguiram entrar e logo o seu estandarte era desfraldado. A cidade caíra nas mãos dos muçulmanos.
Estava-se a 29 de maio de 1453.
Mais tarde nesse dia, o sultão Mehmet, a partir daí conhecido como
o Conquistador, cavalgou diretamente até Hagia Sophia e entrou na
igreja. Ficou espantado, já que nunca vira tamanho edifício. Era o
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PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
maior recinto fechado do mundo, tendo a cúpula mais de 55 metros
de altura (cerca de 15 andares) e 31 metros de largura. Em vez das
habituais paredes sólidas, a cúpula tinha janelas que enchiam o interior de luz. Edificada no século VI, a construção da cúpula seria única
durante quase mil anos. Parecia flutuar, levando um indivíduo próximo de Mehmet a escrever que “compete em estatuto com as nove
esferas do céu”10!
O clérigo pessoal de Mehmet subiu ao púlpito e recitou o credo
muçulmano: “Só há um Deus e Maomé é o Seu profeta”, transformando assim a igreja numa mesquita. A partir daí, Hagia Sophia
seria chamada de Aya Sofya (a interpretação turca do nome grego).
Como as imagens humanas não são permitidas nas mesquitas, os
mosaicos dourados e os frescos garridos que representavam Jesus e
os santos seriam em breve arrancados ou tapados11.
Diz-se que os danos infligidos ao edifício e à cidade terão entristecido Mehmet, levando-o a meditar sobre a natureza transitória de
todas as coisas. Contudo, ele não poderia negar aos soldados, que
lutavam desde há meses, os três dias de saque previstos na lei muçulmana caso uma cidade não se rendesse. Uma testemunha cristã
enviou um relatório macabro a um cardeal de Florença, o qual, por
sua vez, enviou uma carta ao presidente de Veneza, onde descrevia o
terrível destino de Constantinopla:
O tesouro público foi consumido, a riqueza privada foi destruída, os templos foram despojados de ouro, prata, joias, das
relíquias dos santos e de outros ornamentos preciosos. Os
homens foram chacinados como gado, as mulheres raptadas,
as virgens profanadas e as crianças arrancadas dos braços dos
pais. Quem sobreviveu a tão grande massacre foi acorrentado
para ser trocado por um resgate, ou sujeito a torturas, ou
reduzido à mais humilhante das servidões.12
As mortes entre os cristãos ultrapassaram as quatro mil, muitos
mais foram feridos e dezenas de milhares foram feitos prisioneiros.
O sangue correu pelas ruas de Constantinopla, contornando as lajes,
qual argamassa vermelha. Alguns dos cadáveres foram atirados aos
31
COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
Dardanelos, onde “flutuaram até ao mar, como melões ao longo de
um canal”13. Outros foram amontoados, já que não houve tempo de
os enterrar. O fedor era horrível, mas ainda mais terrível foi identificar os corpos de amigos e familiares, uma vez que muito tinham sido
decapitados.
Na cidade, os bizantinos culparam os latinos, alegando que “Por
termos feito a Unificação e prestado atenção ao Pontífice de Roma,
merecemos sofrer o desagrado de Deus”. Os latinos, por sua vez, julgavam que a queda da cidade se devia à teimosia e à iniquidade dos
gregos, que compararam a um “corpo que passara muitos anos separado da Cabeça”14, e que, segundo se acreditava, tinham simulado a
unificação. O fosso entre as duas alas da Igreja aprofundou-se ainda
mais. Agora, mais de dois terços dos territórios em torno do Mediterrâneo encontravam-se em mãos islâmicas e os muçulmanos estavam
bem firmados na Europa.
Contudo, mesmo ao saber da carnificina que acontecera em Constantinopla, os cristãos não se uniram à causa quando o papa Nicolau V convocou de imediato uma nova cruzada. Não mostraram entusiasmo com a noção de que primeiro teriam de tomar Constantinopla,
caso alguma vez pretendessem conquistar Jerusalém. Também não
se uniram quando os otomanos se aproximaram de cidades europeias e atacaram Belgrado em 1456. Os europeus estavam exaustos
devido à Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França e devido a
uma série de outros conflitos sangrentos. Pesasse embora o ambiente
apocalíptico, os europeus precisavam de descansar. Com as forças
exauridas, foram poucos os homens com vontade de se empenharem
numa guerra distante.
A falta de entusiasmo por uma nova cruzada era sinal do desespero
sentido na época. Em contraste, três séculos e meio antes, quando os
muçulmanos tinham destruído o Santo Sepulcro, exércitos de toda a
Europa responderam ao apelo do papa Urbano II para a Primeira
Cruzada, em 109515. O fervor ganhou fôlego com a crença de que
Jerusalém lhes pertencia, o que legitimava a sua “reconquista”.
Enquanto donos de pleno direito, acreditavam que tinham de libertar
a cidade e purificar os locais sagrados. Em finais do século XI, as frequentes recitações do Salmo 79:1 – “Senhor, os gentios invadiram a
32
PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
Vossa herança, profanaram o Vosso santo Templo, fizeram de Jerusalém um montão de ruínas” – ajudaram a inflamar os ânimos dos
cristãos medievais16 . Contudo, esse fervor tinha um lado negro. Cruzados vindos de toda a Europa planeavam reunir-se em Constantinopla, mas as justificações religiosas e ideais elevados não os impediram de cometer crimes terríveis contra os judeus, em resposta ao
boato que dizia que teriam sido os judeus de Jerusalém a incitar os
muçulmanos a destruir o Santo Sepulcro. Em cidades como Mainz,
Speyer, Worms, Trier e Colónia, torturaram, ou pura e simplesmente
massacraram quaisquer judeus que se recusassem a converter-se.
Para alguns judeus, a morte era preferível à apostasia, sendo que crónicas, liturgias e poemas da altura registam que muitos se mataram
e, inspirando-se no Abraão bíblico, “sacrificaram” os filhos antes que
os cruzados chegassem a eles17.
Entre 1096 e 1097, mais de 20.000 cruzados convergiram sobre
Constantinopla. Para evitar conflitos na cidade, o imperador bizantino Alexis enviou os cruzados para um acampamento no outro lado
do mar de Mármara, onde o primeiro confronto bem-sucedido foi a
tomada de Niceia aos muçulmanos. Esta é a cidade onde o Credo de
Niceia, a confissão de fé cristã, foi expresso pela primeira vez, no ano
de 325. Inspirados, os cruzados deram início à marcha para Jerusalém, mas o seu espírito rapidamente perdeu o ímpeto ao chegarem às
vastas extensões áridas da Terra Santa, onde encontraram pouca
água e alimentos. Não estavam em condições de entrar em combate.
Felizmente, enquanto avançavam por terra, os genoveses tinham
enviado uma frota de doze galeotas, um navio de guerra, suprimentos e 1200 cruzados, tendo chegado a Jafa, o porto mais próximo de
Jerusalém, ao mesmo tempo que os europeus terminavam a sua viagem a pé. Reforçados, os cruzados atacaram Jerusalém, tendo conquistado a cidade a 15 de julho de 1099. No entanto, mais uma vez os
cruzados foram impiedosos. Assim que entraram na cidade massacraram muçulmanos e judeus. Não obstante, os cristãos na Europa
louvaram-nos por “com espadas de piedade terem limpo da imundície ímpia o lar da pureza celestial”18 .
Após a tomada bem-sucedida da cidade, os “francos”, como eram
chamados todos os europeus em Jerusalém, fundaram o reino latino
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COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
de Jerusalém e restauraram o Santo Sepulcro e outros locais ligados à
vida de Jesus. Também criaram uma série de outros estados cruzados
no Levante – Edessa, Antioquia, Acre e Trípoli –, mas a paz mostrou-se escassa. Os príncipes desses Estados lutavam constantemente
entre si e o reino de Jerusalém exigia com frequência reforços da
Europa que ajudassem nas batalhas com os vizinhos muçulmanos.
Apesar do apoio europeu, o Reino Latino de Jerusalém não chegou
a sobreviver um século. Um a um, os fortes cruzados caíram nas
mãos de Saladino, o conquistador muçulmano, e em outubro de 1187,
após uma breve batalha, Jerusalém rendeu-se. Saladino não estava
interessado em destruir os locais sagrados cristãos. Em vez disso atribuiu a guarda do Santo Sepulcro a franciscanos, deixou que os Cavaleiros Hospitalários, uma ordem monástica fundada antes da cruzada, continuassem a prestar apoio aos peregrinos pobres e doentes
que tivessem a coragem de empreender a viagem e permitiu que o
grupo militar aristocrático conhecido como os Cavaleiros Templários
os protegessem.
Depois de tanta energia despendida na cruzada para tomar Jerusalém, a perda foi devastadora para os cristãos europeus. O papa
Urbano III morreu pouco depois de ter tido conhecimento da notícia
chocante. Diz-se que o rei Henrique II “permaneceu sem fala durante
quatro dias” e o rei Guilherme II da Sicília “envergou serapilheira e
ficou sozinho durante quatro dias”. Cardeais tornaram-se pregadores
itinerantes e o povo acorria às igrejas que permaneciam abertas noite
e dia19. Tal como frisa o estudioso Raffaele Pazzelli: “Criaram-se
grandes quadros que representavam o Santo Sepulcro pisado por
cavalos e Jesus Cristo oprimido por Maomé… e os menestréis abandonaram as suas canções de amor para lamentar a grande tragédia.20”
A rendição de Jerusalém criou uma mácula no coração dos cristãos
europeus. Sentiam-se envergonhados e muitos culparam os francos
por se guerrearem entre si e não se terem esforçado mais por defender a cidade. Também se debatiam com uma questão teológica: Como
poderia Deus ter permitido que a cidade regressasse às mãos dos
infiéis? A explicação mais aceitável, expressa bem cedo numa carta
que um mercador genovês enviara ao papa na sequência da capitulação, era a de que Deus os estava a castigar pelos seus pecados. O novo
34
PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE
papa, Gregório VIII, recuperou o tema na sua encíclica, publicada
pouco depois de ter recebido a notícia da perda:
Tendo sabido da severidade do terrível julgamento que a mão
divina exerceu sobre a terra de Jerusalém, tanto nós como os
nossos irmãos ficámos tão consternados com horror e atormentados com tal mágoa que não nos é fácil discernir como
agir ou o que fazer.21
O pontífice ordenou aos fiéis que se arrependessem dos pecados e
que se penitenciassem. Segundo o papa Gregório, Deus usara os
muçulmanos como incentivo para inspirar os cristãos a modificar
os seus hábitos corrompidos, de modo que, com um coração purificado, renovassem a luta por Jerusalém. A salvação estava no futuro.
Com a proclamação desta missão, o sentido de Jerusalém mudou.
Deixava de ser apenas a cidade terrena onde Cristo caminhara e fora
crucificado, passando a tornar-se o local do Segundo Advento, o local
dos Últimos Dias, tal como profetizado nos Evangelhos, no livro do
Apocalipse e em outros pontos da Bíblia.
A crença no Apocalipse iminente levara frades e padres a duplicar os
esforços de conversão. Em meados do século XIII, um par de frades
franciscanos, João de Plano Carpini e Guilherme de Rubruck, viajaram até à Ásia Central em missões evangélicas com o objetivo de converter o Grande Khan, na esperança de que ele se aliasse aos cristãos
na luta contra os muçulmanos. Embora o Khan pretendesse saber
mais acerca do cristianismo tinha uma visão mais ecuménica da religião e não acreditava que existisse apenas uma fé. Os frades não foram bem-sucedidos nos seus esforços de conversão. O desejo de converter o Grande Khan fez também parte da motivação da viagem de
1271, em que Marco Polo, de 17 anos, acompanhou o pai Nicolò e o tio
Maffeo ao reino do Khan em Cataio, para cumprir uma promessa que
tinham feito numa visita anterior. Devido ao interesse pelo cristianismo, o Khan pedira-lhes que levassem um frasco de óleo da lâmpada
do Santo Sepulcro. Enviara também por eles uma missiva ao papa
Gregório X, onde pedia que lhe fossem enviados cem padres que o
instruíssem e ao seu povo na fé cristã. Na viagem de regresso ao reino
35
COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM
mongol, registada em As Viagens de Marco Polo, levaram o óleo
sagrado, a par de presentes e cartas do papa Gregório X, a Cublai
Khan, neto de Gengis Khan. Contudo, os poucos sacerdotes dispostos
a acompanhá-los logo voltaram atrás, devido aos rigores da viagem.
Cublai Khan ficou profundamente desapontado. Marco comentou que
“se o papa tivesse enviado pessoas devidamente qualificadas a pregar
o evangelho, o Grande Khan teria abraçado o cristianismo, pelo qual
se sabe, com toda a certeza, que ele tinha uma grande predileção”22.
Durante o século XIII tinham sido lançadas mais oito cruzadas,
nenhuma delas com êxito. Todas deixaram um rasto de destruição
à sua passagem, mas, à exceção da Primeira Cruzada, não houve
nenhuma mais terrível do que a Quarta Cruzada. Quando os cruzados chegaram a Constantinopla decidiram ajudar o jovem príncipe
Alexis a depor o tio Alexis III e a instalar-se como governante. Todavia, quando o príncipe se mostrou incapaz de lhes pagar o prometido,
os cruzados rebelaram-se e atacaram a cidade com as armas que se
destinavam a ser usadas contra Jerusalém. Os latinos chacinaram os
cristãos ortodoxos sem piedade.
Em abril de 1204, a maior cidade da cristandade estava repleta
de ruínas fumegantes; os seus palácios e as grandes casas das
principais famílias tinham sido pilhados, as tapeçarias e os
gloriosos guarda-roupas incendiados, os telhados esventrados
pelas chamas. Bibliotecas inteiras, e os arquivos dos documentos no seu interior, se não tivessem já sido queimados,
ficaram expostos à chuva e serviriam de alimento a insetos e
roedores. Muitos dos pequenos objetos da vida diária, desde
ferramentas a louça, ícones e livros de orações, acumulados
ao longo de centenas de anos, foram destruídos.23
Nem Hagia Sophia escapou à devastação. A par do saque, os cristãos
latinos profanaram a igreja, colocando uma prostituta a cantar e a
dançar à frente do altar. Grande parte do resultado do saque à cidade
encontra-se agora no Ocidente, incluindo quatro monumentais cavalos dourados que tinham encimado uma coluna no antigo Hipódromo, onde os imperadores bizantinos assistiam a corridas de
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