COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM Carol Delaney Columbus and The Quest for Jerusalem Traduzido do inglês por Luís Santos Conteúdos Prólogo Introdução :: As paixões de Colombo 11 13 Capítulo Um :: Prenúncios do Apocalipse 23 Capítulo Dois :: Descobrir os “segredos do mundo” 45 Capítulo Três :: O plano começa a ganhar forma 73 Capítulo Quatro :: O sonho torna-se realidade 103 Capítulo Cinco :: Dias de maravilha 131 Capítulo Seis :: Triunfo e desastre 163 Capítulo Sete :: Paixões rebeldes: As colónias 197 Capítulo Oito :: Paraíso encontrado e perdido 225 Capítulo Nove :: Privilégios e profecias: A aposta de Colombo no futuro 249 Capítulo Dez :: Encalhado 269 Capítulo Onze :: A paixão final: Desilusão e morte 295 O depois :: Colombo, Apocalipse e Jerusalém 311 Agradecimentos 323 Apêndice :: O que aconteceu aos principais intervenientes 325 Notas 333 9 Capítulo Um Prenúncios do Apocalipse Cristóvão Colombo nasceu dois anos antes de um acontecimento que viria a mudar o mundo e, em grande medida, a estabelecer o rumo da vida do navegador. A queda de Constantinopla às mãos dos otomanos, em 1453, foi um golpe do qual a cristandade nunca conseguiu recuperar totalmente. Essa cidade gloriosa – sede do Império Bizantino durante mais de mil anos e da Hagia Sophia (Igreja da Santa Sabedoria), a mais famosa igreja do cristianismo – ficou em ruínas, com o imperador morto e os habitantes chacinados ou aprisionados. Quando a notícia do saque chegou à Europa, Eneas Silvio Piccolomini, que anos depois se tornaria o papa Pio II, descreveu a queda da cidade como sendo “a perda de um dos dois olhos da Igreja” – sendo o outro Roma1. Constantinopla fora um importante ponto de paragem para os peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, acima de tudo por ser o repositório de uma série de relíquias sagradas. Os peregrinos ansiavam por poder ver objetos como os fragmentos da Verdadeira Cruz; os restos mortais de Ana, a mãe da Virgem Maria; e os ossos de São Lucas, trazidos de Jerusalém por Helena, mãe de Constantino I, fundador e primeiro imperador da cidade epónima. Helena, que fizera a sua peregrinação a Jerusalém em 326, também encontrara o local onde Jesus fora enterrado e ordenara que aí se construísse uma igreja, o Santo Sepulcro. Além da sua herança religiosa, Constantinopla era também a base de mercadores europeus, em especial os genoveses, que dominavam 23 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM Bó sfo ro o comércio com o Oriente graças aos seus entrepostos em portos do mar Negro. Agora, em meados do século XV, com a queda de Constantinopla, a rota comercial com o Oriente e a rota de peregrinação com Jerusalém ficara encerrada para o Ocidente. Tal como Jerusalém, Constantinopla estava nas mãos dos muçulmanos. Na luta entre o cristianismo e o islamismo, os muçulmanos pareciam estar a vencer. Muitos cristãos viram este facto como sinal de que o fim do mundo se aproximava rapidamente. Sobre a Europa caía uma mortalha. Os otomanos, por seu lado, estavam jubilantes. Tinham finalmente capturado a “Kizil Elma” (Maçã Vermelha ou Dourada) dos seus sonhos2. Embora desde há algum tempo os muçulmanos se viessem a espalhar pela Ásia Menor, os otomanos, conhecidos entre eles como ghazis, ou guerreiros sagrados, tinham chegado mais longe. Em 1326 alcançaram o mar de Mármara, podendo ver Constantinopla do outro lado. Almejavam esse prémio não só por causa dos edifícios imponentes, do luxo e dos conhecimentos, e da importância simbólica, mas também devido à sua posição estratégica. Constantinopla, atual Istambul, situa-se nas colinas sobranceiras ao ponto onde se encontram três cursos de água: o mar de Mármara, que atravessa os Dardanelos em direção ao Egeu; o Corno Dourado, Mar Negro Mar de Mármara Mar Egeu Mar de Mármara Mar Mediterrâneo Localização estratégica de Constantinopla. Mapa preparado por Lynn Carlson, GISP. 24 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE uma enseada no mar de Mármara que divide a cidade; e o Bósforo, um estreito que liga o mar de Mármara ao mar Negro. Assim, quem controlasse Constantinopla deteria o poder sobre as viagens e o comércio a partir dos portos do mar Negro com destino aos do Mediterrâneo e mais além. Embora o Império Bizantino se tivesse contraído consideravelmente ao longo dos anos, pouco mais abrangendo do que a própria cidade, Constantinopla era considerada inexpugnável. Era protegida por quilómetros de muralhas de pedra com mais de quatro metros de espessura e doze de altura, entremeadas com torres regulares com o dobro da altura. Havia três linhas de muralhas ao todo, cada uma separada por um fosso. Essas fortificações viriam a ser postas à prova. Já por várias vezes os otomanos tinham tentado tomar a cidade, mas sem qualquer êxito. Contudo, nunca desistiram dos planos, tendo estabelecido objetivos a longo prazo. Em preparação do cerco a Constantinopla tinham conquistado vastas extensões de território na Europa: de Gallipoli a Adrianópolis, de Varna, no mar Negro, à Grécia, e depois ao Kosovo e à Bósnia, em torno do Adriático a partir de Itália, até que Constantinopla ficou cercada. O ambicioso jovem sultão conhecido como Mehmet II decidiu que a “Maçã” estava finalmente madura para ser colhida. Em finais de 1452 levou o seu exército de mais de 80 mil homens desde a capital, em Adrianópolis, até Constantinopla. Instalou as tropas em Rumeli Hisari, uma fortaleza que os seus engenheiros tinham construído rapidamente nas margens do Bósforo, poucos quilómetros a norte das muralhas da cidade. Rumeli Hisari, ou “fortaleza romana”, foi edificada no ponto mais estreito do Bósforo, conhecido como Boğazkesen (corta pescoços), exatamente à frente da Anadolu Hisari, a fortaleza anatólia, construída pelo seu bisavô, Beyazid I. A partir dessas duas fortificações, os otomanos poderiam intercetar quaisquer navios chegados do mar Negro, cobrando tarifas ou confiscando os bens transportados e capturando as tripulações. No início de 1453 estavam prontos para dar início ao cerco. Nos acampamentos otomanos, as fogueiras ardiam a noite inteira e os soldados eram deixados num estado violento constante graças ao ritmo dos tambores, às notas agudas da zurna e aos brados de guerra que dificultavam o sono dos habitantes da cidade. Dispuseram igual25 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM mente os canhões e deram início a um bombardeamento incessante das muralhas, numa estratégia de “choque e temor”. O barulho e a vibração das armas, as nuvens de fumo, o impacto devastador de pedra contra pedra assustavam os defensores veteranos. Para a população civil era um vislumbre do apocalipse iminente e o castigo pelos pecados… [era] segundo um cronista otomano, “como o terrível sopro das trombetas da ressurreição”3. Face a toda esta atividade, os bizantinos no interior da cidade ficaram aterrorizados. O imperador Constantino XI escreveu uma carta desesperada ao papa Nicolau V, onde prometia unificar as Igrejas Ortodoxa Oriental e Católica Ocidental, caso o Santo Padre enviasse prontamente reforços. Embora tanto os católicos como os ortodoxos fossem cristãos, a inimizade entre eles era de longa data, com origem na divisão dos dois ramos no século XI. Contudo, a “unidade” não representaria a igualdade entre os dois ramos, mas sim a submissão da Igreja Ortodoxa à supremacia de Roma. Muitos bizantinos consideravam-no um preço demasiado elevado a pagar pelo apoio de Roma, mas estavam em grande inferioridade numérica. Embora a população da cidade rondasse as 40 mil pessoas, só poderiam contar, no máximo, com 5 mil gregos disponíveis para a guerra. É verdade que lá residiam igualmente cerca de 2 mil estrangeiros – alguns venezianos e florentinos, mas na sua maioria genoveses que viviam em Gálata, do outro lado do Corno Dourado, na parte grega da cidade –, mas a sua lealdade não era garantida, já que se tratava de cristãos latinos e não ortodoxos, como os gregos. Mesmo assim, segundo uma carta enviada pelo papa ao arcebispo Leonardo, que fora convocado de Quios para ajudar nas negociações para a unificação, o imperador e o senado tinham concordado com a união, a qual foi aparentemente confirmada em meados de dezembro de 14524 . Durante um breve período, as hostilidades amainaram um pouco, se não entre sacerdotes e teólogos, pelo menos entre o povo em risco da cidade. Festejaram quando, em janeiro de 1453, 26 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE um navio genovês chegou à cidade, carregado de alimentos, abastecimentos e 700 soldados – 400 de Génova e três centenas da colónia de Quios, uma ilha no mar Egeu. A chegada garantiu um incentivo bem necessário ao moral de quem se encontrava na cidade, especialmente ao saberem que entre os soldados de Quios se encontrava Giovanni Giustiniani, qualificado para a fortificação e reparação de muralhas danificadas. Sabendo que essa competência seria essencial durante o cerco que se avizinhava, o imperador bizantino Constantino XI elevou-o rapidamente a imediato. Alguns dos genoveses em Gálata juntaram-se para combater ao lado de Giustiniani, enquanto outros correram para o navio, esperando poder regressar a Génova. Claro que a maioria dos genoveses em Constantinopla não queria perder o comércio lucrativo com a colónia do mar Negro em Caffa, na Crimeia. Luciano Spinola, um dos mais destacados mercadores, convenceu-os a permanecerem neutros, na esperança de que os otomanos, tal como os bizantinos, fossem apreciadores de luxos como o caviar e o esturjão que forneciam através dos seus negócios. Chegou a primavera. As cegonhas regressaram da temporada passada em África e o perfume das rosas encheu o ar e as igrejas. Contudo, esses sinais alegres não dissipavam o mal-estar de quem se encontrava encurralado no interior da cidade. A juntar à ansiedade, no início de abril, a Semana Santa, alguns pequenos terramotos abalaram-lhes ainda mais os nervos já de si instáveis. Os soldados de Mehmet desde há semanas que provocavam pequenas escaramuças ao longo das muralhas, como forma de cansar os cristãos antes da invasão. Apesar do seu número reduzido, os cristãos mantiveram uma certa vantagem durante algum tempo. O fogo dos canhões otomanos tinha danificado as muralhas sem as destruir, e quando os soldados as tentavam escalar, os cristãos derrubavam-nos com pedras. Mesmo assim, os ataques constantes e a vigilância permanente exauriram os defensores. Como estratégia alternativa, os otomanos começaram a abrir túneis sob as muralhas. Os bizantinos depressa descobriram alguns dos túneis e lançaram-lhes fogo, capturando soldados e obrigando-os a revelar a localização de outras escavações. Tinham igualmente noção 27 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM de dois pontos vulneráveis nas muralhas – um no Portão de São Romano, situado numa depressão causada pelo rio Lico, e o outro num ponto em que as muralhas se juntavam e descreviam um ângulo reto, por trás do Palácio de Blaquerna. Os otomanos decidiram concentrar-se no Portão de São Romano, pois a depressão deixava as torres a um nível mais baixo do que as colinas opostas, e também por o leito do rio dificultar a construção de um fosso maior. De imediato posicionaram o seu canhão monstruoso. Tinha mais de oito metros de comprimento – sendo provavelmente o maior canhão construído na altura – e era capaz de projetar uma bola de pedra com quase quinhentos quilos contra a muralha, ou por cima desta. Nunca se vira nada assim. Os otomanos demoliram parte da muralha, mas durante a noite, Giustiniani e os seus ajudantes conseguiram repará-la, tendo o assalto prosseguido. Perto do Corno Dourado, a frota otomana encontrava-se igualmente num impasse. Cientes de que a cidade era mais vulnerável através do Corno Dourado, os bizantinos tinham disposto um enorme dique de correntes, concebido por um genovês, ao longo da entrada, impedindo assim que os navios otomanos entrassem e atacassem ambos os lados da cidade. Foi uma estratégia inteligente, mas não uma panaceia, já que precisavam desesperadamente de mais soldados e suprimentos da Europa. Em Roma, o papa atrasara o envio de ajuda. Partira do princípio de que a cidade estava bem fortificada e não acreditava que Deus a deixasse cair nas mãos dos infiéis, estando à espera de uma garantia de que a “unificação” entre as Igrejas Grega e Romana se consumasse antes de enviar ajuda. Em finais de março, o papa enviou finalmente três navios genoveses, mas as embarcações foram apanhadas por uma tempestade perto de Quios e só chegaram a Constantinopla a 20 de abril, altura em que enfrentaram uma frota de navios e de trirremes otomanos. Aqueles que se encontravam em terra, entre eles Constantino e Mehmet, nada puderam fazer além de assistir ao desenrolar da batalha. Contra todas as probabilidades, os marinheiros genoveses conseguiram repelir os navios otomanos e passar pelo dique que lhes fora aberto, entrando no Corno Dourado, onde descarregaram os suprimentos tão necessários5. O êxito dos 28 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE genoveses embaraçou profundamente Mehmet II, que respondeu com uma forma engenhosa de contornar o dique. A meio da noite de 22 de abril, os otomanos levaram a cabo uma das mais espantosas manobras militares da altura, talvez mesmo de todos os tempos. Sobre troncos ensebados fizeram rolar 72 navios desde o Bósforo, sobre a colina de Gálata até ao Corno Dourado, no interior do dique, de onde poderiam facilmente bombardear a cidade. Quando os cristãos acordaram e viram o que acontecera devem ter pensado que estavam condenados. No entanto, milagrosamente, continuariam a repelir os otomanos durante mais um mês. A doze de maio, as forças otomanas atacaram as muralhas do palácio com milhares de soldados e, segundo Nicolò Barbaro, testemunha do sucedido, “estes cães turcos” investiram com “brados ferozes, como era seu hábito, e com sons de castanholas e tamborins… levaram a cabo um forte ataque contra as muralhas do palácio, pelo que a maioria dos que se encontravam na cidade julgaram que nessa noite a cidade estaria perdida”6. Contudo, os cristãos mantiveram a crença de que Deus não permitiria que a cidade caísse nas mãos dos “pagãos malvados”, pelo menos até que se concretizasse uma profecia, atribuída ao primeiro Constantino. O imperador vaticinara que a cidade nunca seria derrotada até que a “lua nascesse escurecida”, e como tal nunca acontecera, os habitantes da cidade continuavam esperançosos. Todavia, duas semanas depois, a esperança chegou ao fim. A 24 de maio verificou-se um eclipse lunar, seguido de chuva torrencial, nevoeiro e uma luz estranha que pairou sobre Hagia Sophia. Entre os cidadãos aterrorizados espalhou-se o rumor de que “chegara o tempo do Anticristo”, o que significava que o fim do mundo estava próximo. Na Bíblia, o Anticristo é identificado como sendo um líder poderoso que chegará nos últimos dias para tentar as pessoas a afastarem-se da sua fé7. Seguir-se-á uma enorme batalha e o Anticristo será derrotado. Cristo vai regressar para julgar tanto os vivos como os mortos e o mundo vai acabar. Para os habitantes de Constantinopla seria fácil de imaginar que Mehmet era o Anticristo e que o final dos tempos chegara. Nesse momento crucial, Mehmet tentou o imperador Constantino com condições para a rendição. Constantino recusou e ao convocar o povo a Hagia Sophia, alertou que a grande batalha pelo destino do 29 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM mundo estava iminente. Disse-lhes que deveriam preparar-se para morrer pela fé, pelo país, pela família e pelo soberano. Encorajados pelas palavras do imperador, os cristãos gregos e latinos uniram-se contra o inimigo comum, os muçulmanos. Depois de comungarem juntos, os homens regressaram aos seus postos e as mulheres levaram água para os refrescar e recolheram pedras que seriam lançadas contra o inimigo. Na noite de 28 de maio, após 54 dias de cerco contínuo, o acampamento otomano ficou envolto num silêncio aterrador. Os gregos rezaram para que os otomanos tivessem desistido. Contudo, pela alvorada, quando o sol incidia diretamente nos olhos dos cristãos, os janízaros8, o corpo de elite das forças otomanas, atacaram as muralhas, seguindo-se uma batalha feroz. Mesmo assim, os cristãos resistiram. Quando o imperador percebeu que o seu comandante-chefe desaparecera, “foi, muito agitado, ver para onde tinha ido” e descobriu que Giustiniani fora ferido por uma flecha e abandonara o posto nas ameias. Quando o encontrou, o imperador suplicou: “Imploro-te; a tua fuga vai encorajar outros a fazer o mesmo. O teu ferimento não é mortal; suporta a dor e fica no teu posto como um homem, tal como prometeste fazer.” No entanto, Giustiniani fugiu e “enquanto fugia percorreu a cidade a gritar ‘os turcos entraram na cidade!’9”. Ao ouvir isso, muitos dos habitantes entraram em pânico e abandonaram os seus postos para o seguir, na esperança de fugirem a bordo dos navios. Posteriormente houve quem acreditasse que, se Giustiniani tivesse ficado, a cidade talvez não tivesse sido perdida. Constantino e os seus homens continuaram a lutar corajosamente. Diz-se que o imperador, declarando que preferia morrer a combater pela cidade do que viver entre os infiéis, desmontou do cavalo e se juntou à refrega. Foi visto pela última vez, de espada em riste, a desaparecer na multidão. Pouco depois do seu desaparecimento, a muralha foi trespassada. Os soldados otomanos conseguiram entrar e logo o seu estandarte era desfraldado. A cidade caíra nas mãos dos muçulmanos. Estava-se a 29 de maio de 1453. Mais tarde nesse dia, o sultão Mehmet, a partir daí conhecido como o Conquistador, cavalgou diretamente até Hagia Sophia e entrou na igreja. Ficou espantado, já que nunca vira tamanho edifício. Era o 30 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE maior recinto fechado do mundo, tendo a cúpula mais de 55 metros de altura (cerca de 15 andares) e 31 metros de largura. Em vez das habituais paredes sólidas, a cúpula tinha janelas que enchiam o interior de luz. Edificada no século VI, a construção da cúpula seria única durante quase mil anos. Parecia flutuar, levando um indivíduo próximo de Mehmet a escrever que “compete em estatuto com as nove esferas do céu”10! O clérigo pessoal de Mehmet subiu ao púlpito e recitou o credo muçulmano: “Só há um Deus e Maomé é o Seu profeta”, transformando assim a igreja numa mesquita. A partir daí, Hagia Sophia seria chamada de Aya Sofya (a interpretação turca do nome grego). Como as imagens humanas não são permitidas nas mesquitas, os mosaicos dourados e os frescos garridos que representavam Jesus e os santos seriam em breve arrancados ou tapados11. Diz-se que os danos infligidos ao edifício e à cidade terão entristecido Mehmet, levando-o a meditar sobre a natureza transitória de todas as coisas. Contudo, ele não poderia negar aos soldados, que lutavam desde há meses, os três dias de saque previstos na lei muçulmana caso uma cidade não se rendesse. Uma testemunha cristã enviou um relatório macabro a um cardeal de Florença, o qual, por sua vez, enviou uma carta ao presidente de Veneza, onde descrevia o terrível destino de Constantinopla: O tesouro público foi consumido, a riqueza privada foi destruída, os templos foram despojados de ouro, prata, joias, das relíquias dos santos e de outros ornamentos preciosos. Os homens foram chacinados como gado, as mulheres raptadas, as virgens profanadas e as crianças arrancadas dos braços dos pais. Quem sobreviveu a tão grande massacre foi acorrentado para ser trocado por um resgate, ou sujeito a torturas, ou reduzido à mais humilhante das servidões.12 As mortes entre os cristãos ultrapassaram as quatro mil, muitos mais foram feridos e dezenas de milhares foram feitos prisioneiros. O sangue correu pelas ruas de Constantinopla, contornando as lajes, qual argamassa vermelha. Alguns dos cadáveres foram atirados aos 31 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM Dardanelos, onde “flutuaram até ao mar, como melões ao longo de um canal”13. Outros foram amontoados, já que não houve tempo de os enterrar. O fedor era horrível, mas ainda mais terrível foi identificar os corpos de amigos e familiares, uma vez que muito tinham sido decapitados. Na cidade, os bizantinos culparam os latinos, alegando que “Por termos feito a Unificação e prestado atenção ao Pontífice de Roma, merecemos sofrer o desagrado de Deus”. Os latinos, por sua vez, julgavam que a queda da cidade se devia à teimosia e à iniquidade dos gregos, que compararam a um “corpo que passara muitos anos separado da Cabeça”14, e que, segundo se acreditava, tinham simulado a unificação. O fosso entre as duas alas da Igreja aprofundou-se ainda mais. Agora, mais de dois terços dos territórios em torno do Mediterrâneo encontravam-se em mãos islâmicas e os muçulmanos estavam bem firmados na Europa. Contudo, mesmo ao saber da carnificina que acontecera em Constantinopla, os cristãos não se uniram à causa quando o papa Nicolau V convocou de imediato uma nova cruzada. Não mostraram entusiasmo com a noção de que primeiro teriam de tomar Constantinopla, caso alguma vez pretendessem conquistar Jerusalém. Também não se uniram quando os otomanos se aproximaram de cidades europeias e atacaram Belgrado em 1456. Os europeus estavam exaustos devido à Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França e devido a uma série de outros conflitos sangrentos. Pesasse embora o ambiente apocalíptico, os europeus precisavam de descansar. Com as forças exauridas, foram poucos os homens com vontade de se empenharem numa guerra distante. A falta de entusiasmo por uma nova cruzada era sinal do desespero sentido na época. Em contraste, três séculos e meio antes, quando os muçulmanos tinham destruído o Santo Sepulcro, exércitos de toda a Europa responderam ao apelo do papa Urbano II para a Primeira Cruzada, em 109515. O fervor ganhou fôlego com a crença de que Jerusalém lhes pertencia, o que legitimava a sua “reconquista”. Enquanto donos de pleno direito, acreditavam que tinham de libertar a cidade e purificar os locais sagrados. Em finais do século XI, as frequentes recitações do Salmo 79:1 – “Senhor, os gentios invadiram a 32 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE Vossa herança, profanaram o Vosso santo Templo, fizeram de Jerusalém um montão de ruínas” – ajudaram a inflamar os ânimos dos cristãos medievais16 . Contudo, esse fervor tinha um lado negro. Cruzados vindos de toda a Europa planeavam reunir-se em Constantinopla, mas as justificações religiosas e ideais elevados não os impediram de cometer crimes terríveis contra os judeus, em resposta ao boato que dizia que teriam sido os judeus de Jerusalém a incitar os muçulmanos a destruir o Santo Sepulcro. Em cidades como Mainz, Speyer, Worms, Trier e Colónia, torturaram, ou pura e simplesmente massacraram quaisquer judeus que se recusassem a converter-se. Para alguns judeus, a morte era preferível à apostasia, sendo que crónicas, liturgias e poemas da altura registam que muitos se mataram e, inspirando-se no Abraão bíblico, “sacrificaram” os filhos antes que os cruzados chegassem a eles17. Entre 1096 e 1097, mais de 20.000 cruzados convergiram sobre Constantinopla. Para evitar conflitos na cidade, o imperador bizantino Alexis enviou os cruzados para um acampamento no outro lado do mar de Mármara, onde o primeiro confronto bem-sucedido foi a tomada de Niceia aos muçulmanos. Esta é a cidade onde o Credo de Niceia, a confissão de fé cristã, foi expresso pela primeira vez, no ano de 325. Inspirados, os cruzados deram início à marcha para Jerusalém, mas o seu espírito rapidamente perdeu o ímpeto ao chegarem às vastas extensões áridas da Terra Santa, onde encontraram pouca água e alimentos. Não estavam em condições de entrar em combate. Felizmente, enquanto avançavam por terra, os genoveses tinham enviado uma frota de doze galeotas, um navio de guerra, suprimentos e 1200 cruzados, tendo chegado a Jafa, o porto mais próximo de Jerusalém, ao mesmo tempo que os europeus terminavam a sua viagem a pé. Reforçados, os cruzados atacaram Jerusalém, tendo conquistado a cidade a 15 de julho de 1099. No entanto, mais uma vez os cruzados foram impiedosos. Assim que entraram na cidade massacraram muçulmanos e judeus. Não obstante, os cristãos na Europa louvaram-nos por “com espadas de piedade terem limpo da imundície ímpia o lar da pureza celestial”18 . Após a tomada bem-sucedida da cidade, os “francos”, como eram chamados todos os europeus em Jerusalém, fundaram o reino latino 33 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM de Jerusalém e restauraram o Santo Sepulcro e outros locais ligados à vida de Jesus. Também criaram uma série de outros estados cruzados no Levante – Edessa, Antioquia, Acre e Trípoli –, mas a paz mostrou-se escassa. Os príncipes desses Estados lutavam constantemente entre si e o reino de Jerusalém exigia com frequência reforços da Europa que ajudassem nas batalhas com os vizinhos muçulmanos. Apesar do apoio europeu, o Reino Latino de Jerusalém não chegou a sobreviver um século. Um a um, os fortes cruzados caíram nas mãos de Saladino, o conquistador muçulmano, e em outubro de 1187, após uma breve batalha, Jerusalém rendeu-se. Saladino não estava interessado em destruir os locais sagrados cristãos. Em vez disso atribuiu a guarda do Santo Sepulcro a franciscanos, deixou que os Cavaleiros Hospitalários, uma ordem monástica fundada antes da cruzada, continuassem a prestar apoio aos peregrinos pobres e doentes que tivessem a coragem de empreender a viagem e permitiu que o grupo militar aristocrático conhecido como os Cavaleiros Templários os protegessem. Depois de tanta energia despendida na cruzada para tomar Jerusalém, a perda foi devastadora para os cristãos europeus. O papa Urbano III morreu pouco depois de ter tido conhecimento da notícia chocante. Diz-se que o rei Henrique II “permaneceu sem fala durante quatro dias” e o rei Guilherme II da Sicília “envergou serapilheira e ficou sozinho durante quatro dias”. Cardeais tornaram-se pregadores itinerantes e o povo acorria às igrejas que permaneciam abertas noite e dia19. Tal como frisa o estudioso Raffaele Pazzelli: “Criaram-se grandes quadros que representavam o Santo Sepulcro pisado por cavalos e Jesus Cristo oprimido por Maomé… e os menestréis abandonaram as suas canções de amor para lamentar a grande tragédia.20” A rendição de Jerusalém criou uma mácula no coração dos cristãos europeus. Sentiam-se envergonhados e muitos culparam os francos por se guerrearem entre si e não se terem esforçado mais por defender a cidade. Também se debatiam com uma questão teológica: Como poderia Deus ter permitido que a cidade regressasse às mãos dos infiéis? A explicação mais aceitável, expressa bem cedo numa carta que um mercador genovês enviara ao papa na sequência da capitulação, era a de que Deus os estava a castigar pelos seus pecados. O novo 34 PRENÚNCIOS DO APOCALIPSE papa, Gregório VIII, recuperou o tema na sua encíclica, publicada pouco depois de ter recebido a notícia da perda: Tendo sabido da severidade do terrível julgamento que a mão divina exerceu sobre a terra de Jerusalém, tanto nós como os nossos irmãos ficámos tão consternados com horror e atormentados com tal mágoa que não nos é fácil discernir como agir ou o que fazer.21 O pontífice ordenou aos fiéis que se arrependessem dos pecados e que se penitenciassem. Segundo o papa Gregório, Deus usara os muçulmanos como incentivo para inspirar os cristãos a modificar os seus hábitos corrompidos, de modo que, com um coração purificado, renovassem a luta por Jerusalém. A salvação estava no futuro. Com a proclamação desta missão, o sentido de Jerusalém mudou. Deixava de ser apenas a cidade terrena onde Cristo caminhara e fora crucificado, passando a tornar-se o local do Segundo Advento, o local dos Últimos Dias, tal como profetizado nos Evangelhos, no livro do Apocalipse e em outros pontos da Bíblia. A crença no Apocalipse iminente levara frades e padres a duplicar os esforços de conversão. Em meados do século XIII, um par de frades franciscanos, João de Plano Carpini e Guilherme de Rubruck, viajaram até à Ásia Central em missões evangélicas com o objetivo de converter o Grande Khan, na esperança de que ele se aliasse aos cristãos na luta contra os muçulmanos. Embora o Khan pretendesse saber mais acerca do cristianismo tinha uma visão mais ecuménica da religião e não acreditava que existisse apenas uma fé. Os frades não foram bem-sucedidos nos seus esforços de conversão. O desejo de converter o Grande Khan fez também parte da motivação da viagem de 1271, em que Marco Polo, de 17 anos, acompanhou o pai Nicolò e o tio Maffeo ao reino do Khan em Cataio, para cumprir uma promessa que tinham feito numa visita anterior. Devido ao interesse pelo cristianismo, o Khan pedira-lhes que levassem um frasco de óleo da lâmpada do Santo Sepulcro. Enviara também por eles uma missiva ao papa Gregório X, onde pedia que lhe fossem enviados cem padres que o instruíssem e ao seu povo na fé cristã. Na viagem de regresso ao reino 35 COLOMBO E A DEMANDA DE JERUSALÉM mongol, registada em As Viagens de Marco Polo, levaram o óleo sagrado, a par de presentes e cartas do papa Gregório X, a Cublai Khan, neto de Gengis Khan. Contudo, os poucos sacerdotes dispostos a acompanhá-los logo voltaram atrás, devido aos rigores da viagem. Cublai Khan ficou profundamente desapontado. Marco comentou que “se o papa tivesse enviado pessoas devidamente qualificadas a pregar o evangelho, o Grande Khan teria abraçado o cristianismo, pelo qual se sabe, com toda a certeza, que ele tinha uma grande predileção”22. Durante o século XIII tinham sido lançadas mais oito cruzadas, nenhuma delas com êxito. Todas deixaram um rasto de destruição à sua passagem, mas, à exceção da Primeira Cruzada, não houve nenhuma mais terrível do que a Quarta Cruzada. Quando os cruzados chegaram a Constantinopla decidiram ajudar o jovem príncipe Alexis a depor o tio Alexis III e a instalar-se como governante. Todavia, quando o príncipe se mostrou incapaz de lhes pagar o prometido, os cruzados rebelaram-se e atacaram a cidade com as armas que se destinavam a ser usadas contra Jerusalém. Os latinos chacinaram os cristãos ortodoxos sem piedade. Em abril de 1204, a maior cidade da cristandade estava repleta de ruínas fumegantes; os seus palácios e as grandes casas das principais famílias tinham sido pilhados, as tapeçarias e os gloriosos guarda-roupas incendiados, os telhados esventrados pelas chamas. Bibliotecas inteiras, e os arquivos dos documentos no seu interior, se não tivessem já sido queimados, ficaram expostos à chuva e serviriam de alimento a insetos e roedores. Muitos dos pequenos objetos da vida diária, desde ferramentas a louça, ícones e livros de orações, acumulados ao longo de centenas de anos, foram destruídos.23 Nem Hagia Sophia escapou à devastação. A par do saque, os cristãos latinos profanaram a igreja, colocando uma prostituta a cantar e a dançar à frente do altar. Grande parte do resultado do saque à cidade encontra-se agora no Ocidente, incluindo quatro monumentais cavalos dourados que tinham encimado uma coluna no antigo Hipódromo, onde os imperadores bizantinos assistiam a corridas de 36