A estrela sem nome Se fosse tão fácil acender estrelas pela vida fora como é fácil olhá-las de noite, já acesas, num céu muito escuro, brilhantes como punhos, agrupadas em constelações, como jóias de grande preço, não estava tão aflito aquele acendedor de estrelas. Um acendedor de estrelas? Sim! Recebera do céu aquele encargo. Há poucas pessoas que mereçam esta honra, mas o pequeno Luciano era uma delas. Não tinha mais de dez anos, mas era alto para a idade, e com uns olhos tão claros, tão puros e brilhantes como ... como duas estrelas! Ricardo Alberty O país dos sorrisos e outras histórias Lisboa, Editorial Verbo, 1984 E todas as noites, todas, saía da barraquinha onde morava para acender as estrelas, de Inverno mais cedo, porque as noites são maiores e, conforme o tempo ia aquecendo, só era preciso acender as estrelas cada vez mais tarde, e Luciano até tinha tempo de dormir a sesta. Depois de cumprir a sua tarefa, podia recolher a casa, porque de madrugada as estrelas iam-se apagando sozinhas, E de madrugada, quando, a pouco e pouco, as estrelas se foram apagando, a grande estrela sem nome ainda lucilou um tempo, e acabou por ser ofuscada pelo Sol. Mas de dia ou de noite, seja Natal ou não, acesa ou uma a uma, como candeias a que fosse faltando o apagada, ela lá está no céu, iluminando o caminho àqueles que azeite e, quando nascia o Sol, alguma que ficasse quiserem chegar junto do Redentor. acesa nem se dava por isso. E não é verdade que seja uma estrela sem nome. Tem vários. Chama-se: Caridade, Fraternidade, Amor!... Mas nessa noite de Inverno, Luciano, que saíra com muita antecedência da barraquinha, abafado no sobretudo, com a gola levantada até ao nariz e um gorro na cabeça, estava muito aflito. Tinha acendido as estrelas todas, da primeira à última, sem se esquecer de nenhuma, porque sabia o nome delas todas. Mas sabia também que essa noite era noite de Natal e que precisava de acender uma estrela maior e mais importante do que as outras, que iluminasse a Terra inteira como um farol e indicasse com os raios de diamante que além, lá longe, tinha nascido o Menino-Deus que havia de iluminar as almas com uma luz mais forte, mais viva, e que não se apagasse nunca. Essa estrela não tinha nome nem estava em constelação nenhuma. Mas, conforme a noite ia envolvendo a Terra, ela havia de descer no céu e aproximar-se dos homens até os Perdão, Justiça, Ternura, — Eu tenho estado sempre sozinha. Mas quando te fores embora, ainda fico mais sozinha. E a menina começou a chorar outra vez. — Sou uma menina muito infeliz! Mamã!... Mamã!... aquecer, iluminando o caminho àqueles que quisessem chegar ao Redentor. Por isso Luciano estava aflito. Em que ponto do céu ficava exactamente aquela estrela sem nome, apagada ainda, para que ele a acendesse? Sobre a cidade? No alto das montanhas Luciano, o acendedor de estrelas, tinha mais altas da Terra, ou suspensa sobre o mar sem fim? um bom coração e não podia ver chorar ninguém, Levando na mão uma comprida vara, resplan- quanto mais uma menina pobre. E, sentando-se no decente como a varinha das fadas, que bastava tocar passeio em frente da janela da água-furtada, disse com ela no céu escuro para que as estrelas ficassem lá para cima: acesas, lá seguia pela rua de uma grande capital, sozinho, — Fico aqui a fazer-te companhia. E durante toda a noite conversou com a menina, contou- enquanto o mundo se preparava para festejar aquela noite santa, com a família e os amigos, diante de mesas -lhe a vida dele, todas as histórias que sabia, dançou e cobertas de coisas boas, ao pé da árvore de Natal, cheia de fez palhaçadas para a divertir. prendas. Passava já muito da meia-noite, e à medida que a Já estava desnorteado e triste, quando ouviu por cima da noite ia avançando, a pouco e pouco, por detrás da água- sua cabeça alguém chorar baixinho. Olhou, e viu à janela da furtada, que se desenhava como uma silhueta chinesa no céu água-furtada de um velho prédio uma menina tão bonita, estrelado e limpo, ia surgindo uma grande estrela, mais viva, com a carinha tão redonda, os olhos tão grandes e as mais brilhante e mais luminosa do que tranças tão loiras, que parecia uma boneca que o Menino Jesus todas as outras, que subia devagar, tivesse lançado pela chaminé. Chorava e dizia: «Mamã!... muito devagarinho, lançando raios de Mamã!...», com voz aflita. Também podia ser uma diamantes boneca, porque já há bonecas tão perfeitas que falam e inteira. que iluminavam a Terra choram. Luciano tinha um coração tão bom que não podia ver chorar ninguém, nem mesmo uma boneca. Por isso perguntou-lhe: — Posso ajudar-te? — perguntou a menina. — Porque estás a chorar? — Sabes por acaso onde está essa estrela? — Porque sou uma menina pobre, que vive por esmola com — Aqui, na minha água-furtada, como não tenho brin- os donos desta água-furtada. Mas eles foram ao cinema e não quedos e estou perto do céu, passo noites inteiras a brincar me puderam levar porque eu não tenho idade. com as estrelas. Converso com elas. Quase lhes Afinal sempre era uma menina!... chego com a mão. As estrelas são minhas amigas. E a menina continuou: Sei o nome delas todas. Como se chama a tua — E tu quem és? És o Menino Jesus que anda a estrela? distribuir os brinquedos? — É uma estrela sem nome. — Não — respondeu Luciano. — Sou um — Gostava de a conhecer. acendedor de estrelas. — De estrelas? Que ofício tão bonito!... — continuou a menina. — E já acendeste todas? — Não. Ainda me falta acender a estrela mais importante desta noite. — Para a conheceres é preciso que eu a acenda primeiro. Por isso tenho que me ir embora à procura dela. — E deixas-me ficar aqui sozinha? — Se não cumpro a minha obrigação antes da meia-noite, — Então porque não a acendes? — perguntou a menina. o céu é capaz de se zangar. Até posso perder o emprego de — Porque não sei onde ela está — explicou o acendedor de estrelas. acendedor de estrelas. — Como queres saber, se as estrelas só se vêem quando já estão acesas? — Pois. Mas para as acender é preciso saber onde elas estão!... — Mas como podes saber, se estiverem apagadas? — É esse o meu problema — disse Luciano, desanimado. — E era uma pena, um emprego tão bonito!... — Que horas são? — Daqui, vejo o relógio da torre da igreja. É quase meia-noite. Que pena, já éramos amigos, não éramos? — perguntou a menina muito triste. — Éramos!... Desculpa deixar-te sozinha — disse Luciano, com voz mais triste ainda.