Contribuições da Geografia Cultural para estudos sobre o

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CONTRIBUIÇÕES DA GEOGRAFIA CULTURAL PARA
ESTUDOS SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL
Débora Hoth Trindade
Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Juiz de Fora – FAU / UFJF.
Mestranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal do Espírito Santo – PPGG / UFES.
[email protected]
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RESUMO
O foco deste trabalho são as contribuições que a ciência geográfica, em especial a
Geografia Cultural, pode trazer para o campo do Patrimônio Histórico e Cultural, os
conceitos e possibilidades de abordagem. Dentro deste contexto, o presente artigo
tem por objetivo apresentar autores de base teórica interessante para melhor
compreensão da ciência em questão. Por fim, são analisadas contribuições recentes
de trabalhos diversos da Geografia Cultural.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Patrimônio Histórico, Geografia Cultural,
Monumentos.
ABSTRACT
The scope of this work are the contributions that geographical science, specially
Cultural Geography, can bring to the Historical and Cultural Heritage, the concepts and
approach possibilities. Within this context, the article has as its objective to present
theoretical basis authors for a better comprehension of such science. In the end, there
are analyzed the recent contributions of several works of Cultural Geography.
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1 INTRODUÇÃO
O intuito do artigo é trazer algumas contribuições que a ciência geográfica, em
especial a Geografia Cultural, pode oferecer ao campo patrimonial, na apreensão dos
diversos fatores que compõe a vida humana nesses espaços.
A estrutura adotada é, ao longo do trabalho, apresentar conceitos e práticas do
universo da Geografia Cultural e traçar as aproximações com a realidade do
patrimônio cultural, histórico e material.
A apresentação de uma breve cronologia de desenvolvimento da ciência em
questão é feita a fim de melhor situar o leitor da relevância dos estudos culturais na
geografia. Em seguida, abordamos as relações da cultura com aspectos econômicos,
políticos e sociais, as categorias que servem de apoio à geografia cultural para o
entendimento das experiências dos homens no meio ambiente e social.
No segundo momento do artigo tratamos das possibilidades de abordagem na
Geografia Cultural, trazendo exemplos de trabalhos relevantes dentro de estudos
brasileiros na área. A importante noção de como o território é extensão do espaço, o
simbolismo dos lugares e monumentos, as relações entre espaço sagrado e espaço
profano, a complexidade e riqueza das festas brasileiras e a possibilidade de uma
geografia feita através da leitura e experiência das diversas artes.
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2 A CULTURA, A PAISAGEM, O CORPO E AS DIMENSÕES SIMBÓLICAS
O campo do Patrimônio Cultural sofreu ao longo dos últimos anos modificações
no que diz respeito à inclusão de campos disciplinares, enfoque e abordagens.
Antigamente, apenas os caráteres histórico e arquitetônico eram valorizados. Com a
eminência da importância da simbologia e subjetividade dos espaços, outras
dimensões tornaram-se relevantes. Como podemos observar segundo Castriota:
O patrimônio cultural constitui hoje um campo em rápida expansão e
mudança. De fato, nunca se falou tanto sobre preservação do
patrimônio e da memória, nunca tantos estiveram envolvidos em
atividades ligadas a ele, nunca se forjaram tantos instrumentos para
se lidar com as preexistências culturais (CASTRIOTA, 2009, p. 11).
A Geografia Cultural nasceu aproximadamente na mesma época da Geografia
Humana, no final do século XIX, e desde então vem se desenvolvendo. Após os anos
setenta do século XX, diante de mudanças significativas nos trabalhos no campo das
Ciências Humanas e Sociais, a Geografia Cultural adquiriu um patamar mais alto,
atingindo a mesma importância da Geografia Econômica ou da Geografia Política.
Contribuições de conceitos fenomenológicos para a epistemologia das grandes
ciências que tratam do espaço e do homem, trouxeram maior interesse para a
experiência dos lugares e pelo sentido de morar. Novas perspectivas existenciais e
críticas em torno das Ciências Sociais abalaram as grandes narrativas desenvolvidas
até então, basicamente formuladas a partir de perspectivas históricas.
O artigo de Claval “‘A Volta do Cultural’ na Geografia” versa sobre as
mudanças recentes da geografia cultural e de seu sentido para a ação humana.
Segundo o autor, é graças à abordagem cultural que a Geografia apresenta cada vez
mais o interesse pelos problemas morais do mundo, pelas práticas vernaculares e as
etnogeografias. O para quem se torna mais central do que o para que, e o hoje
assume maior importância que o ontem.
O econômico, o político e o social nunca existiram como categorias estáticas e
independentes do espaço em que se encontram, e é na dimensão cultural que
consiste o seio do funcionamento dessas esferas. A abordagem por meio da cultura
permite a compreensão do significado que os homens impõem ao meio ambiente e ao
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sentido de suas vidas, integrando as representações mentais e as reações subjetivas
ao campo da pesquisa geográfica.
Conforme ressalta Claval, o uso do termo cultura deve ser sempre crítico. Há
de prevalecer nos trabalhos a valorização da diversidade, ou da uniformidade e
universalidade e é interessante apontar que tal escolha é sempre resultado de
predileção ideológica. Segundo o próprio autor, as diversas concepções de cultura na
reflexão epistemológica são:
1- Numa primeira concepção, a cultura aparece como um conjunto de
práticas, de savoir-faire ou knowhows, de conhecimentos e de valores
que cada um recebe e adapta a situações evolutivas. Nessa
concepção, a cultura aparece ao mesmo tempo como uma realidade
individual (resultante da experiência de cada pessoa) e social
(resultante de processos de comunicação). Não é uma realidade
homogênea. Ela compõe muitas variações.
2- Numa segunda concepção a cultura é apresentada como um
conjunto de princípios, regras, normas e valores que deveriam
determinar as escolhas dos indivíduos e orientar a ação. Essa
concepção a define como imutável. Essa concepção é útil para
compreender a componente normativa dos comportamentos, mas as
regras são interpretadas tanto para justificar escolhas diversas como
para motivá-las.
3- Numa terceira concepção, a cultura é apresentada como um
conjunto de atitudes e costumes que dão ao grupo social a sua
unidade. Essa concepção de cultura tem um papel importante na
construção das identidades coletivas (CLAVAL, 2012, p. 21).
Importante ressaltar que há diversos níveis de realidades culturais e como isso
afeta a apropriação, caráter identitário, usos práticos e apreciação do patrimônio
cultural. O estudioso do assunto deve sempre se manter alerta para a complexidade
das estruturas das sociedades humanas.
A renovação dos estudos das relações homens/meio ambiente trouxe também
novas perspectivas sobre o tema Paisagens. As concepções sobre paisagens na
Geografia, até a metade do século vinte, orbitavam em torno apenas do
funcionamento social, cultural e econômico da sociedade, ou então sobre como a
paisagem refletia os funcionamentos passados da sociedade e não o funcionamento
atual. Atualmente, os geógrafos estudam, para além dessas dimensões, a concepção
estética da paisagem, sejam elas rurais ou urbanas, ou até as paisagens dos pintores.
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É fundamental que o geógrafo conceba o estudo da paisagem como uma via
de mão dupla entre as manipulações ideológicas das classes dominantes e a
convivência do homem com a paisagem. Como bem aponta Claval (2012, p. 22), a
paisagem é utilizada pelos governantes como suporte de mensagens de propaganda e
sua organização reflete a existência de uma relação de poder. A paisagem é
expressão também da personalidade do grupo social e o sentido de identidade de
coletividades está intimamente ligado às lembranças e à memória que a paisagem
evoca.
Neste sentido, podemos observar a importante contribuição que a abordagem
da paisagem pela Geografia Cultural traz ao campo do Patrimônio Histórico Material.
Muito além da concepção de edifícios e monumentos como meros documentos sobre
a produção histórica, social e econômica do espaço, o patrimônio contido numa
paisagem é vital para a construção identitária da coletividade, para as lembranças e
memórias dos indivíduos, para a sensação de pertencimento e reafirmação da
personalidade através dos lugares.
O papel do corpo na experiência humana e as imaginações geográficas como
forma de percepção dos lugares fazem parte do que constitui a formação de
identidades e territorialidades. A memória coletiva é constituída também de lugares e
paisagens. A lembrança sentimental é acessada pela relevância de acontecimentos
pontuais do passado, contudo há também o impacto gradativo da experiência
cotidiana de uma pessoa comum sobre a organização espacial e seu sentido
simbólico. As relações emocionais entre a paisagem e o observador são de suma
importância para o geógrafo que trabalha no campo cultural.
O conhecimento do mundo que se faz através de representações ultrapassa o
materialismo de edifícios e monumentos. Além da questão estética e histórica o
Patrimônio, como parte do arcabouço cultural de um determinado grupo de indivíduos,
transforma-se ao longo do tempo na dinâmica da percepção de elementos, quer por
meio da mudança de seus usos, quer por sua relação simbólica e a socialização de
que é palco. Corrêa ressalta que a geografia cultural está voltada para a “[...]
interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir
de suas próprias experiências e práticas” (CORRÊA, 2009, p. 5). A dimensão política
da cultura manifesta-se no campo imaterial e material, correspondida na paisagem
cultural pelo grupo dominante que elege seus símbolos e significados, expressando
seu poder em prédios e narrativas históricas. Contudo, como ressalta Corrêa (2009,
p.4), há na polivocalidade certa liberdade que foge ao controle dos poderes
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dominantes, uma vez que as experiências constroem e modificam todos os dias as
relações dos homens com o espaço. Observamos na seguinte passagem:
A dimensão política da cultura manifesta-se ainda por meio da
polivocalidade, isto é, das diversas possibilidades de interpretação da
mesma paisagem. Esta não emite um único e inequívoco sentido,
nem um sentido a ser descoberto ao se decodificar as intenções
daqueles que produziram as formas materiais que constituem a
paisagem cultural. O sentido da paisagem cultural pode ser
construído e reconstruído pelos diversos grupos sociais a partir de
suas experiências. Esta perspectiva construcionista advém das
diferenças de classe, étnicas, religiosas e de acordo com outros
atributos, conforme discutido por Hall (1997). A polivocalidade contém
um sentido político que pode opor, em relação a uma mesma
paisagem, o sentido de celebração e contestação (CORRÊA, 2009, p.
4).
O espaço vivido, para além de objetos específicos, é o grande enfoque da
Geografia Cultural. Diferentemente da abordagem de campos como a História, a
Arquitetura e o Urbanismo, as interpretações das representações que diferentes
grupos constroem a partir de suas experiências e práticas no espaço são mais
valiosas para o estudo do geógrafo, que tem especial interesse nas percepções e
afetividades de cada grupo cultural. É importante ressaltar, porém, que não se trata de
uma negação ao passado, mas sim a intenção de privilegiar o presente e o passado
recente. A escala temporal (e até mesmo geográfica) é secundária, priorizando-se a
análise dos significados que os grupos dão à espacialidade humana.
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3 POSSIBILIDADE DE ABORDAGENS NA GEOGRAFIA CULTURAL
Estudos específicos sobre a geografia cultural praticada no Brasil demonstram
o sucesso da abordagem, sucesso este refletido nas numerosas publicações
científicas na área. Claval (2012, p. 20-23) traz o panorama do que chama de “uma
reflexão original”, por se tratar de temas que mesmo já pesquisados sob outros
olhares e perspectivas teórico-metodológicos, são submetidos a essa abordagem
original que a geografia cultural traz.
Exemplos citados por Claval (2012, p. 21-22) são: o contato com a etnografia
no estudo da maneira como as sociedades indígenas exploravam a natureza antes da
chegada dos europeus; pesquisas de geografia histórica, como a de Abreu (apud
CLAVAL, 2012, p. 22), com a reconstituição da gênese do Rio de Janeiro colonial no
Brasil, em como a moldura institucional fornecida por Lisboa foi reinterpretada de
modo particular na colônia, com o papel fundamental da Igreja Católica e das ordens
religiosas nesses processos; a noção de maritmidade, que oferece valiosa ferramenta
para a compreensão do contraste entre a perspectiva das populações interioranas
criadoras de gado e o novo olhar que avança na segunda metade do século XX, não
só dos nordestinos, mas do Brasil em geral, sobre o mar e suas praias, trabalhado por
Dantas (2012, apud CLAVAL, 2012, p. 22); e as pesquisas da geografia da religião,
que utilizam do aprofundamento da geografia cultural, como podemos conferir nos
trabalhos de Rosendahl e Gil Filho (apud CLAVAL, 2012, p. 22).
Ainda no campo dos exemplos de trabalhos relevantes, Claval (2012, p. 22-23)
cita os trabalhos de cunho territorial, como o caso da perda de raízes do proletariado
rural que vai se instalar em favelas, expulso pela massiva generalização do
agronegócio implantada em políticas de colonização agrícola do século XX, perda esta
de raízes que pode ser traduzida em reflexões de como essa desterritorialização traz
inquietações frente ao mundo moderno, o que reflete na proliferação e sucesso de
igrejas e seitas evangélicas. Haesbaert (apud CLAVAL, 2012, p. 22) traz boas
contribuições na pesquisa dessas desterritorializações, para além, sobre as
reterritorializações desenroladas em diferentes modalidades. Gomes (2008, apud
CLAVAL, 2012, p. 23) traça paralelos entre os espaços públicos e os espaços
domésticos como a cozinha, por exemplo, para colocar em relação à localização dos
fenômenos e os significados que eles suscitam.
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Especificamente valorosa para o campo patrimonial é a conceituação de
cenário adequado à análise dos espaços públicos:
Os lugares públicos são interessantes, justamente porque eles
conformam a cena na qual a sociedade vive e se exibe, e porque os
personagens desempenham papéis públicos. Entretanto, a diferença
fundamental daquilo que se passa no teatro ou no cinema é que os
acontecimentos que têm lugar no espaço público não respondem à
lógica de um roteiro ou de um texto teatral. Eles ocorrem em um
registro de happening, e revelam tudo aquilo que é e pode ser
reinterpretado e reinventado, o inesperado e o imprevisível dos jogos
sociais. É isso que confere ao flanêur do qual sabemos, depois de
Walter Benjamin, que ele é um dos personagens-chave da cidade
moderna, aquele que compreende e goza de sua atmosfera, suas
novidades e seu potencial de invenção (CLAVAL, 2012, p. 23)
O viés de cenário dos espaços públicos proposto por Claval (2012) pode ser
trabalhado em paralelo à noção de território trazida por Haesbaert e Mondardo (2012).
A dimensão espacial para os autores “[...] não é mera referência, palco ou apêndice da
condição humana, mas também uma de suas dimensões constitutivas fundamentais”
(HAESBAERT; MONDARDO, 2012, p. 29-30). O território, extensão do espaço, pode
ser visto como entidades abertas, como possibilidade de encontros, desencontros,
confrontos e trânsito de diversos sujeitos. O espaço assim sendo coexiste com essa
multiplicidade, mobilidade e intercâmbio constante e infindável de culturas.
A lógica flexível do capitalismo que vivemos nos dias atuais vem de encontro
ao tradicional caráter histórico, documental e imobilizado do Patrimônio Material.
Diante dessa lógica, em que só o que é bom é o móvel, o efêmero, o aberto a
mudança e a mistura constante, o Patrimônio é envolvido por certa ambivalência,
caracterizada pelos autores acima citados como marca inerente aos processos de
hibridização:
Pode-se afirmar que o hibridismo opera simultaneamente de maneira
dupla, “‘organicamente’, hegemonizado, criando novos espaços,
estruturas, cenas e, ‘intencionalmente’, diasporizando, intervindo
como uma forma de subversão, tradução, transformação” (YOUNG,
2005, p.30 apud HAESBAERT; MONDARDO, 2012, p. 26).
A cultura está em toda a parte e os significados constituem o foco principal da
geografia cultural. Corrêa (2012), quando escreve sobre espaço e simbolismo, ressalta
a relevância das relações do econômico, do político e do social para o campo
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simbólico. Diante da leitura de que as construções intelectuais é que visam dar sentido
às diversas esferas da vida, podemos transpor que essas construções intelectuais é
que conferem sentido de pertencimento, identidade e memória ao patrimônio. É no
espaço vivido que se estabelecem as bases dos mapas de significados. As formas
simbólicas, para além do material, são definidas pelo autor como “[...] constituindo-se
em fixos e fluxos, isto é, localizações e itinerários, que são os atributos primários da
espacialidade” (CORRÊA, 2012, p. 137).
As políticas derivadas de intenção, ou as forças de determinadas práticas
sociais ou de manifestação do sagrado, por exemplo, dão corpo à paisagem urbana.
Para além da corporificação emblemática do poder e da memória, porém, os lugares
públicos são impregnados de tradições populares locais e conexões identitárias.
Portanto, a importância simbólica de um lugar é independente de sua importância
econômica, demográfica ou institucional, indo para além dessas categorias. Itinerários
simbólicos e cotidianos que perpassam o espaço público e edificações eleitas como
patrimônio de uma comunidade são justamente os responsáveis pelo sentido
identitário dos prédios e monumentos.
Representações materiais de eventos passados integram o meio ambiente
construído, compondo a paisagem de determinados espaços públicos de uma cidade
(CORRÊA, 2005, p. 9). Além de objetos estéticos, os monumentos são dotados de
forma claramente intencional de sentido político. Contudo, há também monumentos
construídos por grupos sociais ou por instituições que os representam, para além dos
erigidos pelo estado. São poderosos instrumentos para comunicar os valores, crenças,
as utopias e para afirmar a influência e o poder daqueles que os construíram, tomando
espaço simbólico relevante no cotidiano do espaço público, mesmo que muitas vezes
negligenciados pelo olhar do transeunte corriqueiro.
Grande parte do acervo brasileiro patrimonial é de igrejas e outros espaços que
já foram (e/ou ainda são) ligados direta ou indiretamente com práticas que buscam
aproximar o homem do sagrado. Contudo, vivemos hoje, desde o século XX, as
contradições de um mundo que “[...] se converte em um pluralismo étnico, cultural e
religioso” (ROSENDAHL, 1999, p. 232). Espaços profanos vinculados em diferentes
graus de aproximação aos espaços sagrados proliferam-se com rapidez nesse
contexto, com seus elementos independendo efetivamente do religioso, total ou
parcialmente. O foco de convergência de peregrinos em santuários varia hoje entre os
espaços profanos e os sagrados:
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Os elementos que constituem o espaço profano organizam-se
segundo uma lógica própria, isto é, decorrem de sua articulação com
o sagrado. O espaço profano diretamente vinculado ao espaço
sagrado apresenta forte ligação com as atividades religiosas.
Localizam-se nessa área o comércio e os serviços vinculados ao
sagrado
–
artigos
religiosos,
bares,
“casa
do
peregrino”
e
estacionamentos (ROSENDAHL, 1999, p. 239-240).
Com o advento da categoria Patrimônio Imaterial, as festas ganharam especial
atenção dos órgãos de preservação e registro de bens culturais. Segundo Amaral
(1998), as festas brasileiras são marcadas desde o período colonial principalmente
pelas trocas culturais. Mesmo as festas religiosas, de cunho catequizante, acabaram
por sofrer apropriações culturais distintas, por acontecerem nas ruas, em contextos de
exaltação e alegria. As práticas trazem a inserção de danças profanas e a distribuição
de comidas e bebidas que se tornariam típicas. Não só olhado do ponto de vista do
momento da festa, de euforia e êxtase, enlouquecimento, alegria e entrega, em suma
um momento de alienação nas palavras da autora, as festas tem também importante
papel na construção da sociedade e sociabilidade brasileiras. As trocas culturais
tornam-se intensas nesse sentido, aparecendo na arte, na estética, na música, na
religião e também refletidas na arquitetura. A festa é espaço também de protesto,
afirmação cultural, organização de grupos de relações mais afetivas, de resistências à
opressão cultural e social ou mesmo de catarse. Tem papel constitutivo, e não apenas
busca do prazer.
O campo de estudo das festas é bastante explorado por determinadas ciências
humanas e sociais, como a sociologia, a antropologia e a história. Contudo,
abordagens geográficas são relativamente recentes, e encontramos na geografia
cultural a maioria delas. Maia (1999) busca em seu trabalho contribuir com um ensaio
reflexivo nesse sentido. Em uma análise do caso brasileiro, pondera que muitas festas
se desenvolveram e se projetaram nacional e internacionalmente, deixando o feitio de
simples brincadeiras e assumindo cunho empresarial. As festas, no seu momento de
ocorrência, podem fornecer nova função às formas espaciais prévias que dispõem
para a sua realização, no seu ponto central ou entornos, causando impacto no
patrimônio, palco de festas em certos casos. A preparação da festa também faz parte
desse contexto, considerando-se a produção cênica e culinária dos eventos, a
residência de alguns participantes onde ocorrem a produção de indumentárias e
outros artifícios, ao próprio espaço de realização, como igrejas, templos, terreiros,
clubes sociais e esportivos, praças e espaços de ensaio. Participantes, o poder
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público, líderes religiosos e a mídia tem grande influência nesses espaços nos tempos
festivos. O autor ressalta pontos importantes para a discussão no campo, como as
territorialidades das festas populares, as redes geográficas formadas pelas festas, as
interações espaciais como deslocamentos de pessoas, mercadorias, capital e
informação sobre o espaço geográfico, o lugar das festas e sua espacialidade.
Por fim, não poderíamos deixar de lado as relações da geografia com as artes
em geral. Muitos autores da geografia cultural dedicam-se hoje a análises envolvendo
literatura, fotografia, cinema, artes plásticas, música e assim por diante. O autor
Marandola Jr, ao tratar do que chama de geograficidade pela literatura (MARANDOLA
JR, 2010), deixa claro sua preocupação com a experiência urbana e o imaginário da
cidade, dimensões tão importantes também para o universo do patrimônio cultural.
Geograficidade dá um tom essencial nesta abordagem porque não
concebe a vigência da geografia como posterior nem anterior à
vigência da cultura ou da arte, pois, enquanto traço ontológico
essencial, a geograficidade faz parte da vigência das coisas, sendo
impossível desviar-se dela (MARANDOLA JR, 2010, p. 25).
Duas tendências de trabalhos envolvendo as artes na geografia são
ressaltadas em seu artigo: os trabalhos que buscam materialidades (os fatos
históricos, o ambiente físico, as estruturas sociais, os costumes, as ideologias) e os
trabalhos que buscam imaterialidades (simbolismos, imaginário, sentidos, identidades,
afetividade). Marandola estabelece que materialidades, em termos geográficos, seriam
espacialidades e territorialidades, e imaterialidades seriam geograficidades. A arte
pode ser assim vista como documento, expressão material da cultura, da sociedade,
do momento histórico de um dado território, ou como manifestação criativa criadora de
mundos, constituindo a realidade e revelando parte da essência do mundo.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo apresentou uma retrospectiva de alguns estudos sobre e através da
Geografia Cultural feitos no Brasil, ressaltando a contribuição de geógrafos como
Claval (2002 e 2012), Corrêa (2009 e 2012), Haesbaert e Mondardo (2012),
Rosendhal (1999), Marandola Jr. (2010) e Maia (1999). Esses e muitos outros autores
exploram assuntos interessantes, que fornecem bases teóricas e um leque de temas
pertinentes ao tema do Patrimônio Cultural.
A dimensão simbólico-social do Patrimônio Cultural ganha contornos
interessantes se analisado sob esses conceitos. Como por exemplo, as relações
econômicas, políticas, sociais e culturais contidas na paisagem e no território. A
relevância da experiência do corpo no lugar, assim como a experiência cotidiana mais
banal são leituras importantes da existência do monumento no lugar e na memória.
Também é interessante observar a manipulação ideológica por parte dos grupos mais
poderosos na eleição da importância de bens culturais. Concomitantemente, é
inevitável que aconteçam manifestações vernaculares e de cunho popular, que
apropriam e ressignificam os espaços, os símbolos, as identidades.
A abordagem da Geografia Cultural pode alargar o campo do conhecimento do
Patrimônio Cultural, com a projeção de domínios e temas até então negligenciados ou
pouco explorados. Diante dessa orientação complementar apresentada, espera-se
contribuir para o enriquecimento dos estudos de monumentos e conjuntos
arquitetônicos de especial interesse histórico, identitário, simbólico e da memória
coletiva.
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