CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade CONTRIBUIÇÕES DA GEOGRAFIA CULTURAL PARA ESTUDOS SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL Débora Hoth Trindade Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora – FAU / UFJF. Mestranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo – PPGG / UFES. [email protected] 381 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade RESUMO O foco deste trabalho são as contribuições que a ciência geográfica, em especial a Geografia Cultural, pode trazer para o campo do Patrimônio Histórico e Cultural, os conceitos e possibilidades de abordagem. Dentro deste contexto, o presente artigo tem por objetivo apresentar autores de base teórica interessante para melhor compreensão da ciência em questão. Por fim, são analisadas contribuições recentes de trabalhos diversos da Geografia Cultural. Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Patrimônio Histórico, Geografia Cultural, Monumentos. ABSTRACT The scope of this work are the contributions that geographical science, specially Cultural Geography, can bring to the Historical and Cultural Heritage, the concepts and approach possibilities. Within this context, the article has as its objective to present theoretical basis authors for a better comprehension of such science. In the end, there are analyzed the recent contributions of several works of Cultural Geography. 382 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade 1 INTRODUÇÃO O intuito do artigo é trazer algumas contribuições que a ciência geográfica, em especial a Geografia Cultural, pode oferecer ao campo patrimonial, na apreensão dos diversos fatores que compõe a vida humana nesses espaços. A estrutura adotada é, ao longo do trabalho, apresentar conceitos e práticas do universo da Geografia Cultural e traçar as aproximações com a realidade do patrimônio cultural, histórico e material. A apresentação de uma breve cronologia de desenvolvimento da ciência em questão é feita a fim de melhor situar o leitor da relevância dos estudos culturais na geografia. Em seguida, abordamos as relações da cultura com aspectos econômicos, políticos e sociais, as categorias que servem de apoio à geografia cultural para o entendimento das experiências dos homens no meio ambiente e social. No segundo momento do artigo tratamos das possibilidades de abordagem na Geografia Cultural, trazendo exemplos de trabalhos relevantes dentro de estudos brasileiros na área. A importante noção de como o território é extensão do espaço, o simbolismo dos lugares e monumentos, as relações entre espaço sagrado e espaço profano, a complexidade e riqueza das festas brasileiras e a possibilidade de uma geografia feita através da leitura e experiência das diversas artes. 383 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade 2 A CULTURA, A PAISAGEM, O CORPO E AS DIMENSÕES SIMBÓLICAS O campo do Patrimônio Cultural sofreu ao longo dos últimos anos modificações no que diz respeito à inclusão de campos disciplinares, enfoque e abordagens. Antigamente, apenas os caráteres histórico e arquitetônico eram valorizados. Com a eminência da importância da simbologia e subjetividade dos espaços, outras dimensões tornaram-se relevantes. Como podemos observar segundo Castriota: O patrimônio cultural constitui hoje um campo em rápida expansão e mudança. De fato, nunca se falou tanto sobre preservação do patrimônio e da memória, nunca tantos estiveram envolvidos em atividades ligadas a ele, nunca se forjaram tantos instrumentos para se lidar com as preexistências culturais (CASTRIOTA, 2009, p. 11). A Geografia Cultural nasceu aproximadamente na mesma época da Geografia Humana, no final do século XIX, e desde então vem se desenvolvendo. Após os anos setenta do século XX, diante de mudanças significativas nos trabalhos no campo das Ciências Humanas e Sociais, a Geografia Cultural adquiriu um patamar mais alto, atingindo a mesma importância da Geografia Econômica ou da Geografia Política. Contribuições de conceitos fenomenológicos para a epistemologia das grandes ciências que tratam do espaço e do homem, trouxeram maior interesse para a experiência dos lugares e pelo sentido de morar. Novas perspectivas existenciais e críticas em torno das Ciências Sociais abalaram as grandes narrativas desenvolvidas até então, basicamente formuladas a partir de perspectivas históricas. O artigo de Claval “‘A Volta do Cultural’ na Geografia” versa sobre as mudanças recentes da geografia cultural e de seu sentido para a ação humana. Segundo o autor, é graças à abordagem cultural que a Geografia apresenta cada vez mais o interesse pelos problemas morais do mundo, pelas práticas vernaculares e as etnogeografias. O para quem se torna mais central do que o para que, e o hoje assume maior importância que o ontem. O econômico, o político e o social nunca existiram como categorias estáticas e independentes do espaço em que se encontram, e é na dimensão cultural que consiste o seio do funcionamento dessas esferas. A abordagem por meio da cultura permite a compreensão do significado que os homens impõem ao meio ambiente e ao 384 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade sentido de suas vidas, integrando as representações mentais e as reações subjetivas ao campo da pesquisa geográfica. Conforme ressalta Claval, o uso do termo cultura deve ser sempre crítico. Há de prevalecer nos trabalhos a valorização da diversidade, ou da uniformidade e universalidade e é interessante apontar que tal escolha é sempre resultado de predileção ideológica. Segundo o próprio autor, as diversas concepções de cultura na reflexão epistemológica são: 1- Numa primeira concepção, a cultura aparece como um conjunto de práticas, de savoir-faire ou knowhows, de conhecimentos e de valores que cada um recebe e adapta a situações evolutivas. Nessa concepção, a cultura aparece ao mesmo tempo como uma realidade individual (resultante da experiência de cada pessoa) e social (resultante de processos de comunicação). Não é uma realidade homogênea. Ela compõe muitas variações. 2- Numa segunda concepção a cultura é apresentada como um conjunto de princípios, regras, normas e valores que deveriam determinar as escolhas dos indivíduos e orientar a ação. Essa concepção a define como imutável. Essa concepção é útil para compreender a componente normativa dos comportamentos, mas as regras são interpretadas tanto para justificar escolhas diversas como para motivá-las. 3- Numa terceira concepção, a cultura é apresentada como um conjunto de atitudes e costumes que dão ao grupo social a sua unidade. Essa concepção de cultura tem um papel importante na construção das identidades coletivas (CLAVAL, 2012, p. 21). Importante ressaltar que há diversos níveis de realidades culturais e como isso afeta a apropriação, caráter identitário, usos práticos e apreciação do patrimônio cultural. O estudioso do assunto deve sempre se manter alerta para a complexidade das estruturas das sociedades humanas. A renovação dos estudos das relações homens/meio ambiente trouxe também novas perspectivas sobre o tema Paisagens. As concepções sobre paisagens na Geografia, até a metade do século vinte, orbitavam em torno apenas do funcionamento social, cultural e econômico da sociedade, ou então sobre como a paisagem refletia os funcionamentos passados da sociedade e não o funcionamento atual. Atualmente, os geógrafos estudam, para além dessas dimensões, a concepção estética da paisagem, sejam elas rurais ou urbanas, ou até as paisagens dos pintores. 385 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade É fundamental que o geógrafo conceba o estudo da paisagem como uma via de mão dupla entre as manipulações ideológicas das classes dominantes e a convivência do homem com a paisagem. Como bem aponta Claval (2012, p. 22), a paisagem é utilizada pelos governantes como suporte de mensagens de propaganda e sua organização reflete a existência de uma relação de poder. A paisagem é expressão também da personalidade do grupo social e o sentido de identidade de coletividades está intimamente ligado às lembranças e à memória que a paisagem evoca. Neste sentido, podemos observar a importante contribuição que a abordagem da paisagem pela Geografia Cultural traz ao campo do Patrimônio Histórico Material. Muito além da concepção de edifícios e monumentos como meros documentos sobre a produção histórica, social e econômica do espaço, o patrimônio contido numa paisagem é vital para a construção identitária da coletividade, para as lembranças e memórias dos indivíduos, para a sensação de pertencimento e reafirmação da personalidade através dos lugares. O papel do corpo na experiência humana e as imaginações geográficas como forma de percepção dos lugares fazem parte do que constitui a formação de identidades e territorialidades. A memória coletiva é constituída também de lugares e paisagens. A lembrança sentimental é acessada pela relevância de acontecimentos pontuais do passado, contudo há também o impacto gradativo da experiência cotidiana de uma pessoa comum sobre a organização espacial e seu sentido simbólico. As relações emocionais entre a paisagem e o observador são de suma importância para o geógrafo que trabalha no campo cultural. O conhecimento do mundo que se faz através de representações ultrapassa o materialismo de edifícios e monumentos. Além da questão estética e histórica o Patrimônio, como parte do arcabouço cultural de um determinado grupo de indivíduos, transforma-se ao longo do tempo na dinâmica da percepção de elementos, quer por meio da mudança de seus usos, quer por sua relação simbólica e a socialização de que é palco. Corrêa ressalta que a geografia cultural está voltada para a “[...] interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir de suas próprias experiências e práticas” (CORRÊA, 2009, p. 5). A dimensão política da cultura manifesta-se no campo imaterial e material, correspondida na paisagem cultural pelo grupo dominante que elege seus símbolos e significados, expressando seu poder em prédios e narrativas históricas. Contudo, como ressalta Corrêa (2009, p.4), há na polivocalidade certa liberdade que foge ao controle dos poderes 386 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade dominantes, uma vez que as experiências constroem e modificam todos os dias as relações dos homens com o espaço. Observamos na seguinte passagem: A dimensão política da cultura manifesta-se ainda por meio da polivocalidade, isto é, das diversas possibilidades de interpretação da mesma paisagem. Esta não emite um único e inequívoco sentido, nem um sentido a ser descoberto ao se decodificar as intenções daqueles que produziram as formas materiais que constituem a paisagem cultural. O sentido da paisagem cultural pode ser construído e reconstruído pelos diversos grupos sociais a partir de suas experiências. Esta perspectiva construcionista advém das diferenças de classe, étnicas, religiosas e de acordo com outros atributos, conforme discutido por Hall (1997). A polivocalidade contém um sentido político que pode opor, em relação a uma mesma paisagem, o sentido de celebração e contestação (CORRÊA, 2009, p. 4). O espaço vivido, para além de objetos específicos, é o grande enfoque da Geografia Cultural. Diferentemente da abordagem de campos como a História, a Arquitetura e o Urbanismo, as interpretações das representações que diferentes grupos constroem a partir de suas experiências e práticas no espaço são mais valiosas para o estudo do geógrafo, que tem especial interesse nas percepções e afetividades de cada grupo cultural. É importante ressaltar, porém, que não se trata de uma negação ao passado, mas sim a intenção de privilegiar o presente e o passado recente. A escala temporal (e até mesmo geográfica) é secundária, priorizando-se a análise dos significados que os grupos dão à espacialidade humana. 387 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade 3 POSSIBILIDADE DE ABORDAGENS NA GEOGRAFIA CULTURAL Estudos específicos sobre a geografia cultural praticada no Brasil demonstram o sucesso da abordagem, sucesso este refletido nas numerosas publicações científicas na área. Claval (2012, p. 20-23) traz o panorama do que chama de “uma reflexão original”, por se tratar de temas que mesmo já pesquisados sob outros olhares e perspectivas teórico-metodológicos, são submetidos a essa abordagem original que a geografia cultural traz. Exemplos citados por Claval (2012, p. 21-22) são: o contato com a etnografia no estudo da maneira como as sociedades indígenas exploravam a natureza antes da chegada dos europeus; pesquisas de geografia histórica, como a de Abreu (apud CLAVAL, 2012, p. 22), com a reconstituição da gênese do Rio de Janeiro colonial no Brasil, em como a moldura institucional fornecida por Lisboa foi reinterpretada de modo particular na colônia, com o papel fundamental da Igreja Católica e das ordens religiosas nesses processos; a noção de maritmidade, que oferece valiosa ferramenta para a compreensão do contraste entre a perspectiva das populações interioranas criadoras de gado e o novo olhar que avança na segunda metade do século XX, não só dos nordestinos, mas do Brasil em geral, sobre o mar e suas praias, trabalhado por Dantas (2012, apud CLAVAL, 2012, p. 22); e as pesquisas da geografia da religião, que utilizam do aprofundamento da geografia cultural, como podemos conferir nos trabalhos de Rosendahl e Gil Filho (apud CLAVAL, 2012, p. 22). Ainda no campo dos exemplos de trabalhos relevantes, Claval (2012, p. 22-23) cita os trabalhos de cunho territorial, como o caso da perda de raízes do proletariado rural que vai se instalar em favelas, expulso pela massiva generalização do agronegócio implantada em políticas de colonização agrícola do século XX, perda esta de raízes que pode ser traduzida em reflexões de como essa desterritorialização traz inquietações frente ao mundo moderno, o que reflete na proliferação e sucesso de igrejas e seitas evangélicas. Haesbaert (apud CLAVAL, 2012, p. 22) traz boas contribuições na pesquisa dessas desterritorializações, para além, sobre as reterritorializações desenroladas em diferentes modalidades. Gomes (2008, apud CLAVAL, 2012, p. 23) traça paralelos entre os espaços públicos e os espaços domésticos como a cozinha, por exemplo, para colocar em relação à localização dos fenômenos e os significados que eles suscitam. 388 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade Especificamente valorosa para o campo patrimonial é a conceituação de cenário adequado à análise dos espaços públicos: Os lugares públicos são interessantes, justamente porque eles conformam a cena na qual a sociedade vive e se exibe, e porque os personagens desempenham papéis públicos. Entretanto, a diferença fundamental daquilo que se passa no teatro ou no cinema é que os acontecimentos que têm lugar no espaço público não respondem à lógica de um roteiro ou de um texto teatral. Eles ocorrem em um registro de happening, e revelam tudo aquilo que é e pode ser reinterpretado e reinventado, o inesperado e o imprevisível dos jogos sociais. É isso que confere ao flanêur do qual sabemos, depois de Walter Benjamin, que ele é um dos personagens-chave da cidade moderna, aquele que compreende e goza de sua atmosfera, suas novidades e seu potencial de invenção (CLAVAL, 2012, p. 23) O viés de cenário dos espaços públicos proposto por Claval (2012) pode ser trabalhado em paralelo à noção de território trazida por Haesbaert e Mondardo (2012). A dimensão espacial para os autores “[...] não é mera referência, palco ou apêndice da condição humana, mas também uma de suas dimensões constitutivas fundamentais” (HAESBAERT; MONDARDO, 2012, p. 29-30). O território, extensão do espaço, pode ser visto como entidades abertas, como possibilidade de encontros, desencontros, confrontos e trânsito de diversos sujeitos. O espaço assim sendo coexiste com essa multiplicidade, mobilidade e intercâmbio constante e infindável de culturas. A lógica flexível do capitalismo que vivemos nos dias atuais vem de encontro ao tradicional caráter histórico, documental e imobilizado do Patrimônio Material. Diante dessa lógica, em que só o que é bom é o móvel, o efêmero, o aberto a mudança e a mistura constante, o Patrimônio é envolvido por certa ambivalência, caracterizada pelos autores acima citados como marca inerente aos processos de hibridização: Pode-se afirmar que o hibridismo opera simultaneamente de maneira dupla, “‘organicamente’, hegemonizado, criando novos espaços, estruturas, cenas e, ‘intencionalmente’, diasporizando, intervindo como uma forma de subversão, tradução, transformação” (YOUNG, 2005, p.30 apud HAESBAERT; MONDARDO, 2012, p. 26). A cultura está em toda a parte e os significados constituem o foco principal da geografia cultural. Corrêa (2012), quando escreve sobre espaço e simbolismo, ressalta a relevância das relações do econômico, do político e do social para o campo 389 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade simbólico. Diante da leitura de que as construções intelectuais é que visam dar sentido às diversas esferas da vida, podemos transpor que essas construções intelectuais é que conferem sentido de pertencimento, identidade e memória ao patrimônio. É no espaço vivido que se estabelecem as bases dos mapas de significados. As formas simbólicas, para além do material, são definidas pelo autor como “[...] constituindo-se em fixos e fluxos, isto é, localizações e itinerários, que são os atributos primários da espacialidade” (CORRÊA, 2012, p. 137). As políticas derivadas de intenção, ou as forças de determinadas práticas sociais ou de manifestação do sagrado, por exemplo, dão corpo à paisagem urbana. Para além da corporificação emblemática do poder e da memória, porém, os lugares públicos são impregnados de tradições populares locais e conexões identitárias. Portanto, a importância simbólica de um lugar é independente de sua importância econômica, demográfica ou institucional, indo para além dessas categorias. Itinerários simbólicos e cotidianos que perpassam o espaço público e edificações eleitas como patrimônio de uma comunidade são justamente os responsáveis pelo sentido identitário dos prédios e monumentos. Representações materiais de eventos passados integram o meio ambiente construído, compondo a paisagem de determinados espaços públicos de uma cidade (CORRÊA, 2005, p. 9). Além de objetos estéticos, os monumentos são dotados de forma claramente intencional de sentido político. Contudo, há também monumentos construídos por grupos sociais ou por instituições que os representam, para além dos erigidos pelo estado. São poderosos instrumentos para comunicar os valores, crenças, as utopias e para afirmar a influência e o poder daqueles que os construíram, tomando espaço simbólico relevante no cotidiano do espaço público, mesmo que muitas vezes negligenciados pelo olhar do transeunte corriqueiro. Grande parte do acervo brasileiro patrimonial é de igrejas e outros espaços que já foram (e/ou ainda são) ligados direta ou indiretamente com práticas que buscam aproximar o homem do sagrado. Contudo, vivemos hoje, desde o século XX, as contradições de um mundo que “[...] se converte em um pluralismo étnico, cultural e religioso” (ROSENDAHL, 1999, p. 232). Espaços profanos vinculados em diferentes graus de aproximação aos espaços sagrados proliferam-se com rapidez nesse contexto, com seus elementos independendo efetivamente do religioso, total ou parcialmente. O foco de convergência de peregrinos em santuários varia hoje entre os espaços profanos e os sagrados: 390 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade Os elementos que constituem o espaço profano organizam-se segundo uma lógica própria, isto é, decorrem de sua articulação com o sagrado. O espaço profano diretamente vinculado ao espaço sagrado apresenta forte ligação com as atividades religiosas. Localizam-se nessa área o comércio e os serviços vinculados ao sagrado – artigos religiosos, bares, “casa do peregrino” e estacionamentos (ROSENDAHL, 1999, p. 239-240). Com o advento da categoria Patrimônio Imaterial, as festas ganharam especial atenção dos órgãos de preservação e registro de bens culturais. Segundo Amaral (1998), as festas brasileiras são marcadas desde o período colonial principalmente pelas trocas culturais. Mesmo as festas religiosas, de cunho catequizante, acabaram por sofrer apropriações culturais distintas, por acontecerem nas ruas, em contextos de exaltação e alegria. As práticas trazem a inserção de danças profanas e a distribuição de comidas e bebidas que se tornariam típicas. Não só olhado do ponto de vista do momento da festa, de euforia e êxtase, enlouquecimento, alegria e entrega, em suma um momento de alienação nas palavras da autora, as festas tem também importante papel na construção da sociedade e sociabilidade brasileiras. As trocas culturais tornam-se intensas nesse sentido, aparecendo na arte, na estética, na música, na religião e também refletidas na arquitetura. A festa é espaço também de protesto, afirmação cultural, organização de grupos de relações mais afetivas, de resistências à opressão cultural e social ou mesmo de catarse. Tem papel constitutivo, e não apenas busca do prazer. O campo de estudo das festas é bastante explorado por determinadas ciências humanas e sociais, como a sociologia, a antropologia e a história. Contudo, abordagens geográficas são relativamente recentes, e encontramos na geografia cultural a maioria delas. Maia (1999) busca em seu trabalho contribuir com um ensaio reflexivo nesse sentido. Em uma análise do caso brasileiro, pondera que muitas festas se desenvolveram e se projetaram nacional e internacionalmente, deixando o feitio de simples brincadeiras e assumindo cunho empresarial. As festas, no seu momento de ocorrência, podem fornecer nova função às formas espaciais prévias que dispõem para a sua realização, no seu ponto central ou entornos, causando impacto no patrimônio, palco de festas em certos casos. A preparação da festa também faz parte desse contexto, considerando-se a produção cênica e culinária dos eventos, a residência de alguns participantes onde ocorrem a produção de indumentárias e outros artifícios, ao próprio espaço de realização, como igrejas, templos, terreiros, clubes sociais e esportivos, praças e espaços de ensaio. Participantes, o poder 391 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade público, líderes religiosos e a mídia tem grande influência nesses espaços nos tempos festivos. O autor ressalta pontos importantes para a discussão no campo, como as territorialidades das festas populares, as redes geográficas formadas pelas festas, as interações espaciais como deslocamentos de pessoas, mercadorias, capital e informação sobre o espaço geográfico, o lugar das festas e sua espacialidade. Por fim, não poderíamos deixar de lado as relações da geografia com as artes em geral. Muitos autores da geografia cultural dedicam-se hoje a análises envolvendo literatura, fotografia, cinema, artes plásticas, música e assim por diante. O autor Marandola Jr, ao tratar do que chama de geograficidade pela literatura (MARANDOLA JR, 2010), deixa claro sua preocupação com a experiência urbana e o imaginário da cidade, dimensões tão importantes também para o universo do patrimônio cultural. Geograficidade dá um tom essencial nesta abordagem porque não concebe a vigência da geografia como posterior nem anterior à vigência da cultura ou da arte, pois, enquanto traço ontológico essencial, a geograficidade faz parte da vigência das coisas, sendo impossível desviar-se dela (MARANDOLA JR, 2010, p. 25). Duas tendências de trabalhos envolvendo as artes na geografia são ressaltadas em seu artigo: os trabalhos que buscam materialidades (os fatos históricos, o ambiente físico, as estruturas sociais, os costumes, as ideologias) e os trabalhos que buscam imaterialidades (simbolismos, imaginário, sentidos, identidades, afetividade). Marandola estabelece que materialidades, em termos geográficos, seriam espacialidades e territorialidades, e imaterialidades seriam geograficidades. A arte pode ser assim vista como documento, expressão material da cultura, da sociedade, do momento histórico de um dado território, ou como manifestação criativa criadora de mundos, constituindo a realidade e revelando parte da essência do mundo. 392 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo apresentou uma retrospectiva de alguns estudos sobre e através da Geografia Cultural feitos no Brasil, ressaltando a contribuição de geógrafos como Claval (2002 e 2012), Corrêa (2009 e 2012), Haesbaert e Mondardo (2012), Rosendhal (1999), Marandola Jr. (2010) e Maia (1999). Esses e muitos outros autores exploram assuntos interessantes, que fornecem bases teóricas e um leque de temas pertinentes ao tema do Patrimônio Cultural. A dimensão simbólico-social do Patrimônio Cultural ganha contornos interessantes se analisado sob esses conceitos. Como por exemplo, as relações econômicas, políticas, sociais e culturais contidas na paisagem e no território. A relevância da experiência do corpo no lugar, assim como a experiência cotidiana mais banal são leituras importantes da existência do monumento no lugar e na memória. Também é interessante observar a manipulação ideológica por parte dos grupos mais poderosos na eleição da importância de bens culturais. Concomitantemente, é inevitável que aconteçam manifestações vernaculares e de cunho popular, que apropriam e ressignificam os espaços, os símbolos, as identidades. A abordagem da Geografia Cultural pode alargar o campo do conhecimento do Patrimônio Cultural, com a projeção de domínios e temas até então negligenciados ou pouco explorados. Diante dessa orientação complementar apresentada, espera-se contribuir para o enriquecimento dos estudos de monumentos e conjuntos arquitetônicos de especial interesse histórico, identitário, simbólico e da memória coletiva. 393 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à brasileira: significados do festejar no país que não é sério. Tese (Doutorado em Antropologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume, 2009. CLAVAL, Paul. A geografia cultural no Brasil. In: BARTHE-DELOIZY, Francine; SERPA, Angelo. Visões do Brasil: estudos culturais em geografia. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 11-25. ______. “A Volta do Cultural” na Geografia. Revista Mercator, Fortaleza, vol 1, n.1, jan./jun. 2002. Disponível em: <http://www.mercator.ufc.br/index.php/mercator/article/viewArticle/192>. Acesso em: 20 maio 2016. CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço e Simbolismo. In: CASTRO, Iná Elias de; CORRÊA, Roberto Lobato; GOMES, Paulo César da Costa (Org.). Olhares geográficos: modos de ver e viver o espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 133-153. ______. Monumentos, política e espaço. In: CORREA, Roberto Lobato; ROSENDALH, Zeni (Org.). Geografia: temas sobre cultura e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005. p. 9-42. ______. Sobre a Geografia Cultural. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2009. Disponível em: <http://www.ihgrgs.org.br/artigos/contibuicoes/Roberto%20Lobato%20Corr%C3%AAa %20-%20Sobre%20a%20Geografia%20Cultural.pdf>. Acesso em: 15 junho 2016. HAESBAERT, Rogério; MONDARDO, Marcos. Trasnterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. GEOgraphia, Niterói, vol. 12, n. 24. 2010. Disponível em: <http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/issue/view/26>. Acesso em: 12 junho 2016. MAIA, Carlos Eduardo Santos. Ensaio Interpretativo da dimensão espacial das festas populares: proposições sobre festas brasileiras. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p.191-218. MARANDOLA JR, Eduardo José. Geograficidades vigentes pela literatura. In: SILVA, Maria Auxiliadora da; SILVA, Harlan Rodrigo Ferreira da (Org.). Geografia, literatura e arte: reflexões. Salvador: EdUFBA, 2010. p. 21-32. 394 CATS 2016 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade ROSENDAHL, Zeny. O espaço, o sagrado e o profano. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 231-247. 395