OS APANHADORES DE FLORES SEMPRE-VIVAS: IDENTIDADE E TERRITORIALIDADES Fernanda Testa Monteiro8 Claudenir Fávero 9 Resumo: Os apanhadores de flores, como se autodenominam, encontram-se na porção meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Tais grupos desenvolvem práticas tradicionais que atravessam gerações e se configura m por atividades variadas e combinadas, permeada por representações simbólicas, como estratégias de reprodução socioeconômica e cultural com territorialidades específicas. Palavras chave: apanhadores de flores, identidade, territorialidade. Introdução Em Minas Gerais, a Serra do Espinhaço constitui um conjunto de “terras altas” de direção geral norte-sul. Sua porção meridional vai da região conhecida como Cipó (ao 8 Mestre em Geografia, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Agroecologia e Campesinato/UFVJM. 9 Doutor em Agronomia, professor adjunto e coordenador do Núcleo de Agroecologia e Campesinato/UFVJM. norte da capital mineira) até o Município de Olhos D’Água (ao norte de Diamantina) (SAADI, 1995). Ao se percorrer essa região, observam-se pequenas glebas de terras lavradas com sistemas de policultivos em meio a áreas de vegetação nativa, com aglomerados de casas, por vezes de adobe, sob o domínio de grupos/famílias. Esses grupos interagem historicamente com a serra e são hábeis na descrição da localização dos recursos - um detalhado “mapa menta l” - como também das formas tradicionais10 dos usos a eles associados. A flora e fauna nativas são amplamente reconhecidas – considerando seus hábitos, habitat e ocorrência – bem como seus múltiplos usos e significados. Elas fazem parte das estratégias de alimentação, moradia, confecção de utensílios, práticas medicinais e religiosas, bem como, da geração de renda da qual as flores sempre-vivas são componente fundamental. Metodologia A presente reflexão se debruçou sobre os processos socioambientais, ora em curso, na porção meridional da Serra do Espinhaço, Minas G erais. Tal reflexão tem como base pesquisas com cerca de 30 comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas que habitam a região de Diamantina/MG realizadas entre 2008 e 2013. As pesquisas contaram com levantamento bibliográfico e realização de coleta de dados primários a partir de entrevistas semi-estruturadas. Entre as referências metodológicas acerca dos dados primários, destaca-se a observação participante (OLIVEIRA, 1996) e a história oral (PEREIRA, 1991). Territorialidades, identidade e direitos “ Desde que eu me entendo por gente, sou panhadora de flor” (Apanhadora de flores). Nessa região, a coleta das “flores sempre-vivas”11 constitui importante fonte de renda para as famílias das comunidades locais. As flores sempre-vivas ocorrem nos campos rupestres do cerrado e dizem respeito ao termo popularizado para essas inflorescências que, depois de colhidas e secas, conservam sua forma e coloração. Além das flores, são coletadas folhas, frutos secos, sem entes, etc., também referidos como "mercadorias" vindas de distintos locais/ambientes de coleta (campos, serras, serrinhas, boqueirões, etc.) a depender da época do ano e da demanda. 10 A tradição aqui não é vista como o passado que sobrevive no presente, mas como o passado que, no presente, constrói as possibilidades do futuro ( WOORTMANN, 1990). 11 As flores sempre-vivas - plantas cujas espécies de maior valor comercial pertencem ao gênero Comanthera - têm nos dizeres locais o termo “flores” reportando-se às inflorescências esbranquiçadas, com formato de “margaridinha”; e o termo “botões” àquelas com outras formas e cores. Levantamentos feitos por pesquisadores registraram, até o momento, que aproximadamente 230 espécies são coletadas/manejadas, considerando diferentes elementos da planta: flores, frutos secos, folhas, etc. (UFVJM et.al., 2009). É recorrente a localização das moradias agrupadas e m comunidades nas cotas mais baixas ao redor das áreas onde se localizam os campos rupestres – esses nas cotas elevadas. É comum entre os moradores, a referência de que os campos sejam áreas de uso comum das comunidades em que o parentesco permeia as relações de acesso e uso dessas áreas. É comum as famílias permanecerem sobre a serra durante longas jornadas, na época da seca para a “panha”, ou coleta de flores, e manejo do gado rústico e de animais de carga nos campos nativos. Para tal é comum “ arranchar”, ou seja, dormir em ranchos, construídos em geral com matérias-primas locais. Também se pode dormir nas “ lapas” (grutas nas formações rochosas). Algumas lapas, inclusive, recebem os nomes das famílias que tradicionalmente ali se estabeleceram para a apanha das flores, atividade que pode recrutar todos de uma mesma família. Costumam levar parte do alimento e complementar com recursos nativos locais. Nesses momentos, várias famílias, de diversas comunidades, encontram-se e ocorrem festas e enlaces, como narrou uma moradora: “ tem muita gente que casou panhando flor na serra”, trata-se, pois, de momento/espaço de sociabilidade entre comunidades. Entre as atividades econômicas das famílias que têm relação direta com os ambientes contidos na serra, são comuns a “panha de flor” nas “campinas”; a agricultura tradicional para consumo familiar, praticada próximo às moradias, e que, dependendo dos ambientes, vale-se do uso de rotação com pousio para a reposição natural da fertilidade dos solos podendo contar com a “roça de toco”; a criação de gado rústico e de animais de carga, que pode se valer do uso do fogo para renovação das pastagens nativas. A abundância de água é ressaltada pelos moradores como importante riqueza e patrimônio herdado. Além das atividades já descritas, nas encostas da serra, e mesmo sobre ela, os moradores colhem plantas medicinais, madeira e frutos nativos. Há ainda quintais ao redor das moradias, com gêneros alimentícios variados e criação de galinhas e porcos, e o uso do trabalho artesanal é constantenas atividades (MONTEIRO, 2011). Historicamente, as territorialidades (LITTLE, 2002) desses grupos combinam os diversos ambientes contidos na serra e adjacências .Foram desenvolvidas estratégias de vida e saberes complexos, permeados por significaçaões e compreensões contextualizadas pelos lugares onde se encontram - saberes geográficos(CLAVAL, 2009), transmitidos e reinventados ao longo de muitas gerações. Eles contam ainda com uma organização do trabalho, de natureza familiar, para o autossustento e a obtenção de renda, por meio da comercialização do que produzem; com códigos próprios de apropriação e uso da terra; e com representações e práticas sociais de interação com a natureza, a qual é vista como criadora da vida e como um todo do qual fazem parte. Ainda que a apanha de flores não seja a única atividade que se realiza sobre a serra, é essa identidade que tem aglutinado as comunidades de distintos locais dessa região, enquanto atores/sujeitos coletivos. Almeida (2006) chama atenção de que tais identidades, como “apanhadores de flores”, não significam/referem-se apenas à incidência de uma ou mais espécies vegetais numa área ou em “manchas”, como também não quer dizer que seja a única atividade realizada tradicionalmente. Essas identidades referem-se a uma expressão identitária que é traduzida por extensões territoriais de pertencimento. O uso comum, processo de territorialização, propicia instrumentos para se compreender como os território s12 de pertencimento foram sendo constituídos politicamente através das ações por livre acesso aos recursos básicos em diferentes regiões e tempos históricos. Ao mesmo tempo, a identidade territorial diz respeito a uma experiência históricogeográfica comum, expressa elos entre o ator e o espaço (HEIDRICH, 2009), que se revela na relação com o Outro. Reivindica direitos historicamente negados e busca legitimidade social na manutenção do território, aportando sentidos e modos de vida calçados na ancestralidade, na “tradição” - constantemente reelaborada e ressignificada no presente - e na “cultura”, que constituem a comunidade que se pauta por elas (CUNHA, 1985). Dessa forma, a constituição de identidades autodenominadas pressupõe territorialidades específicas, como ocorre sobre a ‘serra’ com os ‘apanhadores de flores’. A autodenominação coletiva, expressa diversas formas político-organizativas intrínsecas compondo as terras tradicionalmente ocupadas. Rompem com visões dicotômicas usuais, homogeneizantes, e redesenham a sociedade civil com a diversidade social (ALMEIDA, 2006). Atualmente, os ‘apanhadores de flores’ lutam pelo s eu reconhecimento cultural e econômico com vínculos territoriais, demandando o direito de acesso e uso dos recursos dos quais dependem para viver. Em ação responsiva a os processos de desterritorialização que ameaça às comunidades, pel a criação de parques e instalação de empresas mineradoras e monocultoras de eucalipto, representantes de diversas 12 A noção de território remete à apropriação cole tiva de uma porção do espaço, enfatizando seus aspectos físico-materiais e à dimensão simbólica e identitária de tais processos de apropriação e uso. O território, dimensão espacial das relações sociais, detém uma função social e simbólica (HAESBAERT, 2004). comunidades buscam sair da invisibilidade e constituíram a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (CODECEX). Desde então, participaram de momentos de formação s obre direitos em interação com universidades; acionaram os Ministérios Público e representantes do poder legislativo; e buscam se inserir em redes de organizações e movimentos para intercâmbios e trocas de experiências que possam alimentar suas lutas. Como fruto dessa movimentação, a categoria ‘apanhadores de flores sempre-vivas’ foi acolhida pela Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, comunidades quilombolas foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares e foi constituído um Grupo de Trabalho com vistas à recategorização do Parque Nacional das Sempre-vivas para uma categoria de uso sustentável. Além disso, desenvolvem estratégias cotidianas de resistência em seus lugares de vida. Referências Bibliográficas ALMEIDA, A. W.B. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: t erras tradicionalmente ocupadas. In: Coleção “Tradição e ordenamento jurídico” , Manaus, AM: PPGSCA-UFAM: Fundação Ford, vol.2, 2006, p.21-99. CLAVAL, P. Espacialidades e representações de mundo . Belo Horizonte: GEOgrafias, vol. 5, n.2, 2009, p.6-22. Entrevista concedida a Guilherme da Silva Ribeiro. CUNHA, M. C. Negros, Estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África . São Paulo: Brasiliense, 1985. HEIDRICH, A.L. Conflitos territoriais na estratégiade preservação da natureza. In: SAQUET, M.A. e SPOSITO, E.S. (Org.) Território e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 271-290. LITTLE, P. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da territorialidade. In: Simpósio Natureza e Sociedade: Desafios Epistemológicos e Metodológicos para a Antropologia , 23a Reunião Brasileira de Antropologia, Gramado, RS, 19 de junho de 2002. MONTEIRO, Fernanda T. Os(as) apanhadores(as) de flores e o Parque Nacional das Sempre-Vivas (MG): travessias e contradições ambien tais. Dissertação (Mestrado), 2011. UFMG, Belo Horizonte. OLIVEIRA, R.C. O trabalho do antropólogo: olhar, ou vir, escrever. In: Revista de Antropologia, São Paulo: USP, vol. 39, n.1, 1996. PEREIRA, Ligia Maria Leite. Relatos Orais em Ciências Sociais: limites e potencial. In: Revista Análise e Conjuntura.Belo Horizonte. vol. 6. n. 3, set/dez de 1991, p. 109127. SAADI, A. A geomorfologia da Serra do Espinhaço em Minas Gerais e de suas margens. In: Geonomos, vol. 3, n. 1, 1995, p. 41-63. UFVJM; PUC-MG; PMD; EMATER-MG; IDENE. Encontro de atores da cadeia do extrativismo vegetal da Serra do Espinhaço . Diamantina/MG, 2009, 46p. (Relatório).