– A – Os Comentários a Aristóteles

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Introdução Geral
–A–
Os Comentários a Aristóteles
1. Génese e contexto de um curso de filosofia
Entre 1592 e 1606, saíram dos prelos de madeira de Coimbra e de Lisboa cinco
grossos volumes correspondentes a oito tomos de um Curso de Filosofia composto
para os alunos do Colégio da Companhia de Jesus (S.J.) em Coimbra. O seu título
comum era, justamente, Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de
Jesus e versavam sobre a filosofia de Aristóteles (séc. IV a.C.).1 Assim se seguiam as
determinações pedagógicas gerais da Companhia, provenientes de Roma, atinentes
ao ensino da filosofia, que prescreviam o estudo daquele filósofo.2 A designação
mais vulgar pela qual ainda são citados é a de «Curso Conimbricense» ou «Conimbricenses», denominação que padece de sinédoque ou metonímia, porque, naturalmente, outras ordens tiveram também os seus studia na cidade e, logo, também os
seus comentários, mesmo não tendo sido publicados, seriam conimbricenses.3 Adoptaremos, por isso, daqui para a frente a designação de Curso Jesuíta Conimbricense.
Graças à extensão institucional, colegial ou geopolítica dos Jesuítas, e decerto
também em razão do valor intrínseco do seu labor filosófico-pedagógico, rapidamente aqueles textos impressos tiveram repercussão internacional. Já se contaram
para cima de uma centena de edições daqueles oito comentários portugueses, a
maior parte delas no estrangeiro.4 Ainda no século XVIII, o filósofo renovador António Cordeiro publicava o seu próprio Curso filosófico justificando a herança titular
«conimbricense», não apenas em alusão «ao lugar onde foi ensinado pela primeira
vez, mas também em homenagem aos antigos Padres conimbricenses».5
(1)
Cf. MESQUITA, A. P., Obras Completas de Aristóteles. Introdução Geral, Lisboa 2005; ID.,
Vida de Aristóteles, Lisboa 2006; O leitor poderá ter fácil acesso à reprodução das páginas originais de rosto dos oito títulos in GOMES, P., Os Conimbricenses, Lisboa 1992, 157-166. Não
obstante o que diremos adiante acerca da autoria dos vários volumes, a maior parte das vezes
referi-la-emos no plural.
(2)
MP I 299: «In logica et philosophia naturali, et morali et metaphysica doctrina Aristotelis
sequenda est...» e passim. MP abreviará sempre, aqui, a colecção editada por LUKÁCS, L.,
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu, Romae 1965 sg. (indica-se o número do volume e o
da página).
(3)
Cf. COSTA, M. G. da, Inéditos de Filosofia em Portugal, Braga 1949, 18, 49, 62-63.
(4)
ANDRADE, A. A. de, «Introdução» in Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de Góis: Moral a
Nicómaco, de Aristóteles, Lisboa 1957, XIV-XVII.
(5)
Cf. GOMES, P., Os Conimbricenses 144; COXITO, A., Estudos sobre a Filosofia em Portugal
na época do Iluminismo, Lisboa 2006, 16.
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Introdução Geral
Eis os oito títulos originais que precisamente integraram o curso publicado por
esses antigos Padres.1 O primeiro tomo e monografia era um comentário aos oito
livros da Física:
1. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In Octo Libros Physicorum Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1592, 4+825+22pp.).
No ano seguinte, saía do prelo, agora de Lisboa, o segundo tomo, um comentário
aos quatro livros de O Céu:
2. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In Quatuor libros de
Coelo Aristotelis Stagiritae (Lisboa: Simões Lopes, 1593, 6+447pp.).
2.1. Este comentário era acompanhado de um apêndice sobre os problemas
respeitantes aos chamados quatro elementos (pp. 405-20), intitulado
Tractatio aliquot problematum de rebus ad quatuor mundi elementa
pertinentibus, in totidem sectiones distributa.
Na encadernação que nos chegou até hoje, este segundo tomo incluía ainda mais
três obras. Primeiro, liam-se os Meteorológicos, seguidos dos chamados Pequenos
Naturais, respectivamente:
3. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In libros Meteororum
Aristotelis Stagiritae (Lisboa: Simões Lopes, 1593, 143pp.) e:
4. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu In libros Aristotelis, qui
Parva Naturalia appellantur (Lisboa: Simões Lopes, 1593, 104pp.); Os
Pequenos Naturais são curtos tratados de temática variada, integrando os
títulos seguintes: De memoria et Reminiscentia, De Somno et Vigilia, De
Somniis, De Divinatione per somnum, De Respiratione, De Iuventute et
Senectute, De Vita et Morte, De Longitudine et brevitate vitae.
E numa segunda parte deste tomo II, publicavam-se as disputas da Ética, a única
monografia que omite no título a expressão «comentários»:
5. In libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cursus Disputationes in quibus praecipua quaedam Ethicae disciplinae capita
continentur (Lisboa: Simões Lopes, 1593, 96pp.).2
(1)
GOMES, P., Os Conimbricenses 58: «A natureza do curso manda respeitar a referência por
tratados, que são efectivamente oito.»; STEGMÜLLER, F., Filosofia e Teologia nas Universidades de Coimbra e Évora no século XVI, trad., Coimbra 1959, 95-99.
(2)
Até ao presente este foi o único volume que conheceu uma edição portuguesa moderna
impressa, da responsabilidade de A. A. de Andrade, vd. Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de
Góis: Moral a Nicómaco, de Aristóteles, Lisboa 1957 (o volume publica também a tradução de
uma parte do Proémio do volume da Physica); sobre este trabalho de tradução, vd. FONSECA,
N. da, «O ‘Curso Conimbricense’ em Português» Brotéria 66 (1958) 320-30. Só muito recentemente, o Comentário ao De Anima e os seus dois Apêndices (vd. infra # 7) mereceram uma edição electrónica, vd. CARVALHO, M. S. de, «http://www.ci.uc.pt/lif/main5.htm. Sobre um Projecto no âmbito da História da Filosofia em Portugal» Revista Filosófica de Coimbra 12 (2003)
215-224. É justo referir que em 1972 A. de M. Barbosa ainda nutria a intenção de publicar uma
edição e tradução destes Comentários, tarefa que infelizmente não pôde levar a cabo (vd.
CAEIRO, F. da G., «Miranda Barbosa e a Filosofia em Portugal», Biblos 62 (1986) 9).
Introdução Geral
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Quatro anos volvidos, e de novo em Coimbra, estampava-se o terceiro tomo
totalmente dedicado aos dois livros de A Geração e a Corrupção:
6. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In duos libros De Generatione et Corruptione Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz,
1597, 12+505+28pp.).
No ano seguinte, publicava-se o quarto volume, que tinha por objecto os três
livros de A Alma, sendo aquele que justamente se traduz a seguir, desprovido, agora,
dos dois apêndices que integravam o volume original:
7. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In tres libros de Anima
Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1598, 4+558+28pp.).
Como se disse, este volume anexava dois apêndices:
7.1. A Alma Separada (pp. 441-532), Tractatus de Anima Separata,
7.2. Tratado sobre os Problemas respeitantes aos Cinco Sentidos (pp. 532-558), Tractatio aliquot problematum ad quinque sensus spectantium
per totidem sectiones distributa.
Embora publicados sem estamparem o nome do autor, todos estes quatro volumes
parecem ter sido redigidos por Manuel de Góis (1547-1597),1 este último eventualmente com a colaboração editorial de Cosme de Magalhães (1551-1624),2 haja em
vista que se trata de uma edição póstuma. Quanto aos seus dois apêndices, um sobre
A Alma Separada, outro respeitante aos Problemas sobre os cinco Sentidos, o erudito Carlos Sommervogel asseverava serem ambos da autoria de Baltasar Álvares
(1560-1630).3 O quinto e último volume a sair do prelo acrescentará à série um novo
(1)
Sobre o autor, vd. RODRIGUES, F., História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Porto 1939, II/2, 115-122; COXITO, A. A., «Góis (Manuel de)» in Logos. Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia II, Lisboa 1990, 873-881; STEGMÜLLER, F., Filosofia... 95-96;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com obras filosóficas impressas nos séculos XVI-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 (1991) 655; PRAÇA, L., História da Filosofia em
Portugal. Edição preparada por P. GOMES, Lisboa 1974 [orig.: 1868] Lisboa 1974, 126-132.
SANTOS, Mariana A. M, dá nota de um tema de ‘exame’ de metafísica de Góis, datado de
Coimbra 1582, «Utrum intellectus sit potentia nobilior voluntate», vd. «Apontamentos à margem das Conclusões impressas dos Mestres Jesuítas portugueses de Filosofia» Revista Portuguesa de Filosofia 11/2 (1955) 563.
(2)
Cf. STEGMÜLLER, F., Filosofia... 96, 461; CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com
Obras filosóficas impressas nos séculos XVI-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 (1991)
651, 656.
(3)
RODRIGUES, F., História... 118; COXITO, A. A., «Álvares (Baltasar)» in Logos... 1, Lisboa
1989, 199-201; PRAÇA, J. L., História..., 146-48; ANDRADE, A. A. B. de, «Teses fundamentais da Psicologia dos Conimbricenses» in ID., Contributos para a História da Mentalidade
Pedagógica Portuguesa, Lisboa 1982, 100 atribui a autoria do Tractatus a Cosme de Magalhães. SOMMERVOGEL, C., Dictionnaire dês ouvrages anonymes et pseudonymes publiés par
dês réligieux de la Compagnie de Jésus depuis sa fondation jusqu’à nos jours, Paris 1884, vol.
1, c. 140. Sobre o pseudo-aristotélico, vd. DE LEEMANS, P. & GOYENS, M. (ed.), Aristotle’s
’Problemata’ in Different Times and Tongues, Leuven 2006.
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Introdução Geral
autor. Da responsabilidade de Sebastião do Couto (1567-1639),1 ele era dedicado à
lógica:
8. Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate Iesu, In universam Dialecticam Aristotelis Stagiritae (Coimbra: Diogo Gomes Loureiro, 1606,
548+32pp.); da chamada lógica ou dialéctica peripatética faziam parte os sete
títulos seguintes: In Isagogem Porphyrii, In libros Categoriarium Aristotelis,
In libros Aristotelis de Interpretatione, In libros Aristotelis Stagiritae de
Priori Resolutione, In primum librum Posteriorum Aristotelis, In librum primum Topicorum Aristotelis e In duos libros Elenchorum Aristotelis.
Regra geral, cada volume dos títulos mais importantes (ou seja: Physica, De
coelo, De Anima, De generatione et corruptione, Dialectica) publicava o texto de
Aristóteles, muitas vezes dividido em partes numeradas (Textus nº), mas no caso da
Dialectica não publicado na íntegra. Cada uma destas partes era, mais ou menos,
objecto de uma explicação ou exposição literal (explanatio), publicada nas margens
da página respectiva. À guisa de ilustração ópticografemática reproduz-se aqui uma
página do comentário ao De Anima (gravura 1).
Seguiam-se invariavelmente as questões (quaestio), divididas em artigos (articulus) em número irregular, e estes, nalguns casos (mais uma vez atente-se na situação
do volume da Dialéctica), ainda subdivididos em partículas (sectio). Não obstante a
sua clara utilidade, a apresentação tipográfica da página (notas marginais com autores, títulos e resumos) e os índices de cada volume limitavam-se a seguir as determinações pedagógicas pragmáticas mais comuns, sendo algumas práticas manuscritas
antigas (vd. gravura 2). Assim v.g., num texto de 1548-50 lêem-se os seguintes conselhos com vista à preparação dos exames: façam um resumo (estratto) ou sumário
ordenado e breve, escrevam-no num caderno de apontamentos (libro que puedan
traer consigo) para fáceis e rápidas revisões (para acordarse con más facilidad y
brevedad de lo studiado), para o que o devem escrever títulos à margem (es bien
sacar al margen algo que muestre lo que ay dentro) e enumerar tábuas temáticas
alfabéticas (y hazer una tabla por orden del alphabeto con sus números de las materias que se trattan, porque assí podrán sin confundirse, hallar presto lo que quieren).2 Seja como for, importa desde já informar que a publicação se destinava explicitamente a obstar que os alunos perdessem tempo de estudo a tomar notas.
(1)
Cf. RODRIGUES, F., História... II/2, 119-122; STEGMÜLLER, F., Filosofia... 96-98;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas...» 653; PRAÇA, L., História... 142-46; MANSO, M. de D.
B., «Sebastião do Couto e o sermão do auto-da-fé de 1627», in Congresso de História no IV
Centenário do Seminário de Évora. Actas, I, Évora 1994, 317-28.
(2)
MP I 258. Devido a constrangimentos editoriais a tradução a seguir não inclui as notas
marginais originais.
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Introdução Geral
Gravura 1
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Introdução Geral
Gravura 2
Certamente que a lista dos oito títulos acima nada diz ao leitor de hoje. No
entanto, será avisado atentar que nos nossos dias uma empresa académica semelhante seria considerada exemplar. Mesmo invejável. Efectivamente, três critérios
decisivos para uma avaliação do rigor científico universitário – i.e., trabalho sistemático em equipa de investigação, publicação de âmbito europeu (a língua
académica universal era o latim) e reconhecimento internacional pelos pares –
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