Para uma Pedagogia da Verdade e da Aquisição de Conhecimento

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Para uma Pedagogia da Verdade e da Aquisição de Conhecimento
Educadores e os Conceitos Filosóficos de Verdade e Cultura
Néliton Azevedo
Economista, pesquisador do CNPq, membro do Conselho Diretor do Instituto 25 de Março,
Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia, Política e Educação, NuFiPE,
Mestrando da Fac. de Educação, Universidade Federal Fluminense.
Resumo
A dialética complexa do conceito de Verdade e a Aquisição de Conhecimento e Cultura
tem, para educadores e pedagogos preocupados com a fundamentação filosófica de sua
função social, uma centralidade que a imerge no debate contemporâneo entre pósmodernistas, funcionalistas e marxistas. O conceito de verdade tem sofrido toda uma
relativização pragmatista que procura envolvê-lo na bruma pós-moderna da
desconsideração de uma visão sistêmica. As diversas interpretações e respostas dadas à
questão “O que é a verdade?” tornam esse debate contemporâneo não apenas
necessário, mas, acima de tudo incontornável aos educadores. Numa época em que a
tendência forte, na filosofia contemporânea, “exige” a renegação do conceito de
totalidade e a relativização de toda forma de abordá-la. Tal debate contingencia e
suporta o arsenal categorial e temático da filosofia como apropriação da realidade e do
desenvolvimento do pensamento científico que se desenrola nos diversos níveis do
conhecimento. O conceito de verdade está na alma da teoria materialista do
conhecimento, uma das correntes em diálogo/disputa, pilar de sua epistemologia e
gnosiologia. O progresso e o desenvolvimento do pensamento simbólico consiste,
precipuamente, em superar as contradições entre realidade espontaneamente vivenciada
e sua apreensão, sua representação social. A consciência, enquanto reflexo do real, não
é uma intuição simples progressivamente explicativa, mas expressa uma contradição
entre a materialidade do real e sua apropriação sensível e codificada, esta a defesa a ser
feita no conceito de verdade. O presente ensaio visa trazer elementos conceituais e
nexos lógicos ao debate, a partir de um ângulo de visão determinado, apoiando-se em
textos de Marx e Engels, procurando delimitar o conceito e interrelacioná-lo à aquisição
de conhecimento e cultura, a partir de suas contradições e ilações, que sublinham o
papel ativo e basal do conceito de verdade.
Palavras-Chave: conhecimento, cultura, epistemologia, verdade.
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Introdução
Conta uma antiga lenda vietnamita que no princípio o homem era um animal como
qualquer outro, não era humano. Um dia, uma camponesa, ao abrir um gomo de bambu,
encontra dentro dele uma semente. Ao comê-la adquire o domínio sobre os usos do
bambu, adquire conhecimento. O domínio das técnicas de uso do bambu estava na base
da construção material e produtiva das antigas comunidades vietnamitas.
Para os povos que habitavam a região de Ga Lai, há quase quatro mil anos, é o
conhecimento que humaniza o homem, e o conhecimento é descoberta. É o uso do
bambu e sua semente que semeia o conhecimento que humaniza o homem – o
conhecimento é humanizador.
Um velho conto chinês, que data do ano 1600 a.C., narra a história de um pescador
das nascentes do rio Iangtsé que, ao pescar uma linda carpa, não pôde matá-la. Ele a
coloca viva no oco de uma árvore, com um pouco de água, e se retira para voltar no dia
seguinte e decidir o que fazer. Outros pescadores a encontram, e não sabendo como ela
pôde ter ido parar ali, julgam que ela nasceu da árvore. A árvore se torna sagrada aos
pescadores. O pescador que a havia encontrado tenta explicar que foi ele que a colocou
lá. Mas os pescadores já não podem acreditar e procuram difamá-lo como louco.
Quando se perde o elo que liga o conhecimento à realidade, este se torna falso. As
causas da perda desse elo são sempre sociais.
Um poeta asteca de Cuauhtemóc, do séc. XIV, pré-colombiano, escreveu um singelo
poema, com versos rimados, sobre uma folha vagando ao vento, que mesmo depois de
percorrer grandes distâncias e estar totalmente seca, ainda traz consigo as características
que permitem identificar sua origem: a qual tipo de árvore pertenceu. Para o povo
asteca, a conexão que une conhecimento e realidade não pode ser totalmente perdida.
Numa de suas fábulas mais conhecidas, Esopo conta como um lobo dizia estar sendo
prejudicado por um carneiro ao beber da água de um riacho. O lobo acusa o carneiro de
sujar a água que aquele bebia. O carneiro se defende dizendo que está bebendo abaixo
do lugar em que o lobo está, portanto não pode sujar sua água, que corre rio abaixo e
não volta para trás. O contra-argumento do lobo é devorar o cordeiro. Esopo, que era
escravo, relaciona nesta fábula verdade e poder. O poder impõe sua verdade,
desligando-a dos fatos e da realidade, camuflando sua origem material.
Numa belíssima passagem de sua obra teatral ‘Galileu’, o teatrólogo alemão Bertolt
Brecht coloca na boca de seu personagem-título, réu da Santa Inquisição, as seguintes
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palavras, pronunciadas pelo cientista italiano ao ouvir a sentença condenatória do
Tribunal do Santo Ofício: “A verdade é filha do tempo, não da autoridade”.
As semelhanças entre o infortúnio do pescador chinês e o julgamento de Galileu são
grandes. Contesta-se a verdade quando ela não corresponde aos interesses de um grupo
social. Alguém já disse uma vez, que, se o Teorema de Pitágoras contrariasse os
interesses de algum grupo social, esse grupo social contestaria a validade do Teorema.
A distância entre verdade proclamada e interesses objetivos pode ser grande:
Voltaire, o filósofo francês que escreveu algumas das mais belas páginas em louvor à
Liberdade, ficou rico negociando com o tráfico negreiro escravocrata no Atlântico.
David Ricardo, o brilhante economista inglês que desenvolveu o conhecimento sobre a
relação entre o homem e a produção, afirmando que a riqueza, o desenvolvimento e o
progresso social são frutos exclusivamente do Trabalho Humano, enriqueceu
especulando com o preço do trigo na Bolsa de valores londrina.
A Verdade, e consequentemente o seu conceito, muda, mas não ao sabor dos
interesses pessoais ou de grupos como afirmam os pragmatistas. Muda quando o
mundo, a vida, muda.
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Para uma Pedagogia da Verdade e da Aquisição de Conhecimento
Educadores e os Conceitos Filosófico de Verdade e Cultura
Tentando relacionarmo-nos com o mundo, sentimos a necessidade de ter critérios
que nos ajudem a compreendê-lo, encontrar a verdade, distingui-la do erro. Em nossa
prática cotidiana necessitamos do saber que reflita com a máxima precisão e plenitude a
realidade, o mundo objetivo, tal como é, independentemente da consciência humana e
de nossas atitudes. Desde a antiguidade, amadurece a idéia de que a Verdade é o saber
que corresponde à realidade. Esse saber se cristaliza no homem como Conhecimento. E
o conhecimento se acumula em Cultura.
Esses conceitos se interrelacionam e se imbricam de modo indivisível. A Cultura
pode ser conceituada como o conjunto de valores materiais e espirituais criados pela
humanidade ao longo de sua história. A Cultura é um fenômeno social que representa o
nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica,
experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura, arte,
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filosofia, moral etc. e as instituições que lhe correspondem. Entre os índices mais
importantes do nível cultural em determinada etapa histórica, está o grau de utilização
dos aperfeiçoamentos técnicos e dos descobrimentos científicos na produção social, o
nível cultural e técnico da sociedade, a amplitude e profundidade, o grau de
generalização da difusão da instrução, da literatura e das artes na população.
As atitudes intelectuais do homem são função das condições de vida material da
sociedade, do caráter do regime social e político. Nenhuma cultura é imutável, a cultura
é um fenômeno histórico que se desenvolve continuamente, quando as condições
materiais e sociais que a permitem existir estão postas, estão maduras. Toda nova
cultura está umbilicalmente ligada à cultura que lhe precede. Por outro lado toda a
cultura existente influi e permanece como herança da cultura posterior.
Numa sociedade de classes antagônicas, a cultura espiritual é uma cultura de classes.
A cultura dominante é a cultura da classe dominante. A cultura, ao desenvolver-se como
conseqüência das contradições sociais, torna-se instrumento de luta de classes. As
diversas classes sociais utilizam os meios culturais como a educação, a escola, a ciência,
os meios de comunicação, as artes etc. para perseguir seus objetivos.
À medida que as nações aparecem e se desenvolvem, a cultura adquire caráter
nacional e desenvolve-se sob formas nacionais. Tais formas são a linguagem nacional,
as características nacionais, as tradições, o modo de vida etc. O modo de vida, um dos
aspectos mais relevantes no conceito de cultura nacional, é a expressão dos costumes
que se formam historicamente em um povo, sobre a base das relações sociais e
familiares próprias desse povo, hábitos, costumes, tradições, ritos, modo de criação das
condições de vida, tais como arquitetura, vestuário, culinária.
Na medida em que a ordem social evoluciona e cambia, operam-se transformações
no modo de vida social e individual dos homens. Como conseqüência da luta de classes,
as transformações e revoluções sociais operam a destruição do antigo regime social e a
instauração do novo, provocando necessariamente a substituição de uma cultura caduca
por uma nova cultura, mais avançada e progressista, superior.
No capitalismo, as culturas nacionais se dividem internamente. Ao lado da cultura
dominante, burguesa por seu conteúdo, cada cultura inclui elementos democráticos e
anti-capitalistas, pois, no interior de cada nação, as condições de existência das classes
sociais engendram necessariamente uma ideologia antagônica à dominante.
A Educação pode ser compreendida como um processo sistemático de transmissão da
cultura. Está ligada ao aparelho de Estado, que lhe orienta as formas, limites e
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abrangência. O Estado define o que, como e onde os indivíduos ensinarão e serão
educados. A Educação está a cargo de toda a sociedade, a família, as instituições, a
Escola, a atividade profissional. Os educadores são um dos elementos transmissores da
cultura, não definem seu conteúdo ou essência. Essas funções são prerrogativas
mantidas como exclusivas, embora não visíveis, pela classe dominante.
Têm papel educativo as instituições de ensino, os meios de comunicação, as igrejas,
os sindicatos e todas as demais instituições sociais. Sua função moderna nuclear é a
formação comum do homem, sua preparação para o trabalho e sua instrução e
especialização profissional, além do papel vital de transmissora da ideologia dominante.
A capacitação para o comando, para a manutenção dos domínios de classe, também
função da educação, não se generaliza, mas é mantida privada e seletiva, aos gestores e
herdeiros dos grupos dominantes. A materialidade central da educação é a Escola, em
sentido latto, entendida como a instituição que congrega os meios de transmissão e
generalização da cultura técnica e social. Controlando o acesso à verdade e à cultura.
A Ideologia é o sistema de opiniões, de idéias e de conceitos professados por uma
classe social. As opiniões políticas, a filosofia, a arte e a religião são formas de
ideologia. Toda ideologia é o reflexo da existência social, do sistema econômico e
produtivo em dado momento. Na sociedade de classes, a ideologia é uma ideologia de
classes, e expressa e defende os interesses de tal ou qual classe social. Numa sociedade
de classes, não pode existir uma ideologia afastada, isenta dos interesses classistas, à
margem ou acima das classes sociais. Todos nós, saibamos ou não, queiramos ou não,
somos levados a agir socialmente de acordo com nossos conceitos sociais, nossa
ideologia. A ideologia exerce um papel enorme nas sociedades de classes, na história e
no desenvolvimento dessas sociedades, como principal elemento de controle social.
As diversas concepções existentes da possibilidade de se conhecer a realidade
efetivamente existente geram as mais diversas propostas metodológicas e pedagógicas.
As raízes fundamentais, ontológicas, dessas concepções assentam-se nas diversas
concepções filosóficas presentes nas sociedades. A verdade, como aquisição
quantitativa e qualitativa do objeto de conhecimento, é passível de comprovação, pela
própria prática da qual é oriunda. O conhecimento, assim posto, é, portanto dialético,
contraditório, pois, dialeticamente, toda unidade é composta de contrários em luta.
Na complexidade filosófica contemporânea, onde escolas filosóficas brotam como
cogumelos à sombra das copas, e murcham aos primeiros raios do sol, as concepções
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filosóficas que se põem a conceituar as relações entre verdade, conhecimento, realidade
e cognoscibilidade, contam-se em escala industrial.
Nascida do contraste e da crítica às diversas correntes idealistas, e às inumeráveis
variações sobre os temas, Karl Marx, em comunhão com Friedrich Engels, elaboram, ao
longo de sua vasta obra, uma proposta filosófica onde o conhecimento da realidade, do
efetivamente existente, em suas dimensões singulares e universais, torna-se
imprescindível às relações entre os homens e as sociedades e entre estes e a natureza.
Desde os primeiros trabalhos investigativos de que dispomos dos dois autores
alemães, encontram-se as inconciliáveis distâncias entre o pensamento filosófico
especulativo e a linha argumentativa e gnóstica de Marx e Engels, incluídos aí seus
pressupostos metodológicos.
Para o marxismo, desde sua juventude filosófica, a realidade objetiva, o objeto do
conhecimento, se diferencia ontologicamente do sujeito. Cabe à subjetividade capturar o
real, apreendê-lo, sem que, para isso, se identifique com ou se subsuma nele. A função
filosófica que cabe à subjetividade é extrair do mundo objetivo todo o conhecimento
necessário à reprodução social e ao desenvolvimento. Em sua produção filosófica, em
texto de maturidade intelectual, os Grundrisse, Marx trata de como a subjetividade se
apropria do real, gnosiologicamente. Nos estudos da Economia Política, Marx afirma
que, ao se utilizar o conceito de População sem determinar seus elementos constitutivos,
este não passaria de uma abstração vazia de significado real, órfã de realidade, carente
de determinações indispensáveis ao conhecimento do objeto, sua apropriação pela
consciência humana. Nesse processo de determinação e decomposição, particularização,
que resgata a qualidade de concreto ao objeto, este “aparece no pensamento como
processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o
verdadeiro ponto de partida”i.
Para Marx, e para o marxismo em geral, o processo de conhecimento do mundo
objetivo, do imediatamente dado, em contato com a subjetividade, o contato entre
consciência e realidade objetiva, traz o real, ao ser representado na consciência,
decomposto num contínuo processo de análise e analogia com o já conhecido, para
alcançar, via “abstrações cada vez mais tênues”, os conceitos mais simples, entendidos
como um passo a caminho das “generalizações determinadas, ou seja, delimitadas no
conteúdo e na extensão”ii. O trânsito do concreto ao abstrato.
Ao contrário, a partir dos conceitos determinados e aprovados pelo critério da
prática, constituídos em verdade e em conhecimento, num movimento de retorno, no
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trânsito do abstrato ao concreto, num processo de síntese, a recuperação do objeto
concreto possibilita sua reprodução pelo caminho do pensamento. Esse método, em
duas vias, de ida e volta, é “manifestamente, o método científico correto”, segundo o
Marx dos Grundrisseiii, evidenciando o papel da subjetividade na captura da realidade.
O mundo objetivo é composto de uma infinidade de mediações, encadeadas entre a
singularidade e a universalidade. A consciência, como elemento ativo no processo de
reprodução social, intermédio entre o ser e o objeto acumula o conhecimento das
situações reais, das singularidades e generalizações, do modo em que se constitui o
mundo, a realidade objetiva.
O papel social do Trabalho, da prática, enquanto síntese da teleologia e da
causalidade, torna o homem capaz de gerar o novo, e, portanto, de assumir um domínio
cada vez mais completo, complexo e profundo da realidade, do próprio homem,da
sociedade e da natureza. O Trabalho, assim determinado, é uma necessidade, impõe ao
sujeito uma captação sempre mais precisa da objetividade e, consequentemente, uma
expressão sempre mais exata, verdadeira, que recolha precisa e inequivocamente as
determinações específicas do objeto de que se trata, mas abarcando ao mesmo tempo as
conexões, relações, etc., imprescindíveis para a execução do processo de trabalho.
O trabalho, na concepção de Marx, é o momento da objetivação de uma préviaideação, uma teleologia, orientada à modificação da materialidade existente na esfera
natural e social, sua causalidade, fruto do nexo decisivo da esfera gnosiológica para o
trabalho humano.
A realidade objetiva, como, aliás, tudo, não é estática, seu movimento contínuo a
transforma, impondo necessariamente sempre novos desafios à subjetividade humana e
à aquisição de conhecimento, da relação entre consciência e realidade, exigindo que o
processo de conhecimento se renove também constantemente, a partir do contato com o
objeto, com a realidade imediatamente dada, objetiva. O desconhecido sempre se
renova, como a visão do horizonte que se alarga ao nos aproximarmos dela, o
desconhecido - permanente elemento a se determinar - ao se colocar como problema à
consciência carente de determinações, em resposta às demandas concretas, é perseguido
e alcançado, síntese que se renome em tese, num fluxo ininterrupto e infinito. Faz-se
necessário, então, que o desconhecido, a realidade em sua complexidade, seja
analiticamente decomposto, relacionado a categorias já conhecidas, para que a
subjetividade, descobrindo as suas mediações, possa identificar suas regularidades e
alcançar as leis que o regem, particulares e gerais. Não pode haver o domínio imediato
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do novo, do desconhecido. A necessidade social da sobrevivência e desenvolvimento
das sociedades e do homem, torna inevitável, nem sempre inadiável, o enfrentamento do
real, a procura por suas determinações e causalidades, essência e constituição.
Processo gnosiológico contínuo, baseada no conhecimento já consolidado pelo
critério seletivo da prática - a verdade tem sua solução na prática humana, não sendo um
problema teórico, embora seja necessária sua teorização - adquirido na vivência
histórico-social do sujeito, a consciência escolhe as possibilidades de investigação
sugeridas pelo objeto, por exemplo, por sua forma ou por sua semelhança com o já
conhecido, e busca as alternativas que viabilizem sua análise, compreensão,
identificação, classificação, diferenciação. É um ato de crescente abstração, um
movimento do particular ao geral, do singular ao universal, do concreto ao abstrato, a
consciência tem na abstração o locus da negação do imediatamente singular. A
abstração, como instrumento do conhecer, nega dialeticamente a unicidade singular, a
singularidade do objeto investigado, num crescente processo de generalização e
determinação. As noções e regularidades propiciadas pela investigação e análise, pela
busca da verdade, são organizadas, selecionadas, continuamente superadas, no percurso
das mediações gnósticas. A homogeneização simplificadora do real leva a uma visão
deformada, superficial da realidade objetiva.
O desenvolvimento das generalizações deve sempre levar em conta a multiplicidade
de características intrínsecas ao objeto de estudo, sua singularidade enquanto objeto,
apresentando-se como problema. Um sem-número de generalizações se apresentam:
nem todas levam à aproximação do concreto pelo pensamento. O critério da prática,
paralelo a todas as etapas da busca do conhecimento, é um separador entre a obtenção
da verdade objetiva e o erro, o engano. A existência do erro, nem sempre percebido pela
subjetividade, deve ser testado através da mediação da práxis social, na objetivação do
trabalho que se torna, assim, o ato probatório, o critério da verdade, da realização final
de um acertado processo de abstração e de especificação das noções formuladas.
A maior parte dos filósofos, de vários matizes, estima que a finalidade do
conhecimento é chegar à verdade. Resultando que reconhecem que a verdade existe. Em
concordância com os princípios que cada filósofo adota, essa verdade será objetiva ou
não. A verdade somente adquire seu caráter, enquanto lhe é própria a objetividade. Ou
seja, seu conteúdo integra a realidade objetiva, independente da consciência, que a
verdade a reflita em forma adequada, como verdades objetivas, seu conteúdo retirado da
realidade objetiva, do mundo que existe independentemente da consciência.
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Ao reconhecer a objetividade da verdade, o saber, a relação de interiorização da
realidade na consciência do homem, tem um conteúdo que independe do sujeito, não
depende nem do homem nem da humanidade. Na verdade objetiva se reflete a relação
complexa e contraditória entre sujeito e objeto. De um lado, a verdade é subjetiva, pois
é uma forma de atividade humana. Por outro lado, é objetiva, pois seu conteúdo não
depende nem do homem nem da humanidade.
Não existe nenhum saber, e, portanto nenhuma verdade, que seja independente da
atividade prática do homem. A verdade objetiva não é algo estático, inerte ou imutável.
É um processo que inclui diversos estados qualitativos. Ou seja, tem história.
Numa visão gnóstica, o homem é capaz, em princípio, de conhecer qualquer
fenômeno, mas, em sua prática, esta capacidade se faz no processo de desenvolvimento
histórico infinito da sociedade. Contraditória e dialeticamente, cada resultado do saber
humano é incondicionalmente verdadeiro - é soberano - enquanto é um momento do
processo de conhecimento da realidade objetiva, e não é soberano, como ato individual,
porque possui seus limites, que se conformam e dependem do nível de desenvolvimento
do conhecimento. O progresso da ciência segue o caminho da refutação das distintas
afirmações que pretendiam ter caráter soberano e absoluto, mas que eram verdades
somente dentro de certos limites: o tempo torna relativas verdades que foram postas
como absolutas em seu tempo.
A teoria científica se reveste às vezes de conteúdo não verdadeiro, ilusório, que se
descobre com a marcha contínua do conhecimento e o progresso da prática.
Reconhecendo a relatividade do conhecimento, historicamente determinado, cujos
limites se movem continuamente em direção à ampliação e aprofundamento da verdade
objetiva. Devido à fluidez e mobilidade de tudo o que existe, incluindo o conhecimento.
Por outro lado, reconhecer a verdade objetiva significa admitir a verdade absoluta. A
verdade absoluta existe, no sentido de que em nosso saber objetivo e verdadeiro existem
pontos que não são refutados pelo desenvolvimento sucessivo da ciência, mas que
adquire novo conteúdo objetivo. Em cada momento histórico concreto, nosso saber é
relativo e a ele condicionado, pois não reflete completa e plenamente a realidade
objetiva. Assim, só é verdade dentro de certos limites que se estreitam e se dilatam no
curso do desenvolvimento do conhecimento. A verdade objetiva é o processo de
movimento do conhecimento de uma fase a outra, na qual o saber se faz de conteúdo
sacado da realidade objetiva. A verdade é sempre o resultado da união contraditória
entre o relativo e o absoluto. A prática é o seu critério. É na prática humana que esta se
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confirma, se expande, se aprofunda ou se refuta. “O problema de se ao pensamento se
lhe pode atribuir uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas um problema
prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade e
o poderio, a terrenalidade de seu pensamento”iv
É a mudança do conhecimento do homem sobre o mundo e a mudança do mundo que
mudam a verdade sobre ele.
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Conclusão
O modo de funcionamento do processo de aquisição de conhecimento, de busca e
alcance da verdade, do conhecimento do real, para o materialismo dialético, não
significa que o real tenha como momento primário a consciência, o pensamento. Esta se
coloca como secundária, reflexa, posterior à realidade objetiva.
A investigação e o conhecimento humanos, ao tratar da singularidade, ao projetá-la
na generalização abstratizante, ao percorrer o campo das mediações como portadores
das determinações próprias ao objeto, ao retornar a ele, são manifestação abstratosubjetiva de como o mundo, exterior e independente da consciência, se comporta. São
manifestação da verdade. O objeto investigado é real, é dado no e pertence ao mundo
real, mesmo em sociedade, onde, através do trabalho, a ação consciente do sujeito pode
gerar, e efetivamente gera, objetividades antes inexistentes na natureza não humanizada,
intocada. A consciência, para o marxismo enquanto epistemologia, depende da
realidade circundante, é fruto e consequência dela. O contrário não se dá. A
contraposição e a vinculação dialética entre o imediato como objeto investigado e a
mediação da consciência existem também objetivamente, independem da consciência.
O processo de conhecimento, infinito e eterno enquanto existir o homem,
empreendido pela subjetividade, enfrenta-se, num primeiro momento, com a realidade
ainda não conhecida, mas, cognoscível, deparando-se inicialmente com uma
representação caótica do todo, com a realidade não conscientizada.
Em seguida, caminha na direção da generalização e vai afastando-se daquele estado
primário, até encontrar as primeiras regularidades que permitem atingir os conceitos
definidores mais simples, num movimento do concreto ao abstrato. Da criação da
formulação e seu teste em confronto com a realidade, com a prática.
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Essas determinações conduzem à reprodução do concreto, à síntese, constituindo-se
num caminho de volta ao objeto. O antes oculto torna-se seu contrário, num ato
dinâmico de negação. O objeto investigado, a realidade em sua fração analisada, é
isolado abstratamente de sua materialidade imediata e definida em conceitos cada vez
mais altos e elaborados – num processo de abstração continuada. Essa reflexão, cujo
impulso originário vem da própria realidade exterior, imediata, leva ao movimento de
retorno ao concreto, pensado e imbuído das mediações necessárias à sua generalidade
determinada. A próxima etapa no caminho do conhecimento aprofundado da realidade é
a síntese das múltiplas determinações, o caminho de volta ao concreto pensado.
A abstração passa a negar-se, ao alcançar um nível de generalização, retornando
como síntese ao concreto, fazendo com que o conhecimento percorra o campo de
mediações entre a singularidade e a universalidade, na reaproximação ao concreto, seja
“delimitando o universal, seja expandindo o singular”, utilizando as abordagens e
conceitos de Lukácsv. O ponto de chegada torna-se novo ponto de partida, mas não um
retorno, sim uma ampliação, ad infinitum, não mais uma representação caótica do todo,
mas uma rica totalidade de determinações, bem como a identificação, pelo
conhecimento, das múltiplas e diversas relações da realidade em sua totalidade. Todo
conhecimento é determinado por condicionantes histórico-sociais que delimitam e
conformam as abstrações – e sua a efetividade prática -.
Todo conhecimento é social, coletivo, humano. Não há conhecimento fora e além do
homem, não há conhecimento troglodita, todo conhecimento é histórico e superável,
ampliável e dinâmico.
Rio de Janeiro, 02 de setembro de 2010.
0
As traduções dos textos originais em italiano e espanhol são de minha responsabilidade (NA).
MARX, K. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política: Grundrisse der Kritik
der Politischen Ökonomie. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1973, pág. 21. Em espanhol.
ii
MARX, K. Idem, Ibdem, pág. 62 e seguintes.
iii
MARX, K., idem, ibidem, pág. 21.
iv
MARX, Karl, Tesis sobre Feuerbach, México: Ed. Grijalbo, 1967. Em espanhol.
v
LUKÁCS, G., Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Ed. Riuniti, 1976-81, págs. 206 e
seguintes. Em italiano.
i
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Bibliografia
1. LUKÁCS, G. Estetica. 4 Volumes. Barcelona: Grijalbo, 1967.
2. LUKÁCS, G. Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Ed. Riuniti, 1976-1981.
3. MARX, K. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política:
Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. Buenos Aires: Siglo Veintiuno
Editores, 1973.
4. MARX, Carlos, ENGELS, Federico. La Sagrada Família. México: Grijalbo, 1960.
5. MARX, Karl, Tesis sobre Feuerbach, México: Ed. Grijalbo, 1967.
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