apontamentos sobre o desenvolvimento de conceitos musicais e

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Universidade Estadual de Maringá
08 e 09 de Junho de 2009
APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DE CONCEITOS
MUSICAIS E MATEMÁTICOS PARA UMA PRÁTICA PSICOPEDAGÓGICA
RABASSI, Liliam Keidinez Bachete da Conceição (UEM)
CALSA, Geiva Carolina (Orientadora/UEM)
1.
INTRODUÇÃO
Na história contemporânea da educação brasileira a música foi sendo gradativamente
desvalorizada e quase descartada das atividades curriculares. Contrariando esse
movimento, no entanto, a presidência da República, em 18 de agosto de 2008,
sancionou a Lei nº 11.769 que altera a Lei nº 9.394/96 e tornou obrigatório o ensino de
música na Educação Básica escolar.
Entre os educadores que apoiaram essa iniciativa, Liane Hentschke, professora e
pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da
International Society for Musical Education (Sociedade Internacional do Ensino de
Música) ao tratar deste tema destacou as vantagens da incorporação da educação
musical ao currículo escolar afirmando que diversas "pesquisas comprovam que o
ensino da música ajuda a desenvolver a lógica e o raciocínio, produzindo impactos
positivos na aprendizagem em outras áreas”. (AVANCINI, 2008, s/p)
Em uma perspectiva similar, em nossa experiência profissional temos confirmado a
influência do ensino de música sobre o desenvolvimento de habilidades lógicomatemáticas.
Constatamos um crescimento significativo dos alunos em relação ao
aprendizado e à compreensão de conceitos matemáticos fundamentais, principalmente
entre portadores de necessidades educacionais especiais ou com dificuldades de
aprendizagem.
Em nossas classes, na execução musical inicial, esses indivíduos
apresentavam acentuada dificuldade em manter a ordem e a seqüência do ritmo
solicitado, mas após uma intervenção psicopedagógica com ênfase na conscientização
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da escrita musical e da produção sonora melhoraram consideravelmente seu
desempenho musical e sua compreensão lógica. Durante a intervenção psicopedagógica
enfatizamos a correspondência termo a termo entre nota e som musical produzido
dentro de uma determinada seqüência temporal.
Com base nessas considerações, neste artigo de conclusão de curso buscamos
demonstrar o quanto é procedente pensar em uma relação positiva e complementar entre
aprendizagem, notação musical, tempo (um elemento do ritmo) e o desenvolvimento de
conceitos matemáticos (correspondência termo a termo).
Sobretudo, pretendemos
mostrar que a aprendizagem de conceitos musicais pode vir a favorecer o desempenho
em outros contextos educacionais, como a matemática.
2.
NOTAÇÃO MUSICAL
Segundo Solti (1997) e Fernandes (1998) a notação musical é uma representação gráfica
do som musical cujo objetivo é o de fornecer indicações para sua execução posterior. A
maior parte das culturas desenvolveu seu próprio sistema musical, nos quais, em alguns
casos, foi dada maior importância a criação de signos escritos, enquanto em outros foi
mantida a tradição oral. Da história da notação musical, sabemos que por volta de
3.500a.C.os antigos hindus utilizavam algarismos ou letras do alfabeto sânscrito para
representar sons. Os chineses teriam sido os iniciadores da notação musical
sistematizada com o uso de letras em 2.637a.C. Na Turquia, o Epitáfio de Seikilos
encontrado em uma tumba também mostra o uso de letras para representar sons
musicais (Figura 1).
Figura 1: Epitáfio de Seikilos
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De acordo com Sadie (1980 apud FERNANDES, 1998), no Ocidente, a notação musical
foi criada com a função de auxiliar a memória de quem cantava e, para tanto, eram
colocadas marcas junto das palavras que indicavam o tipo de movimento sonoro a
cantar – nota, duração e altura do som. A partir do século IV, estas marcas passaram a
denominar-se neumas (Figura 2) e deram origem ao nosso sistema de notação musical
moderno.
Figura 3
Figura 2: Os primeiros neumas, apenas como marcas junto das palavras.
Fragmento de Laon, Metz, meados do século X.
Figura 5: Neuma de linha única horizontal sobre as palavras
do texto, indicando a altura das notas, século X.
Os primeiros neumas não eram escritos em linhas, mas sim no espaço acima do texto a
ser cantado. Gradativamente passaram a ser escritos sobre uma linha-guia o que
melhorava a indicação e precisão das alturas das notas (Figura 3). Assim,
progressivamente as melodias (das canções cantadas) começaram a ser escritas nas
pautas, dando origem para a notação quadrada e do ritmo baseado na prosódia (ritmo da
fala). Ao final desse processo, foi desenvolvido um sistema melódico de notação
constituído por sílabas – denominadas notas musicais – que apresentavam um sistema
rítmico detalhado e fundamentado no ritmo do verso. (CARDINE, 1989 apud
FERNANDES, 1998).
Durante a Idade Média, a imprecisão da duração dos sons e a liberdade rítmica
provocava desencontros vocais que acabaram por gerar a necessidade de mensuração da
música, com sons e silêncios regulados temporalmente. Mais adiante, com a música
polifônica esta exigência foi melhor atendida com uma maior definição das relações
rítmicas entre as vozes individuais. Assim, no século XII ocorreu uma nova significação
rítmica para os símbolos sonoros quando foram estabelecidos padrões rítmicos regulares
baseados em uma pulsação constante, embora ainda ligados a exigências textuais. Por
volta do século XIII ocorre uma revolução na escrita da música: a notação musical se
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desliga das produções textuais e é aprimorado o sistema de signos específicos para as
durações dos sons, incluindo suas subdivisões quantitativas (Figura 6) (SADIE, 1980
apud FERNANDES, 1998).
Figura 4: Subdivisão das figuras de valores/ notação musical moderna.
Entre os séculos XV e XVI, partindo da referência da pulsação, o sistema de notação
musical adquiriu proporções aritméticas, mas os valores das figuras não eram
autônomos e dependiam de sua localização no conjunto de sons e de sua proporção no
agrupamento. A complexidade das proporções originou os compassos e a divisão da
música em tempos métricos: estabelecimento de um pulso regular em termos de duração
e intensidade e sistema de notação rítmico independente.
De acordo com Fernandes (1998), a história da escrita do ritmo musical apresenta
paralelismo com seu desenvolvimento em nível individual, ou seja, com sua
psicogênese. Embora de um outro ponto de vista, consideramos que Caparica (2007)
reforça essa possibilidade ao afirmar que o ritmo está presente na vida humana desde a
fecundação nos batimentos cardíacos. Para ele o corpo humano é naturalmente sonoro e
rítmico e, por conta disso, sua capacidade de captar ritmos é uma referência sempre
presente para a divisão regular do tempo. O autor exemplifica essa capacidade relatando
que Galileu Galilei utilizava as pulsações de seu corpo como cronômetro e, comparando
as oscilações de um candelabro da Catedral de Pisa com o ritmo de seu pulso, descobriu
o isocronismo das oscilações do pêndulo.
Para demonstrar sua hipótese teórica, Fernandes (1998) vale-se dos estudos realizados
por Bamberger (1990), segundo a qual, as notações musicais podem ser consideradas
invenções espontâneas dos indivíduos. Ao efetuar notações musicais os indivíduos
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exteriorizam um “conhecimento em ação”, mesmo quando sem nenhum contato com o
grafismo musical padrão (Figura 5).
Figura 5: Tipologias de notações de crianças. Fonte: Bamberger, J. (1990) "As estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos
simples". In Hermine Sinclair (Org). A produção de notações na criança. Linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez.
Fundamentando-se nos princípios da Epistemologia e Psicologia Genética de Piaget,
Bamberger (1990) analisa como crianças de diferentes idades transpõem para o papel as
estruturas rítmicas que ouvem de um trecho rítmico executado com palmas (Figura 6).
Em seu estudo, identifica seis tipologias que evidenciam duas fases de desenvolvimento
da notação musical: figural e métrica. Essas fases compreendem a progressão de duas
maneiras complementares de reconhecer o ritmo que se enriquecem mutuamente. A
primeira fase é constituída pela tipologia (0) e (F1), enquanto a segunda é composta
pelas tipologias (M1), (F2), (M2) e (M3).
Figura 6: Trecho rítmico executado nos estudos de Bamberger (1990)
A primeira tipologia denominada (0) (Figura 5), apresentada por crianças entre 4 e 5
anos, compõe-se de “garatujas rítmicas”: formas primitivas que reproduzem no papel os
movimentos das mãos e dos braços que produzem as batidas. Segundo a autora, há
similaridade dessa expressão gráfica musical com as características da primeira fase do
grafismo infantil encontrada por Piaget e Inhelder (1947).
O primeiro caráter [do grafismo] é o de um simples ritmo, a
expressão mais elementar do grafismo de uma criança é o
movimento da mão sobre o papel, e é desse jogo rítmico de
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movimentos que irão se diferenciar as primeiras formas do
estádio I (PIAGET e INHELDER, 1947 apud BAMBERGER,
1990, p.105)
Fernandes (1998, p.12) explica esta fase como uma não-separação entre som e
movimento contínuo do grafismo (garatuja) que corresponde à produção desse som. O
autor lembra que do ponto de vista histórico a notação também está associada ao gestual
dos braços. Compreendemos, do mesmo modo que o autor, que esta primeira fase
corresponde a uma tentativa de fixar um gesto no papel, ou seja, um “neuma”. Isto por
que neuma significa um “gesto escrito” .
A segunda tipologia de notação (F1) (Figura 5), encontrada por Bamberger (1990) em
crianças de 6 a 7 anos, parece evidenciar uma reflexão do indivíduo sobre as suas
próprias ações. As notações se centram em agrupamentos de grafismos que
correspondem a duas partes do movimento contínuo de bater palmas do entrevistador
ouvido pelas crianças. Constitui, assim, um começo de construção de “figuras”
(movimentos descontínuos e não mais movimentos gráficos contínuos como na primeira
fase) para representar os sons ouvidos. Para a autora, esse avanço da notação musical
sugere a regulação dos esquemas auditivos e motores do indivíduo que é expressa em
sua capacidade de interromper e de agrupar seu grafismo, cortando o ritmo contínuo da
ação gráfica.
Na segunda fase desse desenvolvimento, a notação métrica (M1) (Figura 5) também
encontrada em crianças de 6 a 7 anos, apresenta-se como uma expressão acabada do
centramento do indivíduo nas unidades do som. Ele passa a coordenar a quantidade
correta de batidas do ritmo (dez batidas rítmicas iguais a dez desenhos). Segundo a
autora, manifesta assim o início da construção mental de unidades métricas e de
unidades discretas de contagem das batidas do ritmo.
A notação (F2) (Figura 5), efetuada por crianças acima de sete anos, não apresenta a
quantidade exata de sons emitidos, bem como a regulação dos movimentos do grafismo
como o interromper, o agrupar e o desmembrar com o ritmo enunciado pelo
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entrevistador. Para a autora, esta fase expressa o pensamento mais do que a ação do
indivíduo e pode ser considerada, portanto, mais simbólica e complexa.
Numa etapa posterior do desenvolvimento da escrita do ritmo musical aparece a notação
(M2) (Figura 5) que evidencia o centramento do sujeito em uma nova característica do
ritmo: a duração de cada batida. Essa fase:
[...] mostra a passagem da centração da reprodução de uma ação
efetuada e sentida, da atenção prestada aos agrupamentos em
figuras e à função dos eventos, para uma centração na medida
das durações relativas de todos os eventos (BAMBERGER,
1990, p.110).
Nesta tipologia de notação musical ocorre a correspondência da escrita de sons curtos
em formas pequenas, e dos sons longos em formas maiores. Passa a haver uma
diferenciação entre as durações de cada evento e inicia-se a capacidade de comparação
de todos os eventos entre si e o início da mensuração do som.
A última tipologia descrita por Bamberger (1990), a notação (M3) (Figura 5) mostra a
duração de cada evento em relação a uma unidade de medida estável, ou seja, uma
unidade métrica. Manifesta uma expressão acabada do centramento do indivíduo nas
unidades que se anunciaram na notação (M1). Esta fase representa o começo do uso de
um sistema formal simbólico bem próximo da notação rítmica tradicional, uma vez que
como o segundo, apresenta uma unidade de tempo estável e suas subdivisões.
Compartilhando da posição da autora, consideramos que esse progresso sugere a
crescente capacidade de reflexão da criança sobre o seu fazer e a manifestação desta
tomada de consciência no estabelecimento de um quadro fixo de referência de medida
do som e a expressão das variações de sua duração.
Segundo Fernandes (1998),
[...] no caso da escrita do ritmo musical, isso significa
que os signos trazem tanto os diferentes níveis de
estrutura temporal e as relações entre esses níveis, como
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uma conseqüente unidade de medida invariante unidade
métrica”
A partir dessas considerações, levantamos a hipótese de que a correspondência entre a
evolução histórica e o desenvolvimento psicogenético da notação musical manifesta a
existência de processos cognitivos similares compostos de três fases. Essa similaridade
pode ser resumida da seguinte forma: da perspectiva histórica, a primeira etapa
corresponde a anotações sonoras (tipo de movimento sonoro) junto das palavras a cantar
enquanto na análise psicogenética nesta etapa não há distinção entre o movimento da
ação e a escrita rítmica, o som é unificado ao gesto. Na segunda etapa histórica ocorre a
evolução para uma escrita mais independente da indicação em textos e indicação mais
precisa das alturas das notas, na perspectiva psicogenética ocorre o aparecimento de
uma notação de maior grau de diferenciação quanto ao ritmo, com paralelismo entre
apresentação de grupos fixos de sons e quantidade de eventos rítmicos: há separação da
ação e do som e maior especificação das unidades de sons. Na terceira etapa,
historicamente é apresentado o sistema de símbolos específicos para as durações dos
sons e suas divisões quantitativas, e a notação musical adquiri proporções aritméticas
originando os compassos e a divisão da música em tempos métricos. Isso significa
divisão matemática do som com estabelecimento de um pulso regular quanto a duração
e intensidade. Psicogeneticamente, na terceira etapa, a notação focaliza os elementos
musicais distintamente, havendo a determinação de um sistema simbólico formal e
domínio rítmico, e a compreensão dos diferentes níveis de estrutura temporal e unidade
métrica invariante.
3.
RITMO E TEMPO
De acordo com o estudo de Jourdain (1998), a música é uma atividade neuropsicológica
muito complexa, que envolve o funcionamento coordenado de numerosas estruturas
cerebrais. Quanto mais se sabe sobre a educação e sobre a maneira como o cérebro
processa as informações, mais se entende que o movimento e a música são
fundamentais para o aperfeiçoamento dos processos de aprendizagem, incluindo a
escolar.
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A autora inicia sua argumentação assinalando que o “ritmo” desenha linhas em torno de
figuras musicais e uma seqüência de marcadores rítmicos diz ao cérebro: “Este é o
começo, ou o fim, de um objeto musical”. Assim, o cérebro sabe que adquiriu todas as
informações que precisa para entender uma figura musical particular. O ritmo pode ser
comparado às batidas de um relógio, sugerindo que envolve a mensuração das durações
temporais. O objetivo do cérebro, ao medir o tempo, não é diferente de seu objetivo ao
medir os intervalos das notas musicais, mas, neste caso, é determinado pelos acentos
métricos e encadeamento de pulsações.
Nessa relação, as abstrações sonoras tornam-se mais concretas para o indivíduo e sua
aprendizagem pode vir a alcançar um desenvolvimento cognitivo e conceitual
significativo para si. Assim, podemos afirmar que produção musical, por mais simples
que seja, como os movimentos sonoros retirados do próprio corpo – bater palmas -,
podem servir como um instrumento de intervenção no processo de aprendizagem do
ritmo musical e de outros conceitos como a seqüência temporal.
A compreensão de um trecho musical está relacionada ao tempo métrico, pois o cérebro
necessita primeiramente entender uma unidade do som emitido, para depois entender o
agrupamento dessas unidades métricas estáveis e, finalmente, compreender o ritmo
melódico como um todo. Isso corresponde, na fase de alfabetização, a aprender uma
letra, posteriormente agrupá-los e entender uma palavra, embora ainda isolada, para
finalmente agrupá-las e compreender uma frase. Segundo a autora, a sucessão regular
métrica do tempo por meio das batidas do ritmo estimula atenção cerebral, ajudando na
compreensão da melodia executada. .
Piaget e Meyer (1946/1990), em seus estudos sobre a noção de tempo na criança,
assinalam que o conceito de tempo não se encontra aprioristicamente na mente da
criança e requer uma construção psicogenética lenta e gradual, pois é construído passo a
passo ao longo do período de formação das operações lógicas. Para chegar a essas
conclusões, realizaram experimentos sobre a medida do tempo através da conservação
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da velocidade do medidor e sobre as relações entre o movimento mensurador e o
movimento medido.
No primeiro experimento, referente ao isocronismo 1 e conservação da velocidade
utilizaram duas caixas médias, diversas bolas pequenas e de uma ampulheta de quarenta
e cinco centímetros de altura, cujas dimensões permitiam uma fácil percepção de níveis
sucessivos de areia. A parte inferior da ampulheta era oculta, enquanto a parte superior
subdividida em três graduações: a primeira por uma linha branca a ¾ da altura, a
segunda por uma linha verde a ½ de altura, e a terceira por uma linha azul a ¼ da altura.
Essas alturas correspondiam a momentos sucessivos e iguais de que areia.
Esse experimento foi realizado com crianças na faixa etária entre cinco e sete anos de
idade. Primeiramente solicitavam-lhes recordar o princípio da medida do tempo,
fazendo-as comparar a atividade de passar uma a uma as bolas de uma caixa para outra
com a chegada da areia nas linhas branca, verde e azul. Depois disto, em seguida
buscavam confrontar as atividades executadas em diferentes velocidades ou
movimentos de velocidades distintas em relação ao escoamento da areia. Para tanto,
pediam às crianças que passassem bolas de uma caixa para outra mais rapidamente e
mais lentamente enquanto observavam como a areia da ampulheta passava de uma linha
para outra. Para confirmar ou não as hipóteses das crianças e descartar sua possível
ilusão com a medida da ampulheta utilizaram um cronoscópio2 manual de laboratório
com parador, cujo ponteiro percorria um largo quadrante em um minuto.
Neste experimento constataram que para as crianças, inicialmente, as velocidades da
areia variam de acordo com os movimentos ou ações de que se procura medir a duração:
se suas ações ocorressem devagar consideravam que a areia da ampulheta andara
devagar, se, ao contrário, sua ação ocorresse rapidamente acreditavam que a areia da
ampulheta vazara também rapidamente.
Ou seja, confundiam suas ações com as
1 Isocronismo segundo o dicionário AURÉLIO (1986) é o mesmo que isócrono (do grego iso, igual + cronos, tempo), significa literalmente ocorrer ao mesmo
tempo ou em intervalos de tempo iguais. Para Piaget e Meyer (1946) compreende a igualação de durações sucessivas.
2 Cronoscópio segundo o dicionário Lexikon Editora Digital é [s. m. || (fís.)] instrumento para marcar a duração do tempo. F. gr. Khronos (tempo)+skopein
(examinar
).
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velocidades e medidas de tempo da ampulheta, demonstrando não conservar a igualdade
de medida do tempo inicial.
Os autores evidenciam que as crianças mesmo tendo os olhos fixos na ampulheta não
compreendem o isocronismo ocorrido entre areia e assim aceitam sem restrição os
dados obtidos pela percepção. Manifesta-se, neste caso, um pensamento intuitivo e
egocêntrico. Essas características constituem a primeira etapa da noção de tempo em
crianças entre cinco e seis anos. Em crianças com mais ou menos sete anos encontraram
características de outra etapa de desenvolvimento deste conceito: é admitida
intuitivamente a conservação da velocidade do medidor, com condições de agrupamento
operatório e quantificação, de tal maneira que a conservação da velocidade se torna
possível.
Para confirmar estas observações um segundo experimento foi realizado por Piaget e
Meyer (1990), denominado isocronismo e sincronismo 3, que utilizou a ampulheta do
primeiro experimento com a medida total do tempo, do ponto de partida ao ponto de
chegada, em trinta segundos; um metrônomo4, um cronômetro5, folha de papel
quadriculado e lápis.
Este segundo experimento foi realizado com crianças de 7 a 9 anos de idade, partindo
do princípio que superaram o experimento anterior sem dificuldades e já compreendem
o isocronismo e a igualdade das durações sucessivas da ampulheta (visual) com o
metrônomo (perceptivo). A primeira fase desta experimentação se inicia com a
ampulheta escoando a areia do início ao fim juntamente com o metrônomo em 30
batidas, equivalente a 30 segundos. Durante este tempo a criança executa um trabalho
rigorosamente regulado de traçar uma barra a cada batida do metrônomo. Essas barras
são dispostas em linha reta e cada uma ocupa um quadrado do papel (quadriculado),
3 Sincronismo segundo o dicionário AURÉLIO (1986) é a relação entre fatos sincrônicos, este significa o que ocorre ao mesmo tempo. Para Piaget e Meyer (1946)
seria a aplicação de mensuradores a objetos medidos por sincronização de movimentos.
4 Metrônomo segundo o dicionário Melhoramentos (1977) é [s.m. metro (medida) + nomo (regra, parte, divisão)] instrumento para medir o tempo e indicar um
ritmo.
5 Cronômetro segundo o dicionário Melhoramentos (1977) é um instrumento para medir o tempo; relógio de grande precisão.
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levando em conta o tempo escoado pela ampulheta cuja areia chega ao final com 30
barras alinhadas.
Seguindo para uma segunda fase, o experimento introduz um cronômetro (uma segunda
medida de tempo visível – o ponteiro do relógio), cujo movimento mede o da ampulheta
em 30 segundos, e permite a criança observar a simultaneidade da partida e da chegada
nos dois movimentos. Essa experiência tem o objetivo de evidenciar para o indivíduo o
sincronismo do movimento da areia na ampulheta e do ponteiro no cronômetro.
Finalizando o experimento, é solicitado à criança que observe o cronômetro
movimentar-se e responda se poderia desenhar no papel quadriculado as condições
anteriores (uma barra por quadrado a cada batida do metrônomo), enquanto o ponteiro
do cronômetro vai de 0 a 30 segundos. Esse interrogatório incide a sobre a existência de
transitividade dos sincronismos sucessivos.
Piaget e Meyer (1946) demonstram que a composição final do sincronismo com o
isocronismo é impossível de ser compreendido por crianças que não estejam em uma
terceira etapa de seu desenvolvimento cognitivo (pensamento operatório). Isso por que
em etapa anterior as crianças, embora apresentem conservação da velocidade de um
mensurador único, não generalizam o isocronismo por incapacidade de sincronização.
As crianças de uma primeira etapa de desenvolvimento, neste experimento, apresentam
centração perceptiva e egocentrismo inerente ao pensamento pré-lógico. Em uma
segunda etapa negam o sincronismo, mas compreendem a conservação de um
movimento de uma velocidade dada com a igualação de duas durações sucessivas.
Adquire a noção de uniformidade do movimento do relógio e do isocronismo dos seus
períodos sucessivos, mas não é ainda capaz de apreender a igualdade dos tempos de
dois relógios diferentes (ampulheta e cronômetro), apesar de admiti-lo verbalmente. Isso
porque constata as simultaneidades de partida e de chegada da ampulheta e do
cronômetro. Além disso, em suas respostas demonstram a necessidade de realizar uma
ação (desenhar as barras), mas ao fazê-lo não tomam consciência de sua ação e não
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sabem explicá-la. Demonstrar acreditar que a linha de seu desenho é mais longa porque
o relógio vai mais devagar do que a areia da ampulheta fornecendo assim mais tempo
para desenhá-la. Pode-se afirmar que, nesta fase, as crianças ao compreenderem as
condições necessárias à medida do tempo admitindo o sincronismo e o isocronismo dos
medidores passam a ser capazes de comparar os sucessivos elementos medidos entre si,
pois se apropriam do pensamento operatório da terceira etapa de desenvolvimento.
Para comprovar a entrada das crianças de 8 a 9 anos e meio nesta terceira fase, Piaget e
Meyer (1946) recorrem a um terceiro experimento denominado isocronismo e
construção das unidades temporais. Nos experimentos anteriores, os autores
investigaram as condições da medida do tempo em relação a noção de velocidade
constante que assegura o isocronismo dos movimentos mensuradores, e a aplicação
desses mensuradores aos objetos por sincronização dos diversos movimentos, neste
terceiro experimento estudaram a separação da duração do tempo em unidades
suscetíveis, tanto de repetição (isocronização) quanto de aplicação a objetos medidos
quaisquer (sincronização).
Neste caso, para medir o tempo a criança deve compreender, em um primeiro momento,
que o movimento do relógio é idêntico ao dos movimentos ou ações a cronometrar, em
um segundo, que o tempo do relógio é idêntico ao dos movimentos ou ações a
cronometrar e, em um terceiro momento, que o espaço percorrido pela areia da
ampulheta ou pelo ponteiro do cronômetro pode ser dividido em unidades. Relacionadas
com a velocidade do relógio, constituem unidades de tempo, iguais entre si na sua
sucessão (primeiro momento) e aplicáveis à duração dos outros movimentos (segundo
momento).
Durante o terceiro experimento, a criança deve contar até o número 15 o que equivale a
15 batidas do metrônomo e a posição da ampulheta na metade (15 segundos). É
solicitado à criança qual o tempo passado do início ao fim deste medidor. Aqui ocorre
uma simples relação entre os espaços percorridos e as velocidades, não intervindo a
noção de tempo como duração, mas unicamente na forma de uma simultaneidade entre
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o número 15, o ponto de 15 segundos (metade) da ampulheta e o ponto de 30 segundos
do cronômetro.
Em um segundo do experimento, é solicitado à criança contar até 15, na base de um
número por batida do metrônomo, pedindo-lhe que observe o ponteiro do cronômetro
que avança durante esse tempo de 0 a 15 segundos. Depois disto, é ocultado o
mostrador do cronômetro e é pedido que conte até 15 duas vezes mais depressa: isso
significa que conservando a batida inicial do metrônomo a criança deve contar dois
números para cada batida (chegando ao final na oitava batida ouvida). Em seguida,
questiona-se a localização do ponteiro ao final da ação: se está situado nos 15 segundos,
mais perto, mais longe ou a que distância?
As crianças situadas na fase pré-operatória falham no segundo momento desta
experimentação e acertam no primeiro, pois, neste, o tempo permanece constante e
incide sobre as relações entre as velocidades e os espaços percorridos pelos medidores.
No segundo momento, porém, deixa-se constante o trabalho medido, fazendo variar a
velocidade e a duração. As crianças não conseguem colocar em sincronização a duração
do trabalho executado (os 15 números) em relação ao ponteiro do cronômetro, pois não
adquiriram a unidade de medida temporal e a duração comum a movimentos de
velocidades diferentes.
As crianças que manifestam pensamento operatório reúnem o isocronismo com
sincronização e conseguem transformar as unidades espaciais do mostrador em unidades
propriamente temporais, válidos tanto para o objeto medido quanto para os medidores,
ou seja, constroem um tempo que reúne a homogeneidade e a uniformidade. A métrica
do tempo aparece então como uma síntese operatória da imbricação das durações que
asseguram o sincronismo com a igualação das durações sucessivas que asseguram o
isocronismo (PIAGET e MEYER, 1946/1990), p.222).
Como na evolução histórica e psicogenético da notação musical verificamos que o
processo de construção da noção de tempo métrico segue similarmente três etapas
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distintas. Na primeira, a criança confunde suas ações com as velocidades e medida do
tempo, não conservando a igualdade de medida do tempo inicial; na segunda, as
crianças adquirem o isocronismo com a conservação de um movimento de velocidade
dada com a igualação de duas durações sucessivas; e na terceira, manifesta-se o
pensamento operatório com compreensão da medida do tempo através do isocronismo e
do sincronismo e identificação da unidade métrica do tempo.
4. CORRESPONDÊNCIA TERMO A TERMO
Além do paralelismo da construção psicogenética da notação musical e do tempo
métrico, consideramos a possibilidade de um paralelismo entre ambos e a construção do
número, em especial da correspondência termo a termo que faz parte desse processo.
Assim, enquanto na construção do número aparece a seriação lógica na construção do
tempo métrico surgem os deslocamentos das durações temporais; enquanto ocorre o
surgimento dos números abstratos no tempo ocorre a síntese operatória da adição
partitiva e do deslocamento que é uma medida ou uma métrica e não mais um sistema
de números abstratos.
O procedimento aritmético conhecido como correspondência um a um compara a
quantidade de duas coleções de seres ou de objetos, de mesma natureza ou não, sem ter
recorrer à contagem. Quando uma criança chega aos quinze ou dezesseis meses,
ultrapassa o estágio da simples observação do mundo ao redor e está apta a conceber o
princípio da correspondência unidade por unidade e, particularmente, a propriedade da
equiparação. Se lhe for dado, por exemplo, o mesmo número de bonecas e de cadeiras,
ela provavelmente associará cada uma das bonecas a uma cadeira. E assim brincando,
estará fazendo a equiparação dos elementos de uma primeira coleção (as bonecas) aos
de uma segunda coleção (as cadeiras). Se lhe dermos, ao contrário, mais bonecas que
cadeiras, ou o inverso, ela ficará embaraçada, pois terá constatado a impossibilidade de
equiparação. (IFRAH, 1989, p.27)
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De um ponto de vista piagetiano, a noção de tempo constrói-se primeiramente através
de uma aquisição conceitual da ordem temporal de sucessão e dos intervalos temporais
entre pontos temporais sucessivos que consideramos semelhantes, respectivamente, aos
aspectos ordinais e cardinais do número. Segundo Piaget e Szeminska (1896), na
primeira fase da gênese do número a criança não apresenta correspondência termo a
termo nem equivalência, aparecendo somente uma comparação global fundada na
percepção dos espaços entre os objetos. Em uma segunda fase começa a ocorrer
correspondência termo a termo, mas sem equivalência durável entre as coleções
correspondentes. Os indivíduos observam visualmente que existe a correspondência,
com as modificações apresentadas, mas não conservam seus apontamentos. Somente em
uma terceira fase ocorre a correspondência termo a termo e a equivalência durável,
demonstrando que as quantidades permanecem equivalentes, onde aparece o
pensamento operatório e a colocação em correspondência biunívoca e recíproca é
constituída, além da comparação intuitiva e óptica.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste artigo, buscamos demonstrar como na evolução histórica do conceito
de ritmo, no processo de desenvolvimento psicogenético sobre a notação musical, no
processo de construção da noção de tempo métrico e na correspondência termo a termo
ocorre um paralelismo que envolve três fases simultâneas.
A partir dessas considerações que o ensino da música apresenta condições excelentes de
contribuir para o desenvolvimento de conceitos de diferentes áreas de conhecimento e
tornar-se um importante instrumento de atuação da Psicopedagogia. Isso porque
significa ultrapassar o uso meramente instrumental da música na escola e por meio da
música aprender conteúdos de outras matérias. Assim, além de seu caráter prazeroso e
de fruição a partir do qual o ensino da música é normalmente encarado pelos
professores, este conhecimento pode favorecer a modificação da modalidade de
aprendizagem dos indivíduos em seu campo e em outros campos do conhecimento.
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08 e 09 de Junho de 2009
Deste ponto de vista, consideramos possível a aprendizagem de conceitos fundamentais
à gênese do número como a correspondência termo a termo e a unidade métrica do
tempo por meio de exercícios musicais como as batidas rítmicas. Nessa relação, as
abstrações sonoras tornam-se mais concretas e a aprendizagem pode vir a alcançar um
desenvolvimento significativo. Assim, a produção musical, por mais simples que possa
ser como os movimentos sonoros retirados do próprio corpo – como bater palmas -,
podem servir como um instrumento de aprendizagem musical e matemática.
6.
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