ELAS REALMENTE EXISTEM?

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DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:
ELAS REALMENTE EXISTEM?
Marília Gomes Teixeira - UFPE
([email protected])
INTRODUÇÃO
O século XX foi de grande relevância para os estudos dos fenômenos
linguísticos, uma vez que novas tendências a respeito da análise das línguas surgiram e
passaram a questionar antigos paradigmas. Foi a partir de então que linguistas póssaussureanos propuseram analisar a língua considerando o seu uso pelos falantes,
outrora ignorado pelo estruturalismo de Saussure. Assim, a ênfase é dada à função, isto
é, passa-se a valorizar o uso da língua quando voltado para uma finalidade.
Estabelecida a noção funcionalista da linguagem, o questionamento voltou-se
para os princípios estruturalistas. O funcionalismo baseia-se no princípio de que as
funções externas à linguagem influenciam a estrutura gramatical das línguas. Sob esse
ponto de vista, critica modelos formalistas, entre os quais o modelo de transitividade da
gramática tradicional, sistema de classificação verbal utilizado há um longo período.
Tendo em vista a insuficiência da gramática tradicional em seus conceitos e
classificações, e a orientação funcionalista de que se observe a transitividade por outro
ângulo, nossa proposta, neste trabalho, é de comparar as possíveis divergências de
transitividade em línguas distintas - no caso, em inglês e português - a partir de
exemplos de tradução e versão - tanto sob a perspectiva do funcionalismo norte
americano, sobretudo da teoria de Hopper e Thompson, como sob o ponto de vista da
gramática tradicional.
Assim sendo, apresentaremos a transitividade tanto na abordagem da gramática
tradicional como na funcionalista norte americana, fazendo o contraponto entre suas
concepções. A seguir, serão feitas análises de frases em português e em inglês
(traduzidas ou vertidas) sob ambas as óticas, sendo que para a abordagem funcional
utilizaremos a tabela dos dez parâmetros criada por Hopper e Thompson como critério
de análise, enquanto a avaliação pautada na gramática tradicional se baseará na regência
verbal de cada idioma. Ambos os métodos serão aplicados às orações no intuito de
analisar suas possíveis diferenças em termos de transitividade.
1. A transitividade sob as perspectivas tradicional e funcionalista.
Desde a época dos alexandrinos que se estuda a transitividade dos verbos, pois
foi a partir de suas pesquisas que se deu início aos estudos gramaticais no ocidente. Os
primeiros estudos do grego surgiram no intuito de evitar que as línguas bárbaras
influenciassem diretamente a língua grega clássica. Foi a partir de então que surgiu a
chamada gramática tradicional.
Os gregos já percebiam que alguns verbos requeriam complementos e que estes
se relacionavam diretamente com a ação expressa pelo verbo. O interesse pelos estudos
sintáticos, porém, segundo Neves (2000), partiu de Apolônio Díscolo, no século II d.C,
que procurou entender como as palavras estabeleciam uma relação entre si. É ele, pois,
quem inaugura a noção de transitividade verbal no ocidente, que pode ser encontrada
em muitas gramáticas atuais.
Este modelo de gramática, que surgiu num momento específico da antiguidade,
perdura até hoje e não apresentou grandes mudanças no que tange aos seus conceitos. A
permanência e imobilidade da gramática tradicional levou - e ainda tem levado - muitos
linguistas a questionar tais abordagens. Em que pese ser considerada ultrapassada, esse
tipo de gramática ao menos contribui para que entendamos a maneira pela qual língua
tem sido abordada desde a antiguidade até então e, sobretudo, como tem sido ensinada.
Devido a tais fatos, o conceito de transitividade sob a perspectiva da gramática
tradicional, há muito vem sendo posto em questão, tendo em vista sua abordagem
prescritiva da língua.
Pode-se constatar que a concepção de transitividade verbal nas gramáticas
tradicionais leva em conta critérios semânticos e formais. Celso Luft (2002) afirma que
um verbo transitivo é aquele que "necessita de um objeto que lhe complemente o
sentido" (p.59) e o verbo intransitivo seria o que possui uma predicação completa, não
necessitando de complemento. O fato de classificar os verbos em transitivos e
intransitivos diz respeito à completude dos mesmos, seguindo, pois, um fator semântico.
E defini-los em transitivos direito e indireto revela um caráter formal, pois concerne à
presença ou não de uma preposição.
R.L Trask, em seu Dicionário de Linguística e Linguagem, conceitua o termo
como "a maneira pela qual o verbo se relaciona com os sintagmas nominais numa
mesma oração" (p. 299). Entretanto, o autor chega a assinalar, ainda que brevemente, a
noção de transitividade funcionalista, afirmando que o termo é entendido como
denotando o tipo de atividade ou processo expresso por uma sentença, o número de
participantes envolvidos e a maneira como estão envolvidos.
Em relação aos verbos, existem algumas divergências. Cunha e Cintra (2001)
dividem os verbos em transitivo direto, indireto e direto e indireto, enquanto Ali (1964)
sugere que não há os transitivos indiretos, apenas diretos e intransitivos. Rocha Lima,
por sua vez, (2002) subdivide os complementos em direto, indireto, relativo e
circunstancial de maneira bastante semelhante a Evanildo Bechara (2004).
Enfim, se pesquisarmos acerca da transitividade nas diferentes gramáticas
tradicionais disponíveis, podemos perceber que, apesar de alguns aspectos divergirem,
todas elas tomam o verbo como centro da oração. Segundo a concepção de Chafe
(1979), citado por Furtado da Cunha e Souza, "o universo conceptual humano está
dividido em duas grandes áreas: a do verbo e a do nome" (p.9), sendo que o verbo é o
centro da oração. A partir desta percepção, podemos perceber o porquê de a gramática
tradicional ter seu foco apenas no verbo.
Numa crítica a este modelo estruturalista e formal, muitos linguistas passaram
a questionar a gramática tradicional e suas definições de transitividade. A partir de
então, o estudo desse fenômeno linguístico tomou um caráter empírico. Perini (2001)
contesta esse tratamento tradicional e entende que os verbos exigem, aceitam ou
recusam os complementos. De acordo com o próprio autor, os complementos que
definem a transitividade são o objeto direto, o complemento do predicado, o predicativo
e o adjunto circunstancial. Por estes quatro complementos, Perini apresenta onze
matrizes verbais que representam a transitividade dos verbos, que passam, então, a ser
classificados em mais transitivos ou menos transitivos, e não mais em transitivos e
intransitivos.
Tendo em vista os diversos questionamentos e estudos relacionados à
transitividade, variadas soluções e novas perspectivas, ainda que incipientes, são
apresentadas no intuito de mostrar a insatisfação com a abordagem tradicional.
Conforme Martellota (2009), "a gramática tradicional [...], por apresentar uma visão
preconceituosa da linguagem [...], não fornece ao estudo da linguagem uma teoria
adequada para descrever o funcionamento gramatical das línguas" (p.45).
Assim, propondo-se a repensar estas teorias, o funcionalismo constituiu-se
como um modo de pensamento e uma outra maneira de analisar a linguagem.
Inicialmente, postulou que a língua era um sistema orientado para fins comunicativos,
isto é, a língua tem uma função. Assim, o funcionalismo representou um grande avanço
para os estudos linguísticos na medida em que foi incorporando aspectos
extralinguísticos em sua análise.
O termo "linguística funcional", de uma maneira generalizada, abrange
variadas teorias sobre o fato de conceber a língua como meio de comunicação e que
deve ser analisada a partir de seus contextos de uso. As duas vertentes funcionalistas são
a linguística sistêmico-funcional, que tem como principal teórico M. Halliday; e o
modelo norte americano, cujos teóricos incluem T. Givón, P. Hopper, S. Thompson e
W. Chafe. A primeira, defende a teoria da língua como escolha, do ponto de vista de seu
uso pelos falantes; a segunda, parte de uma investigação sob a perspectiva do contexto
linguístico e da situação extralinguística. Ademais, esta última considera que a língua é
utilizada para satisfazer as necessidades de comunicação.
Assim, a linguística funcional norte americana postula que a língua é uma
estrutura maleável, que se submete ao uso de seus falantes e que varia continuamente
para atender às necessidades de seus usuários. Conforme Furtado da Cunha e Souza
(2007), trata-se de um modelo que propõe explicar a forma da língua por meio das
funções que desempenha no processo comunicativo. Tal perspectiva enxerga a
transitividade não como uma propriedade intrínseca do verbo, mas como um complexo
de dez parâmetros que analisam sintática e semanticamente os itens lexicais que
compõem a oração. Ainda sob a concepção funcionalista, a transitividade diz respeito à
efetividade com que se dá a ação; isto é, quanto mais efetiva a oração, maior será sua
transitividade. Assim, as propriedades que definem a transitividade são determinadas
pelo discurso e esta relação (discurso - transitividade) mostra-se crucial na língua. Os
componentes utilizados por Hopper e Thompson (1980) para a análise da transitividade
das orações são apresentados na tabela abaixo.
Quadro 1: componentes considerados em relação à transitividade.
Componentes
Transitividade alta
Transitividade baixa
1. Participantes
dois ou mais
Um
2. Cinese
Ação
não-ação
3. Aspecto do verbo
Perfectivo
não-perfectivo
4. Pontualidade do verbo
Pontual
não-pontual
5. Intencionalidade do sujeito
Intencional
não-intencional
6. Polaridade da oração
Afirmativa
negativa
7. Modalidade da oração
Realis
irrealis
8. Agentividade do sujeito
Agentivo
não-agentivo
9. Afetamento do objeto
Afetado
não-afetado
10. Individuação do objeto
Individuado
não-individuado
Cada um dos componentes citados diz respeito à efetividade com que a ação é
transferida de uma elemento para outro. Assim, para os autores, só pode haver
transferência de uma ação se houver pelo menos dois participantes. Em relação à cinese,
as ações podem ser transferidas de um participante para outro, sendo estados ou não.
Quanto ao aspecto do verbo, uma ação é vista como mais transitiva se estiver completa,
do que se estiver em progresso. A pontualidade diz respeito às ações que em fase de
transição ou não: as ações que não se denotam transição mostram-se mais efetivas do
que aquelas que denotam. No tocante à intencionalidade, a ação se mostra mais efetiva
quando parte do agente temo propósito de realizá-la do que quando a intenção não é
definida. A polaridade concerne ao fato de a oração ser afirmativa ou negativa. As ações
que aconteceram (afirmativas) podem ser transferidas, ao contrário das que não
aconteceram (negativas). A modalidade refere-se às ações que ocorreram ou não. As
que não ocorreram ou que podem ocorrer são menos efetivas do que as que já ocorreram
ou que são eventos reais. Quanto a agentividade, um participante mais ativo pode
transferir a ação para outro participante do que um que não seja ativo (ou não tão ativo).
Em relação ao afetamento do objeto, uma ação é transferida em maior grau se o abjeto
for afetado completamente do que parcialmente. Quanto à individuação, Hopper e
Thompson consideram ainda outras propriedades, as quais não serão abordadas nesse
trabalho devido a sua especificidade - o que foge a nossa proposta.
Assim, diante do exposto, podemos perceber quão divergentes são as
abordagens da gramática tradicional e a teoria funcionalista norte americana. Aquela
associa a transitividade aos verbos, enquanto esta leva em consideração os argumentos
da oração; ou seja, a transitividade relaciona-se a todos os elementos que a compõem,
não centrando-se apenas no verbo.
2. Análise da transitividade das orações: semelhanças e diferenças.
O estudo da transitividade em línguas distintas revela-se um tema pouco
explorado, não apenas pela combinação dos idiomas envolvidos (no nosso caso
português e inglês, cujas origens linguísticas diferem consideravelmente), mas
sobretudo pela especificidade do fenômeno. Em que pese a grande contribuição das
teorias funcionalistas para o estudo da transitividade, vale ressaltar que o ensino e a
abordagem deste tema ainda são relegados, em ambos os idiomas, ao modelo
tradicional.
A comparação entre os estudos de transitividade submetidos às duas
abordagens citadas parece-nos uma alternativa interessante, tanto no que tange à
avaliação de fenômenos linguísticos específicos (a transitividade em línguas distintas,
por exemplo), como também por apresentar uma nova plataforma sob a qual o debate
gramática tradicional X funcionalismo deve ocorrer.
Deste modo, em nossa proposta, pela análise tradicional, os verbos serão
classificados em transitivos diretos, indiretos, bitransitivos ou intransitivos. Com base
no funcionalismo, por sua vez, teremos uma avaliação envolvendo toda a oração, que
definirá seu grau de transitividade. Desta maneira, embora estejamos lidando com
línguas distintas, as teorias de transitividade da gramática tradicional e funcionalista
aplicam-se igualmente aos idiomas em questão. Contudo, o resultado das análises das
orações sob óticas diferentes podem coincidir ou divergir como veremos a seguir.
No intuito de verificar este fenômeno, analisaremos orações de maneira
semelhante ao modelo de T. Givón (1980), isto é, os exemplos aqui utilizados foram
criados apenas para fins de comprovação da nossa proposta. Contudo, não nos ativemos
a classificações nem a tipos específicos de verbos, uma vez que nossa intenção é
mostrar as possíveis divergências e semelhanças de transitividade da mesma oração em
línguas distintas, quando estudadas sob abordagens diferentes.
Como anteriormente mencionado, pelo fato das origens das línguas inglesa e
portuguesa serem diferentes, as estruturas sintáticas, naturalmente, também o serão.
Apesar disso, a nomenclatura e a definição de transitividade para a gramática tradicional
inglesa muito se assemelham à brasileira: o foco é o verbo, que se classifica em
transitivo direto, indireto, direto e indireto (bitransitivo) e intransitivo. O que muda é a
classificação de alguns verbos: o que em português é transitivo direto, em inglês pode
ser indireto e vice-versa. São estes os casos que tomaremos como nossos exemplos.
Mesmo com o fato de estarmos lidando com duas línguas que em nada se
assemelham, as versões e traduções devem garantir que a mensagem a ser passada pelas
sentenças é a mesma. Isso não significa, porém, que sempre haverá uma equivalência
dos termos traduzidos. Em que pesem as diferenças quase inevitáveis das traduções e
versões, é obrigação do tradutor manter o sentido original daquilo que se propõe a
transpor.
A seguir, analisaremos a transitividade das orações - traduzidas para o
português e vertidas para o inglês - sob as perspectivas tradicional e funcionalista.
Quanto à primeira o faremos com base na regência verbal aceita pela norma culta,
definindo sua classificação (transitivo direto, indireto, bitransitivo e intransitivo);
enquanto na última utilizaremos os dez parâmetros de Hopper e Thompson para avaliar
apenas o grau de transitividade das orações, sem discorrer a respeito dos verbos, suas
classificações e os componentes da tabela em minúcias. Deste modo, faremos uma
comparação dos resultados encontrados.
1) Mary likes Peter.
Maria gosta de Pedro.
De acordo com a gramática tradicional, o verbo "like" é transitivo direto e
"gostar" é transitivo indireto (acompanha preposição "de"). Pela análise de Hopper e
Thomspon, chegamos ao grau 7 de transitividade. Assim, temos:
Gramática tradicional: "like" = verbo transitivo direto; "gostar" = verbo transitivo
indireto
Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 6)
2) Nothing satisfies the couple.
. Nada satisfaz ao casal.
A primeira preposição que associamos a este verbo é "com", porque pensamos,
inicialmente, em sua forma pronominal; entretanto, o verbo também assume a regência
da preposição "de". Em ambos os casos, o verbo é transitivo indireto. Em inglês, porém,
o verbo não é regido por preposições, porém, em se tratando da forma adjetiva
"satisfeito" ("satisfied"), faz-se necessária a preposição "com" ("with"), ficando então
"satisfied with". Assim, temos:
Gramática tradicional: "satisfazer" = verbo transitivo indireto; "to satisfy" = verbo
transitivo direto.
Funcionalismo: Baixa transitividade em ambas as orações (grau 4).
3) He called Mary.
Ele ligou para Maria
O verbo "ligar" sendo sinônimo de "telefonar", na língua portuguesa, é regido
pela preposição "para". São comuns construções do tipo "Ele te ligou"; entretanto, se
'reorganizarmos' a oração, teremos "Ele ligou para ti". Além disso, a regência do verbo,
quando seguimos a orientação da gramática tradicional é "quem liga (telefona), liga
(telefona) para". Contrariamente, na língua inglesa é um verbo que não requer
preposição a ele posposta. Assim, temos:
Gramática tradicional: "To call" = verbo transitivo direto; "Ligar (para)" = verbo
transitivo indireto.
Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 10).
4) She believes John.
Ela acredita em João.
"To believe" é um verbo transitivo direto, pois não há preposição posposta ao
verbo. Em inglês não é correta a construção "believe in", que seria semelhante ao
português, pois a regência do verbo não é mesma. O mesmo verbo em português
("acreditar"), é transitivo indireto porque a preposição "em" acompanha o verbo. Assim,
temos:
Gramática tradicional: "to believe" = verbo transitivo direto; "acreditar" = verbo
transitivo indireto.
Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 6)
5) Eu gosto de ouvir música.
I like to listen to music.
O verbo "ouvir", em português, não é regida por preposição, sendo assim,
transitivo direto. O mesmo não acontece em língua inglesa: o verbo requer
obrigatoriamente a preposição "to". O fato de ser transitivo direto na língua portuguesa
acarreta, muitas vezes, uma transferência de padrão para a língua língua inglesa. Isto é,
um falante do português, aprendiz do inglês, tende a falar "listen the music", omitindo o
"to", porque está transferindo a estrutura de sua língua materna para a estrangeira.
Embora essa correspondência seja válida algumas vezes, não se aplica a vários verbos,
como neste caso. Assim, temos:
Gramática tradicional: "ouvir" = verbo transitivo direto; "to listen" = verbo transitivo
direto.
Funcionalismo: Baixa transitividade em ambas as orações (grau 5)
6) Ela não respondeu à pergunta.
She didn't answer the question.
Este verbo será transitivo indireto, regido pela preposição "a", quando possuir
apenas um complemento, como na oração acima. Havendo dois complementos, de
acordo com a gramática tradicional, será classificado como "bitransitivo", como no
exemplo "Respondeu à pergunta com desdém". Em língua inglesa, por outro lado, não
há a regência por uma preposição, exigindo um objeto direto como complemento.
Gramática tradicional: "responder" = verbo transitivo indireto; "to answer" = verbo
transitivo direto.
Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 9).
7) Preciso de todos aqui.
I need everybody here.
O verbo "precisar" requer a preposição "de" (precisar de algo), embora sejam
possíveis construções - como as locuções verbais, por exemplo - que permitam a
ausência da mesma, como em "Eu preciso ir". Porém, conforme orientação da gramática
tradicional, quando 'perguntarmos' ao verbo sobre sua regência, imediatamente
requererá o uso da preposição. Assim, temos:
Gramática tradicional: "precisar" = verbo transitivo indireto; "to need" = verbo
transitivo direto.
Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 7)
8) Os soldados desistiram da luta.
The soldiers gave up the fight.
São poucos os casos, na língua portuguesa, em que o verbo desistir não é
regido pela preposição "de", como em: "não desista nunca". Porém, quem desiste,
desiste automaticamente de algo, estando a preposição de certa forma omissa: "não
desista (disso) nunca". Na língua inglesa, o verbo não é regido pela preposição,
requerendo apenas um objeto direto. Assim, temos:
Gramática tradicional: "Desistir (de)" = verbo transitivo indireto; "To give up" = verbo
transitivo direto.
Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 9).
Podemos perceber, após esta pequena análise que, de acordo com a gramática
tradicional, os verbos, quanto à sua transitividade, são classificados diferentemente
dependendo do idioma pelo qual a orações são expressas (orações estas que possuem
absolutamente o mesmo significado). Isto ocorre porque tal abordagem leva em
consideração apenas a estrutura da oração, tomando o verbo como elemento
fundamental, o que acarreta uma avaliação que em muito é influenciada pela raiz e
etimologia da língua.
Por outro lado, o funcionalismo norte americano parte do princípio do grau de
transitividade, não incorrendo em classificações, mas sim em gradações. Para os casos
analisados, podemos perceber que, apesar de expressas em idiomas diferentes, as
orações que possuem o mesmo significado (que evidenciam a mesma mensagem)
apresentam terminantemente o mesmo grau de transitividade em ambas as línguas. Ou
seja, já que o funcionalismo define a transitividade como uma característica de uma
oração por inteiro, e não apenas como uma característica do verbo, expressões
corretamente traduzidas ou vertidas implicarão, necessariamente, em mesmo grau de
transitividade.
Torna-se coerente, desta forma, considerar que somente o fato das línguas
serem distintas não deveria implicar em diferença entre as transitividades das orações
que denotam o mesmo sentido. Sob nosso ponto de vista, o funcionalismo aborda a
transitividade de maneira mais completa, pois toma como relevante outros aspectos da
oração (características do sujeito e polaridade da oração, por exemplo), não priorizados
ou mesmo ignorados pela gramática tradicional, permitindo a universalização do
conceito de transitividade.
Deste modo, ponderamos que, em termos estruturais da língua, as divergências
não deveriam interferir na classificação ou gradação da transitividade das orações, haja
vista que, em última análise, está-se "dizendo a mesma coisa".
A maneira impositiva pela qual a gramática tradicional discorre sobre o tema,
por vezes dificulta o aprendizado, tornando os conceitos confusos e mnemônicos;
enquanto a abordagem funcionalista simplifica e estrutura o assunto de forma mais
clara, tornando-o mais intuitivo, o que nos parece consideravelmente mais sensato.
CONCLUSÕES
Diante do exposto, pudemos perceber as diferenças conceituais entre a
gramática tradicional e o funcionalismo no que diz respeito à transitividade, uma vez
que a primeira parte de uma perspectiva na qual o verbo é o elemento central da oração;
e o segundo, toma todos os argumentos da oração para analisar o grau de transitividade
da mesma.
Devido a essa divergência conceitual, as orações traduzidas ou vertidas, cujo
sentido é exatamente o mesmo, podem possuir transitividades distintas quando
analisadas sob a ótica tradicional, enquanto terão sempre o mesmo grau de
transitividade se analisadas sob a perspectiva funcionalista. Assim, é fácil perceber quão
confuso pode ser o conceito de transitividade denotado pela gramática tradicional, já
que esta pode classificar diferentemente uma mesma oração expressa em idiomas
distintos. Tal fato revela que esse modelo baseia-se num conceito estrutural pouco
intuitivo, e muitas vezes considerado ultrapassado, tendo em vista suas particularidades
de acordo com cada idioma.
Fica evidente, assim, que devido à noção de função da língua e de seus
postulados teóricos, o funcionalismo expressa um grande avanço no desenvolvimento
da Linguística, na medida em que procura conciliar todo o seu arcabouço científico, em
vez de ater-se a estudos particulares sobre idiomas específicos. No que tange à
transitividade, a abordagem funcionalista mantém suas características de universalizar
conceitos e estruturar seu objeto de estudo de maneira mais prática, rejeitando, por
exemplo, divergências de transitividade entre orações de mesmo significado, ainda que
expressas em idiomas diferentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1964.
BECHARA. E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro, Lucerna,
2004.
CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed., Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.
FURTADO DA CUNHA, M.A e SOUZA M. M. Transitividade e seus contextos de
uso.
LUFT. Celso P. Moderna gramática brasileira. 2ª ed., São Paulo, Globo, 2002.
MARTELLOTA, M.E. Funcionalismo. In: WILSON, MARTELLOTA E CEZARIO.
Linguística: Fundamentos. Rio de Janeiro, CCAA, 2009.
NEVES, M.H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo, UNESP, 2000.
ROCHA LIMA, C.H. Gramática normativa da língua portuguesa. 42ª ed., Rio de
Janeiro, José Olympio, 2002.
PERINI. M. Gramática descritiva do português. São Paulo, Ática, 2001
TRASK. R.L. Dicionário de Linguística e Linguagem. São Paulo, Contexto, 2004
APÊNDICE
A análise das orações foram feitas de acordo com a gramática tradicional (verbos
transitivos diretos ou indiretos) e com o funcionalismo de Hopper e Thompson.
Legenda: A (parâmetro que representa alta transitividade) B (parâmetro que representa
baixa transitividade). Vide tabela no Quadro I.
Oração
Mary likes Peter.
Gramática tradicional
Transitivo Direto.
Funcionalismo
A, B, B, B, A, A, A, A, A,
A (grau 7)
A, B, B, B, A, A, A, A, A,
A (grau 7)
Maria gosta de Pedro.
Transitivo Indireto.
Oração
Gramática tradicional
Funcionalismo
Nothing satisfies the
couple.
Transitivo Direto.
B, B, B, B, B, A, A, A,
A,B (grau 4)
Nada satisfaz ao casal.
Transitivo Indireto.
B, B, B, B, B, A, A, A,
A,B (grau 4)
Oração
He called Mary.
Gramática tradicional
Transitivo Direto
Ele ligou para Maria.
Transitivo Indireto
Funcionalismo
A, A, A, A, A, A, A, A, A,
A. (grau 10)
A, A, A, A, A, A, A, A, A,
A. (grau 10)
Oração
She believes John
Gramática tradicional
Transitivo Direto.
Ela acredita em João.
Transitivo Indireto.
Oração
Gramática tradicional
Funcionalismo
Eu gosto de ouvir música.
Transitivo Direto
A, B, B, B, B, A, A, A, A,
B. (grau 5)
Funcionalismo
A, B, B, B, A, A, A, B, A,
A. (grau 6)
A, B, B, B, A, A, A, B, A,
A. (grau 6)
I like to listen to music.
Transitivo Indireto
A, B, B, B, B, A, A, A, A,
B. (grau 5)
Oração
Gramática tradicional
Funcionalismo
Ela não respondeu à
pergunta.
Transitivo Indireto
A, A, A, A, A, B, A, A, A,
A (grau 9)
She didn't answer the
question.
Transitivo Direto
A, A, A, A, A, B, A, A, A,
A (grau 9)
Oração
Gramática tradicional
Funcionalismo
Preciso de todos aqui
Transitivo Indireto.
A, B, B, B, A, A, A, A, A,
A (grau 7)
I need everybody here.
Transitivo Direto.
A, B, B, B, A, A, A, A, A,
A (grau 7)
Oração
Gramática tradicional
Funcionalismo
Os soldados desistiram da
luta.
Transitivo Indireto
A, A, A, B, A, A, A, A, A,
A. (grau 9)
The soldiers gave up the
fight.
Transitivo Direto
A, A, A, B, A, A, A, A, A,
A. (grau 9)
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