DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES: ELAS REALMENTE EXISTEM? Marília Gomes Teixeira - UFPE ([email protected]) INTRODUÇÃO O século XX foi de grande relevância para os estudos dos fenômenos linguísticos, uma vez que novas tendências a respeito da análise das línguas surgiram e passaram a questionar antigos paradigmas. Foi a partir de então que linguistas póssaussureanos propuseram analisar a língua considerando o seu uso pelos falantes, outrora ignorado pelo estruturalismo de Saussure. Assim, a ênfase é dada à função, isto é, passa-se a valorizar o uso da língua quando voltado para uma finalidade. Estabelecida a noção funcionalista da linguagem, o questionamento voltou-se para os princípios estruturalistas. O funcionalismo baseia-se no princípio de que as funções externas à linguagem influenciam a estrutura gramatical das línguas. Sob esse ponto de vista, critica modelos formalistas, entre os quais o modelo de transitividade da gramática tradicional, sistema de classificação verbal utilizado há um longo período. Tendo em vista a insuficiência da gramática tradicional em seus conceitos e classificações, e a orientação funcionalista de que se observe a transitividade por outro ângulo, nossa proposta, neste trabalho, é de comparar as possíveis divergências de transitividade em línguas distintas - no caso, em inglês e português - a partir de exemplos de tradução e versão - tanto sob a perspectiva do funcionalismo norte americano, sobretudo da teoria de Hopper e Thompson, como sob o ponto de vista da gramática tradicional. Assim sendo, apresentaremos a transitividade tanto na abordagem da gramática tradicional como na funcionalista norte americana, fazendo o contraponto entre suas concepções. A seguir, serão feitas análises de frases em português e em inglês (traduzidas ou vertidas) sob ambas as óticas, sendo que para a abordagem funcional utilizaremos a tabela dos dez parâmetros criada por Hopper e Thompson como critério de análise, enquanto a avaliação pautada na gramática tradicional se baseará na regência verbal de cada idioma. Ambos os métodos serão aplicados às orações no intuito de analisar suas possíveis diferenças em termos de transitividade. 1. A transitividade sob as perspectivas tradicional e funcionalista. Desde a época dos alexandrinos que se estuda a transitividade dos verbos, pois foi a partir de suas pesquisas que se deu início aos estudos gramaticais no ocidente. Os primeiros estudos do grego surgiram no intuito de evitar que as línguas bárbaras influenciassem diretamente a língua grega clássica. Foi a partir de então que surgiu a chamada gramática tradicional. Os gregos já percebiam que alguns verbos requeriam complementos e que estes se relacionavam diretamente com a ação expressa pelo verbo. O interesse pelos estudos sintáticos, porém, segundo Neves (2000), partiu de Apolônio Díscolo, no século II d.C, que procurou entender como as palavras estabeleciam uma relação entre si. É ele, pois, quem inaugura a noção de transitividade verbal no ocidente, que pode ser encontrada em muitas gramáticas atuais. Este modelo de gramática, que surgiu num momento específico da antiguidade, perdura até hoje e não apresentou grandes mudanças no que tange aos seus conceitos. A permanência e imobilidade da gramática tradicional levou - e ainda tem levado - muitos linguistas a questionar tais abordagens. Em que pese ser considerada ultrapassada, esse tipo de gramática ao menos contribui para que entendamos a maneira pela qual língua tem sido abordada desde a antiguidade até então e, sobretudo, como tem sido ensinada. Devido a tais fatos, o conceito de transitividade sob a perspectiva da gramática tradicional, há muito vem sendo posto em questão, tendo em vista sua abordagem prescritiva da língua. Pode-se constatar que a concepção de transitividade verbal nas gramáticas tradicionais leva em conta critérios semânticos e formais. Celso Luft (2002) afirma que um verbo transitivo é aquele que "necessita de um objeto que lhe complemente o sentido" (p.59) e o verbo intransitivo seria o que possui uma predicação completa, não necessitando de complemento. O fato de classificar os verbos em transitivos e intransitivos diz respeito à completude dos mesmos, seguindo, pois, um fator semântico. E defini-los em transitivos direito e indireto revela um caráter formal, pois concerne à presença ou não de uma preposição. R.L Trask, em seu Dicionário de Linguística e Linguagem, conceitua o termo como "a maneira pela qual o verbo se relaciona com os sintagmas nominais numa mesma oração" (p. 299). Entretanto, o autor chega a assinalar, ainda que brevemente, a noção de transitividade funcionalista, afirmando que o termo é entendido como denotando o tipo de atividade ou processo expresso por uma sentença, o número de participantes envolvidos e a maneira como estão envolvidos. Em relação aos verbos, existem algumas divergências. Cunha e Cintra (2001) dividem os verbos em transitivo direto, indireto e direto e indireto, enquanto Ali (1964) sugere que não há os transitivos indiretos, apenas diretos e intransitivos. Rocha Lima, por sua vez, (2002) subdivide os complementos em direto, indireto, relativo e circunstancial de maneira bastante semelhante a Evanildo Bechara (2004). Enfim, se pesquisarmos acerca da transitividade nas diferentes gramáticas tradicionais disponíveis, podemos perceber que, apesar de alguns aspectos divergirem, todas elas tomam o verbo como centro da oração. Segundo a concepção de Chafe (1979), citado por Furtado da Cunha e Souza, "o universo conceptual humano está dividido em duas grandes áreas: a do verbo e a do nome" (p.9), sendo que o verbo é o centro da oração. A partir desta percepção, podemos perceber o porquê de a gramática tradicional ter seu foco apenas no verbo. Numa crítica a este modelo estruturalista e formal, muitos linguistas passaram a questionar a gramática tradicional e suas definições de transitividade. A partir de então, o estudo desse fenômeno linguístico tomou um caráter empírico. Perini (2001) contesta esse tratamento tradicional e entende que os verbos exigem, aceitam ou recusam os complementos. De acordo com o próprio autor, os complementos que definem a transitividade são o objeto direto, o complemento do predicado, o predicativo e o adjunto circunstancial. Por estes quatro complementos, Perini apresenta onze matrizes verbais que representam a transitividade dos verbos, que passam, então, a ser classificados em mais transitivos ou menos transitivos, e não mais em transitivos e intransitivos. Tendo em vista os diversos questionamentos e estudos relacionados à transitividade, variadas soluções e novas perspectivas, ainda que incipientes, são apresentadas no intuito de mostrar a insatisfação com a abordagem tradicional. Conforme Martellota (2009), "a gramática tradicional [...], por apresentar uma visão preconceituosa da linguagem [...], não fornece ao estudo da linguagem uma teoria adequada para descrever o funcionamento gramatical das línguas" (p.45). Assim, propondo-se a repensar estas teorias, o funcionalismo constituiu-se como um modo de pensamento e uma outra maneira de analisar a linguagem. Inicialmente, postulou que a língua era um sistema orientado para fins comunicativos, isto é, a língua tem uma função. Assim, o funcionalismo representou um grande avanço para os estudos linguísticos na medida em que foi incorporando aspectos extralinguísticos em sua análise. O termo "linguística funcional", de uma maneira generalizada, abrange variadas teorias sobre o fato de conceber a língua como meio de comunicação e que deve ser analisada a partir de seus contextos de uso. As duas vertentes funcionalistas são a linguística sistêmico-funcional, que tem como principal teórico M. Halliday; e o modelo norte americano, cujos teóricos incluem T. Givón, P. Hopper, S. Thompson e W. Chafe. A primeira, defende a teoria da língua como escolha, do ponto de vista de seu uso pelos falantes; a segunda, parte de uma investigação sob a perspectiva do contexto linguístico e da situação extralinguística. Ademais, esta última considera que a língua é utilizada para satisfazer as necessidades de comunicação. Assim, a linguística funcional norte americana postula que a língua é uma estrutura maleável, que se submete ao uso de seus falantes e que varia continuamente para atender às necessidades de seus usuários. Conforme Furtado da Cunha e Souza (2007), trata-se de um modelo que propõe explicar a forma da língua por meio das funções que desempenha no processo comunicativo. Tal perspectiva enxerga a transitividade não como uma propriedade intrínseca do verbo, mas como um complexo de dez parâmetros que analisam sintática e semanticamente os itens lexicais que compõem a oração. Ainda sob a concepção funcionalista, a transitividade diz respeito à efetividade com que se dá a ação; isto é, quanto mais efetiva a oração, maior será sua transitividade. Assim, as propriedades que definem a transitividade são determinadas pelo discurso e esta relação (discurso - transitividade) mostra-se crucial na língua. Os componentes utilizados por Hopper e Thompson (1980) para a análise da transitividade das orações são apresentados na tabela abaixo. Quadro 1: componentes considerados em relação à transitividade. Componentes Transitividade alta Transitividade baixa 1. Participantes dois ou mais Um 2. Cinese Ação não-ação 3. Aspecto do verbo Perfectivo não-perfectivo 4. Pontualidade do verbo Pontual não-pontual 5. Intencionalidade do sujeito Intencional não-intencional 6. Polaridade da oração Afirmativa negativa 7. Modalidade da oração Realis irrealis 8. Agentividade do sujeito Agentivo não-agentivo 9. Afetamento do objeto Afetado não-afetado 10. Individuação do objeto Individuado não-individuado Cada um dos componentes citados diz respeito à efetividade com que a ação é transferida de uma elemento para outro. Assim, para os autores, só pode haver transferência de uma ação se houver pelo menos dois participantes. Em relação à cinese, as ações podem ser transferidas de um participante para outro, sendo estados ou não. Quanto ao aspecto do verbo, uma ação é vista como mais transitiva se estiver completa, do que se estiver em progresso. A pontualidade diz respeito às ações que em fase de transição ou não: as ações que não se denotam transição mostram-se mais efetivas do que aquelas que denotam. No tocante à intencionalidade, a ação se mostra mais efetiva quando parte do agente temo propósito de realizá-la do que quando a intenção não é definida. A polaridade concerne ao fato de a oração ser afirmativa ou negativa. As ações que aconteceram (afirmativas) podem ser transferidas, ao contrário das que não aconteceram (negativas). A modalidade refere-se às ações que ocorreram ou não. As que não ocorreram ou que podem ocorrer são menos efetivas do que as que já ocorreram ou que são eventos reais. Quanto a agentividade, um participante mais ativo pode transferir a ação para outro participante do que um que não seja ativo (ou não tão ativo). Em relação ao afetamento do objeto, uma ação é transferida em maior grau se o abjeto for afetado completamente do que parcialmente. Quanto à individuação, Hopper e Thompson consideram ainda outras propriedades, as quais não serão abordadas nesse trabalho devido a sua especificidade - o que foge a nossa proposta. Assim, diante do exposto, podemos perceber quão divergentes são as abordagens da gramática tradicional e a teoria funcionalista norte americana. Aquela associa a transitividade aos verbos, enquanto esta leva em consideração os argumentos da oração; ou seja, a transitividade relaciona-se a todos os elementos que a compõem, não centrando-se apenas no verbo. 2. Análise da transitividade das orações: semelhanças e diferenças. O estudo da transitividade em línguas distintas revela-se um tema pouco explorado, não apenas pela combinação dos idiomas envolvidos (no nosso caso português e inglês, cujas origens linguísticas diferem consideravelmente), mas sobretudo pela especificidade do fenômeno. Em que pese a grande contribuição das teorias funcionalistas para o estudo da transitividade, vale ressaltar que o ensino e a abordagem deste tema ainda são relegados, em ambos os idiomas, ao modelo tradicional. A comparação entre os estudos de transitividade submetidos às duas abordagens citadas parece-nos uma alternativa interessante, tanto no que tange à avaliação de fenômenos linguísticos específicos (a transitividade em línguas distintas, por exemplo), como também por apresentar uma nova plataforma sob a qual o debate gramática tradicional X funcionalismo deve ocorrer. Deste modo, em nossa proposta, pela análise tradicional, os verbos serão classificados em transitivos diretos, indiretos, bitransitivos ou intransitivos. Com base no funcionalismo, por sua vez, teremos uma avaliação envolvendo toda a oração, que definirá seu grau de transitividade. Desta maneira, embora estejamos lidando com línguas distintas, as teorias de transitividade da gramática tradicional e funcionalista aplicam-se igualmente aos idiomas em questão. Contudo, o resultado das análises das orações sob óticas diferentes podem coincidir ou divergir como veremos a seguir. No intuito de verificar este fenômeno, analisaremos orações de maneira semelhante ao modelo de T. Givón (1980), isto é, os exemplos aqui utilizados foram criados apenas para fins de comprovação da nossa proposta. Contudo, não nos ativemos a classificações nem a tipos específicos de verbos, uma vez que nossa intenção é mostrar as possíveis divergências e semelhanças de transitividade da mesma oração em línguas distintas, quando estudadas sob abordagens diferentes. Como anteriormente mencionado, pelo fato das origens das línguas inglesa e portuguesa serem diferentes, as estruturas sintáticas, naturalmente, também o serão. Apesar disso, a nomenclatura e a definição de transitividade para a gramática tradicional inglesa muito se assemelham à brasileira: o foco é o verbo, que se classifica em transitivo direto, indireto, direto e indireto (bitransitivo) e intransitivo. O que muda é a classificação de alguns verbos: o que em português é transitivo direto, em inglês pode ser indireto e vice-versa. São estes os casos que tomaremos como nossos exemplos. Mesmo com o fato de estarmos lidando com duas línguas que em nada se assemelham, as versões e traduções devem garantir que a mensagem a ser passada pelas sentenças é a mesma. Isso não significa, porém, que sempre haverá uma equivalência dos termos traduzidos. Em que pesem as diferenças quase inevitáveis das traduções e versões, é obrigação do tradutor manter o sentido original daquilo que se propõe a transpor. A seguir, analisaremos a transitividade das orações - traduzidas para o português e vertidas para o inglês - sob as perspectivas tradicional e funcionalista. Quanto à primeira o faremos com base na regência verbal aceita pela norma culta, definindo sua classificação (transitivo direto, indireto, bitransitivo e intransitivo); enquanto na última utilizaremos os dez parâmetros de Hopper e Thompson para avaliar apenas o grau de transitividade das orações, sem discorrer a respeito dos verbos, suas classificações e os componentes da tabela em minúcias. Deste modo, faremos uma comparação dos resultados encontrados. 1) Mary likes Peter. Maria gosta de Pedro. De acordo com a gramática tradicional, o verbo "like" é transitivo direto e "gostar" é transitivo indireto (acompanha preposição "de"). Pela análise de Hopper e Thomspon, chegamos ao grau 7 de transitividade. Assim, temos: Gramática tradicional: "like" = verbo transitivo direto; "gostar" = verbo transitivo indireto Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 6) 2) Nothing satisfies the couple. . Nada satisfaz ao casal. A primeira preposição que associamos a este verbo é "com", porque pensamos, inicialmente, em sua forma pronominal; entretanto, o verbo também assume a regência da preposição "de". Em ambos os casos, o verbo é transitivo indireto. Em inglês, porém, o verbo não é regido por preposições, porém, em se tratando da forma adjetiva "satisfeito" ("satisfied"), faz-se necessária a preposição "com" ("with"), ficando então "satisfied with". Assim, temos: Gramática tradicional: "satisfazer" = verbo transitivo indireto; "to satisfy" = verbo transitivo direto. Funcionalismo: Baixa transitividade em ambas as orações (grau 4). 3) He called Mary. Ele ligou para Maria O verbo "ligar" sendo sinônimo de "telefonar", na língua portuguesa, é regido pela preposição "para". São comuns construções do tipo "Ele te ligou"; entretanto, se 'reorganizarmos' a oração, teremos "Ele ligou para ti". Além disso, a regência do verbo, quando seguimos a orientação da gramática tradicional é "quem liga (telefona), liga (telefona) para". Contrariamente, na língua inglesa é um verbo que não requer preposição a ele posposta. Assim, temos: Gramática tradicional: "To call" = verbo transitivo direto; "Ligar (para)" = verbo transitivo indireto. Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 10). 4) She believes John. Ela acredita em João. "To believe" é um verbo transitivo direto, pois não há preposição posposta ao verbo. Em inglês não é correta a construção "believe in", que seria semelhante ao português, pois a regência do verbo não é mesma. O mesmo verbo em português ("acreditar"), é transitivo indireto porque a preposição "em" acompanha o verbo. Assim, temos: Gramática tradicional: "to believe" = verbo transitivo direto; "acreditar" = verbo transitivo indireto. Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 6) 5) Eu gosto de ouvir música. I like to listen to music. O verbo "ouvir", em português, não é regida por preposição, sendo assim, transitivo direto. O mesmo não acontece em língua inglesa: o verbo requer obrigatoriamente a preposição "to". O fato de ser transitivo direto na língua portuguesa acarreta, muitas vezes, uma transferência de padrão para a língua língua inglesa. Isto é, um falante do português, aprendiz do inglês, tende a falar "listen the music", omitindo o "to", porque está transferindo a estrutura de sua língua materna para a estrangeira. Embora essa correspondência seja válida algumas vezes, não se aplica a vários verbos, como neste caso. Assim, temos: Gramática tradicional: "ouvir" = verbo transitivo direto; "to listen" = verbo transitivo direto. Funcionalismo: Baixa transitividade em ambas as orações (grau 5) 6) Ela não respondeu à pergunta. She didn't answer the question. Este verbo será transitivo indireto, regido pela preposição "a", quando possuir apenas um complemento, como na oração acima. Havendo dois complementos, de acordo com a gramática tradicional, será classificado como "bitransitivo", como no exemplo "Respondeu à pergunta com desdém". Em língua inglesa, por outro lado, não há a regência por uma preposição, exigindo um objeto direto como complemento. Gramática tradicional: "responder" = verbo transitivo indireto; "to answer" = verbo transitivo direto. Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 9). 7) Preciso de todos aqui. I need everybody here. O verbo "precisar" requer a preposição "de" (precisar de algo), embora sejam possíveis construções - como as locuções verbais, por exemplo - que permitam a ausência da mesma, como em "Eu preciso ir". Porém, conforme orientação da gramática tradicional, quando 'perguntarmos' ao verbo sobre sua regência, imediatamente requererá o uso da preposição. Assim, temos: Gramática tradicional: "precisar" = verbo transitivo indireto; "to need" = verbo transitivo direto. Funcionalismo: Transitividade moderada em ambas as orações (grau 7) 8) Os soldados desistiram da luta. The soldiers gave up the fight. São poucos os casos, na língua portuguesa, em que o verbo desistir não é regido pela preposição "de", como em: "não desista nunca". Porém, quem desiste, desiste automaticamente de algo, estando a preposição de certa forma omissa: "não desista (disso) nunca". Na língua inglesa, o verbo não é regido pela preposição, requerendo apenas um objeto direto. Assim, temos: Gramática tradicional: "Desistir (de)" = verbo transitivo indireto; "To give up" = verbo transitivo direto. Funcionalismo: Alta transitividade em ambas as orações (grau 9). Podemos perceber, após esta pequena análise que, de acordo com a gramática tradicional, os verbos, quanto à sua transitividade, são classificados diferentemente dependendo do idioma pelo qual a orações são expressas (orações estas que possuem absolutamente o mesmo significado). Isto ocorre porque tal abordagem leva em consideração apenas a estrutura da oração, tomando o verbo como elemento fundamental, o que acarreta uma avaliação que em muito é influenciada pela raiz e etimologia da língua. Por outro lado, o funcionalismo norte americano parte do princípio do grau de transitividade, não incorrendo em classificações, mas sim em gradações. Para os casos analisados, podemos perceber que, apesar de expressas em idiomas diferentes, as orações que possuem o mesmo significado (que evidenciam a mesma mensagem) apresentam terminantemente o mesmo grau de transitividade em ambas as línguas. Ou seja, já que o funcionalismo define a transitividade como uma característica de uma oração por inteiro, e não apenas como uma característica do verbo, expressões corretamente traduzidas ou vertidas implicarão, necessariamente, em mesmo grau de transitividade. Torna-se coerente, desta forma, considerar que somente o fato das línguas serem distintas não deveria implicar em diferença entre as transitividades das orações que denotam o mesmo sentido. Sob nosso ponto de vista, o funcionalismo aborda a transitividade de maneira mais completa, pois toma como relevante outros aspectos da oração (características do sujeito e polaridade da oração, por exemplo), não priorizados ou mesmo ignorados pela gramática tradicional, permitindo a universalização do conceito de transitividade. Deste modo, ponderamos que, em termos estruturais da língua, as divergências não deveriam interferir na classificação ou gradação da transitividade das orações, haja vista que, em última análise, está-se "dizendo a mesma coisa". A maneira impositiva pela qual a gramática tradicional discorre sobre o tema, por vezes dificulta o aprendizado, tornando os conceitos confusos e mnemônicos; enquanto a abordagem funcionalista simplifica e estrutura o assunto de forma mais clara, tornando-o mais intuitivo, o que nos parece consideravelmente mais sensato. CONCLUSÕES Diante do exposto, pudemos perceber as diferenças conceituais entre a gramática tradicional e o funcionalismo no que diz respeito à transitividade, uma vez que a primeira parte de uma perspectiva na qual o verbo é o elemento central da oração; e o segundo, toma todos os argumentos da oração para analisar o grau de transitividade da mesma. Devido a essa divergência conceitual, as orações traduzidas ou vertidas, cujo sentido é exatamente o mesmo, podem possuir transitividades distintas quando analisadas sob a ótica tradicional, enquanto terão sempre o mesmo grau de transitividade se analisadas sob a perspectiva funcionalista. Assim, é fácil perceber quão confuso pode ser o conceito de transitividade denotado pela gramática tradicional, já que esta pode classificar diferentemente uma mesma oração expressa em idiomas distintos. Tal fato revela que esse modelo baseia-se num conceito estrutural pouco intuitivo, e muitas vezes considerado ultrapassado, tendo em vista suas particularidades de acordo com cada idioma. Fica evidente, assim, que devido à noção de função da língua e de seus postulados teóricos, o funcionalismo expressa um grande avanço no desenvolvimento da Linguística, na medida em que procura conciliar todo o seu arcabouço científico, em vez de ater-se a estudos particulares sobre idiomas específicos. No que tange à transitividade, a abordagem funcionalista mantém suas características de universalizar conceitos e estruturar seu objeto de estudo de maneira mais prática, rejeitando, por exemplo, divergências de transitividade entre orações de mesmo significado, ainda que expressas em idiomas diferentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALI, S. Gramática secundária da língua portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 1964. BECHARA. E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 2004. 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Vide tabela no Quadro I. Oração Mary likes Peter. Gramática tradicional Transitivo Direto. Funcionalismo A, B, B, B, A, A, A, A, A, A (grau 7) A, B, B, B, A, A, A, A, A, A (grau 7) Maria gosta de Pedro. Transitivo Indireto. Oração Gramática tradicional Funcionalismo Nothing satisfies the couple. Transitivo Direto. B, B, B, B, B, A, A, A, A,B (grau 4) Nada satisfaz ao casal. Transitivo Indireto. B, B, B, B, B, A, A, A, A,B (grau 4) Oração He called Mary. Gramática tradicional Transitivo Direto Ele ligou para Maria. Transitivo Indireto Funcionalismo A, A, A, A, A, A, A, A, A, A. (grau 10) A, A, A, A, A, A, A, A, A, A. (grau 10) Oração She believes John Gramática tradicional Transitivo Direto. Ela acredita em João. Transitivo Indireto. Oração Gramática tradicional Funcionalismo Eu gosto de ouvir música. Transitivo Direto A, B, B, B, B, A, A, A, A, B. (grau 5) Funcionalismo A, B, B, B, A, A, A, B, A, A. (grau 6) A, B, B, B, A, A, A, B, A, A. (grau 6) I like to listen to music. Transitivo Indireto A, B, B, B, B, A, A, A, A, B. (grau 5) Oração Gramática tradicional Funcionalismo Ela não respondeu à pergunta. Transitivo Indireto A, A, A, A, A, B, A, A, A, A (grau 9) She didn't answer the question. Transitivo Direto A, A, A, A, A, B, A, A, A, A (grau 9) Oração Gramática tradicional Funcionalismo Preciso de todos aqui Transitivo Indireto. A, B, B, B, A, A, A, A, A, A (grau 7) I need everybody here. Transitivo Direto. A, B, B, B, A, A, A, A, A, A (grau 7) Oração Gramática tradicional Funcionalismo Os soldados desistiram da luta. Transitivo Indireto A, A, A, B, A, A, A, A, A, A. (grau 9) The soldiers gave up the fight. Transitivo Direto A, A, A, B, A, A, A, A, A, A. (grau 9)