reflexão novos programas - Agrupamento de Escolas de

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REFLEXÕES SOBRE O NOVO PROGRAMA DE PORTUGUÊS 2013
Muito se tem refletido sobre a dificuldade da aplicação/lecionação dum corpus literário tão
extenso, da prática e execução de diferentes géneros textuais, bem como a compreensão e produção
de textos orais literários e não literários e, ainda, mas não menos importante, a
reflexão/conhecimento de todas as dimensões da gramática. Muito se tem refletido na falta de
tempo para gerir conteúdos, na impossibilidade de desenvolver um trabalho individualizado em sala
de aula devido à quantidade exorbitante de tópicos de conteúdo que se estendem pelos diversos
domínios, quando o professor tem perante si turmas de vinte e seis ou trinta alunos. Muito se tem
refletido sobre a complexidade que comporta este novo programa para alunos que, dentro de uma
escolaridade obrigatória, optam pela via científica, pois não revelam apetência para as “Letras”.
Neste sentido, justifica-se que exista, ainda hoje, em algumas escolas secundárias, a disciplina de
Literatura na qual se enquadrariam legitimamente estas novas propostas. Embora estas e outras
reflexões sejam importantes, e também nós as façamos, interessa-nos aqui levantar a questão sobre
a clara opção do aumento do grau de complexidade do programa e das metas, salientando desde já
que a “culpa não é das metas”, pois não exigem um programa concebido desta forma, elas apenas
priorizam os diversos objetivos do programa.
O Ministro da Educação salta em defesa da sua “dama em apuros” ao esclarecer que
pretende ter “metas mais claras, programas mais exigentes, referências literárias que são
importantes para todos os nossos alunos”. No entanto, erguem-se duas questões: será que um futuro
médico, enfermeiro, engenheiro ou qualquer outro profissional do ramo das ciências, desempenhará
melhor a sua atividade se conhecer a literatura desde a Idade Média até aos autores contemporâneos?
Será que o interesse dos “nossos alunos” está salvaguardado, quando não foram ouvidos aqueles
que ao longo de vários anos trabalham diariamente com jovens em contextos reais e não em
gabinetes onde virtualmente se projetam esses “nossos alunos”?
O maior problema, do nosso ponto de vista, é que se implementa este programa num ciclo
de ensino que legalmente é obrigatório, sem ter em conta a heterogeneidade dos alunos que são
obrigados a estudar até aos 18 anos... Cabe-nos agora perguntar o que fazemos com os alunos que já
não querem estudar, porque não podem, porque é complexo, porque gostam mais da vida prática ou
do ensino com conteúdos relevantes para o seu dia a dia? A resposta será, imaginamos nós, que
devem escolher a via profissional e não a que leva ao prosseguimento de estudos na universidade.
Trata-se duma seleção de alunos feita já no liceu e que evita muitos numerus clausus. Atualmente, o
programa de português do ensino profissional mantém os conteúdos e as indicações pedagógicas do
programa proposto para o ensino regular. No entanto, não sabemos o que vai acontecer com o
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ensino profissional! Também se vai alterar o seu programa seguindo o mesmo caminho? Ou os
alunos do ensino profissional não têm direito a esse património cultural de que se fala nesta
proposta de programa? Interrogamo-nos também sobre o futuro da disciplina de literatura que
consta no currículo dos cursos de humanidades.
Convém relembrar que, nos anos 80, o ensino da Literatura adquiriu novos contornos
resultantes de vários debates sobre o seu enquadramento na sociedade e no ensino, uma vez que o
aluno começou a desempenhar um papel ativo no processo das aprendizagens, revalorizaram-se as
suas capacidades de interpretação e análise textual e a escolha de instrumentos que o levassem a
encontrar prazer na leitura do texto literário. Consequentemente, no cânone surgiram novos textos
que apelavam a novas temáticas e a novos autores com o objetivo de irem ao encontro das
experiências pessoais do aluno. A partir das reformas de 1991, constatamos que o cânone escolar é
alterado no sentido de esbater a sua apresentação da História Literária, introduzindo uma renovação
do cânone que é constituído para se tornar uma fonte de fruição pessoal de leitura e um instrumento
de inserção na vida social e profissional. Hoje, limitam-se a apresentar um documento, apenas, para
consulta, recusando na prática um processo de diálogo entre todos os intervenientes e interessados.
Assim, os professores deixaram de ter liberdade de escolha, tornando-se escravos de um programa
excessivamente direcionado que não atende ao perfil dos alunos ou às características das turmas.
É evidente que se procura cortar o “mal pela raiz”, acabar com o “facilitismo” tão famoso
em que o ensino terá caído nos últimos anos, isto é, supostamente tem-se pedido aos alunos a mera
compreensão do que está explícito no texto: “O patamar internacionalmente reconhecido como
horizonte de referência para o qual tender, em termos de leitura, sublinha agora, e cada vez mais, a
importância da interpretação de textos culturalmente relevantes e não a mera compreensão de
informação explícita”. A resposta consiste em apresentar um programa que privilegia o texto
literário assumindo que “ocupa um lugar relevante porque nele convergem todas as hipóteses
discursivas de realização da língua”.
Ora, o que se contesta aqui é que esta opção pelo texto claramente literário, cuja organização
diacrónica, para adquirir um conhecimento histórico da sua produção e das suas características,
conduza a uma maior competência de leitura, isto é, de inferir sentidos, ou de expressão oral e
escrita. Com todos os seus defeitos, o programa do secundário aplicado atualmente, estabelecendo a
diferença entre conteúdos declarativos e processuais, procura neste último definir exatamente como
deve o aluno desenvolver a sua competência de compreensão/expressão oral, escrita e de leitura. É
muito importante ter a consciência das diferentes fases e estratégias de produção de um texto: a
planificação, a execução e a (auto-) avaliação são essenciais para que o aluno progrida. Não basta
referir apenas que os textos serão progressivamente mais complexos e que é necessário treinar para
chegar a um raciocínio abstrato. É muito discutível que as cantigas de amigo, estudadas no 10º ano,
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sejam mais simples do que os textos poéticos do século XX cuja leitura se propõe dois anos mais
tarde, no 12º ano. A mais-valia dos programas ainda vigentes é que introduzem como conteúdos a
aprendizagem processual, o que acontece também nos programas de “Lengua y literatura” da
vizinha Espanha.
Em vez de modernizar o ensino do português, este programa representa um retrocesso.
Primeiro, porque volta a atribuir à história do texto literário o peso que tinha até aos anos 80, deixa
os alunos nas mãos da pedagogia individual de cada professor como nos anos 80, destruindo todo o
trabalho de uniformização do processo de ensino-aprendizagem que visava igualar e melhorar o
desempenho global dos alunos.
Assim, o cânone escolar ao ter em conta os destinatários e a finalidade avaliativa que recai
sobre as leituras explica que, por exemplo, o romance de Vergílio Ferreira Aparição fosse retirado
dos programas de Português no ensino secundário. Nunca foi discutido o inegável valor literário do
texto, mas os professores manifestaram-se, alegando que o romance continha uma temática que não
motivava os alunos, porque não se adequava à faixa etária e que estes não possuíam a maturidade
necessária para compreender o texto.1 Atualmente, verificamos que as propostas do novo programa
se distanciam dos interesses dos principais visados – os alunos -, pois não se procura que a literatura
tenha a ver com a sua realidade presente e futura, mas com aumentar o grau de complexidade.
Ao estabelecer um cânone literário escolar também se impõem procedimentos
metodológicos e didáticos explicativos desses autores e textos escolhidos, assim como de suportes
teóricos e críticos que os representam e que se tornam responsáveis pela transmissão dos valores da
língua, da cultura e da literatura de uma nação. Assim, ao deixar nas mãos do professor do ensino
secundário a metodologia, estabelece-se uma discrepância, negativa em nosso entender,
relativamente ao ensino básico, pois neste nível a planificação é orientada a partir das metas
curriculares que são sustentadas pelas teorias cognitivistas e que veiculam, entre outros, a
importância da compreensão mediante uma perspetiva progressiva que assenta na consolidação de
conhecimentos ao longo do ensino básico. Esta é a condição para que o aluno possa progredir e
aprofundar os conhecimentos. No entanto, parece que nem todos sabemos que para consolidar é
preciso tempo para cumprir várias etapas que cada domínio exige.
Para orientar o trabalho do professor do ensino básico, foram feitas propostas metodológicas
para que possam ser desenvolvidas várias etapas que conduzam à consecução de cada descritor.
Vejamos, então, como preparar, por exemplo, uma unidade gramatical: selecionar o objetivo e o
1
Parecer sobre as Orientações de Gestão do Programa da Disciplina de Português B do Ensino Secundário,
Coimbra, 1996.
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descritor; detetar as regularidades (generalização); clarificação da regra e ensino do conceito
gramatical; aplicar em vários exercícios de diferentes tipologias; realizar exercícios de treino e
terminar com a avaliação de conhecimentos. Apesar de também se defenderem os princípios de
reflexão, explicitação e sistematização no domínio gramatical, no ensino secundário, o professor
não terá aulas disponíveis para desenvolver cada etapa, acabando por saltar várias, uma vez que
precisa de cumprir o programa.
Em suma, com esta reflexão, queremos manifestar o nosso desacordo em relação a um
programa
que
não
visa
melhorar
o
processo
de
ensino-aprendizagem
nem
as
competências/conhecimentos dos alunos, mas sim, e simplesmente, impor um cânone literário
particular e um modo de trabalhar “exigente” sem ter em consideração o perfil dos alunos e os seus
próprios objetivos.
Clara Vitorino e Ana Paula Ferrreira
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