Tobias Barreto e a Crítica

Propaganda
Tobias Barreto e a Crítica
Toda a obra de Tobias Barreto é de crítica, ainda quando, ao modo de Kant, formula
teorias, indica caminhos, questiona roteiros estéticos, ou valores éticos, ou ainda
compromissos ideológicos. O manejo da crítica em toda a obra tobiática equivale ao
efeito caleidoscópico da sua coerência como um bom juiz de valores, um perspicaz
observador diante das experiências, com capacidade para distinguir uma das outras, e
um experimentador ousado, atributos que combinam com a idéia das qualificações do
crítico, segundo J. A. Richards.1
Na poesia, entendendo-a como a “expressão das lutas da alma humana”, o autor de
Dias e Noites agitou as massas nordestinas no Recife, fazendo-se poeta do povo. A
sua obra poética está repleta de profecias, de denúncias e de crítica. Nos jornais, anos
mais tarde, é crítico de religião, tomando partido no Iluminismo alemão – o Aufklarung
– que produzira dois eminentes vultos que passam a freqüentar os escritos de Tobias
nos jornais pernambucanos: Immanuel Kant e Gotthold Lessing, pondo em evidência o
poder da razão humana. Tão forte e entranhada é a sua crítica que a série de artigos
Ensaio de Pré-história de Literatura Clássica Alemã pode ser enquadrada nos limites
da apreciação literária, ou como exegese que faz aflorar questões religiosas.2 Da
crítica de religião à filosofia, e desta ao direito, e deste à organização da sociedade,
cresce o intérprete do seu tempo, buscando a estatura do seu século.
Não deve causar surpresa, portanto, que em sua maioria os escritos de Tobias Barreto
sejam de crítica. Sejam recensões, no sentido típico da palavra, anunciando a obra ou
o espetáculo, discutindo o assunto e fazendo a apreciação dos seus méritos e
defeitos. Sejam as animadversões, com suas censuras. Sejam ainda, como ele próprio
o diz, “quase sempre um trabalho, não por assim dizer de fisiologia, mas de anatomia
literária,3 considerando a crítica como um estudo de cadáveres. Este tom de
sarcasmo, comum em Tobias, remete ao fato comum de que a crítica, na literatura
brasileira, tem uma função post-mortem. O trabalho do crítico se confunde, então, com
o de um arqueólogo, em permanente investigação do passado.
Não raro, a crítica literária tem sido produzida a posteriori, já na distância do tempo
entre a obra e o público. Por outro lado, há uma critica geralmente feita pelos próprios
criadores, abrindo caminho à compreensão das obras literárias. Assim foi com o
Modernismo de 1922, com a Geração de 45, com o Concretismo, de 1956, e com o
Poema-Processo, em 1965. A crítica revelou-se desaparelhada para compreender o
sentido renovador da estética nova dos modernistas, dos concretistas e de outros
grupos da vanguarda literária do País. O Brasil guarda os textos históricos, manifestos
e ensaios, produzidos pelos poetas, e ao mesmo tempo críticos, dos movimentos,
muitos dos quais se tornaram também intérpretes da vida literária do País, como os
Mário de Andrade, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Wladimir Dias
Pino.
Tobias Barreto foi um crítico do seu tempo, como tinha sido um poeta engajado nas
lutas da sua fase estudantil. Combateu o ars gratia artis que animava a muitos
escritores do século, e estabeleceu uma longa discussão entre o romanismo, de
França e Portugal, e o germanismo. Esse debate, presente em toda a obra crítica do
pensador sergipano, é a chave da melhor compreensão das posições assumidas pelo
fundador e pelos integrantes da Escola do Recife, uma espécie mesmo de marca
registrada, que se constituiu na mais renovadora contribuição ao pensamento
brasileiro, na segunda metade do século passado e que levou Graça Aranha, um dos
modernistas, a declarar que Tobias emancipou, intelectualmente, o Brasil.4
Não ficou assunto, ainda que fosse árido, que não merecesse uma abordagem crítica
por parte de Tobias Barreto, nos jornais recifenses, nos seus pequenos periódicos de
A. Richards –Princípios de Crítica Literária. Citado por 1 Harry Shaw, in Dicionário de Termos Literários.
Publicações Don Quixote, Lisboa, 1982.
2 Os artigos de Ensaio de Pré-história da Literatura Clássica Alemã, de 1883, estão no volume de Crítica
de Religião, desta edição comemorativa das Obras Completas de Tobias Barreto.
3
In Um Romance e um Romancista.
4 In O Meu Próprio Romance 1931. Também em Obras completas. INL. Rio de Janeiro, 1969.
1
Escada, ou nas preleções e discursos, transformados em veículos de vulgarização
cultural. Até mesmo sua passagem pela Assembléia Provincial, como deputado liberal,
serviu para informar aos seus pares das suas leituras científicas sobre a mulher. O
poder crítico de Tobias é algo que ainda falta ser dimensionado; porque a leitura de
sua obra sempre revela ângulos novos, informações e contribuições singulares,
apreciações originais, que dão grandeza ao ofício jornalístico do trato recensor.
É possível, então, levantar-se o itinerário do pensamento brasileiro, na segunda
metade do século passado, a partir da obra de Tobias Barreto. Não apenas naquilo
que ele operou de transformação, a partir dos seus contatos com autores alemães e
com a própria língua de Kant, mas também na fixação das idéias dominantes, dentro e
fora da velha Faculdade de Direito do Recife, que foram objeto da crítica tobiática.
Mais importante se torna esse inventário intelectual, quando se sabe, com certeza,
que a discussão ditou dois corpos distintos em peleja: o dos professores, intelectuais
de formação religiosa, tradicionalistas, ultramontanos, de um lado, e a mocidade,
formada por estudantes, jornalistas, maçons, liberais, do outro. Tobias é a grande
figura que desfralda aos ventos nordestinos do Recife a bandeira dos novos tempos,
com a essência das novas idéias, que espalharam rápido as teorias européias,
principalmente alemãs, da ciência, em oposição aos dogmas e compromissos da fé.
Como escritor e como crítico Tobias fundava suas convicções no avanço da ciência e
da arte, como asas do espírito humano. Circunscrevendo o seu entendimento, a
filosofia prima entre as ciências e a poesia entre as artes. Daí sua crença de que os
poetas e os sábios devem ser iguais. No âmbito menor da discussão, Tobias chega a
afirmar que os padres são, em geral, inimigos da poesia, porque eles gostam do culto
da morte, enquanto a poesia é liberdade e liberdade é vida. Na projeção maior,
ideológica, Tobias Barreto chega a citar, em 1872, diversos exemplos das mudanças
sociais e políticas da Europa, graças ao poder dos romances que propagaram, por
exemplo, as idéias anarquistas. Na esteira da mesma discussão, lembra que a França
moderna possuía um idioma compacto, resultado da autoridade e da concentração
literária, ao lado da autoridade e da concentração política, que dificultava a expressão
intelectual, de criação, para ele comum na Alemanha, onde o “ato de escrever, é
sempre, mais ou menos, um ato criador.”
Em 1875, passando uma vista ampla e demolidora por sobre a vida intelectual
brasileira, pugna por uma “Internacional de Crítica”, citando, pela primeira vez, Karl
Marx.5 Seu trabalho mereceu forte reação por parte de Albino Meira, na revista Culto
às Letras. Tobias Barreto reduziu a reação de Albino Meira a duas ou três páginas de
resposta, mas acompanhou com todo o interesse a polêmica entre Sílvio Romero, que
então se assinava Sílvio da Silveira Ramos, e o redator do Culto às Letras. Essa não
fora a única fonte das discórdias de Tobias Barreto no mundo cultural pernambucano.
Suas críticas a Alexandre Herculano e a outros autores portugueses, aos tomistas e
neotomistas, tiveram o mesmo efeito provocador que os seus estudos alemães,
publicados a partir de 1874 no jornal escadense Um Signal dos Tempos.
Para Tobias a “internacional de Crítica” deveria ser uma espécie de fórum, de espíritos
cultos e independentes, ao qual seriam submetidas “todas as obras frívolas, que têm
firmado a reputação de certos vultos em Portugal e Brasil.” Para ele, os escritos que
fossem publicados deviam ser enviados para análise imparcial dos homens
competentes, onde receberiam o placet ou o não presta. Arremata Tobias:” Destarte, à
face do mundo inteiro, e sem abalos de ordem alguma, poríamos fogo no castelo
feudal de um Alexandre Herculano; deitaríamos por terra a vila senhoril de um José de
Alencar, e tantos outros enfatuados de uma nomeada toda local...”.6
Com a crítica e pela crítica Tobias Barreto marcou sua presença na luta intelectual que
travou em Pernambuco, de 1862 a 1889, deixando em todos os seus escritos o traço
O artigo “Socialismo e Literatura”, escrito em novembro de 1874, foi publicado em 1875, na primeira
edição dos Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica.
6 In Socialismo e Literatura.
5
inquieto do investigador, do intérprete, do pensador, revelando e abrindo caminhos ao
futuro.
A Literatura
Para Tobias, literatura tinha a significação de vida espiritual. Contrariando os conceitos
vigentes, que limitavam a literatura ao poema e ao romance, ele aprofunda a questão,
ainda em 1872, numa nota de crítica ao livro do dr. José Soriano de Souza.7 Sendo,
como Tobias assim a entendia, a literatura uma estatística aprofundada de todas as
produções intelectuais de um País, em uma época dada, são incorporadas, com suas
valorações próprias, a ciência, a filosofia, a poesia, o teatro, o romance, e até a pintura
e a música. Diz Tobias: “Assim se compreende na Alemanha, onde os livros ou
tratados de literatura nos dão a conhecer não só Goethe e Schiller, como Kant e
Hegel, não só Freytag e Stifter, como Strauss e Baur, não só Beethoven e Mozart,
como Cornelius (pintor), etc. etc.”.8
A vastidão do quadro literário, segundo a aprendizagem alemã de Tobias Barreto,
explica seus vôos de longo alcance sobre obras e autores que trataram de Religião,
como Ewald, de Filosofia, como Kant, de Educação, como Frederico Diesterweg, de
Cultura, como Julio Froebel, de Psicologia, como Eduardo Von Hartmann, de
Economia Política, como Karl Marx, de Antropologia, como Hermann Post, de Direito,
como Rudolf Von Jhering, de Psicologia Feminina, como Adolfo Jellinek, e de tantos e
tantos outros temas que interessaram e moveram a sua curiosidade crítica. Está,
portanto, decodificado o facho luminoso que Tobias lançou sobre o seu tempo e seus
contemporâneos: o amplo espectro da sua crítica, correspondente ao corpus cultural
objeto do seu interesse.
Vocacionado para a crítica, menospreza o livro de Ferdinand Wolf9 e não poupa,
sequer, seu amigo, conterrâneo, e parceiro Sílvio Romero, quando publica a História
da Literatura Brasileira.10 A obra de crítica literária de Tobias supera, em muito, as
informações e inventários de época, ainda que alguns, como o próprio livro de Sílvio
Romero, preencham lacunas na bibliografia brasileira. Não causa espécie, por isso
mesmo, que os críticos brasileiros e portugueses, lançando os olhos sobre a literatura,
isolem Tobias, negando-lhe as qualidades de escritor e de filósofo. O Brasil Mental, de
Bruno,11 é um exemplo que proliferou, lá e cá, como uma posição sobre o mulato
sergipano. Ainda que tenha testemunhado, apaixonadamente, sobre a genialidade de
Tobias, Sílvio Romero faz menor a poética condoreira, divide a primazia do
germanismo, e assume posturas de outras escolas, contradizendo a evolução
intelectual do mestre. Mais que isto, Sílvio faz de Tobias, não raro, um escudo, com o
qual enfrenta as rivalidades fluminenses. Assim, torna-se comum ao historiador da
literatura, ao apresentar Tobias Barreto aos leitores, diminuir o valor de outros poetas
e escritores, criando dificuldades para o seu apresentado. Isto é visível na apreciação
feita pelo poeta Luiz Delfino do livro Dias e Noites, em sua primeira edição, de 1881.
No longo artigo o poeta se ocupa de rebater as afirmações de Sílvio Romero,
terminando por julgar, de forma apressada, a obra em versos de Tobias, que deveria
ser o objeto da crítica. Sílvio Romero chega ao cúmulo de inserir, nos textos de
7
Lições de Filosofia Elementar, Racional e Moral. Paris, 1871.
In “O Atraso da Filosofia entre Nós”. Jornal do Recife, 18 de novembro de 1872.
9 Le Brésil Litteraire, 1863.
10 Em carta de 6 de abril de 1888, Tobias escreve a Sílvio Romero e diz: “Pondo de parte o que me diz
respeito, devo declarar-lhe que achei o seu trabalho muito bom, exceto num ponto – permita-me a
franqueza. Foi no ponto em que o sr. , a meu ver, deturpou a sua História falando de gente que nada vale.
Realmente, a que propósito falar de Aníbal Falcão, um verdadeiro bobo, positivista ortodoxo, bacharel
taquígrafo, e taquígrafo medíocre? Isto é gente que deva ocupar lugar numa história séria? Não decerto”.
11 Pseudônimo do escritor português José Pereira de Sampaio.
8
Tobias, citações de nomes de forma desfavorável, como ocorreu num dos artigos do
ensaio O Atraso da Filosofia entre Nós.12
Tanto a amplitude dada à literatura, em sua crítica, por Tobias Barreto, quanto sua
disposição de brigar pelas verdades que defendia, e mais a atitude partidária de Sílvio
Romero, devem ter concorrido para que a obra do mestre não merecesse, no
inventário da história e da crítica literária, o juízo justo, o exame correto. Fala-se mais
de Tobias por ouvir dizer, do que mesmo pelo conhecimento de seus textos, todos
eles de reflexão, por circunstanciais que possam parecer. Pois essa é uma
característica permanente na obra de Tobias: a reflexão.
Conceituando de forma larga e refletindo sobre suas leituras, Tobias construiu um
monumento de crítica, valendo-se da ferramenta contundente que, de cedo, preferiu
para o trabalho intelectual: o germanismo. Com ele, penetra seu olhar agudo por sobre
várias literaturas, comparando-as, identificando raízes e arquétipos, formas e
compromissos. É pioneiro em estudos comparados, acreditando que “segundo o plano
da história, que muitos chamariam de a economia providencial do universo, todo o
povo que progride e se desenvolve tem uma dupla missão: uma interna e outra
externa; uma volvida para si mesmo e outra para os demais povos”.13 Daí a literatura
ter, no seu entender, caráter universalizante. Apoiado em George Brandes, aprecia,
comparativamente, as literaturas da França, da Itália e da Alemanha, tendo esta última
como uma espécie de modelo. Será a primeira vez, no Brasil, que os estudos literários
ganham um método, o comparativo. Com ele Tobias sente firmeza para explorar, com
seu agudo espírito crítico, todo o campo intelectual.
Citando Henrique Klenke, para quem os povos são divididos em três grupos – os
solares, os planetários, e os de transição –, Tobias Barreto não hesita em colocar o
Brasil na terceira categoria, a da transição. diferenciando os brasileiros dos povos
planetários, os do lado noturno da humanidade, e dos solares, os do lado “diurno”. A
transição é o lado “crepuscular” da humanidade, valendo para os povos que se
levantam ou que decaem. Tal divisão, insólita no âmbito dos estudos literários, retorna
hoje ao interesse da ciência política, quando história e memória se contrapõem,
trabalho e lazer criam éticas diversas, e a humanidade assiste à agonia dos sistemas
liberal e socialista, segundo Octavio Paz as duas grandes heranças da modernidade
ocidental.14 Também sobre esse enfoque, Tobias avançou com sua intuição genial,
antecipando-se a discutir referências fundamentais que o desenvolvimento dos povos
constrói e que servem de contato para a humanidade.
A adesão de Tobias Barreto ao estudo da literatura comparada supera a visão interna
da produção literária do Brasil. Sem dúvida ele intuiu sobre as migrações dos autores,
bafejados pelo Poder, que por sua vez deriva da prosperidade econômica. No Brasil é
fácil cartografar a evolução literária, na mesma escala em que ocorrem os surtos do
progresso econômico. Assim, a poesia de Bento Teixeira, louvatória e de circunstância
– a Prosopopéia –, reflete o bom sucesso econômico da Capitania de Pernambuco,
que explorava todas as riquezas do Norte do Brasil. O barroco baiano, cuja oralidade
produziu Gregório de Matos, responderia, nas letras, ao florescimento da Capitania da
Bahia, ampliada com a incorporação das terras vizinhas, de Ilhéus, Porto Seguro,
Sergipe d’EI Rey. A descoberta das minas auríferas das gerais explica, com certeza, o
Arcadismo dos Gonzaga, Costa e Peixoto. A concentração do Poder, no Rio de
Janeiro, com a chegada da família Real portuguesa, dá nova dimensão e centraliza a
12
No texto que está publicado no Jornal do Recife, Tobias não faz qualquer menção de nomes. A citação
de Alencar, Macedo, Taunay e Machado de Assis é da responsabilidade de Sílvio Romero, quando
publica os artigos de Tobias no volume Vários Escritos, em 1900.
13 In Traços de Literatura Comparada do Século XIX.
14 Eis o texto do pensador Octavio Paz, publicado no jornal espanhol ABC, edição de 2 de abril de 1989:
“Padecemos um grande vazio, sobretudo um grande vazio moral. A nova filosofia moral e política do
século XXI terá que enfrentar o grande (o nosso) vazio. As duas grandes heranças da modernidade
ocidental, o Liberalismo e o Socialismo, se enfrentam em seu próprio esgotamento ao haver perdido de
vista suas referências fundamentais”.
literatura brasileira, sedimentando uma hegemonia que não apenas serve para abafar
a reação nordestina, como entra no século XX devastando os focos regionais de
cultura. Não é sem razão, portanto, que Tobias Barreto chega a aludir, na sua intenção
de criar uma “Internacional de Crítica”, fazendo uma liquidação itinerária, exaltando o
mérito, só o mérito real, “sem manejos diplomáticos e ridículas mistificações”.15
Como crítico, Tobias Barreto inicia uma tradição sergipana de intérpretes da obra
literária, que passa por Sílvio Romero, João Ribeiro, Laudelino Freire, Liberato
Bitencourt, Mário Cabral, e mais recentemente Jackson da Silva Lima.16
Poesia & Prosa
O volume de Crítica de Literatura e Arte, que integra o plano geral das Obras
Completas de Tobias Barreto, tem uma composição que escapa ao simplesmente
literário, porque representa um apanhado de parte da obra crítica, naquilo que de mais
próximo está nas manifestações de poetas, romancistas, prosadores em geral. Alguns
temas teóricos, de lingüística, da gramática, da estilística, ou ainda dos contextos nos
quais surgem as produções literárias.
O volume é aberto com duas apreciações sobre jovens poetas: Paes de Andrade e
Licurgo de Paiva, que ficaram, como tantos outros, perdidos no esquecimento do
tempo. Mais do que examinar o conteúdo dos dois livros, Tobias aproveita para
conceituar sobre a poesia, dando base ao seu edifício crítico que mais tarde
aparecerá, imponente e resistente, no curso da sua evolução intelectual. São escritos
estudantis, de 1865, 1866, certamente solicitados ao vitorioso poeta das ruas do
Recife, profético e panfletário, do que ao mestre da crítica literária. Mas, o verdor dos
escritos não os torna menos importantes na obra de Tobias, mesmo porque lá estão
os sinais da sua insatisfação vulcânica: “Seja qual for o vigor do seu talento, a
grandeza de suas concepções, o poeta é sempre um homem, e como tal sujeito às leis
que regem a natureza humana (...)”. Ou: “O coração do poeta é o clepsidro em que
soam sempre adiantadas as horas da vida do mundo. Os poetas e os sábios devem
ser iguais”.17
Tratando da literatura bíblica, uma de suas permanentes paixões, ele tem a certeza
crítica de colocar o livro de Naum no centro dos seus interesses, para mostrar o
quanto de poesia tem a Bíblia – “imensa como a onipotência, ardente como os sopros
do deserto” – e afirmar, como uma advertência que permanece válida ainda hoje, que
os tradutores são, invariavelmente, menores que os criadores das obras literárias.
Mostrando uma de suas virtudes, a de latinista, Tobias chega a exercitar traduções
que põe como alternativas mais adequadas aos textos transcritos de Naum.
No estudo do romance de Maurício de Azevedo – “ Um Romance e um Romancista” –,
artigo de 1874, Tobias reclama da apatia brasileira, em termos de criação literária,
reduz a expressões mais simples autores como Joaquim Manoel de Macedo e José de
Alencar, elegendo o romance como a narrativa por excelência nacional, portadora da
vida do povo, na medida dos grandes romancistas como Walter Scott. No mesmo
artigo, publicado no jornal Um Signal dos Tempos, de Escada, Tobias Barreto mantém
a mesma técnica de tomar uma obra como pretexto para aprofundar as suas críticas,
sem poupar quem quer que seja, independentemente da posição ou da fama. Nas
suas severas apreciações estão Braz Florentino, que morreu quando exercia a
presidência do Maranhão, o Barão do Rio Branco, José de Alencar, Macedo, Tavares
Bastos, Franklin Távora, Taunay, José Soriano de Souza, e muitos e muitos outros,
15
In Socialismo e Literatura.
Sílvio Romero escreveu, dentre outros: Estudos de Literatura Contemporânea, 1885, História da
Literatura Brasileira, 1888; João Ribeiro é autor de Autores Contemporâneos, Compêndio de História da
Literatura Brasileira, em colaboração com Sílvio Romero, Clássicos e Românticos Brasileiros; Laudelino
Freire é autor de Sonetos Brasileiros, 1904; Mário Cabral escreveu Cadernos de Crítica, 1944, e Jackson
da Silva Lima é autor da História da Literatura Sergipana, vol. l, 1971, vol.2, 1986.
17 In Flores da Noite.
16
incluindo aí Castro Alves, de quem foi amigo e desafeto, e Joaquim Nabuco a quem
nunca reconheceu mérito.
Causou enorme júbilo entre os jovens pernambucanos, rapazes e moças, a atitude de
Tobias Barreto, quando deputado, no biênio 1878/79, em defesa da mulher, quando da
discussão sobre um auxílio que deveria ser dado, pela Província de Pernambuco, a
duas moças que queriam estudar medicina nos Estados Unidos e na Suíça. A
atualidade do tema, o acervo de informações, a convicção dos argumentos científicos
fizeram com que Tobias fosse seguidamente aplaudido e tivesse sua cabeça alvejada
pelas pétalas de rosa que, das galerias, lhe atiravam os admiradores. Foi um momento
especial na vida daquela casa legislativa, cujo registro, nos anais e na imprensa do
Recife, é um documento indesmentível.
Não fora ali a única vez em que Tobias Barreto colocava a mulher como centro de
seus interesses de estudo. Na sua visão de crítico, ele soube distinguir e ressaltar o
papel da mulher nos salões europeus. Não aquelas das vulgares meias pretas, mas as
blas-bleu, com suas meias azuis, de lã, força “civilizatriz”, no dizer do próprio crítico. O
artigo é, na verdade, além de uma clara tomada de posição em favor da mulher, um
inventário da importância que os salões tinham nos círculos intelectuais da Europa. Ao
lê-lo, fica difícil distinguir o jogo das influências, pois Tobias, com seu partidarismo
feminino, iguala a influência do salão à influência da mulher, abrindo crédito novo no
livro de contas da literatura.
Estudando o estilo, Tobias Barreto procede a uma das mais geniais de suas críticas,
porque delimita categorias que condicionam, segundo seu entender, a própria criação
intelectual. Para ele o que difere, no seu século, o estilo da antiga e da nova prosa é a
velocidade. “O que antes era largo e vagaroso torna-se, pouco a pouco, rápido e
precipite”.18 Mais do que para a dinâmica da vida, o estilo – como relativo a diferentes
épocas e diferentes povos – está também em relação até às diferenças de raça, afirma
Tobias, exemplificando: “Assim a nação francesa, que é a mais culta das nações
latinas, exprime no seu estilo o maior grau de antítese etnológica, entre a essência
românica e a essência germânica. Em nenhum ponto melhor se manifestam os
distintivos de uma e de outra raça”.
Nesse seu pequeno ensaio Tobias chega a antever a função concreta da palavra,
sentenciando que “a tendência para a frase, para a escolha da palavra, somente por
ela mesma, torna-se inevitável.” Este parece ser um dos fundamentos das literaturas
de vanguarda, que passou na batéia crítica de Tobias Barreto.
Outras abordagens, sempre ferramentado com o germanismo, fazem da obra de
crítica de literatura de Tobias Barreto uma fonte de consulta útil, que radiografa o
tempo, na sua interiorizada moldura, e nas tendências novas que sopravam,
inquietantes, por sobre o dorso da rotina atrasada do Brasil, como uma recepção
sintônica, universalizada.
A Arte
No que diz respeito à arte, ainda que sob o campo restrito da música e do teatro
musical, Tobias Barreto se vale, também, do método comparativo do dinamarquês
Brandes. E faz um grande painel, de porte e envergadura, do que traçou nos dez
artigos – de uma série de cinqüenta que prometeu – sobre a literatura comparada do
século XIX, povoado de grandes nomes da criação operística, da música e da
representação cênica.
Confesso admirador de Vicenzo Bellini, autor de óperas, reconhecidamente
espontâneo e melodioso, próximo do popular, Tobias se fez um crítico militante,
freqüentador assíduo do Teatro Santa Isabel e de outros locais de espetáculos, apesar
de escrever, em 1877, que pertencia “à categoria dos diletantes que vão ao teatro para
18
In Idéias e Princípios da Estilística Moderna.
gostarem e não para julgarem”.19 Mais adiante diz ele: “A verdadeira crítica musical é a
que se restringe a ser simplesmente um pedaço de psicologia, isto é, a exposição do
que se sentiu ou deixou de sentir, sem o direito, porém, de tornar o próprio sentimento,
subjetivo e personalíssimo, bitola do mérito artístico”.20
Há uma proximidade, ou pelo menos havia no século passado, entre a música e a
filosofia. Conta-se, na biografia de Franz Liszt, que numa de suas primeiras viagens à
Genebra, ao assinar a ficha do hotel, assim se qualifica: Profissão – músico-filósofo;
Nascido – no Parnaso; Oriundo – das dúvidas; com destino – à verdade. O certo é que
mais do que sogro, Liszt foi um grande profeta da genialidade de Richard Wagner.
Recolhido na pequena cidade de Escada, de onde uma vez por quinzena viajava ao
Recife, Tobias Barreto pôde estar atento ao ambiente musical da velha Europa, onde
as genialidades eram sucedidas celeremente. Nas suas críticas estão os mais
célebres compositores da música, alguns deles, como o próprio Wagner, presente
também como crítico, a fornecer munição para os embates intelectuais, como na
polêmica com o sr. Taunay, a propósito de Meyerbeer e de suas óperas Roberto, o
Diabo, e Os Huguenotes.
A Tobias, como crítico musical, não escapa o sentido da história, nem o da estética.
Na música, como na literatura, o crítico mapeava a Europa com os limites da ópera da
França, da Itália e da Alemanha, intercalando todas as trocas de influências que, sem
perda dos conteúdos e matizes próprios, universalizavam a criação musical. A ópera
romântica estava embebida de intuições transcendentais, dando margem a que o
homem, e não apenas o instrumento musical, transformasse a manifestação artística.
A dramaticidade, o recitativo, ocupam importância fundamental nos estilos dos
compositores, sinalizando um processo significativo de evolução, desdobrado para
outras partes do mundo, como para o Brasil, onde vem a pontificar Carlos Gomes,
maestro aclamado em Milão, onde faz representar algumas de suas óperas no Teatro
Scala.
Atento ao que se passava na Alemanha e no resto da Europa, o crítico exercia, no
Recife, um papel insubstituível de propagandista da ópera e dos seus maiores
compositores. Poucos críticos, no Brasil, ocuparam espaço tão definido, tão
conscientemente exercido, como o fez Tobias Barreto, em Pernambuco. Depois da
militância jornalística, Tobias reúne algumas de suas críticas e publica, em 1883, no
livro Estudos Alemães. Ele próprio identificava e localizava sua visão musical nos
limites do seu germanismo. Completava-se, assim, o círculo cultural que fazia da
Alemanha um modelo capaz de ser utilizado como ferramental comparativo.
Compreendendo-se a amplitude do germanismo tobiático não há porque não reter
num abrigo óbvio como o dos Estudos Alemães a sua crítica musical, agora enfeixada
no volume de Crítica de Literatura e Arte. Esses ajustes não passam de mera
organização quantitativa, porque, em essência, toda a obra de Tobias Barreto, em
todo o seu luminoso espectro de investigação crítica, é de forma e fundo germânicos.
Diante das óperas de Carlos Gomes, o crítico parece sentir a falta do velho Lied
alemão, numa de suas três categorias: o Volkslied, verdadeiramente popular, folclórico
até, seja lírico ou dançante; o Volkstumliches Lied, de criação original, mas concebido
e realizado à maneira dos cantos populares; e o Kunstlied, ou Lied artístico, com
preocupações eruditas, ainda que não interfira nas origens populares.21
Em 1884, numa de suas últimas manifestações de crítica, lamenta a falta de gosto
pelo drama, escrevendo o artigo de fundo de um pequeno jornal – Arte Dramática22 –,
prometendo seriar suas observações, ainda que reconhecesse, com Honegger, que a
história do teatro era, naquele momento, a história da decadência. Parecia compor,
como crítico musical, sua última profecia.
19
In O Benefício da Sra. Cortesi.
In O Benefício da Sra. Cortesi.
21 Sobre o Lied alemão recomenda-se a leitura de Expressões e Comunicação na Linguagem da Música,
do professor e maestro Sérgio Mangani. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 1989.
22 Nº 1,14 de fevereiro de 1884.
20
Download