Tobias Barreto e a Crítica Toda a obra de Tobias Barreto é de crítica, ainda quando, ao modo de Kant, formula teorias, indica caminhos, questiona roteiros estéticos, ou valores éticos, ou ainda compromissos ideológicos. O manejo da crítica em toda a obra tobiática equivale ao efeito caleidoscópico da sua coerência como um bom juiz de valores, um perspicaz observador diante das experiências, com capacidade para distinguir uma das outras, e um experimentador ousado, atributos que combinam com a idéia das qualificações do crítico, segundo J. A. Richards.1 Na poesia, entendendo-a como a “expressão das lutas da alma humana”, o autor de Dias e Noites agitou as massas nordestinas no Recife, fazendo-se poeta do povo. A sua obra poética está repleta de profecias, de denúncias e de crítica. Nos jornais, anos mais tarde, é crítico de religião, tomando partido no Iluminismo alemão – o Aufklarung – que produzira dois eminentes vultos que passam a freqüentar os escritos de Tobias nos jornais pernambucanos: Immanuel Kant e Gotthold Lessing, pondo em evidência o poder da razão humana. Tão forte e entranhada é a sua crítica que a série de artigos Ensaio de Pré-história de Literatura Clássica Alemã pode ser enquadrada nos limites da apreciação literária, ou como exegese que faz aflorar questões religiosas.2 Da crítica de religião à filosofia, e desta ao direito, e deste à organização da sociedade, cresce o intérprete do seu tempo, buscando a estatura do seu século. Não deve causar surpresa, portanto, que em sua maioria os escritos de Tobias Barreto sejam de crítica. Sejam recensões, no sentido típico da palavra, anunciando a obra ou o espetáculo, discutindo o assunto e fazendo a apreciação dos seus méritos e defeitos. Sejam as animadversões, com suas censuras. Sejam ainda, como ele próprio o diz, “quase sempre um trabalho, não por assim dizer de fisiologia, mas de anatomia literária,3 considerando a crítica como um estudo de cadáveres. Este tom de sarcasmo, comum em Tobias, remete ao fato comum de que a crítica, na literatura brasileira, tem uma função post-mortem. O trabalho do crítico se confunde, então, com o de um arqueólogo, em permanente investigação do passado. Não raro, a crítica literária tem sido produzida a posteriori, já na distância do tempo entre a obra e o público. Por outro lado, há uma critica geralmente feita pelos próprios criadores, abrindo caminho à compreensão das obras literárias. Assim foi com o Modernismo de 1922, com a Geração de 45, com o Concretismo, de 1956, e com o Poema-Processo, em 1965. A crítica revelou-se desaparelhada para compreender o sentido renovador da estética nova dos modernistas, dos concretistas e de outros grupos da vanguarda literária do País. O Brasil guarda os textos históricos, manifestos e ensaios, produzidos pelos poetas, e ao mesmo tempo críticos, dos movimentos, muitos dos quais se tornaram também intérpretes da vida literária do País, como os Mário de Andrade, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Wladimir Dias Pino. Tobias Barreto foi um crítico do seu tempo, como tinha sido um poeta engajado nas lutas da sua fase estudantil. Combateu o ars gratia artis que animava a muitos escritores do século, e estabeleceu uma longa discussão entre o romanismo, de França e Portugal, e o germanismo. Esse debate, presente em toda a obra crítica do pensador sergipano, é a chave da melhor compreensão das posições assumidas pelo fundador e pelos integrantes da Escola do Recife, uma espécie mesmo de marca registrada, que se constituiu na mais renovadora contribuição ao pensamento brasileiro, na segunda metade do século passado e que levou Graça Aranha, um dos modernistas, a declarar que Tobias emancipou, intelectualmente, o Brasil.4 Não ficou assunto, ainda que fosse árido, que não merecesse uma abordagem crítica por parte de Tobias Barreto, nos jornais recifenses, nos seus pequenos periódicos de A. Richards –Princípios de Crítica Literária. Citado por 1 Harry Shaw, in Dicionário de Termos Literários. Publicações Don Quixote, Lisboa, 1982. 2 Os artigos de Ensaio de Pré-história da Literatura Clássica Alemã, de 1883, estão no volume de Crítica de Religião, desta edição comemorativa das Obras Completas de Tobias Barreto. 3 In Um Romance e um Romancista. 4 In O Meu Próprio Romance 1931. Também em Obras completas. INL. Rio de Janeiro, 1969. 1 Escada, ou nas preleções e discursos, transformados em veículos de vulgarização cultural. Até mesmo sua passagem pela Assembléia Provincial, como deputado liberal, serviu para informar aos seus pares das suas leituras científicas sobre a mulher. O poder crítico de Tobias é algo que ainda falta ser dimensionado; porque a leitura de sua obra sempre revela ângulos novos, informações e contribuições singulares, apreciações originais, que dão grandeza ao ofício jornalístico do trato recensor. É possível, então, levantar-se o itinerário do pensamento brasileiro, na segunda metade do século passado, a partir da obra de Tobias Barreto. Não apenas naquilo que ele operou de transformação, a partir dos seus contatos com autores alemães e com a própria língua de Kant, mas também na fixação das idéias dominantes, dentro e fora da velha Faculdade de Direito do Recife, que foram objeto da crítica tobiática. Mais importante se torna esse inventário intelectual, quando se sabe, com certeza, que a discussão ditou dois corpos distintos em peleja: o dos professores, intelectuais de formação religiosa, tradicionalistas, ultramontanos, de um lado, e a mocidade, formada por estudantes, jornalistas, maçons, liberais, do outro. Tobias é a grande figura que desfralda aos ventos nordestinos do Recife a bandeira dos novos tempos, com a essência das novas idéias, que espalharam rápido as teorias européias, principalmente alemãs, da ciência, em oposição aos dogmas e compromissos da fé. Como escritor e como crítico Tobias fundava suas convicções no avanço da ciência e da arte, como asas do espírito humano. Circunscrevendo o seu entendimento, a filosofia prima entre as ciências e a poesia entre as artes. Daí sua crença de que os poetas e os sábios devem ser iguais. No âmbito menor da discussão, Tobias chega a afirmar que os padres são, em geral, inimigos da poesia, porque eles gostam do culto da morte, enquanto a poesia é liberdade e liberdade é vida. Na projeção maior, ideológica, Tobias Barreto chega a citar, em 1872, diversos exemplos das mudanças sociais e políticas da Europa, graças ao poder dos romances que propagaram, por exemplo, as idéias anarquistas. Na esteira da mesma discussão, lembra que a França moderna possuía um idioma compacto, resultado da autoridade e da concentração literária, ao lado da autoridade e da concentração política, que dificultava a expressão intelectual, de criação, para ele comum na Alemanha, onde o “ato de escrever, é sempre, mais ou menos, um ato criador.” Em 1875, passando uma vista ampla e demolidora por sobre a vida intelectual brasileira, pugna por uma “Internacional de Crítica”, citando, pela primeira vez, Karl Marx.5 Seu trabalho mereceu forte reação por parte de Albino Meira, na revista Culto às Letras. Tobias Barreto reduziu a reação de Albino Meira a duas ou três páginas de resposta, mas acompanhou com todo o interesse a polêmica entre Sílvio Romero, que então se assinava Sílvio da Silveira Ramos, e o redator do Culto às Letras. Essa não fora a única fonte das discórdias de Tobias Barreto no mundo cultural pernambucano. Suas críticas a Alexandre Herculano e a outros autores portugueses, aos tomistas e neotomistas, tiveram o mesmo efeito provocador que os seus estudos alemães, publicados a partir de 1874 no jornal escadense Um Signal dos Tempos. Para Tobias a “internacional de Crítica” deveria ser uma espécie de fórum, de espíritos cultos e independentes, ao qual seriam submetidas “todas as obras frívolas, que têm firmado a reputação de certos vultos em Portugal e Brasil.” Para ele, os escritos que fossem publicados deviam ser enviados para análise imparcial dos homens competentes, onde receberiam o placet ou o não presta. Arremata Tobias:” Destarte, à face do mundo inteiro, e sem abalos de ordem alguma, poríamos fogo no castelo feudal de um Alexandre Herculano; deitaríamos por terra a vila senhoril de um José de Alencar, e tantos outros enfatuados de uma nomeada toda local...”.6 Com a crítica e pela crítica Tobias Barreto marcou sua presença na luta intelectual que travou em Pernambuco, de 1862 a 1889, deixando em todos os seus escritos o traço O artigo “Socialismo e Literatura”, escrito em novembro de 1874, foi publicado em 1875, na primeira edição dos Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica. 6 In Socialismo e Literatura. 5 inquieto do investigador, do intérprete, do pensador, revelando e abrindo caminhos ao futuro. A Literatura Para Tobias, literatura tinha a significação de vida espiritual. Contrariando os conceitos vigentes, que limitavam a literatura ao poema e ao romance, ele aprofunda a questão, ainda em 1872, numa nota de crítica ao livro do dr. José Soriano de Souza.7 Sendo, como Tobias assim a entendia, a literatura uma estatística aprofundada de todas as produções intelectuais de um País, em uma época dada, são incorporadas, com suas valorações próprias, a ciência, a filosofia, a poesia, o teatro, o romance, e até a pintura e a música. Diz Tobias: “Assim se compreende na Alemanha, onde os livros ou tratados de literatura nos dão a conhecer não só Goethe e Schiller, como Kant e Hegel, não só Freytag e Stifter, como Strauss e Baur, não só Beethoven e Mozart, como Cornelius (pintor), etc. etc.”.8 A vastidão do quadro literário, segundo a aprendizagem alemã de Tobias Barreto, explica seus vôos de longo alcance sobre obras e autores que trataram de Religião, como Ewald, de Filosofia, como Kant, de Educação, como Frederico Diesterweg, de Cultura, como Julio Froebel, de Psicologia, como Eduardo Von Hartmann, de Economia Política, como Karl Marx, de Antropologia, como Hermann Post, de Direito, como Rudolf Von Jhering, de Psicologia Feminina, como Adolfo Jellinek, e de tantos e tantos outros temas que interessaram e moveram a sua curiosidade crítica. Está, portanto, decodificado o facho luminoso que Tobias lançou sobre o seu tempo e seus contemporâneos: o amplo espectro da sua crítica, correspondente ao corpus cultural objeto do seu interesse. Vocacionado para a crítica, menospreza o livro de Ferdinand Wolf9 e não poupa, sequer, seu amigo, conterrâneo, e parceiro Sílvio Romero, quando publica a História da Literatura Brasileira.10 A obra de crítica literária de Tobias supera, em muito, as informações e inventários de época, ainda que alguns, como o próprio livro de Sílvio Romero, preencham lacunas na bibliografia brasileira. Não causa espécie, por isso mesmo, que os críticos brasileiros e portugueses, lançando os olhos sobre a literatura, isolem Tobias, negando-lhe as qualidades de escritor e de filósofo. O Brasil Mental, de Bruno,11 é um exemplo que proliferou, lá e cá, como uma posição sobre o mulato sergipano. Ainda que tenha testemunhado, apaixonadamente, sobre a genialidade de Tobias, Sílvio Romero faz menor a poética condoreira, divide a primazia do germanismo, e assume posturas de outras escolas, contradizendo a evolução intelectual do mestre. Mais que isto, Sílvio faz de Tobias, não raro, um escudo, com o qual enfrenta as rivalidades fluminenses. Assim, torna-se comum ao historiador da literatura, ao apresentar Tobias Barreto aos leitores, diminuir o valor de outros poetas e escritores, criando dificuldades para o seu apresentado. Isto é visível na apreciação feita pelo poeta Luiz Delfino do livro Dias e Noites, em sua primeira edição, de 1881. No longo artigo o poeta se ocupa de rebater as afirmações de Sílvio Romero, terminando por julgar, de forma apressada, a obra em versos de Tobias, que deveria ser o objeto da crítica. Sílvio Romero chega ao cúmulo de inserir, nos textos de 7 Lições de Filosofia Elementar, Racional e Moral. Paris, 1871. In “O Atraso da Filosofia entre Nós”. Jornal do Recife, 18 de novembro de 1872. 9 Le Brésil Litteraire, 1863. 10 Em carta de 6 de abril de 1888, Tobias escreve a Sílvio Romero e diz: “Pondo de parte o que me diz respeito, devo declarar-lhe que achei o seu trabalho muito bom, exceto num ponto – permita-me a franqueza. Foi no ponto em que o sr. , a meu ver, deturpou a sua História falando de gente que nada vale. Realmente, a que propósito falar de Aníbal Falcão, um verdadeiro bobo, positivista ortodoxo, bacharel taquígrafo, e taquígrafo medíocre? Isto é gente que deva ocupar lugar numa história séria? Não decerto”. 11 Pseudônimo do escritor português José Pereira de Sampaio. 8 Tobias, citações de nomes de forma desfavorável, como ocorreu num dos artigos do ensaio O Atraso da Filosofia entre Nós.12 Tanto a amplitude dada à literatura, em sua crítica, por Tobias Barreto, quanto sua disposição de brigar pelas verdades que defendia, e mais a atitude partidária de Sílvio Romero, devem ter concorrido para que a obra do mestre não merecesse, no inventário da história e da crítica literária, o juízo justo, o exame correto. Fala-se mais de Tobias por ouvir dizer, do que mesmo pelo conhecimento de seus textos, todos eles de reflexão, por circunstanciais que possam parecer. Pois essa é uma característica permanente na obra de Tobias: a reflexão. Conceituando de forma larga e refletindo sobre suas leituras, Tobias construiu um monumento de crítica, valendo-se da ferramenta contundente que, de cedo, preferiu para o trabalho intelectual: o germanismo. Com ele, penetra seu olhar agudo por sobre várias literaturas, comparando-as, identificando raízes e arquétipos, formas e compromissos. É pioneiro em estudos comparados, acreditando que “segundo o plano da história, que muitos chamariam de a economia providencial do universo, todo o povo que progride e se desenvolve tem uma dupla missão: uma interna e outra externa; uma volvida para si mesmo e outra para os demais povos”.13 Daí a literatura ter, no seu entender, caráter universalizante. Apoiado em George Brandes, aprecia, comparativamente, as literaturas da França, da Itália e da Alemanha, tendo esta última como uma espécie de modelo. Será a primeira vez, no Brasil, que os estudos literários ganham um método, o comparativo. Com ele Tobias sente firmeza para explorar, com seu agudo espírito crítico, todo o campo intelectual. Citando Henrique Klenke, para quem os povos são divididos em três grupos – os solares, os planetários, e os de transição –, Tobias Barreto não hesita em colocar o Brasil na terceira categoria, a da transição. diferenciando os brasileiros dos povos planetários, os do lado noturno da humanidade, e dos solares, os do lado “diurno”. A transição é o lado “crepuscular” da humanidade, valendo para os povos que se levantam ou que decaem. Tal divisão, insólita no âmbito dos estudos literários, retorna hoje ao interesse da ciência política, quando história e memória se contrapõem, trabalho e lazer criam éticas diversas, e a humanidade assiste à agonia dos sistemas liberal e socialista, segundo Octavio Paz as duas grandes heranças da modernidade ocidental.14 Também sobre esse enfoque, Tobias avançou com sua intuição genial, antecipando-se a discutir referências fundamentais que o desenvolvimento dos povos constrói e que servem de contato para a humanidade. A adesão de Tobias Barreto ao estudo da literatura comparada supera a visão interna da produção literária do Brasil. Sem dúvida ele intuiu sobre as migrações dos autores, bafejados pelo Poder, que por sua vez deriva da prosperidade econômica. No Brasil é fácil cartografar a evolução literária, na mesma escala em que ocorrem os surtos do progresso econômico. Assim, a poesia de Bento Teixeira, louvatória e de circunstância – a Prosopopéia –, reflete o bom sucesso econômico da Capitania de Pernambuco, que explorava todas as riquezas do Norte do Brasil. O barroco baiano, cuja oralidade produziu Gregório de Matos, responderia, nas letras, ao florescimento da Capitania da Bahia, ampliada com a incorporação das terras vizinhas, de Ilhéus, Porto Seguro, Sergipe d’EI Rey. A descoberta das minas auríferas das gerais explica, com certeza, o Arcadismo dos Gonzaga, Costa e Peixoto. A concentração do Poder, no Rio de Janeiro, com a chegada da família Real portuguesa, dá nova dimensão e centraliza a 12 No texto que está publicado no Jornal do Recife, Tobias não faz qualquer menção de nomes. A citação de Alencar, Macedo, Taunay e Machado de Assis é da responsabilidade de Sílvio Romero, quando publica os artigos de Tobias no volume Vários Escritos, em 1900. 13 In Traços de Literatura Comparada do Século XIX. 14 Eis o texto do pensador Octavio Paz, publicado no jornal espanhol ABC, edição de 2 de abril de 1989: “Padecemos um grande vazio, sobretudo um grande vazio moral. A nova filosofia moral e política do século XXI terá que enfrentar o grande (o nosso) vazio. As duas grandes heranças da modernidade ocidental, o Liberalismo e o Socialismo, se enfrentam em seu próprio esgotamento ao haver perdido de vista suas referências fundamentais”. literatura brasileira, sedimentando uma hegemonia que não apenas serve para abafar a reação nordestina, como entra no século XX devastando os focos regionais de cultura. Não é sem razão, portanto, que Tobias Barreto chega a aludir, na sua intenção de criar uma “Internacional de Crítica”, fazendo uma liquidação itinerária, exaltando o mérito, só o mérito real, “sem manejos diplomáticos e ridículas mistificações”.15 Como crítico, Tobias Barreto inicia uma tradição sergipana de intérpretes da obra literária, que passa por Sílvio Romero, João Ribeiro, Laudelino Freire, Liberato Bitencourt, Mário Cabral, e mais recentemente Jackson da Silva Lima.16 Poesia & Prosa O volume de Crítica de Literatura e Arte, que integra o plano geral das Obras Completas de Tobias Barreto, tem uma composição que escapa ao simplesmente literário, porque representa um apanhado de parte da obra crítica, naquilo que de mais próximo está nas manifestações de poetas, romancistas, prosadores em geral. Alguns temas teóricos, de lingüística, da gramática, da estilística, ou ainda dos contextos nos quais surgem as produções literárias. O volume é aberto com duas apreciações sobre jovens poetas: Paes de Andrade e Licurgo de Paiva, que ficaram, como tantos outros, perdidos no esquecimento do tempo. Mais do que examinar o conteúdo dos dois livros, Tobias aproveita para conceituar sobre a poesia, dando base ao seu edifício crítico que mais tarde aparecerá, imponente e resistente, no curso da sua evolução intelectual. São escritos estudantis, de 1865, 1866, certamente solicitados ao vitorioso poeta das ruas do Recife, profético e panfletário, do que ao mestre da crítica literária. Mas, o verdor dos escritos não os torna menos importantes na obra de Tobias, mesmo porque lá estão os sinais da sua insatisfação vulcânica: “Seja qual for o vigor do seu talento, a grandeza de suas concepções, o poeta é sempre um homem, e como tal sujeito às leis que regem a natureza humana (...)”. Ou: “O coração do poeta é o clepsidro em que soam sempre adiantadas as horas da vida do mundo. Os poetas e os sábios devem ser iguais”.17 Tratando da literatura bíblica, uma de suas permanentes paixões, ele tem a certeza crítica de colocar o livro de Naum no centro dos seus interesses, para mostrar o quanto de poesia tem a Bíblia – “imensa como a onipotência, ardente como os sopros do deserto” – e afirmar, como uma advertência que permanece válida ainda hoje, que os tradutores são, invariavelmente, menores que os criadores das obras literárias. Mostrando uma de suas virtudes, a de latinista, Tobias chega a exercitar traduções que põe como alternativas mais adequadas aos textos transcritos de Naum. No estudo do romance de Maurício de Azevedo – “ Um Romance e um Romancista” –, artigo de 1874, Tobias reclama da apatia brasileira, em termos de criação literária, reduz a expressões mais simples autores como Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, elegendo o romance como a narrativa por excelência nacional, portadora da vida do povo, na medida dos grandes romancistas como Walter Scott. No mesmo artigo, publicado no jornal Um Signal dos Tempos, de Escada, Tobias Barreto mantém a mesma técnica de tomar uma obra como pretexto para aprofundar as suas críticas, sem poupar quem quer que seja, independentemente da posição ou da fama. Nas suas severas apreciações estão Braz Florentino, que morreu quando exercia a presidência do Maranhão, o Barão do Rio Branco, José de Alencar, Macedo, Tavares Bastos, Franklin Távora, Taunay, José Soriano de Souza, e muitos e muitos outros, 15 In Socialismo e Literatura. Sílvio Romero escreveu, dentre outros: Estudos de Literatura Contemporânea, 1885, História da Literatura Brasileira, 1888; João Ribeiro é autor de Autores Contemporâneos, Compêndio de História da Literatura Brasileira, em colaboração com Sílvio Romero, Clássicos e Românticos Brasileiros; Laudelino Freire é autor de Sonetos Brasileiros, 1904; Mário Cabral escreveu Cadernos de Crítica, 1944, e Jackson da Silva Lima é autor da História da Literatura Sergipana, vol. l, 1971, vol.2, 1986. 17 In Flores da Noite. 16 incluindo aí Castro Alves, de quem foi amigo e desafeto, e Joaquim Nabuco a quem nunca reconheceu mérito. Causou enorme júbilo entre os jovens pernambucanos, rapazes e moças, a atitude de Tobias Barreto, quando deputado, no biênio 1878/79, em defesa da mulher, quando da discussão sobre um auxílio que deveria ser dado, pela Província de Pernambuco, a duas moças que queriam estudar medicina nos Estados Unidos e na Suíça. A atualidade do tema, o acervo de informações, a convicção dos argumentos científicos fizeram com que Tobias fosse seguidamente aplaudido e tivesse sua cabeça alvejada pelas pétalas de rosa que, das galerias, lhe atiravam os admiradores. Foi um momento especial na vida daquela casa legislativa, cujo registro, nos anais e na imprensa do Recife, é um documento indesmentível. Não fora ali a única vez em que Tobias Barreto colocava a mulher como centro de seus interesses de estudo. Na sua visão de crítico, ele soube distinguir e ressaltar o papel da mulher nos salões europeus. Não aquelas das vulgares meias pretas, mas as blas-bleu, com suas meias azuis, de lã, força “civilizatriz”, no dizer do próprio crítico. O artigo é, na verdade, além de uma clara tomada de posição em favor da mulher, um inventário da importância que os salões tinham nos círculos intelectuais da Europa. Ao lê-lo, fica difícil distinguir o jogo das influências, pois Tobias, com seu partidarismo feminino, iguala a influência do salão à influência da mulher, abrindo crédito novo no livro de contas da literatura. Estudando o estilo, Tobias Barreto procede a uma das mais geniais de suas críticas, porque delimita categorias que condicionam, segundo seu entender, a própria criação intelectual. Para ele o que difere, no seu século, o estilo da antiga e da nova prosa é a velocidade. “O que antes era largo e vagaroso torna-se, pouco a pouco, rápido e precipite”.18 Mais do que para a dinâmica da vida, o estilo – como relativo a diferentes épocas e diferentes povos – está também em relação até às diferenças de raça, afirma Tobias, exemplificando: “Assim a nação francesa, que é a mais culta das nações latinas, exprime no seu estilo o maior grau de antítese etnológica, entre a essência românica e a essência germânica. Em nenhum ponto melhor se manifestam os distintivos de uma e de outra raça”. Nesse seu pequeno ensaio Tobias chega a antever a função concreta da palavra, sentenciando que “a tendência para a frase, para a escolha da palavra, somente por ela mesma, torna-se inevitável.” Este parece ser um dos fundamentos das literaturas de vanguarda, que passou na batéia crítica de Tobias Barreto. Outras abordagens, sempre ferramentado com o germanismo, fazem da obra de crítica de literatura de Tobias Barreto uma fonte de consulta útil, que radiografa o tempo, na sua interiorizada moldura, e nas tendências novas que sopravam, inquietantes, por sobre o dorso da rotina atrasada do Brasil, como uma recepção sintônica, universalizada. A Arte No que diz respeito à arte, ainda que sob o campo restrito da música e do teatro musical, Tobias Barreto se vale, também, do método comparativo do dinamarquês Brandes. E faz um grande painel, de porte e envergadura, do que traçou nos dez artigos – de uma série de cinqüenta que prometeu – sobre a literatura comparada do século XIX, povoado de grandes nomes da criação operística, da música e da representação cênica. Confesso admirador de Vicenzo Bellini, autor de óperas, reconhecidamente espontâneo e melodioso, próximo do popular, Tobias se fez um crítico militante, freqüentador assíduo do Teatro Santa Isabel e de outros locais de espetáculos, apesar de escrever, em 1877, que pertencia “à categoria dos diletantes que vão ao teatro para 18 In Idéias e Princípios da Estilística Moderna. gostarem e não para julgarem”.19 Mais adiante diz ele: “A verdadeira crítica musical é a que se restringe a ser simplesmente um pedaço de psicologia, isto é, a exposição do que se sentiu ou deixou de sentir, sem o direito, porém, de tornar o próprio sentimento, subjetivo e personalíssimo, bitola do mérito artístico”.20 Há uma proximidade, ou pelo menos havia no século passado, entre a música e a filosofia. Conta-se, na biografia de Franz Liszt, que numa de suas primeiras viagens à Genebra, ao assinar a ficha do hotel, assim se qualifica: Profissão – músico-filósofo; Nascido – no Parnaso; Oriundo – das dúvidas; com destino – à verdade. O certo é que mais do que sogro, Liszt foi um grande profeta da genialidade de Richard Wagner. Recolhido na pequena cidade de Escada, de onde uma vez por quinzena viajava ao Recife, Tobias Barreto pôde estar atento ao ambiente musical da velha Europa, onde as genialidades eram sucedidas celeremente. Nas suas críticas estão os mais célebres compositores da música, alguns deles, como o próprio Wagner, presente também como crítico, a fornecer munição para os embates intelectuais, como na polêmica com o sr. Taunay, a propósito de Meyerbeer e de suas óperas Roberto, o Diabo, e Os Huguenotes. A Tobias, como crítico musical, não escapa o sentido da história, nem o da estética. Na música, como na literatura, o crítico mapeava a Europa com os limites da ópera da França, da Itália e da Alemanha, intercalando todas as trocas de influências que, sem perda dos conteúdos e matizes próprios, universalizavam a criação musical. A ópera romântica estava embebida de intuições transcendentais, dando margem a que o homem, e não apenas o instrumento musical, transformasse a manifestação artística. A dramaticidade, o recitativo, ocupam importância fundamental nos estilos dos compositores, sinalizando um processo significativo de evolução, desdobrado para outras partes do mundo, como para o Brasil, onde vem a pontificar Carlos Gomes, maestro aclamado em Milão, onde faz representar algumas de suas óperas no Teatro Scala. Atento ao que se passava na Alemanha e no resto da Europa, o crítico exercia, no Recife, um papel insubstituível de propagandista da ópera e dos seus maiores compositores. Poucos críticos, no Brasil, ocuparam espaço tão definido, tão conscientemente exercido, como o fez Tobias Barreto, em Pernambuco. Depois da militância jornalística, Tobias reúne algumas de suas críticas e publica, em 1883, no livro Estudos Alemães. Ele próprio identificava e localizava sua visão musical nos limites do seu germanismo. Completava-se, assim, o círculo cultural que fazia da Alemanha um modelo capaz de ser utilizado como ferramental comparativo. Compreendendo-se a amplitude do germanismo tobiático não há porque não reter num abrigo óbvio como o dos Estudos Alemães a sua crítica musical, agora enfeixada no volume de Crítica de Literatura e Arte. Esses ajustes não passam de mera organização quantitativa, porque, em essência, toda a obra de Tobias Barreto, em todo o seu luminoso espectro de investigação crítica, é de forma e fundo germânicos. Diante das óperas de Carlos Gomes, o crítico parece sentir a falta do velho Lied alemão, numa de suas três categorias: o Volkslied, verdadeiramente popular, folclórico até, seja lírico ou dançante; o Volkstumliches Lied, de criação original, mas concebido e realizado à maneira dos cantos populares; e o Kunstlied, ou Lied artístico, com preocupações eruditas, ainda que não interfira nas origens populares.21 Em 1884, numa de suas últimas manifestações de crítica, lamenta a falta de gosto pelo drama, escrevendo o artigo de fundo de um pequeno jornal – Arte Dramática22 –, prometendo seriar suas observações, ainda que reconhecesse, com Honegger, que a história do teatro era, naquele momento, a história da decadência. Parecia compor, como crítico musical, sua última profecia. 19 In O Benefício da Sra. Cortesi. In O Benefício da Sra. Cortesi. 21 Sobre o Lied alemão recomenda-se a leitura de Expressões e Comunicação na Linguagem da Música, do professor e maestro Sérgio Mangani. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 1989. 22 Nº 1,14 de fevereiro de 1884. 20