RAZÃO, DECISÃO E CÉREBRO: O QUANTO A ANATOMIA DO CÉREBRO CONTRIBUI PARA A COMPREENSÃO DOS SUBMODOS ESQUEMA RESOLUTIVO E EM DIREÇÃO AO DESFECHO1 Monica Aiub Resumo: Estudos sobre anatomia cerebral apontam para interferências do funcionamento do cérebro nos estados mentais e, consequentemente em nossos processos racionais de decisão e ação. Entre esses estudos, as pesquisas do neurologista Antonio Damásio estabelecem relações entre estados cerebrais e estados mentais, com destaque para o papel das emoções nos processos de raciocínio. Este artigo trata de uma abordagem filosófico-clínica ao estudo de Damásio, tentando conciliar a ausência de teorias prévias e tipologias, própria da Filosofia Clínica, com a proposta de Damásio. Entre os pontos enfocados, destaque para os submodos Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho. Palavras-chave: Filosofia da mente, cérebro, emoções, mente, submodos. INTRODUÇÃO O presente trabalho aborda as relações entre o estudo de Damásio acerca da anatomia do cérebro e os processos de raciocínio, decisão e ação, observados em Filosofia Clínica. Partindo do estudo dos casos de Phineas Gage e Elliot, Damásio apresenta o papel das emoções como determinante nos processos de raciocínio, decisão e comportamento. Considerando a ausência de teorias prévias e tipologias em Filosofia Clínica sem, contudo, ignorar o aspecto biológico do humano, a discussão apresentada questionará a possibilidade de conciliar os estudos de Damásio com os Submodos Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho, destacando pontos comuns e outros incompatíveis. A primeira parte do trabalho apresenta os casos Phineas Gage e Elliot, apontando para suas contribuições no campo da neurologia e sua rediscussão na abordagem da neurociência. Derivando dessas questões, a segunda parte – A 1 Artigo publicado na revista Informação Dirigida – Revista Internacional de Filosofia Clínica. Instituto Packter, Porto Alegre/RS, n. 2, Julho-dezembro 2005, p. 103-114. questão filosófica – destaca a abordagem de questões filosóficas provocadas por esse estudo. Num segundo momento, a relação com os fundamentos da Filosofia Clínica, apontando aspectos comuns e incomuns, propõe o debate acerca do uso dos Submodos citados. A ausência de uma teoria consistente acerca das relações mente e cérebro, simultaneamente à constatação de uma mútua interferência entre os processos cerebrais e mentais – se assim os podemos chamar – dificulta a compreensão da construção dos processos de raciocínio, decisão e comportamento, impedindo a construção de uma teoria explicativa ou interpretativa acerca desses processos. Contudo, considerando que em Filosofia Clínica tanto a presença de elementos como a Categoria Lugar, o Tópico Sensorial & Abstrato, o Submodo Percepcionar, entre outros que trabalham ao mesmo tempo com dados das sensações e das abstrações, permitindo uma leitura do funcionamento do cérebro como interferindo nos processos deliberativos, assim como uma leitura dos processos de pensamento interferindo no funcionamento do corpo, essa questão parece ser abordada de maneira a aceitar possíveis interferências, apenas e tão somente como probabilidades, e não como uma relação necessária, como propõe Damásio. O CASO PHINEAS GAGE: DO ACIDENTE À ANATOMIA DO CÉREBRO Phineas Gage, um trabalhador da construção de ferrovias, exercendo a função de explodir os obstáculos para a passagem dos trilhos, socando dinamite, em um buraco feito na rocha com uma barra de ferro de mais ou menos um metro de comprimento por três centímetros de largura, por acaso, no exercício de seu trabalho, provocou uma explosão prematuramente e foi atingido pela barra de ferro, que atravessou o osso frontal até o cérebro, ferindo o córtex pré-frontal. Gage sobreviveu, restabeleceu suas forças, mas algo mudou: (...) em sua capacidade de equilibrar as faculdades intelectuais e propensões animais fora destruído. As mudanças tornaram-se evidentes assim que amainou a fase crítica da lesão cerebral. Mostrava-se agora caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles 2 entravam em conflito com seus desejos, por vezes determinadamente obstinado, outras ainda caprichoso e vacilante, fazendo muitos planos para ações futuras que tão facilmente eram concebidos como abandonados... Sendo uma criança nas suas manifestações e capacidades intelectuais, possui as paixões animais de um homem maduro (...) Esses novos traços de personalidade estavam em nítido contraste com os “hábitos moderados” e a “considerável energia de caráter” que Phineas Gage possuía antes do acidente. Tinha tido “uma mente bastante equilibrada e era considerado, por aqueles que o conheciam, como um homem de negócios astuto e inteligente, muito enérgico e persistente na execução de todos os seus planos de ação”. (...) Como Harlow comenta, seu forte era “encontrar sempre algo que não lhe convinha” (DAMÁSIO, 1996: 28-29). Esse caso foi motivo de muitos estudos posteriores sobre o funcionamento do cérebro, sobretudo em casos de lesões neurológicas. A partir dele encontra-se o indicativo de possíveis relações entre partes do cérebro, funções do raciocínio e comportamento, sugerindo a hipótese da capacidade de deliberação desenvolver-se em uma parte determinada do cérebro, o córtex pré-frontal. Enquanto outros casos de lesões neurológicas, ocorridas na mesma época revelaram que o cérebro era o alicerce da linguagem, da percepção e das funções motoras, fornecendo de um modo geral pormenores mais conclusivos, a história de Gage sugeriu este fato espantoso: em certo sentido, existiam sistemas no cérebro humano mais dedicados ao raciocínio do que quaisquer outros e, em particular, às dimensões pessoais e sociais do raciocínio. A observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando nem o intelecto de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos. Involuntariamente, o exemplo de Gage indicou que algo no cérebro estava envolvido especialmente em propriedades humanas únicas e que entre elas se encontra a capacidade de antecipar o futuro e de elaborar planos de acordo com essa antecipação no contexto de um ambiente social complexo; o sentido de responsabilidade perante si próprio e perante os outros; a capacidade de orquestrar deliberadamente sua própria sobrevivência sob o comando do livrearbítrio. (Damásio, 1996: 30-31) A partir do relato de Harlow, médico que cuidou do caso Phineas Gage, é possível observar que antes do acidente Gage utilizava os Submodos Esquema 3 Resolutivo, Em Direção ao Desfecho, Busca e Análise Indireta de maneira producente. Após o acidente, esses submodos tornaram-se contraproducentes, gerando mais problemas a Gage: Ele tinha outrora sabido tudo o que precisava saber para efetuar escolhas que levassem ao melhoramento de sua pessoa. Tinha um sentido de responsabilidade pessoal e social que se refletia no modo como assegurava a promoção na carreira, se preocupava com a qualidade de seu trabalho e atraía a admiração de patrões e colegas. Estava bem adaptado em termos de convenções sociais e parecia ter seguido princípios éticos em sua conduta. Depois do acidente, deixou de demonstrar qualquer respeito pelas convenções sociais; princípios éticos eram constantemente violados; as decisões que tomava não levavam em consideração seus interesses mais genuínos; era dado à invenção de narrativas que, segundo as palavras de Harlow, “não tinham nenhum fundamento, exceto na sua fantasia”. Não existiam provas de que ele se preocupava com o futuro, nem qualquer sinal de previsão acerca do mesmo. Ele já não conseguia fazer escolhas acertadas, e as que fazia não eram simplesmente neutras. Não eram as decisões reservadas e apagadas de alguém cuja mente está prejudicada e que receia agir, mas decisões ativamente desvantajosas. (DAMÁSIO, 1996: 32). Os trechos destacados evidenciam a modificação efetiva observada no comportamento de Gage após o acidente. É possível notar, nessa mudança de comportamento, o uso dos mesmos Submodos, que antes eram eficazes, agora contraproducentes. Embora evidente no relato de Harlow, as mudanças no comportamento foram negligenciadas, muito provavelmente devido à abordagem do problema mente cérebro da época, que destacava o debate entre teorias localizacionistas e holistas. Existiram boas razões para essa negligência. Mesmo no reduzido mundo da ciência cerebral existente na época, duas perspectivas começavam a delinearse. Uma defendia que as funções psicológicas, como a linguagem ou a memória, nunca poderiam ser imputadas a uma região cerebral particular. Se se tinha de aceitar, relutantemente, que o cérebro de fato produzia a mente, então esse fa-lo-ia como um todo e não como um conjunto de partes com funções específicas. A outra perspectiva defendia que, pelo contrário, o cérebro possuía partes especializadas que davam origem a funções mentais distintas. O fosso entre as duas perspectivas não resultava apenas da imaturidade da 4 pesquisa sobre o cérebro; o debate prolongou-se por mais um século e, em certa medida, subsiste ainda hoje em dia. Qualquer que tenha sido o debate científico que o caso de Gage fomentou, ele concentrou-se sobretudo na questão da localização da linguagem e do movimento no cérebro. Nunca abordou a conexão entre conduta social desviante e lesão do lobo frontal. (DAMÁSIO, 1996: 33). Um dos motivos da negligência acerca das questões comportamentais é o fato da leitura do caso feita por Harlow aproximar-se à frenologia de Gall, que pretende apresentar uma relação mente e cérebro onde cada parte do cérebro corresponde a uma função específica do organismo, da mente e, inclusive, do comportamento. Segundo Damásio, Harlow provavelmente teve contato com as teorias da frenologia através de palestras que assistiu, o que, embora Harlow não cite, pode ter influenciado a leitura feita sobre o caso Gage. Estudando crânios dos mortos e relacionando-os às supostas personalidades destes em vida, Gall pretendia identificar características físicas do cérebro que correspondessem a aspectos da personalidade, as saliências da superfície do crânio foram as características encontradas por ele. Criando uma tipologia de características de acordo com saliências em determinadas regiões, Gall criou uma espécie de chapéu, colocado sobre o crânio, com pinos móveis que, pressionados, perfuravam uma superfície de papel. A leitura das perfurações no papel indicavam a personalidade do indivíduo. A frenologia, que tentou mapear o cérebro, encontrando os vários órgãos que o formam, e estabelecer relações entre eles e a mente, indicando qual parte do cérebro é responsável por cada atividade do intelecto e do comportamento, tornou-se muito popular, uma maneira “científica” de tratar as “questões da alma humana”. Algumas das idéias de Gall são assombrosas para a época. Ele afirmou categoricamente que o cérebro era o órgão do espírito. Com não menos certeza, defendeu que o cérebro era constituído por um agregado de muitos órgãos e que cada um deles possuía uma faculdade psicológica específica. Não só se distanciou do pensamento dualista vigente, que separava completamente a biologia da mente, como também intuiu corretamente que existiam muitas partes que formavam essa coisa chamada cérebro e que existia também especialização em termos das funções desempenhadas por essas partes. (...) Seria preciso que passassem dois séculos para que uma perspectiva “moderna” acabasse por vingar. Podemos agora dizer com segurança que não existem “centros” individuais para a visão, para a linguagem ou ainda para a razão ou para o comportamento social. O que na 5 realidade existe são “sistemas” formados por várias unidades cerebrais interligadas. Anatômica mas não funcionalmente, essas unidades cerebrais são nada mais nada menos que os velhos “centros” resultantes da teoria de base frenológica. E esses sistemas dedicam-se, de fato, a operações relativamente independentes que constituem a base das funções mentais. (DAMÁSIO, 1996: 35-36). O caso de Gage remete à hipótese que convenções sociais, comportamentos, princípios éticos e decisões vantajosas para a própria sobrevivência supõem conhecimento de sistemas específicos do cérebro. Faltando evidências para sustentar essa hipótese, o que poderia ser uma explicação tornou-se um mistério, levantou mais questões do que respostas, provocando pesquisas na área. Entre os pesquisadores, Broca (1861) concluiu que uma lesão na terceira circunvolução frontal provocaria perda completa da linguagem articulada, mantendo as outras funções da linguagem e do intelecto. Assim, na citada região estaria localizada a linguagem articulada. Sua pesquisa, constatada a partir do caso de um paciente falecido dias após o exame, identificava como área referente à linguagem, uma área totalmente distinta da área identificada pela frenologia. Wernick (1874) observou que a perda da compreensão com manutenção da linguagem articulada estaria relacionada a uma lesão na primeira circunvolução temporal, concluindo ser esta a região responsável pela compreensão. Sua teoria restringiu o localizacionismo a funções psíquicas mais elementares, como audição, visão, distanciando-o da postura dos frenologistas, que atribuíam funções e características de personalidade às saliências na superfície do crânio, propondo um mapeamento simples unívoco, numa correspondência ponto a ponto (Gall). Para Wernick, a associação de várias idéias em um conceito seria função de sistemas associativos que conectam diferentes partes do córtex, sendo impossível localizá-las em áreas determinadas. Os estímulos sensoriais estariam armazenados em células individuais, sem interferência recíproca. O córtex cerebral estaria povoado desses estímulos, que consistiriam em imagens da memória. A destruição dos centros sensoriais provocaria perda das imagens, implicando em incapacidade de compreensão da linguagem. Wernick distingue entre afasias centrais, com lesões nos centros sensoriais, e afasias de condução, com lesões nos feixes de condução, justificando assim, os diferentes tipos de afasia. 6 Huglings-Jackson considerava o cérebro organizado de acordo com uma hierarquia. Os impulsos mais primitivos eram mantidos sob controle por funções restritivas superiores. Lesões cerebrais poderiam implicar em liberação de funções inferiores, primitivas, pela dissolução das mais evoluídas. A idéia de ganho de complexidade do ponto de vista funcional não supõe um local, sede, responsável pela função, mas uma lesão funcional e dinâmica, explicada pelo isolamento de um processo cortical, sem traumatismo físico. Um exemplo disso é a parafasia, presente em pacientes afásicos assim como em pessoas normais em estados de fadiga, divisão de atenção, sob emoções perturbadoras, apresenta os mesmos sintomas: uso indevido e distorção de palavras. Partindo desta constatação poder-se-ia descaracterizar a parafasia como o resultado de uma lesão, e apontá-la como um sintoma meramente funcional, um sinal de perda de eficácia por parte do aparato de associações de linguagem. (Freud, 1891: 30) As teorias localizacionistas dos problemas da linguagem tinham em comum procurar localizar áreas delimitadas do córtex cerebral correspondentes a funções da linguagem, como a área de Broca (terceira circunvolução frontal) e a área de Wernick (primeira circunvolução frontal). Também comum é a teoria psicológica subjacente ao localizacionismo: o associacionismo, que tenta aproximar as funções psíquicas a uma neurofisiologia do cérebro. O associacionismo de James Mill propõe uma mecânica mental, o atomismo psicológico, afirmando que todo conhecimento provém da experiência, e inferindo, como conseqüência, a dissolução progressiva do conceito de mente como centro de atividade organizadora e sintética dos processos psíquicos. “A idéia de casa resulta da soma das idéias das tábuas, pregos, tijolos que a compõem” (cf. Simanke, 2004: 5). Hoje, ao pensar a arquitetura do funcionamento cerebral, é possível encontrar diferentes opções metodológicas, entre elas, o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo: O localizacionismo tornou-se, contemporaneamente, o localizacionismo funcional, ou seja, a localização de áreas obedece a um critério essencialmente funcional. O holismo nega que funções mentais possam ser entendidas em termos de áreas isoladas, mas não se choca com o localizacionismo, pois ele não precisa negar a especialização da áreas. (...) Em outras palavras, o holista 7 não se opõe necessariamente ao localizacionista, trata-se de uma questão apenas de ênfase na parte ou no todo. Para os equipotencialistas não existiria especificidade funcional – o que é bem diferente do que dizem os holistas. (Teixeira, 2005: 21) Conforme Damásio, “a mente resulta não só da operação de cada um dos diferentes componentes, mas também da operação concertada dos sistemas múltiplos constituídos por esses diferentes componentes” (1996: 36). Portanto, o debate entre localizacionismo e holismo continua, acrescida a hipótese equipotencialista, sem atingir, contudo, uma teoria conclusiva e consistente acerca do mental e suas relações com o funcionamento cerebral. A QUESTÃO FILOSÓFICA Mais significativa que o debate acerca do localizacionismo é a questão antropológicoética suscitada pelo caso Gage: diante dessa lesão, que teve como resultado mudança de comportamento, é possível considerar Gage como sujeito autônomo, dotado de liberdade, responsável por seus atos? Poderá Gage ser descrito como estando dotado de livre-arbítrio? Teria sensibilidade relativamente ao que está certo e errado, ou era vítima de seu novo design cerebral, de tal forma que as decisões lhe eram impostas e por isso inevitáveis? Era responsável pelos seus atos? Se concluirmos que não era, que nos pode dizer isso sobre o sentido de responsabilidade em termos mais gerais? Existem muitos Gage a nossa volta, indivíduos cuja desgraça social é perturbadoramente semelhante. Alguns têm lesões em conseqüência de tumores cerebrais, de ferimentos na cabeça ou de outras doenças de caráter neurológico. Outros, no entanto, não tiveram qualquer doença neurológica e comportam-se, ainda assim, como Gage, por razões que têm a ver com seus cérebros ou com a sociedade em que nasceram. Precisamos compreender a natureza desses seres humanos cujas ações podem ser destrutivas tanto para si próprios como para os outros, caso pretendamos resolver humanamente os problemas que eles colocam. Nem o encarceramento nem a pena de morte – respostas que a sociedade atualmente oferece para esses indivíduos – contribuem para a compreensão do problema ou para sua resolução. De fato, devíamos levar mais longe essa questão e interrogar-nos acerca da nossa responsabilidade quando nós, indivíduos ditos “normais”, deslizamos para a irracionalidade que marcou a grande que da de Phineas Gage. (DAMÁSIO, 1996: 40-41) 8 Considerando que temos em média 10 bilhões de neurônios e mais de 10 trilhões de sinapses, e seus possíveis arranjos, Damásio conclui que: As principais conseqüências desse arranjo são as seguintes: 1) o que um neurônio faz depende do conjunto dos outros neurônios fizinhos no qual o primeiro se insere; 2) o que os sistemas fazem depende de como os conjuntos se influenciam mutuamente numa arquitetura de conjuntos interligados; e 3) a contribuição de cada um dos conjuntos para o funcionamento do sistema a que pertence depende da sua localização nesse sistema. (DAMÁSIO, 1996: 53) Damásio apresenta também o caso Elliot, que após uma cirurgia para retirada de um tumor no córtex pré-frontal, mudou completamente seu comportamento, tornando-se incapaz de tomadas de decisão. Estudando os casos Gage e Elliot, Damásio conclui que: O cérebro não é uma extensa massa disforme de neurônios que fazem a mesma coisa onde quer que se encontrem. Acontece que as estruturas destruídas em Gage e Elliot são as necessárias para que o raciocínio culmine numa tomada de decisão. (1996: 64) Uma equivocada distinção entre problemas do “cérebro” e da “mente” sinaliza um grande problema nos tratamentos. Dada a ignorância assumida da relação entre o cérebro e a mente, as doenças do cérebro são vistas como tragédias, o sujeito “doente” é considerado vulnerável, incapaz de decidir, e, consequentemente, irresponsável por suas decisões. As chamadas doenças da mente, especialmente aquelas que afetam a conduta e as emoções, são vistas como problemas sociais. O sujeito é considerado capaz de liberdade e responsabilidade, sendo esta, não apenas por sua conduta, mas, inclusive, por sua “doença”. Voltando ao caso Elliot, “Elliot era incapaz de fazer uma escolha eficiente e podia não chegar sequer a fazer uma escolha, ou escolher mal.” (DAMÁSIO, 1996: 75). Damásio atribui essa dificuldade à danificação de uma região do cérebro, responsável pelo raciocínio, tomada de decisões e sentimentos. O cruzamento entre razão e emoção. (...) existe uma região do cérebro humano, o complexo de córtices somatossensoriais no hemisfério direito, cuja danificação compromete também 9 o raciocínio e tomada de decisão e as emoções e sentimentos e, adicionalmente, destrói os processos de sinalização básica do corpo. (...) existem regiões localizadas nos córtices pré-frontais para além do setor ventromediano cuja danificação compromete também o raciocínio e a tomada de decisões, mas segundo um padrão diferente: ou a deficiência é muito mais avassaladora, comprometendo mais as operações sobre palavras, números, objetos ou o espaço do que as operações no domínio pessoal e social. (DAMÁSIO, 1996: 96) Desta forma, em nosso percurso acerca das pesquisas sobre Gage e Elliot, é possível concluir que Damásio atribui às emoções um papel determinante, vinculado à preservação biológica, ao que ele denomina “marcador somático”. A preservação biológica estaria vinculada à Categoria Lugar: um bem-estar apontado pelo organismo em determinados contextos, implicaria em decisões favoráveis à manutenção do mesmo, enquanto um mal-estar apontado pelo marcador somático, implicaria em decisões contrárias à manutenção do mesmo. Ao mesmo tempo, ele tenta apresentar correlatos neurais, apontando partes do cérebro ou sistemas do funcionamento cerebral responsáveis pelas emoções e, consequentemente, influenciando diretamente no processo de raciocínio e decisão. Quando lhe surge um mau resultado associado a uma dada opção de resposta, por mais fugaz que seja, você sente uma sensação visceral desagradável. (...) Mas os marcadores-somáticos aumentam provavelmente a precisão e a eficiência do processo de decisão. Sua ausência as reduz. (...) Em suma, os marcadores-somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador somático positivo, o resultado é um incentivo (DAMÁSIO, 1996:205-6). UMA ABORDAGEM FILOSÓFICO-CLÍNICA A abordagem dos temas raciocínio, decisão e ação, em Filosofia Clínica, supõe a observação do partilhante como um todo, sendo os exames categoriais, a estrutura de pensamento e os submodos (destacado que alguns tópicos ou submodos são determinantes, que associam-se e mesclam-se de maneiras distintas em diferentes pessoas, interseções, contextos, tempos, permitindo uma constante flexibilidade, 10 plasticidade) considerados como um todo, sem privilégio ou detrimento de um ou outro como ponto de partida. Se houver privilégio de algum tópico, categoria ou submodo, isso será, exclusivamente, observado nos dados apresentados pelo partilhante. Desta forma, a teoria de Damásio correspondente ao papel das emoções no processo de raciocínio, decisão e deliberação não é, em Filosofia Clínica, uma conclusão necessária. Há casos em que a Estruturação de Raciocínio, por exemplo, possui um peso tão grande no todo da estrutura de pensamento, sendo capaz de minimizar e, em alguns casos, até anular, o tópico Emoções. Como ocorrem os processos de raciocínio e decisão? Segundo Damásio: Os termos raciocinar e decidir implicam habitualmente que quem decide tenha conhecimento a) da situação que requer uma decisão, b) das diferentes opções de ação (respostas) e c) das conseqüências de cada uma dessas opções (resultados), imediatamente ou no futuro. O conhecimento, que existe na memória sob a forma de representações dispositivas, pode tornar-se consciente de modo lingüístico ou não. (...) Os termos raciocínio e decisão também implicam habitualmente que quem decide dispõe de alguma estratégia lógica para produzir inferências válidas com base nas quais é selecionada uma opção de resposta adequada e que dispõe dos processos de apoio necessários ao raciocínio. Entre esses últimos são normalmente mencionadas a atenção e a memória de trabalho, mas nada se diz sobre a emoção ou o sentimento, e quase nada sobre o mecanismo que permite a criação de um repertório de diferentes opções para seleção. (...) O aspecto que pretendo salientar aqui é o de que a mente não está vazia no começo do processo de raciocínio. Pelo contrário, encontra-se repleta de um repertório variado de imagens originadas de acordo com a situação enfrentada e que entram e saem de sua consciência numa apresentação demasiado rica para ser rápida ou completamente abarcada. (DAMÁSIO, 1996:197-202) Como a filosofia clínica descreve esses mesmos processos? A resposta é sempre a mesma: depende do partilhante, de seus contextos, de seus momentos e interseções. Durante os procedimentos clínicos, observa-se tudo o que estiver relacionado ao partilhante, desde os contextos em que viveu e vive, até as maneiras que habitualmente utiliza para lidar com suas situações, passando, é claro, pela construção de seus modos de ser – modos de ser sempre em devir. Assim, enquanto alguns partilhantes raciocinam sob influência do tópico Emoções, outros raciocinam sob a influência de uma Espacialidade em Recíproca de Inversão, ou a partir de um 11 Percepcionar, ou ainda, tendo como influência principal um Pré-juízo aliado a um Tópico de Singularidade Existencial. Em outras palavras, todas as possibilidades de associações são, a priori, tão prováveis quanto quaisquer outras. Desta forma, há processos de raciocínio, mas não um único processo. Há, em alguns casos, a interferência de processos afetivos ou de processos biológicos, mas isso não é uma necessidade. Não é possível, em Filosofia Clínica, partir de um princípio determinista, pois o ser humano é, ao mesmo tempo, determinado e determinante, ora um ora outro, às vezes ambos, às vezes mais um do que outro. Desta maneira, a teoria de Damásio acerca do papel das emoções no processo de raciocínio e decisão não encontra apoio na Filosofia Clínica, embora, em alguns casos, isso possa ser verificado. É possível observar que sua tese distancia-se da própria filosofia, quando questiona a concepção de razão, associando-a ao senso comum: Trata-se de uma perspectiva filosófica, a partir da própria concepção de perspectiva da “razão nobre”, que não é outra senão a do senso comum, parte do princípio de que estamos nas melhores condições para decidir e somos o orgulho de Platão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica formal conduzirnos à melhor solução para o problema. Um aspecto importante da concepção racionalista é o de que, para alcançar os melhores resultados, as emoções têm de ficar de fora. O processo racional não deve ser prejudicado pela paixão. (...) O que a experiência com doentes como Elliot sugere é que a estratégia fria defendida por Kant, entre outros, tem muito mais a ver com a maneira como os doentes com lesões pré-frontais tomam suas decisões do que com a maneira como as pessoas normais tomam decisões. Naturalmente, até os racionalistas puros funcionam melhor com a ajuda de papel e lápis. (DAMÁSIO, 1996:203204). O submodo Esquema Resolutivo consiste em pesar prós e contras, colocar na balança vantagens e desvantagens de uma determinada situação, tendo em vista contextos em que a deliberação se faz necessária. Há partilhantes que fazem Esquemas Resolutivos somáticos, outros aliam seus Esquemas Resolutivos a um Em direção às Idéias Complexas, fazendo-o no campo das abstrações. Há aqueles que o fazem tendo como determinante o tópico Emoções, como sugere que o seja Damásio, mas há outros que consideram os tópicos Como o Mundo Parece e Busca associados. As opções de combinação são inúmeras. 12 No que se refere ao submodo Em Direção ao Desfecho, este consiste em colocar um ponto, em dirigir-se para um término, um desfecho de determinada questão. Para tal pesam as emoções? Em alguns casos sim, em outros elas sequer aparecem no processo, sendo este determinado por outros dos 30 Tópicos da Estrutura de Pensamento. Estabelecendo agora uma relação direta dessa problemática com os submodos sugeridos na questão: Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho, é possível perceber que, mesmo em submodos que exigem um processo formal de raciocínio, onde se faz necessária uma avaliação de diferentes opções – como no caso do Esquema Resolutivo, não há uma única e exclusiva regra de desenvolvimento desse processo, dada previamente. Os submodos são apenas formas, cujo conteúdo será dado pela leitura feita do histórico do partilhante. Essas formas, ao tornarem-se procedimentos clínicos, também não partem de um princípio previamente dado. De que maneira os submodos são utilizados em clínica também é algo que depende da pesquisa feita com o partilhante, daí concluir que são formas vazias, sem conteúdo, mas que, no uso, ganham o conteúdo presente no “jogo de linguagem” do partilhante e dos conteúdos que se revelam na compreensão deste. CONCLUSÃO O estudo de Damásio defende, a partir das constatações feitas em casos como os de Phineas Gage e Elliot, um papel fundamental das emoções nos processos de raciocínio, decisão e ação. Seu fundamento encontra-se na observação de uma lesão cerebral no córtex frontal gerando alterações no comportamento e na capacidade de decisão. Não há, contudo, uma teoria acerca das relações mente e cérebro que explique de maneira consistente e definitiva essas relações, e, consequentemente a necessidade e a suficiência das emoções para uma boa deliberação. Muitas questões filosóficas se colocam a partir das afirmações de Damásio. A primeira delas é: se aceitamos que somos determinados por processos cerebrais, aproximando-nos de um “quase” materialismo eliminativista, em que medida temos liberdade? Somos seres, de fato, autônomos, ou somos, dado esse determinismo, heterônomos? Se não temos liberdade, consequentemente não temos também responsabilidade, quem se responsabiliza, assina, nossas decisões e ações? 13 Ainda, se somos apenas determinados por nossos cérebros, que determinam, inclusive, nosso processo de raciocínio, como fundamentar trabalhos terapêuticos como a filosofia clínica? As únicas terapias possíveis seriam, então, as que agem diretamente sobre o cérebro? Mas ainda uma terceira e fundamental questão se faz: o conceito de emoções proposto por Damásio em suas explicações é o mesmo conceito de emoções encontrado na Filosofia? Relacionando a exposição de Damásio com a Filosofia Clínica é possível concluir que não há apoio de uma proposta para a outra. Há algumas similaridades, porém o que para a Filosofia Clínica é uma possibilidade, Damásio apresenta como uma necessidade. No que se refere ao submodo Esquema Resolutivo, a similiaridade consiste na definição e descrição do processo de raciocínio e decisão, assim como na possível interferência das emoções, encontrada apenas em alguns casos. No submodo em Direção ao Desfecho, um comportamento movido por um processo anterior de Esquema Resolutivo também é descrito por Damásio, contudo, como necessário, enquanto, em Filosofia Clínica, essa sucessão é apenas contingente. O texto de Damásio nos oferece pontos instigantes acerca do estudo do cérebro, mas, como as teorias formuladas até então, estes são inconclusivos, não podendo, por este motivo, servir de referencial para a elaboração de uma teoria da mente que sirva como fonte de explicação ou interpretação para os processos de raciocínio e decisão. Referências Bibliográficas: BUNGE, M. El problema mente-cerebro: un enfoque psicobiológico. Madrid: Tecnos, 2002. _____. Emergence and the Mind. Neuroscience 2, 501-509. DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Cia das Letras, 1996. DENNETT, D. A perigosa idéia de Darwin. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. FREUD, S. (1891) La Afasia. Buenos Aires: Nova Visión, 1973. GABBI Jr. O. (2003) Notas a ‘Projeto de uma Psicologia’. Rio de Janeiro: Imago, 2003. GRENFIELD. S. O cérebro humano: uma visita guiada. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. PACKTER, L. Cadernos de Filosofia Clínica. Porto Alegre: Instituto Packter, s/d. 14 SIMANKE, R. 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