HETEROGENEIDADE, IDENTIFICAÇÕES E CONTRADIÇÕES NO PROCESSO EVOLUTIVO DOS CONCEITOS DE CULTURA José Pires Gláucia Nascimento da Luz Pires Departamento de Educação – UFRN Cultura é um dos conceitos tão profundamente rico, complexo e de uma pluralidade de sentidos que seu estudo exige uma análise atenta, disciplinada e metódica para permitir àqueles que dela falam o entendimento do que estão falando. Os linguistas já tratam do problema da multisignificação e das significações diferentes de conceitos de um mesmo fenômeno linguístico dentro do esquema evolutivo, temporal e espacial em seus estudos da semântica. A cultura, apesar de sua conotação significativa ter uma base comum em suas raízes etimológicas, seu conceito ganhou tantos elementos circunstanciais, históricos, evolutivos e variáveis na pluralidade dos contextos e particularidades de uso, que os seus valores semânticos, quer essenciais, quer secundários e simbólicos, na diversidade das conotações em que ele é empregado, o caracterizam como um conceito cujos significados somente podem ser entendidos à luz de uma teoria da multirreferencialidade, como ARDOINO e DE PERETTI já o evidenciaram (1). As relações entre cultura e educação sempre estiveram presentes na vida dos indivíduos em suas interações sociais, seja diretamente através dos processos educativos, ou em suas estratégias de cultivo do espírito, seja em suas atitudes de alteridade e relações de ordem espiritual. A própria origem da palavra apela para o estreitamento dessas relações. O termo cultura vem do latim cultus que, por sua vez, deriva de colere, que significa ação de cultivar, criar, tomar conta, cuidar, ora tomado no sentido próprio de cultura dos campos, das terras, das plantas – enfim, o cuidado do homem com a natureza, naquele sentido atribuído por VIRGÍLIO, em suas Geórgicas, ao conjunto dos trabalhos agrícolas voltados para a produção das colheitas indispensáveis ao homem e aos animais, ora no sentido figurado: cultivar a virtude, o espírito, as letras, as artes, e o cuidado dos homens com as coisas de Deus. Daí o termo culto, ora visto como homenagem e louvor prestado a Deus ou aos santos, em cerimônias religiosas, por ministros ou pelos fiéis, ora expressando sentimentos de profunda admiração a pessoas, a heróis, às tradições. Neste último sentido, já expressa uma preferência ou preocupação por uma certa linha de valores, como o culto à amizade. Mas onde estão mais presentes as relações entre cultura e educação é no outro sentido que é atribuído à cultura, vista como o cuidado com o espírito e o corpo da criança, com sua educação e formação. Daí derivar um dos conceitos mais arraigados de cultura, tida como a educação do espírito da criança para se tornar educada e virtuosa no seio da sociedade, através do aperfeiçoamento de suas qualidades naturais. Com efeito, comumente – e isto remonta às mais velhas tradições – cultura se identifica com instrução, e ser culto é o estado de um espírito cultivado pela instrução. Ao longo da história do homem há uma interpenetração e elasticidade de significados tão abrangente que, nas fronteiras das identificações, contradições e oposições de sentido, a cultura torna-se a própria expressão da heterogeneidade. Na perspectiva de cultura como aprimoramento da natureza humana através da educação, o conceito de cultura, como explicita CHAUÍ (3a), não se opõe ao de natureza; pelo contrário, ele a completa e enriquece. Em sentido amplo, a educação da criança – leitura de mundo, letramento, socialização, iniciação à vida da coletividade por meio de diferentes aprendizados, torna-a culta e moralmente virtuosa, politicamente consciente e participante – daí o apelo à construção da cidadania -, intelectualmente desenvolvida pela aquisição do conhecimento científico. ROUSSEAU (14) foi um dos primeiros filósofos a insistir que a criança é um ser natural, mas sua natureza não pode ser deixada por conta própria, pois, de outra forma, se tornaria egoista, agressiva, destrutiva, ignorante. Precisava, portanto, de ser educada, de acordo com os ideais da sociedade. A cultura, neste caso, se tornava uma segunda natureza que só fazia melhorar e aperfeiçoar a natureza inata da criança. A partir do século XVIII, porém, cultura é tida como sinônimo de civilização: o homem culto, neste sentido, é o homem civilizado, que goza das prerrogativas do cidadão. Este é um conceito que deriva dos resultados da educação dos seres humanos, traduzidos em suas diferentes manifestações políticas, científicas, artísticas, religiosas. Neste caso, os resultados da educação se refletem diretamente na vida social e política dos cidadãos. Dentro da perspectiva da cultura como civilização são introduzidas, portanto, diferenças e oposições. Do lado das diferenças, em ROUSSEAU a cultura opunha-se à idéia de civilização : enquanto esta exprimia a exterioridade e o artifício, e convergia, como a educação formal, para a constituição social, a cultura se identificava com o natural e o espontâneo. A partir de KANT, os pensadores começam a estabelecer uma diferença essencial entre o homem e a natureza: enquanto esta opera de uma forma mecânica, dentro das leis naturais de causa e efeito, o homem, dotado de liberdade e de razão, não age seguindo os impulsos da natureza, mas faz suas opções e determina sua ação baseado em princípios, objetivos e valores. Se, teoricamente ROUSSEAU estabelecia diferenças, na prática, o grande esforço a empreender para desenvolver no homem as virtuais potencialidades de seu estado naturalmente espontâneo fundiu, ainda mais, os dois conceitos. Com o pensamento kanteano, cultura e educação se aliam para o desenvolvimento da razão e da compreensão dos fenômenos, tornando-se sinônimos de medida de civilização, servindo para avaliar seu grau de desenvolvimento e progresso, e tanto para KANT (5), quanto para VOLTAIRE (15), elas refletem o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão do homem, da natureza, da sociedade, para criar uma ordem superior contra a ignorância e a superstição. Dentro do conceito de cultura como civilização, a ação do homem é sua própria marca de civilização, caracterizada por relações e interações entre os indivíduos socialmente organizados, relações essas travadas no tempo e no espaço, e sujeitas a profundas transformações. Enquanto nos conceitos anteriores se estabelece oposição entre o natural e o artificial, em HEGEL ganha sentido diferente, criando uma oposição à natureza : enquanto esta é imóvel, passiva, repetitiva e dispersa, a cultura caracteriza-se pela mobilidade, atividade, temporalidade, autoconsciência, transformação racional, reconciliação do subjetivo e do objetivo; em outras palavras, a cultura é a relação do homem com o tempo e o espaço, tornando-o o reino humano da história (5). Foram, portanto HEGEL, e depois dele MARX, que identificaram a cultura com a história. É interessante salientar que a introdução deste novo conceito aponta, nitidamente, duas direções: uma, que caracteriza as relações do indivíduo com os fenômenos, envolvendo-os numa heterogeneidade que ganha sentido através do processo educativo – os indivíduos educados intelectual e artisticamente são, assim, reflexo da cultura. Por outro lado, vista pelas relações do homem com a história, a cultura se torna um conjunto articulado dos modos de vida numa sociedade determinada, concebida ora como trabalho do espírito (HEGEL),, ora como relação material dos atores sociais com as condições dadas ou produzidas e reproduzidas por eles (MARX) (9). Na linha hegeliana, a cultura define-se, portanto, como campo das formas simbólicas, como o trabalho, as práticas religiosas, a linguagem, as artes, a política, tal como é vista na filosofia das formas simbólicas de CASSIRER, ou na estrutura do comportamento, de MERLEAUPONTY. Desta forma, no ciclo da espacialidade e temporalidade, o espírito e a razão desenvolvem as marcas características de uma cultura determinada, através de um processo progressivo e transformador. Na linha marxista, contudo, ela é um momento da práxis social como fazer humano de classes sociais antagônicas na relação determinada pelas condições materiais e como história da luta de classes, para vencer as formas de exploração econômica, de dominação política e de opressão social. Dentro desta perspectiva, a cultura humana, ao longo da história, tem os grandes pontos culminates no despotismo asiático, no modo de produção da antiga Grécia e Roma, no modo de produção feudal observado na Idade Média, e do capitalismo selvagem comercial e industrial dos tempos da globalização; em todas estas formações sociais está presente a luta de classes, umas lutando para defender os privilégios do capitalismo, outras pugnando para se libertarem da opressão, das injustiças e da exclusão social. Assim, se num sentido amplo a cultura é o campo simbólico e material das atividades humanas, no sentido restrito ela se articula à divisão social do trabalho, e se identifica com a posse do conhecimento e habilidades, ou com privilégio de classes, estabelecendo nos indivíduos, no seio da sociedade, a distinção, como no caso do Brasil, entre “cultos” e “incultos”, e entre “privilegiados”, “oprimidos” e até “excluídos”. Evidentemente que estas categorias aqui citadas expressam, simultaneamente, realidade e preconceito. Realidade, porque as condições históricas, sociais, políticas e econômicas do país assim o determinaram; preconceito, porque estas condições expressam atitudes concretas preconceituosas relativas às classes excluídas da vida social e econômica do país. Do ponto de vista do preconceito, falar em cultos e incultos é uma aberração antropológica e histórica, já que observando seus estilos de vida, suas interações sociais, comportamentos, expectativas e valores, todos os seres humanos são cultos, como seres culturais que são; também é preconceito querer reduzir a idéia de cultura ao conhecimento escolar e ao domínio artístico, pois estes, embora sejam expressões de cultura, não expressam a totalidade da cultura. Tachar de incultos os que não tiveram a oportunidade de cultivar o espírito nas instituições sociais a isso destinadas é dar provas da existência, na sociedade, de classes sociais antagônicas em que a alguns é socialmente conferido o direito da educação e do cultivo do espírito, e a outros é negado tal direito. Neste sentido, é legítimo falarmos de privilégios em relação aos primeiros, e de excluídos em relação aos segundos : duas realidades de diferenças sociais tão profundas, criadas e desenvolvidas pelo capitalismo, que se utiliza até da cultura para o exercício da discriminação. Como se vem constatando, o termo cultura ganha, a cada dia, novas conotações, por extensão ou por analogia, revestindo-se constantemente de novos sentidos, alguns deles contraditórios entre si, o que, aliás, é uma das marcas de seu caráter heterogêneo. Ela não pode ser analisada, apenas, em suas relações com a educação, ou com a natureza, ou nas relações do homem com o tempo e o espaço, ou tão somente na perspectiva histórica. Na visão da antropologia, por exemplo, é fundamental determinar de que formas o ser humano imprime suas diferenças da natureza em suas produções culturais, como no caso da instituição de leis de ordem simbólica indispensáveis à organização da vida em sociedade. Pela instituição dos símbolos o homem atribui à realidade novas significações, e através dessas práticas ele se relaciona com os outros, age sobre a natureza e a transforma. Desta forma, a cultura se abre a novas conotações que ampliam cada vez mais a pluralidade de seus significados. É por essa razão que muitos preferem não falar de cultura, mas de culturas, pois as leis, valores, crenças, práticas sociais são extremamente variáveis no tempo e no espaço, nas diferentes formações sociais, e o despertar, nos indivíduos, das habilidades do espírito, das atitudes diante dos fenômenos e acontecimentos, da sensibilidade e da imaginação, fundam um universo variado de formas de expressão humana, testemunho permanente de sua criatividade. Neste aspecto, a cultura ganha o sentido de humanização, pois as práticas culturais integram o intelectual, o econômico, o político, o social, o artístico, o religioso na vida do homem em sociedade. Religião, alimentação, vestuário, habitação, meios de transportes, instituições sociais e políticas, atividades lúdicas e esportivas, são tantas outras formas do ser humano se relacionar com os os outros e se humanizar. Na visão dos antropólogos, a cultura passou a ser vista como o conjunto das formas de vida dos grupos sociais, nelas compreendido o próprio conceito de vida que o comportamento social de cada um desses grupos subentende. Dáí ser corrente entre eles a representação da cultura como o conjunto de técnicas, instituições, comportamentos, modos de vida, hábitos, representações coleticas, crenças, valores, que caracterizam uma sociedade determinada. É assim que para eles, segundo GIROD (4) “a cultura é o conjunto de técnicas, instrumentos, idéias, esquemas comportamentais conscientes ou inconscientes, que um certo número de indivíduos que integram uma sociedade têm em comum, e que constituem os procedimentos práticos e psicológicos através dos quais eles ajustam sua existência ao meio natural (seja adotando um certo tipo de agricultura ou de indústria, um certo tipo de habitação ou de vestimentos), ao meio humano (seja a adoção de um certo tipo de relações humanas), e, enfim, aos mistérios do próprio destino (seja escolhendo um certo tipo de religião, ou um certo tipo de explicação sobre a morte, um determinado conjunto de mitos significativos, e certa atitude geral ao longo da vida”. Esse voltar-se para as diferentes áreas da produção humana e das atitudes de alteridade do ser humano em seu convívio na sociedade nos aproxima da idéia de formas ou tipos de cultura. Alguns fazem referência, por exemplo, a uma cultura clássica, entendida como a formação humana das elites sociais no grande período que vai da renascença até a época contemporânea. Predominou nela, durante muito tempo, o contato com a literatura grega e latina, suplantadas depois pelos clássicos da literatura de diferentes países. Daí muitos se referirem a ela como cultura humanista. Esta não supõe apenas o saber, o gosto, a erudição, o conhecimento científico, o talento artístico, mas está centrada na linguagem e nos processos de comunicação, intercomunicação e expressão. Do ponto de vista humanista, a cultura se desenvolve a partir das virtualidades da natureza humana, desenvolvimento que, em nossos dias, é condicionado, sobretudo, pela ação do meio cultural. Os sociólogos tratam a cultura como um fato social, mas é nos indivíduos que ela lança raízes e se manifesta. É por essa razão que MALINOWSKI nos adverte que tentar interpretar a cultura somente através dos esquemas psicológicos individuais é uma coisa vã, pois não se pode dissociar seu entendimento do estudo do espírito e da sociedade (8). A cultura comporta padrões explícitos de comportamentos, constituídos pelos fatos da civilização material, e pelo conjunto de símbolos que constituem as realizações características dos grupos humanos e suas materializações em artefatos, e padrões implícitos, formados por atitudes ou estados de ordem psíquica, mas que, conforme LINTON (7), são inferidos dos comportamentos explícitos que lhe dão origem. Diretamente associada aos comportamentos e práticas da sociedade de consumo, também podemos dizer que existe uma cultura de massa, resultante das influências dos produtos do mercado e da informação circulante dos meios de comunicação. A rigor ela não é imposta pelas instituições sociais, mas é proposta pelos agenciadores da sociedade de consumo – comércio e indústria, em suas infinitas ramificações, e que assume as características dessa sociedade, dobrando-se, pela força da propaganda, às leis do mercado da oferta e da procura, como assinala MORIN (11). As necessidades das massas – bem estar, lazer, felicidade – à medida que se universalizam, também universalizam a cultura de massas. A consequência disso é que a cultura de massas universaliza as necessidades. A cultura, portanto, não resulta apenas da globalização das novas civilizações mas, no dizer de MORIN (11), ela desenvolve esta globalização. Ela é bem o contrário da cultura popular e da arte popular, que se manifestam no seio da comunidade, e são criadas pelo povo. Cultura popular já expressa manifestação de diferença, por oposição de uma cultura de elite, e esta diferença se revela nas formas de representar e interpretar as relações com a natureza e com o homem. Até certo ponto, seria uma expressão cultural dos dominados, que preserva as características da própria vida do povo – primitivismo, espontaneismo, comunitarismo, purismo, como manifestação do espírito e da vida do povo, guardiã das suas tradições, uma cultura ainda não minada pelos hábitos das elites. Considerando seu caráter de cultura do povo como classe subalterna, dominada e excluída, mas, ao mesmo tempo, capaz de resistir e reagir, CHAUÍ (3b) a define como “ conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da resistência), distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de consciência”. Quanto à cultura de massas, esta chega até o povo, mas não nasce do povo., como chama a atenção RAPOPORT (13): ela penetra numa sociedade quando na nela existe uma massa atomizada de indivíduos. A cultura também tem uma conotação política, quando olhada pelos aspectos através dos quais os cidadãos pautam seus comportamentos no panorama político do país: suas atitudes, normas, valores, crenças partilhadas pela população, em geral, relativas aos fenômenos de natureza política e administrativa da nação. O fenômeno da exclusão social, por exemplo, tão característico da sociedade brasileira e de países de terceiro mundo, denota um comportamento político de falta de oportunidade e de condições de participação na vida da sociedade, com tendências nãovalorativas do próprio exercício da ação política. As relações entre os indivíduos excluídos e o sistema que exclui são de não-valorização recíproca, de apatia, ceticismo, alienação, hostilidade e indiferença. Aqui nem se pode falar de vinculação do cidadão com o regime democrático, uma vez que o exercício de tais políticas são a negação da democracia que impede, por parte dos excluídos, qualquer tipo de participação na vida social, pela mais absoluta impossibilidade de poder influir nas decisões de ordem política. Portanto, no aspecto político e no social, a sociedade é constituída por um conjunto de subculturas – conjunto de atitudes, normas e valores diversos, muito contrastantes entre si. Dentro, ainda, da instigante evolução de significados associados ao conceito de cultura, é importante lembrar que a ação cultural, como expressão do comportamento do ser humano se defronta, no seio da sociedade, com três questões : a primeira, é aceitar o desafio de conhecer o que se pretende fazer com a cultura; a segunda, é é identificar os diferentes meios e recursos de atingir os objetivos traçados para o uso, ou “consumo” da cultura; e o terceiro, como consequência natural de uma das características da natureza humana que, inclusive, chegou a criar o adágio que “errar é humano”, é admitir que qualquer ação social, apesar de metas e objetivos estabelecidos, pode produzir outros efeitos diferentes dos desejados: é assim, por exemplo, que a igreja dos pobres acaba por se ttransformar em igreja de ricos; a pobreza desejada se transforma em riqueza; congregações mendicantes se convertem em feudos; escolas criadas para filhos de operários se transformam em instituições de educação das elites, e outros tantos exemplos que a cultura, e sua difusão, têm testemunhado ao longo do tempo. Em outras palavras, é importante admitir aquilo que BOUDON (2) já chamou, um dia, de “efeitos indesejados” da cultura, e que depois rebatizou como “efeitos perversos”. É mais uma faceta associada ao conceito de cultura a testemunhar a contradição e o caráter heterogêneo e conflituoso da cultura. Quanto aos aspectos valorativos da cultura, ou pretenções de legitimidade da cultura, presentes na sociedade, algumas tendências existentes são reveladoras das atitudes dos indivíduos em relação ao fenômeno cultural, que, entre outras, pode consistir em: (a) restringir a admiração e a valoração cultural às obras de arte consagradas pela crítica erudita. Esta atitude incentivou, mundo afora, a institucionalização de “museus” e “casas de cultura”, cujas obras, raras e seletas, procuram legitimar a cultura das elites; (b) promover a cultura popular como a autêntica representante da expressão artística da sociedade, atitude de contralegitimidade tão preconceituosa quanto a anterior; (c) influenciar as representações de legitimidade cultural existentes na sociedade, para que seus dispositivos simbólicos se diversifiquem, acolhendo em seu seio as produções e estilos de consumo mais característicos das culturas populares. A legitimidade estaria, portanto, no centro de uma integração democrática, ou numa democracia cultural que integrasse as diferentes atitudes em relação à cultura. Infelizmente, o impulso etnocêntrico sempre conspirou contra este tipo de legitimidade. O problema é que, na cultura, - e isto, na prática, era seu principal argumento de legitimidade – sempre predominaram os etnocentrismos. Em todos os povos, e em todas as classes dominantes, sempre existiu um termo, ou uma expressão comum com a função de reunir o conjunto de valores e modelos de comportamento com que um grupo cultivado ou uma etnia gosta de se representar como sua cultura, opondo-o à incultura dos outros. Por exemplo, na Grécia, cultura era helenismo, e tudo o resto era barbárie. O conceito etnológico de cultura de certo modo veio para provocar a ruptura com a polissemia que abre à cultura todas as portas de significações, e seu relativismo, associado ao projeto antropológico, proporcionaria a libertação, também, desse etnocentrismo. Na definição axiologicamente neutra do conceito de cultura a antropologia inclui, sem omissão, no repertório cultural, todos os esquemas simbólicos, formais ou informais, institucionais ou instrumentais, sistematizados ou dispersos, prestigiosos ou vulgares, que para uma sociedade ou um grupo organizam o universo de significações. Esta definição, como se pode perceber pela variedade de seus elementos, está longe de conceber a cultura como uma entidade homogênea: as estruturas, funções, valores e mecanismos heterogêneos que constituem os fatos culturais estão repletos de diferenciações. Estas diferenciações constituem o caráter heterogêneo da cultura. Ela se estende da cultura material e das técnicas corporais até as categorias mentais mais abstratas que organizam a linguagem, o raciocínio, os gostos, preferências, e as ações socialmente orientadas. Quer seja vista como estilo de vida, como discurso dissertativo ou explicativo de si mesma, na forma de discurso, ou como corpus de elementos culturais de valores estéticos, como as obras de arte, todos esses aspectos e formas, em seus componentes heterogêneos, contrariam a noção de construção monolítica da cultura, em seu sentido amorfo. Cultura, culturas, tipos de culturas, subculturas, todas têm suas formas privilegiadas de expressão e sua lógica de funcionamento, em suas diversidades, todas passam por uma gama extremamente elástica de significados, interesses e valores, que vai do interesse cultural geral aos interesses culturais particulares. Lidar com a cultura, entendê-la, conceituá-la, é uma tarefa que reclama uma multirreferencialidade de abordagens pois, como afirma PASSERON (12), a cultura “não é um diamante que se admira de longe: ela é uma composição regulada de lógicas simbólicas relativamente independentes umas das outras; ela não é manipulada como um único bloco tal um objeto, mas analisada como um conjunto de equilíbrios em que todas as equilibrações não são possíveis”. É exatamente neste conjunto de equilíbrios impossíveis, na sua lógica e também em suas incompreensões e incongruências, em suas alegrias e certezas, mas também em suas incertezas e conflitos que se revela, em nuances ora claras ora obscuras, ora definidas ora indefinidas, sua heterogeneidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARDOINO, Jacques et DE PERETTI, André. Penser l’Hétérogène. Paris, Desclée de Brouwer, 1998. BOUDON, René. Effets pervers et ordre social. Paris, PUF, 1977. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 1997. CHAUIÍ, Marilena. Conformismo e resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1986. GIROD, R. Attitudes Collectives et Relations Humaines. Paris, PUF, 1952. HEGEL. In Fenomenologia do Espírito. KANT, Emmanuel. In Crítica da Razão Pura. LINTON, R. Le fondement culturel de la personnalité. Paris, Dunod, 1965. MALINOWSKI, B. Une théorie scientifique de la culture. Coll. Points, 1970. MARX, Carl. Oeuvres. Paris, V. I, NRF Pléiade, 1965. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la pensée. Paris, Gallimard, Tel, 1976. MORIN, Edgar. L’Esprit du temps. Paris, Grasset, 1962. PASSERON, Jean-Claude. O raciocínio sociológico. O espaço não-popperiano do raciocínio natural. Petrópolis, Vozes, 1995. RAPOPORT, A Pour une anthropologie de la maison. Paris, Dunod, 1972. ROUSSEAU, Jean-Jacques.. in Julie ou La Nouvelle Héloise. VOLTAIRE. In Dictionnaire philosophique.