A liberdade, dom de Deus

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A liberdade, dom de Deus
Tenho recordado com frequência aquela cena comovedora que o Evangelho nos relata: Jesus
está na barca de Pedro, de onde tinha falado ao povo. Essa multidão que o seguia moveu o afã
de almas que consome o seu Coração e o Divino Mestre quer que os discípulos participem
quanto antes desse zelo. Depois de lhes dizer que se façam ao largo - duc in altum! - sugere a
Pedro que lance as redes para pescar.
Não me vou demorar agora nos pormenores, tão instrutivos, desses momentos. Desejo que
consideremos a reacção do Príncipe dos Apóstolos perante o milagre: afasta-te de mim,
Senhor, que sou um homem pecador. É uma verdade - disso não tenho dúvidas - que se ajusta
perfeitamente à situação pessoal de todos. No entanto, asseguro-vos que, ao tropeçar durante
a minha vida com tantos prodígios da graça, realizados através de mãos humanas, tenho-me
sentido inclinado, diariamente cada vez mais inclinado, a gritar: Senhor, não te afastes de mim,
pois sem Ti não posso fazer nada de bom.
Precisamente por isso, percebo muito bem aquelas palavras do Bispo de Hipona, que soam
como um cântico maravilhoso à liberdade: Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti,
porque cada um de nós, tu, eu, temos sempre a possibilidade - a triste desventura - de nos
levantarmos contra Deus, de rejeitá-lo - talvez só com a nossa conduta - ou de exclamar: não
queremos que reine sobre nós.
Escolher a vida
Agradecidos por nos apercebermos da felicidade a que estamos chamados, aprendemos que
todas as criaturas foram tiradas do nada por Deus e para Deus: as racionais, os homens, apesar
de tão frequentemente perdermos a razão; e as irracionais, as que percorrem a superfície da
terra, ou habitam as entranhas do mundo, ou cruzam o azul do céu, algumas delas até fitarem
o Sol. Mas, no meio desta maravilhosa variedade, só nós, homens -não falo aqui dos anjos nos unimos ao Criador pelo exercício da nossa liberdade, podendo prestar ou negar a Nosso
Senhor a glória que lhe corresponde como Autor de tudo o que existe.
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Essa possibilidade é a principal componente do claro-escuro da liberdade humana. Nosso
Senhor convida-nos e anima-nos a escolher o bem, porque nos ama profundamente.
Considera que ponho hoje diante de ti, dum lado, a vida e o bem, do outro, a morte e o mal.
Recomendo-te que ames o Senhor teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os
seus preceitos, as suas leis e os seus decretos. Se assim fizeres, viverás... Escolhe, pois, a vida
para que vivas .
Queres pensar - pela minha parte também farei o meu exame - se manténs imutável e firme a
tua escolha da Vida? Se, ao ouvires essa voz de Deus, amabilíssima, que te estimula à
santidade, respondes livremente que sim? Dirijamos o olhar para o nosso Jesus, quando falava
às multidões pelas cidades e campos da Palestina. Não pretende impor-se. Se queres ser
perfeito..., diz ao jovem rico. Aquele rapaz rejeitou o convite e o Evangelho conta que abiit
tristis , que se retirou entristecido. Por isso, alguma vez lhe chamei a ave triste: perdeu a
alegria, porque se negou a entregar a liberdade a Deus.
Consideremos agora o momento sublime em que o Arcanjo São Gabriel anuncia a Santa Maria
o desígnio do Altíssimo. A nossa Mãe ouve e interroga para compreender melhor aquilo que
Nosso Senhor lhe pede; depois, surge a resposta firme: Fiat! - faça-se em mim segundo a tua
palavra! -, o fruto da melhor liberdade: a de se decidir por Deus.
Em todos os mistérios da nossa fé católica paira esse cântico à liberdade. A Santíssima
Trindade tira do nada o mundo e o homem, num livre esbanjamento de amor. O Verbo desce
do Céu e assume a nossa carne com este selo maravilhoso da liberdade na submissão: eis que
venho, segundo está escrito de mim no princípio do livro, para fazer, ó Deus, a tua vontade .
Quando chega a hora marcada por Deus para salvar a humanidade da escravidão do pecado,
contemplamos Jesus Cristo em Getsemani, sofrendo terrivelmente até derramar um suor de
sangue e aceitando rendida e espontaneamente o sacrifício que o Pai lhe reclama: como
cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda diante dos tosquiadores. Já o tinha
anunciado aos seus, numa daquelas conversas em que abria o Coração, com a finalidade de
que aqueles que o amam conheçam que Ele é o Caminho - não há outro - para se aproximarem
do Pai: por isso o meu Pai me ama, porque dou a minha vida para outra vez a assumir.
Ninguém ma tira, mas Eu é que a dou por minha própria vontade e tenho o poder de a dar e o
poder de a recobrar.
O sentido da liberdade
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Nunca poderemos entender perfeitamente a liberdade de Jesus Cristo, imensa - infinita como o Seu amor. Mas o tesouro preciosíssimo do Seu generoso holocausto deve levar-nos a
pensar: porque me deste, Senhor, este privilégio com que sou capaz de seguir os teus passos,
mas também de Te ofender? Acabamos, assim, por calibrar o recto uso da liberdade, se se
inclina para o bem; e a sua errada orientação, quando, com essa faculdade, o homem se
esquece, se afasta do Amor dos amores. A liberdade pessoal - que defendo e defenderei
sempre com todas as minhas forças - leva-me a perguntar com uma segurança convicta e
também consciente da minha própria fraqueza: que esperas de mim, Senhor, para o fazer
voluntariamente?
O próprio Cristo nos responde: Veritas liberabit vos; a verdade far-vos-á livres. Que verdade é
esta, que inicia e consuma o caminho da liberdade em toda a nossa vida? Resumi-la-ei com a
alegria e com a certeza que provêm da relação de Deus com as suas criaturas: saber que
saímos das mãos de Deus, que somos objecto da predilecção da Santíssima Trindade, que
somos filhos de um Pai tão grande. Peço ao meu Senhor que nos decidamos a apercebermonos disso, a saboreá-lo dia após dia: assim actuaremos como pessoas livres. Não esqueçamos:
quem não sabe que é filho de Deus desconhece a sua verdade mais íntima e carece, na sua
actuação, do domínio e do senhorio próprios dos que amam Nosso Senhor, sobre todas as
coisas.
Persuadamo-nos de que para ganhar o Céu temos de nos empenhar livremente, com uma
decisão plena, constante e voluntária. Mas a liberdade não se basta a si mesma: necessita de
um norte, de uma orientação. A alma não pode andar sem ninguém que a dirija; e para isso foi
redimida de modo que tenha por Rei Cristo, cujo jugo é suave e a carga leve (Mt 11, 30), e não
o diabo, cujo jugo é pesado.
Não nos deixemos enganar pelos que se conformam com uma triste vozearia: liberdade!
liberdade! Muitas vezes, nesse mesmo clamor, esconde-se uma trágica servidão: porque a
escolha que prefere o erro não liberta; o único que liberta é Cristo, pois só Ele é o Caminho, a
Verdade e a Vida.
Perguntemo-nos de novo, na presença de Deus: Senhor, para que nos deste este poder?
Porque depositaste em nós esta faculdade de Te escolher ou de Te rejeitar? Tu desejas que
usemos acertadamente esta nossa capacidade. Senhor, que queres que eu faça? A resposta é
diáfana e precisa: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma e
com toda a tua mente .
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Vêem? A liberdade adquire o seu sentido autêntico quando se exerce ao serviço da verdade
que resgata, quando se gasta a procurar o amor infinito de Deus, que nos desata de todas as
escravidões. Aumentam cada vez mais os meus desejos de anunciar em altos brados esta
insondável riqueza do cristão: a liberdade da glória dos filhos de Deus! Nisso se resume a boa
vontade que nos ensina a seguir o bem, depois de o distinguir do mal.
Gostaria que meditássemos num ponto fundamental que nos situa perante a responsabilidade
da nossa consciência. Ninguém pode escolher por nós: eis o grau supremo da dignidade dos
homens: que, por si mesmos e não por outros, se dirijam para o bem . Muitos de nós
herdámos dos nossos pais a fé católica e, por graça de Deus, quando recém-nascidos
recebemos o Baptismo, começou na alma a vida sobrenatural. Mas temos de renovar ao longo
da nossa existência - e mesmo ao longo de cada dia - a determinação de amar a Deus sobre
todas as coisas. É cristão, digo, verdadeiro cristão, aquele que se submete ao império do único
Verbo de Deus, sem impor condições a esse acatamento, disposto a resistir à tentação
diabólica com a mesma atitude de Cristo: Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás .
Liberdade e entrega
O amor de Deus é ciumento; não fica satisfeito, se nos apresentarmos com condições no
encontro marcado: espera com impaciência que nos entreguemos totalmente, que não
guardemos no coração recantos escuros, onde o gozo e a alegria da graça e dos dons
sobrenaturais não consigam chegar. Talvez pensem: responder sim a esse Amor exclusivo não
é, porventura, perder a liberdade?
Com a ajuda de Nosso Senhor, que preside à nossa oração, com a sua luz, espero que este
tema fique ainda mais definido para vós e para mim. Cada um de nós sabe por experiência
que, algumas vezes, seguir Cristo Nosso Senhor implica dor e fadiga. Negar esta realidade
significaria não se ter encontrado com Deus. A alma apaixonada sabe que essa dor é uma
impressão passageira e bem depressa descobre que o seu peso é leve e a sua carga suave,
porque Ele a leva às costas, tal como se abraçou ao madeiro quando estava em jogo a nossa
felicidade eterna. Mas há homens que não entendem, que se revoltam contra o Criador - uma
rebelião impotente, mesquinha, triste -, que repetem cegamente a queixa inútil que o Salmo
regista: Quebremos os seus laços! Para longe de nós o seu jugo. Resistem a realizar, com
silêncio heróico, com naturalidade, sem brilho e sem lamentações, o trabalho duro de cada
dia. Não compreendem que a Vontade divina, mesmo quando se apresenta com matizes de
dor, de exigências que ferem, coincide exactamente com a liberdade, que só reside em Deus e
nos seus desígnios.
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São almas que fazem barricadas com a liberdade. A minha liberdade, a minha liberdade! Têmna e não a seguem; olham-na e põem-na como um ídolo de barro dentro do seu entendimento
mesquinho. É isso liberdade? Que aproveitam dessa riqueza sem um compromisso sério, que
oriente toda a existência? Um tal comportamento opõe-se à categoria própria, à nobreza, da
pessoa humana. Falta a rota, o caminho claro que oriente os seus passos na terra; essas almas
- decerto já as encontraram, como eu - depressa se deixarão arrastar pela vaidade pueril, pela
presunção egoísta, pela sensualidade.
A sua liberdade mostra-se estéril ou produz frutos ridículos, mesmo do ponto de vista
humano. Quem não escolhe - com plena liberdade! - uma norma recta de conduta, ver-se-á
manipulado por outros cedo ou tarde, viverá na indolência - como um parasita - sujeito ao que
os outros determinarem. Prestar-se-á a ser cirandado por qualquer vento e outros resolverão
sempre por ele. São nuvens sem água que os ventos levam de um lado para o outro, árvores
outonais, sem fruto; duas vezes mortas, sem raízes, ainda que se encubram, numa contínua
tagarelice, com paliativos que tentam disfarçar a sua falta de carácter, de valentia e de
honradez.
"Mas a mim ninguém me coage!", repetem obstinadamente. Ninguém? Todos coagem essa
liberdade ilusória, que não se arrisca a aceitar com responsabilidade as consequências de
actuações livres e pessoais. Onde não há amor de Deus, produz-se um vazio do exercício
individual e responsável da liberdade: apesar das aparências, tudo neles é coacção. O indeciso,
o irresoluto é como matéria plástica à mercê das circunstâncias; qualquer pessoa o molda de
acordo com o seu capricho e moldam-no também, em primeiro lugar, as paixões e as piores
tendências da natureza ferida pelo pecado.
Recordem a parábola dos talentos. Aquele servo que só recebeu um podia - como os
companheiros - empregá-lo bem, procurar que rendesse, usando as suas qualidades. E que
decide? Tem medo de o perder. E está certo. Mas, e depois? Enterra-o! E acaba por não dar
fruto.
Não esqueçamos este caso de temor doentio de aproveitar honradamente a capacidade de
trabalho, a inteligência, a vontade, o homem todo. Enterro-o - parece afirmar esse desgraçado
-, mas a minha liberdade fica a salvo! Não. A liberdade inclinou-se para uma coisa muito
concreta, para a mais pobre e árida secura. Optou, porque não tinha outro remédio senão
escolher; mas escolheu mal.
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Nada mais falso do que opor a liberdade à entrega, porque a entrega surge como
consequência da liberdade. Reparem que, quando uma mãe se sacrifica por amor aos filhos,
escolheu; e, segundo a medida desse amor, assim se manifestará a sua liberdade. Se esse amor
é grande, a liberdade será fecunda e o bem dos filhos nasce dessa bendita liberdade, que
pressupõe entrega, e nasce dessa bendita entrega, que é precisamente liberdade.
Mas, perguntar-me-ão, quando conseguimos o que amamos com toda a alma, já não
continuamos a procurá-lo. Desapareceu a liberdade? Garanto-vos que então é mais activa do
que nunca, porque o amor não se contenta com um cumprimento rotineiro, nem se coaduna
com o fastio e a apatia. Amar significa recomeçar todos os dias a servir, com obras de carinho.
Insisto, e gostaria de gravá-lo a fogo em cada um: a liberdade e a entrega não se contradizem;
apoiam-se mutuamente. A liberdade só se pode entregar por amor; não concebo outra espécie
de desprendimento. Não é um jogo de palavras mais ou menos acertado. Na entrega
voluntária, em cada instante dessa dedicação, a liberdade renova o amor e renovar-se é ser
continuamente jovem, generoso, capaz de grandes ideais e de grandes sacrifícios. Lembro-me
que tive uma grande alegria quando soube que em português chamam aos jovens os novos. E
são isso. Conto-vos isto, porque já tenho muitos anos, mas quando rezo junto do altar ao Deus
que enche de alegria a minha juventude, sinto-me muito jovem e sei que nunca me hei-de
considerar velho, porque, se permanecer fiel ao meu Deus, o
Amor vivificar-me-á continuamente. A minha juventude renovar-se-á como a da águia.
Por amor à liberdade nos prendemos. Só a soberba sente nesses laços o peso de uma cadeia.
A verdadeira humildade, que nos é ensinada por Aquele que é manso e humilde de coração,
mostra-nos que o seu jugo é suave e a sua carga leve: o jugo é a liberdade; o jugo é o amor; o
jugo é a unidade; o jugo é a vida que Ele ganhou para nós na Cruz.
A liberdade das consciências
Quando, nos meus anos de sacerdócio, não direi que prego mas que grito o meu amor à
liberdade pessoal, noto nalguns um gesto de desconfiança, como de quem suspeita que a
defesa da liberdade implica um perigo para a fé. Que se tranquilizem esses pusilânimes. Só
atenta contra a fé uma errada interpretação da liberdade, uma liberdade sem qualquer fim,
sem norma objectiva, sem lei, sem responsabilidade, numa palavra, a libertinagem.
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Infelizmente, é isso que alguns defendem; essa reivindicação é que constitui um atentado
contra a fé.
Por isso, não é exacto falar de liberdade de consciência, que equivale a considerar de boa
categoria moral o facto de o homem rejeitar Deus. Já recordámos que nos podemos opor aos
desígnios salvadores de Nosso Senhor; podemos, mas não devemos fazê-lo. E se alguém
tomasse essa atitude deliberadamente, pecaria ao transgredir o primeiro e o fundamental dos
mandamentos: amarás Iavé com todo o teu coração .
Defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que significa que não é lícito
a ninguém impedir que a criatura tribute culto a Deus. Têm de se respeitar os legítimos anseios
de verdade: o homem tem obrigação grave de procurar Nosso Senhor, de O conhecer e de O
adorar, mas a ninguém na terra é lícito impor ao próximo a prática de uma fé que este não
tem, tal como ninguém pode arrogar-se o direito de prejudicar quem a recebeu de Deus.
A Igreja, nossa Santa Mãe, sempre se pronunciou pela liberdade e rejeitou todos os fatalismos,
antigos ou menos antigos. Declarou que cada alma é dona do seu destino para bem ou para
mal. E os que não se afastaram do bem irão para a vida eterna; os que cometeram o mal, para
o fogo eterno . Impressiona-nos sempre esta terrível capacidade humana, tua e minha, de
todos, que simultaneamente é o sinal da nossa nobreza. A tal ponto o pecado é um mal
voluntário, que de nenhum modo seria pecado, se não tivesse o seu princípio na vontade; esta
afirmação goza de tal evidência, que estão de acordo os poucos sábios e os muitos ignorantes
que habitam no mundo .
Volto a levantar o meu coração em acção de graças ao meu Deus, ao meu Senhor, porque
nada o impedia de nos criar impecáveis, com um impulso irresistível para o bem; mas julgou
que seriam melhores os seus servidores se o servissem livremente . Que grande é o amor, a
misericórdia do nosso Pai! Perante esta realidade das suas loucuras divinas pelos filhos,
gostaria de ter mil bocas, mil corações mais, que me permitissem viver num contínuo louvor a
Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo. Reparem que o Todo-Poderoso, Aquele que
governa o Universo com a sua Providência, não deseja servos forçados, prefere filhos livres.
Meteu na alma de cada um de nós - embora nasçamos proni ad peccatum, inclinados ao
pecado pela queda dos nossos primeiros pais - uma chispa da sua inteligência infinita, a
atracção pelo bem, uma ânsia de paz perdurável. E leva-nos a compreender que a verdade, a
felicidade e a liberdade se conseguem quando procuramos que germine em nós essa semente
de vida eterna.
Responder negativamente a Deus, rejeitar esse princípio de felicidade nova e definitiva, ficou
nas mãos da criatura. Mas, se agir assim, deixa de ser filho e torna-se escravo. Cada coisa é
aquilo que segundo a sua natureza lhe convém; por isso, quando se move à procura de algo
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que lhe é estranho, não actua segundo a sua própria maneira de ser, mas por impulso alheio; e
isto é servil. O homem é racional por natureza. Quando se comporta segundo a razão,
procede, pelo seu próprio movimento, como quem é; e isto é próprio da liberdade. Quando
peca, age fora da razão, e então deixa-se conduzir pelo impulso de outro, submetido a domínio
alheio; e por isso quem aceita o pecado é servo do pecado (Io 8, 34) .
Permitam-me que insista sobre este ponto; é muito claro e podemos comprová-lo com
frequência à nossa volta ou no nosso próprio eu: nenhum homem escapa a algum tipo de
servidão. Uns prostram-se diante do dinheiro; outros adoram o poder; outros a tranquilidade
relativa do cepticismo; outros descobrem na sensualidade o seu bezerro de ouro. E acontece o
mesmo com as coisas nobres. Empenhamo-nos num trabalho, numa actividade de maiores ou
menores proporções, na realização de um trabalho científico, artístico, literário, espiritual. Se
há empenho, se existe verdadeira paixão, quem a isso se entrega vive como escravo, dedica-se
com prazer ao serviço da finalidade da sua tarefa.
Escravidão por escravidão - já que de qualquer modo temos de servir, pois, quer queiramos
quer não, essa é a condição humana - não há nada melhor do que saber que somos, por Amor,
escravos de Deus. Porque nesse momento perdemos a situação de escravos para nos
tornarmos, amigos, filhos. E aqui surge a diferença: enfrentamos as ocupações honestas do
mundo com a mesma paixão, com o mesmo empenho que os outros, mas com paz no íntimo
da alma; com alegria e serenidade, mesmo nas contradições: pois não depositamos a nossa
confiança naquilo que é passageiro, mas no que permanece para sempre, não somos filhos da
escrava, mas da mulher livre.
Donde nos vem esta liberdade? De Cristo, Nosso Senhor. Esta é a liberdade com que Ele nos
redimiu. Por isso ensina: se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres . Nós, cristãos,
não temos de pedir emprestado a ninguém o verdadeiro sentido deste dom, porque a única
liberdade que salva o homem é cristã.
Gosto de falar da aventura da liberdade, porque é essa realmente a aventura da vossa vida e
da minha. Livremente - como filhos, insisto, não como escravos - seguimos o caminho que
Nosso Senhor assinalou para cada um de nós. E saboreamos esta facilidade de movimentos
como um presente de Deus.
Livremente, sem qualquer coacção, porque me apetece, decido-me por Deus. E comprometome a servir, a converter a minha existência numa entrega aos outros, por amor ao meu Senhor
Jesus. Esta liberdade incita-me a clamar que nada na terra me separará da caridade de Cristo.
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Responsáveis perante Deus
Deus fez o homem desde o princípio e deixou-o nas mãos do seu livre arbítrio (Ecli 15, 14). Isto
não sucederia se não tivesse capacidade de fazer uma escolha livre. Somos responsáveis
perante Deus por todas as acções que realizamos livremente. Não há anonimatos; o homem
encontra-se perante o seu Senhor e está na sua vontade decidir-se a viver como amigo ou
como inimigo. Assim começa o caminho da luta interior, que é empresa para toda a vida,
porque enquanto dura a nossa passagem pela terra ninguém alcança a plenitude da sua
liberdade.
Além disso, a nossa fé cristã leva-nos a garantir a todos um clima de liberdade, começando
por afastar qualquer tipo de enganosas coacções na apresentação da fé. Se somos arrastados
para Cristo, cremos sem querer; então usa-se a violência, não a liberdade. Sem querer
podemos entrar na Igreja; sem querer podemos aproximar-nos do altar; podemos, sem
querer, receber o Sacramento. Mas só pode crer aquele que o quer. E é evidente que, tendo
chegado à idade da razão, se requer a liberdade pessoal para entrar na Igreja e para
corresponder aos contínuos chamamentos que Nosso Senhor nos dirige.
Na parábola dos convidados para o banquete, o pai de família, depois de tomar conhecimento
de que alguns dos que deveriam comparecer na festa se tinham desculpado com razões sem
razão, ordena ao criado: vai pelos caminhos e ao longo dos cercados e força a vir - compelle
intrare - aqueles que encontrares. Não é isto coacção? Não é usar de violência contra a
legítima liberdade de cada consciência?
Se meditarmos o Evangelho e ponderarmos os ensinamentos de Jesus, não confundiremos
essas ordens com a coacção. Vejam como Cristo insinua sempre: se queres ser perfeito..., se
alguém quer vir atrás de mim... Esse compelle intrare não implica violência física nem moral; é
reflexo do ímpeto do exemplo cristão, que mostra no seu proceder a força de Deus. Vede
como o Pai atrai: deleita ensinando; não impondo a necessidade. Assim atrai a Si.
Quando se respira esse ambiente de liberdade, entende-se claramente que actuar mal não é
uma libertação, mas uma escravidão. Quem peca contra Deus conserva o livre arbítrio
relativamente à liberdade de coacção, mas perdeu-o em relação à liberdade de culpa . Talvez
declare que procedeu de acordo com as suas preferências, mas não conseguirá pronunciar o
nome da verdadeira liberdade, porque se fez escravo daquilo por que se decidiu e decidiu-se
pelo pior, pela ausência de Deus, e aí não há liberdade.
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Repito: não aceito outra escravidão senão a do Amor de Deus. E isto porque, como já tenho
comentado noutras ocasiões, a religião é a maior rebeldia do homem, que não tolera viver
como um animal, que não se conforma - não sossega - enquanto não ganha intimidade e
conhece o Criador. Quero-os rebeldes, livres de todas os laços, porque os quero - Cristo quernos! - filhos de Deus. Escravidão ou filiação divina: eis o dilema da nossa vida. Ou filhos de
Deus ou escravos da soberba, da sensualidade, desse egoísmo angustiante em que tantas
almas parecem debater-se.
O Amor de Deus marca o caminho da verdade, da justiça, do bem. Quando nos decidimos a
responder a Nosso Senhor: a minha liberdade para Ti, encontramo-nos libertos de todas as
cadeias que nos atavam a coisas sem importância, a preocupações ridículas, a ambições
mesquinhas. E a liberdade - tesouro incalculável, pérola maravilhosa que seria triste lançar aos
animais - emprega-se inteiramente em aprender a fazer o bem.
Esta é a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Os cristãos amedrontados - coibidos ou
invejosos - na sua conduta, perante a libertinagem dos que não aceitam a Palavra de Deus,
demonstram ter um conceito miserável da nossa fé. Se cumprirmos verdadeiramente a Lei de
Cristo - se nos esforçarmos por cumpri-la, porque nem sempre o conseguiremos - descobrirnos-emos dotados dessa maravilhosa elegância de espírito, que não precisa de ir buscar a
outro sítio o sentido da mais plena dignidade humana.
A nossa fé não é uma carga, nem uma limitação. Que pobre ideia da verdade cristã
manifestaria quem assim pensasse! Ao decidirmo-nos por Deus não perdemos nada;
ganhamos tudo. Quem, à custa da sua alma, conserva a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a
sua vida por amor de Mim, voltará a achá-la.
Tirámos a carta que ganha, conseguimos o primeiro prémio. Quando alguma coisa nos impedir
de ver isto com clareza, examinemos o interior da nossa alma. Talvez haja pouca fé, pouca
intimidade pessoal com Deus, pouca vida de oração. Temos de pedir a Nosso Senhor - através
de sua Mãe e nossa Mãe - que aumente em nós o seu amor, que nos conceda saborear a
doçura da sua presença; porque só quando se ama se chega à mais plena liberdade: a de
jamais querer abandonar, por toda a eternidade, o objecto dos nossos amores.
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