ANTÓNIO MANUEL MARTINS, Lógica e Ontologia em Pedro da

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Tendo de renunciar (com pena!) à expressão de outros ajuizamentos suscitados pelo presente livro, não deixo todavia de perguntar (sem espírito de entre-mangerie professomle - p. 231): que pensam, sabem ou investigam sobre a
escola histórica do direito a nossa ciência jurídica, a nossa filosofia do direito
para juristas?
Eduardo Chitas
ANTÓNIO MANUEL MARTINS, Lógica e Ontologia em Pedro da Fonseca, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian - Junta Nacional de Investigação Científica, 1994.
1. No conjunto da filosofia portuguesa, Pedro da Fonseca ocupa uma posição
singular. A par de Pedro Hispano, três séculos mais cedo, e do seu contemporâneo Francisco Sanches, Fonseca configura, com efeito, um dos raros momentos
cm que o pensamento português se encontra em real sintonia com o ambiente
cultural europeu e não só ombreia em importância com a filosofia aí produzida,
como chega mesmo a influenciá-la, alcançando em todo o caso uma divulgação e
uma relevância no quadro europeu que só com a daqueles pode ser comparada.
Como quer, na verdade, que se avalie o papel do aristotelismo e da revivescência da Escolástica nos séculos X V I e X V I I , nomeadamente no seu carácter
culturalmente "reaccionário" ou "avançado", o que é facto é que o pensamento e
a obra de Pedro da Fonseca reflectem, no seu tempo, uma conjunção de factores
que mais tarde raramente se repetirá entre nós: um real conhecimento e uma
efectiva assimilação e reflexão da tradição filosófica e da especulação coeva;
uma profunda convergência com a sua época, ainda que em óbvio registo contra¬
-reformista; uma efectiva influência nos círculos europeus, de que é testemunho a
reedição, em Colónia, dos Comentários à Metafísica de Aristóteles, três anos
apenas após a publicação, em Lião, do seu último volume, e, principalmente, as
mais de cinquenta edições da Isagoge Filosófica em toda a Europa; e também,
embora mais discutivelmeníe, a antecipação de algumas tendências de modernidade c/ou a subterrânea influência sobre os primeiros modernos, de que poderá
ser exemplo o próprio Descartes, mercê da sua educação num colégio pertencente à mesma Ordem em que Pedro da Fonseca filosoficamente pontificou.
Mais importante todavia, na mencionada perspectiva de uma singularização
do lugar ocupado por este filósofo, é o facto de, ao contrário do que acontece
com Pedro Hispano ou também com Francisco Sanches, bem como, em geral, do
que parece ser um destino histórico da filosofia cm Portugal, Pedro da Fonseca
não sc limitar a ser um autor cuja-reflexão individual se projecta isoladamente
sobre o pensamento europeu, senão que, por uma vez, essa reflexão emerge articuladamente (o que não significa decerto sem contradição nem ruptura) num
contexto determinado para a investigação e a especulação, a saber, a
Universidade.
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É certo que a relação de Pedro da Fonseca com o Curso Conimbricense, de
que ele foi um dos principais iniciadores na segunda metade do século X V I , não
foi linear nem quiçá pacífica: permanecendo aliás ainda hoje como a principal
aporia histórica que rodeia esta figura e de que a singular coincidência entre o
lugar deixado vago por aquele Curso para a Metafísica e a posterior publicação
dos Commentarii, revestindo características com ele irreconciliáveis, constitui a
mais flagrante evidência.
É certo também que o Curso Conimbricense pode ser reapreciado, em grande
medida, como uma frente de batalha teórica contra as tendências do tempo,
patenteadas ora na Reforma, ora na contestação do predomínio científico da filosofia aristotélica, o que aliás a insistência do Curso na edição das obras físicas de
Aristóteles (Physica, De coelo, De generatione et corruptione, De anima, mas
também Metereologica e Parva naturalia) parece comprovar.
É certo ainda que a indiscutível originalidade ou heterodoxia filosófica de
algumas das teses de Pedro da Fonseca, não só no que toca a determinadas
questões tradicionais da Metafísica, como a analogia ou a relação entre essência
e existência, mas no que respeita à própria interpretação expressamente não
teológica da filosofia primeira e à manifesta exclusão da temática teodiceica do
seu âmbito, parece apontar justamente para um afastamento, porventura de raiz,
cm relação ao projecto progressivamente mais ideológico ou mesmo proselítico
do Curso Conimbricense.
E é finalmente certo que a pujança das Universidades de Coimbra e Évora e a
sua influência europeia, mesmo neste registo militante e contra-reformista, vai
misteriosamente esgotando-se sem deixar sementes de continuidade.
Mas o que é igualmente certo e não pode, por isso mesmo, ser posto em causa
por nenhuma das observações anteriores é a incontestável projecção de Pedro da
Fonseca na sua época, ainda nessa divergência com o programa do Curso
Conimbricense, e a relevância do próprio Curso, como momento histórico de
constituição de uma Escola, circunstância propriamente nunca repetida entre nós
até ao presente século.
Todavia, o que talvez mais decisivamente singularize a figura de Pedro da
Fonseca no todo da filosofia portuguesa é ainda um outro facto: a saber, o de,
uma vez mais ao contrário de Pedro Hispano e Francisco Sanches, o seu relevo
na época não se prolongar paradoxalmente até aos nossos dias. Com efeito, a
referência ao seu nome é hoje rara não só em histórias gerais da filosofia, como
até em obras dedicadas à Escolástica e aos seus temas, ao período renascentista
ou ao aristotelismo cm geral, para além de algumas excepções, em todo o caso
significativas, que muito embora se limitam a confirmar a regra.
Para isso poderá ter contribuído a desvinculação de Pedro da Fonseca em
relação ao projecto do Curso Conimbricense, mas principalmente a sua ofuscação
por Francisco Suárez, sem dúvida pela relevância intrínseca deste e pela sistematicidade patente da sua obra, mas decerto não menos também - o que é, no mínimo, curioso - pela circunstância de o seu original retorno ao tomismo funcionar
como o mais ortodoxo instrumento filosófico da Contra-Reforma, condição da
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sua rápida e generalizada propagação nos meios culturais e académicos a ela
ligados.
2. Na linha de alguns estudos portugueses dedicados a, ou também a, Pedro
da Fonseca (em especial: F. Stcgmüller, Filosofia e teologia nas Universidades
de Coimbra e Évora no séc. XVI, Coimbra, 1959; M . Baptista Pereira, Ser e
Pessoa - Pedro da Fonseca. I: o Método da Filosofia, Coimbra, 1967; A. A.
Coxito, Lógica, semântica e conhecimento na escolástica peninsular pré-renascentista, Coimbra, 1977; para além de um conjunto já significativo de
artigos, destes e outros autores), situa-se agora este Lógica e Ontologia em Pedro
da Fonseca, de António Manuel Martins.
O seu propósito expresso consiste na recuperação do pensamento de Pedro da
Fonseca, especificamente do ponto de vista da relação entre lógica e ontologia e
nomeadamente no que toca ao projecto de constituição de uma filosofia primeira,
mas na perspectiva de realçar, por um lado, a sua originalidade e, por outro, a sua
sistematicidade, tópicos que alcançam particular importância precisamente no
cotejo com Suárez, presença latente deste trabalho, quer enquanto a sistematicidade é em regra um atributo que se releva neste, negando-a ou diminuindo-a
naquele, quer porque a originalidade que se alega é justamente, antes de mais,
uma originalidade avant la lettre perante Suárez.
O trabalho apresenta desde logo duas grandes qualidades.
A primeira prende-se com a própria forma da investigação. Trata-se de uma
obra extremamente didáctica, num estilo muito claro e organizado, que permite
um primeiro contacto com o pensamento de Fonseca, ao mesmo tempo que vai
defrontando articulações filosóficas progressivamente mais complexas. Para
mais, esta apresentação do pensamento de Pedro da Fonseca, sem qualquer intuito de apologese, é acompanhada de uma permanente avaliação crítica, nunca
anacrónica porque simultaneamente contextual e aberta ao destino histórico dos
problemas, o que é enriquecido pela boa informação de que o autor faz uso, tanto
no que respeita à erudição contemporânea cm torno de Aristóteles, da Escolástica
ou de Pedro da Fonseca, quanto no que toca à colocação actual dos problemas
nela visados ou envolvidos, como sejam os da constituição de uma filosofia
primeira, da relação, neste âmbito, entre lógica e ontologia, etc.
A segunda qualidade refere-se à eficácia desta leitura, da perspectiva de uma
clarificação do pensamento de Pedro da Fonseca. Através dela, resulta com efeito
patenteada a originalidade da filosofia de Fonseca, não apenas como comentário
inovador de Aristóteles, senão que também como projecto metafísico próprio, no
quadro das grandes opções e soluções teóricas enunciadas pela tradição escolástica; do mesmo passo, é portanto enquanto abertura clarificadora para o texto e o
pensamento aristotélicos, como comentário escolástico específico c como
proposta filosófica original que a obra de Fonseca surge tematizada nesta investigação.
A este propósito, ó de realçar, a par de uma permanente atenção aos problemas da filosofia aristotélica e do aristotelismo medieval, a capacidade de revelar
a vinculação do pensamento de Fonseca ao programa e à mentalidade escolas-
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ticos, mesmo na sua vertente formalista e nas suas limitações próprias, ao mesmo
tempo que se aponta o emergente influxo renascentista e a tendência de modernidade que esse pensamento de um modo constitutivo simultaneamente inclui.
Menos tematizada é, contudo, a relação entre a obra de Fonseca e a filosofia
moderna, que o autor expressamente afasta do ângulo de consideração, e a sua
inclusão na história da filosofia em Portugal, nem sequer mencionada, mas que
ganharia pleno sentido à luz da reivindicada presença de Aristóteles como motivo
profundo daquilo a que Álvaro Ribeiro chamou a "tradição portuguesa".
3. O grosso deste estudo aborda apenas os Comentários à Metafísica de
Aristóteles, com exclusão da Isagoge Filosófica e das Instituições Dialécticas,
excepto para pequenos complementos pontuais.
Mais do que isto, estando aquela obra dividida em quatro secções (o texto
grego da Metafísica estabelecido pelo próprio Fonseca, a sua tradução latina,
uma explicação circunstanciada das diversas partes da obra e um conjunto de
questões, à maneira escolástica, constituídas a partir daquela interpretação), a
investigação não só aborda especialmente esta última, como segue frequentemente a ordem das questões, de modo a patentear mais claramente o nexo
conceptual que as percorre.
Com esta dupla decisão pretendeu o autor cingir-se à obra onde, através da
interpretação de Aristóteles, Pedro da Fonseca expõe a sua própria filosofia
(enquanto, para ele, todo "o estudo sério da problemática metafísica tem que
passar, necessariamente, pela mediação do texto aristotélico", p. 23) e, dentro
dela, ao local cujo modo interpretativo particular permite simultaneamente a
permanente referência a esse texto e o prolongamento reflexivo de uma questionação autónoma.
Para levar a cabo a sua apresentação, seleccionou o autor aqueles temas que
se revelam mais decisivos na metafísica de Fonseca e que são justamente também
aqueles que, pelo facto mesmo de avultarem igualmente no conjunto da filosofia
escolástica, mais claramente podem revelar a sua sistematicidade e originalidade
c bem assim as suas limitações.
Tais são: a determinação do objecto da Metafísica e a caracterização consequente do projecto que ela consigna; a análise do conceito de ente e a concepção
de analogia que lhe está subjacente; a distinção entre essência e existência; e a
doutrina dos transcendentais e das categorias, obrigando a um percurso pela
temática do princípio da não-contradição.
Segundo a ordem expressa da interpretação, o pólo axial desta sequência é
sem dúvida a análise do conceito de ente, enquanto objecto da Metafísica. Pois é
a determinação do objecto da Metafísica como "o ente enquanto é comum a Deus
e às criaturas que conduzirá à necessidade de tematizar a analogia, na sua
multiplicidade de sentidos e, nomeadamente, enquanto relação particular de
"comunidade" entre Deus e as criaturas em que o "ente" propriamente consiste,
tematizaçâo que por sua vez conduzirá à noção de um primado absoluto da
essência, como, ela mesma, princípio possibilitante de existência, e, portanto, ao
cerne mesmo deste binómio. A esta luz, o ciclo percorrido pela investigação
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completar-se-ia com a análise dos transcendentais e, em especial, do transcendental "verdadeiro'', que estabelece o princípio de não-contradição como único
limite à possibilidade de existência e, portanto, como fecho e confirmação do
essencialismo absoluto de Fonseca.
Seguindo, todavia, a sua ordem profunda, isto é, o que de mais profundo
revela sobre a filosofia de Pedro da Fonseca, talvez que o seu ponto de charneira
seja precisamente o próprio conceito de existência, quer enquanto ele constitui
claramente o pólo de articulação entre todas as questões abordadas e o "fundo"
para onde converge toda a análise, quer na medida em que é da prévia determinação da noção de existência que depende o estabelecimento do primado da
essência e, por aí, a determinação do sentido de "ente", no que ele "tem de
comum a Deus c às criaturas", isto é, enquanto justamente c ente.
Ora, esta dupla ordem da obra permite circunscrever com clareza as suas
vertentes mais luminosas e mais sombrias.
Se é sem dúvida fundamental o desenvolvimento em torno da noção de filosofia primeira e o seu objecto, do conceito de analogia e das relações essência/existência e categorias/transcendentais, nomeadamente do ponto de vista de
um confronto com Aristóteles e a Escolástica, e particularmente proveitosa a
análise das posições contemporâneas acerca do problema da constituição de uma
filosofia contemporânea, faltaria, em nosso entender, uma mais directa e profunda atenção às consequências ontológicas da tematização da existência em Pedro
da Fonseca, designadamente enquanto ela parece constitutivamente afirmar-se a
partir de uma distinção fundamental entre ser e existir (patente, por exemplo, na
referência aos entes fictícios - cf. p. 268 e, em geral, p. 274) e à luz da qual
ganharia pleno sentido o tácito platonismo que o autor reiteradamente atribui a
Fonseca.
Menos conseguido no todo da obra nos parece ser também a discussão com
Gilson acerca da distinção essência/existência (pp. 194-202), que mereceria pelo
menos uma análise mais prolongada, e o estabelecimento do conceito aristotélico
de substância no interior do quadro das categorias (cf. pp. 241-242, mas, em
geral, pp. 236 ss.), que dilui antecipadamente o problema que já em Aristóteles
permeia a determinação do seu estatuto, individual ou específico, e se prolonga
implicitamente no próprio Fonseca, perante a sua opção por uma individuação
pela forma, aliás no horizonte daquele seu absoluto essencialismo, questão
também praticamente ignorada.
António Pedro Mesquita
ANNE CAUQUELIN, Aristote. Le Langage, Paris. PUF, 1990.
O aspecto mais interessante deste livro de Anne Cauquclin é o modo como a
autora relaciona uma série de temáticas, centrando-as à volta do problema da
linguagem, nomeadamente dos seus aspectos pragmáticos (de acordo com os
interesses do próprio Aristóteles, segundo a opinião da autora - v. p. 9).
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