Uma nova visão mundial do oceano

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Mário Soares
Ex-Presidente da República,
Presidente da Fundação
Mário Soares
Uma nova visão mundial
do oceano
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O artigo faz um balanço positivo – embora assinalando lacunas, sobretudo quanto aos aspectos institucionais –
do caminho percorrido desde a elaboração, pela Comissão Mundial Independente para os Oceanos (CMIO), do
Relatório “O Oceano – Nosso Futuro”, apresentado em 1998 ao Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi
Annan. Salienta o longo processo para se alcançar o reconhecimento formal, pela comunidade mundial,
da necessidade de instrumentos fundamentais para a eficaz governação e desenvolvimento sustentável do Oceano.
O Novo Regime do Oceano deverá ser inspirado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, mas
integrando as recentes evoluções, em termos científicos, tecnológicos e ambientais, bem como a crescente exploração dos recursos marinhos. O texto destaca a actualidade de algumas sugestões formuladas no Relatório da
CMIO, nomeadamente quanto a novas formas de cooperação abertas à participação de todas as partes interessadas, ao estatuto do Alto Mar, como espaço sob tutela pública, à utilização dos Mares num contexto de paz e
segurança, a criação de um Observatório Mundial dos Assuntos do Oceano, como sistema independente de
informação e análise neste domínio. O artigo termina com um apelo para que o acompanhamento e a implementação de uma Estratégia Nacional para o Oceano sejam assegurados ao mais alto nível institucional, com o
envolvimento activo da sociedade civil e dos grupos de interesse com vista a mobilizar a adesão dos cidadãos.
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The article makes a positive analysis – although highlighting omissions especially with regard to institutional
aspects – of the path taken since the preparation by the Independent World Commission for the Oceans
(CMIO) of the Report “The Ocean – Our Future”, presented in 1998 to the Secretary General of the
United Nations, Kofi Annan. It highlights the long process to achieve formal recognition by the World
Community of the need for fundamental instruments for the effective governance and sustainable development
of the Ocean. The New Regime of the Ocean should be inspired by the United Nations Convention on the
Law of the Sea, but including recent progress in scientific, technological and environmental terms, as well as
the growing use of marine resources. The text points out the current situation of some suggestions made in
the CMIO Report, specifically with regard to new forms of cooperation open to the participation of all
interested parties, to the statute of the High Seas, as a space under public tutelage, the use of the Seas within
the context of peace and security, the creation of a World Observatory of Ocean Affairs as an independent
system of information and analysis in this area. The article ends with an appeal for the monitoring and
implementation of a National Strategy for the Ocean to be made at the highest institutional level, with the
active involvement of civil society and of interest groups aimed at mobilising the adhesion of citizens.
P
ara quem tenha acompanhado o longo processo negocial conducente à
assinatura (1982) da Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do
Mar e à sua entrada em vigor, em
1994, e seguido atentamente os desenvolvimentos ulteriores, o processo oferece um balanço
positivo e, apesar das lacunas observadas, é
encorajador. Confirma, uma vez mais, quanta
persistência é necessária para que ideias e conceitos inovadores sejam formalmente reconhecidos pela comunidade mundial e integrados
em instrumentos fundamentais, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do
Mar (CNUDM).
Aqueles que estiveram activamente envolvidos na criação e nas actividades da Comissão
Mundial Independente para os Oceanos
(CMIO) – à qual presidi e de que foi coordenador o Prof. Mário Ruivo – e, como nós, tiveram a honra de apresentar publicamente o Relatório “O Oceano – Nosso Futuro”1 na altura
da Exposição Mundial de Lisboa, em 1998, estão em condições de analisar o caminho percorrido, desde então, para dar forma ao Novo Regime do Oceano, o qual deverá ser inspirado na
Convenção, sem dúvida. Porém, aberto à evolução que, na última década, teve lugar graças
ao progresso da investigação científica e tecnológica como fonte de conhecimento do Oceano
e das suas aplicações para fins de desenvolvimento e dinâmica económica, com os impactos ambientais que todos conhecemos. Entre
estes avultam, pelas suas consequências, as variações climáticas, derivadas do efeito de estufa,
susceptíveis de afectarem os grandes processos
naturais do planeta e com fortes implicações
para a Humanidade.
Quando apresentámos o Relatório da CMIO
ao Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi
Annan e, seguidamente, este documento foi
levado à atenção da Assembleia Geral, a par da
convergência sobre muitas das conclusões e
linhas de acção propostas, houve – como de
resto seria de esperar – dúvidas e, mesmo, reservas por parte de alguns sectores mais tradicionais quanto a algumas das ideias inovadoras nele contidas para a governação e o
desenvolvimento sustentável do Oceano, num
contexto de respeito pelo Direito Internacio-
nal, pela equidade e pela solidariedade entre
Estados e Povos.
Mencionarei, pela sua actualidade, alguns dos
pontos tratados e das sugestões formuladas no
Relatório da CMIO:
i) O apelo para “avançar com o processo
de mudança e inovação no seio do sistema das Nações Unidas” e para que se
promova “o mais brevemente possível
uma Conferência das Nações Unidas
sobre a questão dos Oceanos”, que permita fazer o ponto da situação e identificar linhas de acção visando formas
avançadas de cooperação.
ii) Medidas que contribuam para a utilização dos Mares para fins pacíficos, chamando a atenção para que, na situação
actual, a “liberdade ilimitada das forças
navais e o seu próprio entendimento
dos interesses de segurança se revele
contraditório com a promoção da paz e
da segurança nos oceanos e se oponha
ao poder regulamentador dos Estados
costeiros”.
iii) Tendo em conta que “a paz e a segurança nos oceanos seriam seguramente favorecidos pela aplicação efectiva das disposições da Convenção e dos seus
acordos de aplicação por todos os Estados”, sublinhava-se que “o Alto Mar
não pode ser apropriado por nenhum
Estado, e que deve ser reservado para
utilizações benéficas e de interesse para
a comunidade mundial”. Considerou-se, assim, que “o conceito mais adequado para o Alto Mar parece ser o de espaço de tutela pública”. Reconheceu-se,
porém, que “na aplicação daquele conceito ainda há muito que esclarecer”, deixando, assim, aberto um vasto espaço
de negociação preferencialmente no âmbito da Organização das Nações Unidas.
iv) Afirmou-se, ainda, que para uma eficaz
governação do Oceano “institucionalmente a Assembleia-Geral continua a ser
o fórum competente para analisar os desenvolvimentos gerais relacionados com
o Direito do Mar”.
v) Com vista a contribuir para o desenvolvimento do novo sistema de governação do
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oceano, concluiu-se ser necessário estabelecer arranjos institucionais que promovam
a participação e o envolvimento de todas
as partes interessadas na causa do Oceano,
facilitando o acesso à informação e a participação nos processos de decisão. Nesta
perspectiva, foi proposta “a criação de um
Observatório Mundial dos Assuntos do
Oceano para acompanhar, de forma independente, o sistema de governação do
Oceano e manter uma vigilância contínua
e permanente sobre aspectos relevantes dos
Assuntos do Mar”. Projecto que conseguimos, ulteriormente, levar até à fase de
elaboração de estudos preparatórios (formulação de objectivos, funções e estrutura
operacional) e que aguarda condições que
permitam iniciar projectos-piloto para testar a funcionalidade do sistema. Estará o
Governo português preparado para ajudar à criação deste Observatório, ao serviço da Comunidade Mundial de modo a
anunciá-lo quando da Presidência Portuguesa da União Europeia?
Ao fazer este balanço da situação, tenho presente o processo global, em curso, respeitante
aos Assuntos do Oceano, o qual, entre outros
desenvolvimentos significativos, tem sido pautado, nos últimos anos, pela inclusão regular
deste tema na Agenda da Assembleia-Geral das
Nações Unidas, centrado sobre o Relatório periódico do Secretário-geral, fazendo regularmente o ponto da situação numa perspectiva intersectorial. Neste contexto, é de notar a atenção
dedicada e a urgência em melhorar a troca de
informações e a coordenação em Assuntos do
Oceano entre as Agências especializadas e os
Programas do sistema das Nações Unidas, bem
como incentivar a cooperação e a parceria em
projectos de interesse mútuo. Em particular,
com base em áreas oceânicas bem definidas, enquadradas numa visão sistémica e ecológica e
tendo como objectivo o desenvolvimento sustentável. Nesse aspecto, seria útil criar-se uma
task force para acompanhar os próximos desenvolvimentos e aconselhar os decisores políticos que têm a responsabilidade de decidir.
Paralelamente, no âmbito da União Europeia, têm-se verificado desenvolvimentos positivos conducentes a uma nova Política Co-
mum de Pescas, à entrada em vigor da Directiva-Quadro sobre a Água que articula as bacias
hidrográficas com a zona costeira e, mais recentemente, a adopção de uma Estratégia Marítima Europeia – considerada como o pilar
ambiental para o oceano. Nesta perspectiva, é
particularmente relevante o “Green Paper –
Towards a future Maritime Policy for the Union: A European vision for the oceans and
seas”, elaborado sob a liderança do comissário Joe Borg, em debate público até meados
de 2007. Qual será a contribuição portuguesa,
expressa em propostas concretas? Espera-se
que este processo conduza à formulação de
uma política comum europeia competitiva e
virada para o futuro, apoiada no conhecimento científico e na inovação, tendo como objectivo um desenvolvimento económico e social
em harmonia com o ambiente.
Deste breve panorama concluirei que se, por
um lado, é preciso “dar tempo ao tempo” é
importante, por outro lado, estimular uma intervenção activa e coerente da sociedade civil,
motivada pelos princípios, valores e práticas da
democracia.
Nesta perspectiva, cabe-nos prosseguir as iniciativas tomadas desde 1998, período fulcral
para a dinamização dos Assuntos do Oceano
em Portugal, conducente à formulação de uma
Estratégia Nacional para o Oceano – para os
mais tradicionalistas, para o Mar – ou, se voltássemos a usar uma expressão dominante na
Era das Descobertas, para o “Mar Oceano”.
Estratégia cujo conteúdo foi recentemente aprovado na sequência de breve debate público e
que, nesta fase, terá como instrumento uma
Comissão de Coordenação Interministerial que
garantirá “de modo permanente” a articulação
intergovernamental “mantendo as competências e áreas de acção vertical e sectorial de cada
tutela” (Resolução do Conselho de Ministros
n.º 451/2006, de 15 de Novembro de 2006).
Embora aquém do que seria de esperar quanto aos aspectos institucionais, estamos confiantes que se ultrapassará a fragmentação sectorial que tem caracterizado este sector. Urge, pois,
aproveitar as condições favoráveis ao aprofundamento e implementação da Estratégia, assim como o debate sobre o “Green Paper”,
mediante um envolvimento activo da socieda-
de civil e dos grupos mais directamente interessados, para que se possa ultrapassar a mera cooperação baseada na complementaridade de
mandatos e estabelecer formas apropriadas de
coordenação. Este processo, dada a natureza
transversal das questões do Oceano, requer que
a futura estrutura de acompanhamento seja estabelecida sob a égide da Assembleia da República ou a nível do Primeiro-ministro.
Trata-se de um processo que requer um amplo debate público e a adesão dos cidadãos
para que venha a ser mobilizador constituin-
do, assim, um verdadeiro projecto nacional,
como expressámos há alguns anos. Vemos
agora, com satisfação, que esta ideia foi assumida na Resolução do Conselho de Ministros.
Esta, com efeito, visa assegurar o desenvolvimento sustentável do Oceano e torná-lo compatível com a salvaguarda do ambiente, respeitando os direitos das gerações vindouras e
garantindo que “Portugal se mantém na vanguarda da nova abordagem dos Assuntos do
Mar a nível europeu, através de uma participação esclarecida, eficaz e abrangente”.
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Comissão Mundial Independente para os Oceanos. O Relatório da Comissão Mundial Independente para os
Oceanos: O Oceano, Nosso Futuro. Cambridge University
Press, 1998, 247 pp.
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