Mário Soares Ex-Presidente da República, Presidente da Fundação Mário Soares Uma nova visão mundial do oceano 27 O artigo faz um balanço positivo – embora assinalando lacunas, sobretudo quanto aos aspectos institucionais – do caminho percorrido desde a elaboração, pela Comissão Mundial Independente para os Oceanos (CMIO), do Relatório “O Oceano – Nosso Futuro”, apresentado em 1998 ao Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Salienta o longo processo para se alcançar o reconhecimento formal, pela comunidade mundial, da necessidade de instrumentos fundamentais para a eficaz governação e desenvolvimento sustentável do Oceano. O Novo Regime do Oceano deverá ser inspirado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, mas integrando as recentes evoluções, em termos científicos, tecnológicos e ambientais, bem como a crescente exploração dos recursos marinhos. O texto destaca a actualidade de algumas sugestões formuladas no Relatório da CMIO, nomeadamente quanto a novas formas de cooperação abertas à participação de todas as partes interessadas, ao estatuto do Alto Mar, como espaço sob tutela pública, à utilização dos Mares num contexto de paz e segurança, a criação de um Observatório Mundial dos Assuntos do Oceano, como sistema independente de informação e análise neste domínio. O artigo termina com um apelo para que o acompanhamento e a implementação de uma Estratégia Nacional para o Oceano sejam assegurados ao mais alto nível institucional, com o envolvimento activo da sociedade civil e dos grupos de interesse com vista a mobilizar a adesão dos cidadãos. 28 The article makes a positive analysis – although highlighting omissions especially with regard to institutional aspects – of the path taken since the preparation by the Independent World Commission for the Oceans (CMIO) of the Report “The Ocean – Our Future”, presented in 1998 to the Secretary General of the United Nations, Kofi Annan. It highlights the long process to achieve formal recognition by the World Community of the need for fundamental instruments for the effective governance and sustainable development of the Ocean. The New Regime of the Ocean should be inspired by the United Nations Convention on the Law of the Sea, but including recent progress in scientific, technological and environmental terms, as well as the growing use of marine resources. The text points out the current situation of some suggestions made in the CMIO Report, specifically with regard to new forms of cooperation open to the participation of all interested parties, to the statute of the High Seas, as a space under public tutelage, the use of the Seas within the context of peace and security, the creation of a World Observatory of Ocean Affairs as an independent system of information and analysis in this area. The article ends with an appeal for the monitoring and implementation of a National Strategy for the Ocean to be made at the highest institutional level, with the active involvement of civil society and of interest groups aimed at mobilising the adhesion of citizens. P ara quem tenha acompanhado o longo processo negocial conducente à assinatura (1982) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e à sua entrada em vigor, em 1994, e seguido atentamente os desenvolvimentos ulteriores, o processo oferece um balanço positivo e, apesar das lacunas observadas, é encorajador. Confirma, uma vez mais, quanta persistência é necessária para que ideias e conceitos inovadores sejam formalmente reconhecidos pela comunidade mundial e integrados em instrumentos fundamentais, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). Aqueles que estiveram activamente envolvidos na criação e nas actividades da Comissão Mundial Independente para os Oceanos (CMIO) – à qual presidi e de que foi coordenador o Prof. Mário Ruivo – e, como nós, tiveram a honra de apresentar publicamente o Relatório “O Oceano – Nosso Futuro”1 na altura da Exposição Mundial de Lisboa, em 1998, estão em condições de analisar o caminho percorrido, desde então, para dar forma ao Novo Regime do Oceano, o qual deverá ser inspirado na Convenção, sem dúvida. Porém, aberto à evolução que, na última década, teve lugar graças ao progresso da investigação científica e tecnológica como fonte de conhecimento do Oceano e das suas aplicações para fins de desenvolvimento e dinâmica económica, com os impactos ambientais que todos conhecemos. Entre estes avultam, pelas suas consequências, as variações climáticas, derivadas do efeito de estufa, susceptíveis de afectarem os grandes processos naturais do planeta e com fortes implicações para a Humanidade. Quando apresentámos o Relatório da CMIO ao Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan e, seguidamente, este documento foi levado à atenção da Assembleia Geral, a par da convergência sobre muitas das conclusões e linhas de acção propostas, houve – como de resto seria de esperar – dúvidas e, mesmo, reservas por parte de alguns sectores mais tradicionais quanto a algumas das ideias inovadoras nele contidas para a governação e o desenvolvimento sustentável do Oceano, num contexto de respeito pelo Direito Internacio- nal, pela equidade e pela solidariedade entre Estados e Povos. Mencionarei, pela sua actualidade, alguns dos pontos tratados e das sugestões formuladas no Relatório da CMIO: i) O apelo para “avançar com o processo de mudança e inovação no seio do sistema das Nações Unidas” e para que se promova “o mais brevemente possível uma Conferência das Nações Unidas sobre a questão dos Oceanos”, que permita fazer o ponto da situação e identificar linhas de acção visando formas avançadas de cooperação. ii) Medidas que contribuam para a utilização dos Mares para fins pacíficos, chamando a atenção para que, na situação actual, a “liberdade ilimitada das forças navais e o seu próprio entendimento dos interesses de segurança se revele contraditório com a promoção da paz e da segurança nos oceanos e se oponha ao poder regulamentador dos Estados costeiros”. iii) Tendo em conta que “a paz e a segurança nos oceanos seriam seguramente favorecidos pela aplicação efectiva das disposições da Convenção e dos seus acordos de aplicação por todos os Estados”, sublinhava-se que “o Alto Mar não pode ser apropriado por nenhum Estado, e que deve ser reservado para utilizações benéficas e de interesse para a comunidade mundial”. Considerou-se, assim, que “o conceito mais adequado para o Alto Mar parece ser o de espaço de tutela pública”. Reconheceu-se, porém, que “na aplicação daquele conceito ainda há muito que esclarecer”, deixando, assim, aberto um vasto espaço de negociação preferencialmente no âmbito da Organização das Nações Unidas. iv) Afirmou-se, ainda, que para uma eficaz governação do Oceano “institucionalmente a Assembleia-Geral continua a ser o fórum competente para analisar os desenvolvimentos gerais relacionados com o Direito do Mar”. v) Com vista a contribuir para o desenvolvimento do novo sistema de governação do 29 30 oceano, concluiu-se ser necessário estabelecer arranjos institucionais que promovam a participação e o envolvimento de todas as partes interessadas na causa do Oceano, facilitando o acesso à informação e a participação nos processos de decisão. Nesta perspectiva, foi proposta “a criação de um Observatório Mundial dos Assuntos do Oceano para acompanhar, de forma independente, o sistema de governação do Oceano e manter uma vigilância contínua e permanente sobre aspectos relevantes dos Assuntos do Mar”. Projecto que conseguimos, ulteriormente, levar até à fase de elaboração de estudos preparatórios (formulação de objectivos, funções e estrutura operacional) e que aguarda condições que permitam iniciar projectos-piloto para testar a funcionalidade do sistema. Estará o Governo português preparado para ajudar à criação deste Observatório, ao serviço da Comunidade Mundial de modo a anunciá-lo quando da Presidência Portuguesa da União Europeia? Ao fazer este balanço da situação, tenho presente o processo global, em curso, respeitante aos Assuntos do Oceano, o qual, entre outros desenvolvimentos significativos, tem sido pautado, nos últimos anos, pela inclusão regular deste tema na Agenda da Assembleia-Geral das Nações Unidas, centrado sobre o Relatório periódico do Secretário-geral, fazendo regularmente o ponto da situação numa perspectiva intersectorial. Neste contexto, é de notar a atenção dedicada e a urgência em melhorar a troca de informações e a coordenação em Assuntos do Oceano entre as Agências especializadas e os Programas do sistema das Nações Unidas, bem como incentivar a cooperação e a parceria em projectos de interesse mútuo. Em particular, com base em áreas oceânicas bem definidas, enquadradas numa visão sistémica e ecológica e tendo como objectivo o desenvolvimento sustentável. Nesse aspecto, seria útil criar-se uma task force para acompanhar os próximos desenvolvimentos e aconselhar os decisores políticos que têm a responsabilidade de decidir. Paralelamente, no âmbito da União Europeia, têm-se verificado desenvolvimentos positivos conducentes a uma nova Política Co- mum de Pescas, à entrada em vigor da Directiva-Quadro sobre a Água que articula as bacias hidrográficas com a zona costeira e, mais recentemente, a adopção de uma Estratégia Marítima Europeia – considerada como o pilar ambiental para o oceano. Nesta perspectiva, é particularmente relevante o “Green Paper – Towards a future Maritime Policy for the Union: A European vision for the oceans and seas”, elaborado sob a liderança do comissário Joe Borg, em debate público até meados de 2007. Qual será a contribuição portuguesa, expressa em propostas concretas? Espera-se que este processo conduza à formulação de uma política comum europeia competitiva e virada para o futuro, apoiada no conhecimento científico e na inovação, tendo como objectivo um desenvolvimento económico e social em harmonia com o ambiente. Deste breve panorama concluirei que se, por um lado, é preciso “dar tempo ao tempo” é importante, por outro lado, estimular uma intervenção activa e coerente da sociedade civil, motivada pelos princípios, valores e práticas da democracia. Nesta perspectiva, cabe-nos prosseguir as iniciativas tomadas desde 1998, período fulcral para a dinamização dos Assuntos do Oceano em Portugal, conducente à formulação de uma Estratégia Nacional para o Oceano – para os mais tradicionalistas, para o Mar – ou, se voltássemos a usar uma expressão dominante na Era das Descobertas, para o “Mar Oceano”. Estratégia cujo conteúdo foi recentemente aprovado na sequência de breve debate público e que, nesta fase, terá como instrumento uma Comissão de Coordenação Interministerial que garantirá “de modo permanente” a articulação intergovernamental “mantendo as competências e áreas de acção vertical e sectorial de cada tutela” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 451/2006, de 15 de Novembro de 2006). Embora aquém do que seria de esperar quanto aos aspectos institucionais, estamos confiantes que se ultrapassará a fragmentação sectorial que tem caracterizado este sector. Urge, pois, aproveitar as condições favoráveis ao aprofundamento e implementação da Estratégia, assim como o debate sobre o “Green Paper”, mediante um envolvimento activo da socieda- de civil e dos grupos mais directamente interessados, para que se possa ultrapassar a mera cooperação baseada na complementaridade de mandatos e estabelecer formas apropriadas de coordenação. Este processo, dada a natureza transversal das questões do Oceano, requer que a futura estrutura de acompanhamento seja estabelecida sob a égide da Assembleia da República ou a nível do Primeiro-ministro. Trata-se de um processo que requer um amplo debate público e a adesão dos cidadãos para que venha a ser mobilizador constituin- do, assim, um verdadeiro projecto nacional, como expressámos há alguns anos. Vemos agora, com satisfação, que esta ideia foi assumida na Resolução do Conselho de Ministros. Esta, com efeito, visa assegurar o desenvolvimento sustentável do Oceano e torná-lo compatível com a salvaguarda do ambiente, respeitando os direitos das gerações vindouras e garantindo que “Portugal se mantém na vanguarda da nova abordagem dos Assuntos do Mar a nível europeu, através de uma participação esclarecida, eficaz e abrangente”. 31 1 Comissão Mundial Independente para os Oceanos. O Relatório da Comissão Mundial Independente para os Oceanos: O Oceano, Nosso Futuro. Cambridge University Press, 1998, 247 pp.