Antonin Artaud. - Experimentos em Performance

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Antonin Artaud
"Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu diga
como sei dizê-lo
Imediatamente
vocês verão meu corpo atual partir em mil pedaços
e se recompor
sob dez mil aspectos notórios
um corpo novo
onde vocês não poderão
nunca mais
me esquecer"
Carta aos Diretores de Asilos de Loucos
Antonin Artaud
Senhores:
As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de
medir o espirito. Esta jurisdição soberana e
terrível, vocês a exercem segundo seus próprios
padrões de entendimento.
Não nos façam rir. A credualidade dos povos
civilizados, dos especialistas, dos governantes,
reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes
sobrenaturais. A profissão que vocês exercem esta
julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o
valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das
doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas
patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria
e do espirito, para cada cem classificações, onde as
mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas
tentativas nobres se contam para conseguir melhor
compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que
vocês encarceraram?
Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho
do demente precoce ou as imagens que o perseguem são
algo mais que uma salada de palavras? Não nos
surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados
em uma tarefa para a qual só existe muito poucos
predestinados. Porém não nos rebelamos contra o
direito concedido a certos homens - capazes ou não de dar por terminadas suas investigações no campo do
espirito com um veredicto de encarceramento perpétuo.
E que encerramento! Sabe-se - nunca se saberá o
suficiente - que os asilos, longe de ser "asilos",
são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mãode-obra gratuita e cômoda, e onde a brutalidade è
norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício de
alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, è
comparável aos quartéis, aos cárceres, as
penitenciarias. Não nos referimos aqui as internações
arbitrárias, para lhes evitar o incomodo de um fácil
desmentido. Afirmamos que grande parte de seus
internados - completamente loucos segundo a definição
oficial - estão também reclusos arbitrariamente. E
não podemos admitir que se impeça o livre
desenvolvimento de um delírio, tão legitimo e lógico
como qualquer outra serie de idéias e atos humanos. A
repressão das reações anti-sociais, em principio, è
tão quimérica como inaceitável. Todos os atos
individuais são anti-sociais. Os loucos são as
vitimas individuais por excelência da ditadura
social. E em nome dessa individualidade, que è
patrimônio do homem, reclamamos a liberdade desses
forcados das galés da sensibilidade, já que não se
está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a
todos que pensam e trabalham. Sem insistir no caráter
verdadeiramente genial das manifestações de certos
loucos, na medida de nossa capacidade para avaliàlas, afirmamos a legitimidade absoluta de sua
concepção da realidade e de todos os atos que dela
derivam.
Esperamos que amanha de manha, na hora da visita
medica, recordem isto, quando tratarem de conversar
sem dicionário com esses homens sobre os quais reconheçam - só tem a superioridade da forca.
Mensagem ao Papa
Antonin Artaud
Não és tu o confessionário, oh Papa! Somos nós;
compreende-nos, e que os católicos nos compreendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, incentivas a
venda das almas e a livre trituração dos corpos.
Entre nossa alma e nós mesmos, temos que percorrer
muitos caminhos, que venham a interpor se teus
vacilantes sacerdotes e esse acumulo de aventuradas
doutrinas com que se nutrem todos os castrados do
liberalismo mundial. A teu deus católico e cristão
que como os outros deuses concebeu todo o mal )2
ptos(
1. Tu o meteste no bolso.
2. Nada temos que fazer com teus cânones, índex,
pecados, confessionários, clerigalham.
Pensamos em outra guerra, uma guerra contra ti, Papa,
cachorro.
Aqui o espirito se confessa ao espirito. Da cabeça
aos pés de tua farsa romana, o ódio triunfa sobre as
verdades imediatas da alma, sobre essas chamas que
consomem o próprio espirito. Não ha Deus, Bíblia ou
Evangelho, ano ha palavras que detenham ao espirito.
Não estamos no mundo. Oh Papa confinado no mundo! Nem
a terra, nem Deus falam de ti.
O mundo e o abismo da alma! Papa aleijado, Papa
alheio a alma. Deixa nos nadar em nossos corpos,
deixa nossas almas em nossas almas. Não necessitamos
de tua espada de claridades.
ANTONIN ARTAUD: LOUCURA E LUCIDEZ, TRADIÇÃO
E MODERNIDADE - CLAUDIO WILLER
Em O Teatro e seu duplo, obra na qual apresenta o
conjunto de idéias que constituíram o teatro da
crueldade, Antonin Artaud defende uma linguagem que
pudesse exprimir objetivamente verdades secretas. Uma
linguagem mais concreta que a utilizada para falar da
esfera psicológica: mudar a finalidade da palavra no
teatro é servir-se dela em um sentido concreto e
espacial, combinando-a com tudo o que o teatro contém
de especial e de significação em um domínio concreto;
é manipulá-la como objeto sólido, capaz de abalar as
coisas inicialmente no ar, e em seguida em um domínio
mais misterioso e mais secreto.
Por isso, o teatro da crueldade é um ritual,
valorizando o gestual e o objeto, trocando o lugar de
palco e platéia. Em outras de suas obras, como
Heliogábalo, O anarquista coroado e Viagem ao país
dos Taraumaras, criou uma recíproca desse teatro, uma
espécie de semiologia onde as coisas têm significado
e formam discursos. A leitura de Viagem ao país dos
Taraumaras, e do que escreveu depois sobre o ritual
do peiote, mostra que esse rito do sol negro foi,
para ele, a mais autêntica realização do teatro da
crueldade.
Em uma das Cartas de Rodez, quando esteve internado
nessa instituição psiquiátrica em 1945, Artaud
responde a Henry Parisot, que lhe havia mandado o
Jabberwocky (Jaguadarte) de Lewis Carroll (obra na
qual é inventada a palavra-baú) perguntando-lhe se
não queria traduzi-la. Diz que não, que Lewis Carroll
não tem uma visão fecal do ser, e o acusa de haver
roubado um texto seu: tendo escrito um texto como
Letura d'Eprahi Talli Tetr Fendi Photia O Fotre Indi,
não posso tolerar que a sociedade atual (…) só me
deixe traduzir um outro feito a sua imitação. (…)
Aqui estão alguns experimentos de linguagem aos quais
a linguagem desse livro antigo devia assemelhar-se.
Mas que só podem ser lidos se escandidos em um ritmo
que o próprio leitor deverá achar para entender e
para pensar:
ratara ratara ratara
atara tatara rana
otara otara katara
otara retara kana
ortura ortura konara
kokona kokona koma
kurbura kurbura kurbura
kurbata kurbata keyna
pesti anti pestantum putara
pest anti pestantum putra
Há outros exemplos dessa linguagem em Artaud, em sua
fase pós-internamento. Mas ele não a inventou: o uso
de fonemas não-semantizados é arcaico. Octavio Paz,
no ensaio Leitura e Contemplação (publicado na
coletânea Convergências), trata das glossolálias, o
"falar línguas", expressão de estados alterados de
consciência por gnósticos e outras doutrinas
místicas. Analisa o modo como reaparecem em autores
modernos – Huidobro, Khlebnikov, Fargue, Michaux,
Hugo Ball e Artaud: na história da poesia moderna,
reaparece a mesma obsessão dos gnósticos e dos
cristãos primitivos, dos montanistas e dos xamãs da
Ásia e da América: a busca de uma linguagem anterior
a todas as linguagens, e que restabeleça a unidade do
espírito. Embora intraduzível para tal ou qual
significação, essa linguagem não carece de sentido.
Mais exatamente: aquilo que enuncia não está antes,
mas depois da significação. Não é um balbuciar présignificativo: é uma realidade ao mesmo tempo física
e espiritual, audível e mental, que transpôs os
domínios do significado e os incendiou.
O paralelo entre a escrita de Artaud e idéias
gnósticas e herméticas também é apontado por Susan
Sontag, comentando as passagens, em Artaud, nas quais
as palavras são tratadas primariamente como material
(som): elas têm um valor mágico. A atenção ao som e
forma das palavras, como distinta de seu significado,
é um elemento do ensinamento cabalístico do Zohar,
que Artaud estudou na década de trinta. Isso é
evidente em textos como Para acabar com o julgamento
de Deus, onde afirma que toda verdadeira linguagem é
ininteligível, e exemplifica com glossolálias: potam
am cram/ katanam anankreta/ karaban kreta/ tanamam
anangteta/ konaman kreta/ e pustulam orentam/ taumer
dauldi faldisti. Para acabar… é um catecismo de
heresias. Afirma que onde cheira a merda, cheira a
ser, perguntando, em uma suprema blasfêmia: É deus um
ser?/ Se o for, é merda. São blasfêmias ditas a
partir de um ponto/ em que me vejo forçado/ a dizer
não,/ NÃO/ à negação. A liberdade está no avesso:
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas/ como no
delírio dos bailes populares/ e esse avesso será/ seu
verdadeiro lugar.
Semelhante escrita do avesso é uma sobrevivência de
idéias gnósticas, nascidas nas areias da Palestina,
inventadas por um concorrente do Cristo, Simão o
Mago, para depois se disseminarem em remotos séculos
I e II, por seitas que buscavam formar religiões
secretas, principalmente no Egito, convivendo com o
neoplatonismo e o hermetismo. Os crentes na criação
do mundo por uma divindade decaída, o Demiurgo, e na
salvação humana pela obtenção de um conhecimento
resultando, não da adesão, mas da luta contra Deus.
Para alguns, pela adoção de um código moral às
avessas. Desapareceram diante da organização
teológica e política do cristianismo, perseguidos e
combatidos como hereges, para reaparecer na Idade
Média como bogomilos e, no século XIII, como cátaros
da Provença, exterminados militarmente. A inversão da
história do Jardim do Éden, na qual a serpente é
portadora, não da perdição, porém da sabedoria, além
de se manter em cultos demoníacos da Idade Média e da
Renascença, aparece na criação literária como adesão
ao avesso, fascinação romântica e pós-romântica pelo
desafio, não apenas à ordem social, mas universal. A
permanência da heresia como sombra da História é a
expressão da revolta contra um mundo e uma sociedade
onde tudo está errado, fora do lugar. Por isso,
engendrado por um ente maligno, o Demiurgo. William
Blake, que acreditava em um Deus ruim e opressor, em
conflito com um Deus bom, é um escritor antecipado
pela Gnose, mais que pelo paganismo. Assim como, a
seu modo, Baudelaire, Nerval, Lautréamont, Jarry e
Artaud.
Cosmogonias invertidas, glossolálias e pensamento
mágico também comparecem nos delírios, nos surtos
psicóticos. Diferentes sociedades em diferentes
épocas tiveram suas representações da loucura e
lugares para o louco. É possível mostrar que no xamã,
sacerdote tribal primitivo, os três lugares são o
mesmo. Confundem-se também em William Blake, que
conversava com profetas bíblicos. A loucura de Artaud
consistiu em ele ter sido um personagem de si mesmo,
identificando obra e vida. Inspirado em seus textos,
praticou-os na vida real, como no famoso episódio,
relatado por Anais Nin, da palestra (O Teatro e a
peste, de O teatro e seu duplo), em que declarou que
não iria falar da peste, porém mostrá-la, encarnando
o empesteado, sofrendo, contorcendo-se até cair no
chão, de forma tão chocante que esvaziou o auditório.
Ou nas ocasiões em que afirmou que Paris era Roma
antiga e ele, Artaud, era Heliogábalo.
Identificar linguagem e realidade, querer que o
símbolo se torne efetivo, ativo no plano da
realidade, é pensamento mágico. E também pensamento
poético, busca da anulação do tempo. A confusão entre
criação, idéias típicas do sintoma e temas de uma
tradição esotérica chega a nós pela corrente
subterrânea da história; passa a ser um dos modos da
tradição da ruptura, para utilizar a expressão criada
por Octavio Paz (em Os filhos do barro). Em seus
elogios e homenagens a Lautréamont, Nerval e Poe,
Artaud se assume como representante dessa tradição.
Reescreve uma história da literatura como história de
escritores loucos, que culmina nele.
É especialmente fascinante como Artaud, depois de
viajar ao México para tomar peiote entre os
Taraumara, de ter uma crise ao voltar e ser
internado, produziu textos literariamente superiores,
pela força, ritmo e riqueza de imagens. Onde se pode
ver como antagônicos, em muitos escritores, um
componente psicótico, destrutivo, e um componente
criador, em Artaud ambos interagiam; um alimentou o
outro. Sua obra culmina, em 1947, com Van Gogh, o
suicidado pela sociedade, esplêndido poema em prosa
onde reitera que louco é o homem que a sociedade não
quer ouvir, e que é impedido de enunciar certas
verdades intoleráveis. Afirma que um dos meios de a
sociedade burguesa marginalizar artistas videntes é
através de bruxarias. Insiste em que seu internamento
é obra de uma conjuração, pois, se o deixassem solto,
mudaria o mundo. Caracteriza Van Gogh como vítima
solidária do mesmo enfeitiçamento.
Assumindo a ótica de Artaud, distinguir entre
categorias como normalidade e loucura, ou entre arte,
sintoma e delírio, é uma falsa questão. É inevitável,
ao discuti-lo, adotar a perspectiva e o tipo de
epistemologia defendida por Michel Foucault na parte
final de As Palavras e as Coisas, e, a meu ver, de
modo mais consistente pelo surrealismo. Consiste em
pensar o delírio, tanto quanto o sonho e a criação
poética, como meios de conhecimento. Assim como a
linguagem científica abre campos de conhecimento, a
linguagem
não-instrumental,
não-discursiva,
abre
outros campos de experiência do real. Entender o
inconsciente como consciência não-discursiva ajuda a
esclarecer a modernidade de Hölderlin, Nerval,
Lautréamont, Corbière, Germain Nouveau, Jarry e
Artaud. Permitindo a intervenção do inconsciente,
rompem com o discursivo e com a sociedade: rompem com
o discurso da sociedade. Fazem arte revolucionária,
pela radicalidade da rebelião individual, e por sua
crítica à realidade: por isso falo em tomá-la como
meio de conhecimento, e não apenas como algo a ser
interpretado, como objeto do paradigma clínico ou de
uma teoria literária. A inserção consciente de Artaud
na tradição da ruptura acentua o caráter universal de
sua contribuição, por mais que esta se tenha
manifestado de modo particular, irredutível, que não
permite uma escola ou doutrina de seguidores, apesar
da sua influência em tantos campos da modernidade:
teatro, poesia, contracultura, antipsiquiatria. É
universal por expressar contradições fundamentais,
entre o sujeito e o mundo que lhe é exterior, o
imaginário e o real, o absoluto e o contingente, o
poético e o prosaico.
Artaud e a reinvenção do teatro europeu
Lucila Nogueira
.
Eu vim ao México fugido da civilização européia.
...Contrariamente ao que todos foram levados a crer,
os povos anteriores a Colombo eram estranhamente
civilizados.
Antonin Artaud
Antonin ArtaudContra um conceito de cultura adstrito
à mera escrita livresca e à erudição racionalista,
contra um teatro ancorado de forma dependente nos
andaimes da palavra e esquecido de sua gestualidade
sacra original, a favor da recuperação dos manas que
dormem nas coisas e dos nervos que acordam os homens,
na busca de um estado anterior à linguagem oral
articulada, pleno de atitudes e de signos, onde os
sons tem a força de encantações: essa a força da
contribuição, no século XX, do maldito Antonin Artaud
(4 de setembro de 1896) para o teatro contemporâneo.
Um teatro com dança, gritos, sombras, iluminação,
pouco diálogo e muita expressão corporal, a contestar
o teatro naturalista francês, que se mostrava muito
retórico e completamente subordinado ao texto. Uma
compreensão da linguagem para além da simples
transmissão de significados, para além do paradigma
apenas psicológico instaurado no teatro a partir de
Eurípides, em que a encenação é apenas suporte e
ornamento dos diálogos humanos; a cena, apenas a
superfície passiva onde transcorre o drama. Uma visão
do diretor como verdadeiro hierofante e mestre mágico
a oficiar o sagrado. Adeus à noção do teatro como
entretenimento e simulação, encontro social sem rito
ou cerimonial - trata-se agora de viver o teatro como
uma pulsão onde o corpo transcende o humano em
direção à divindade.
Essa idéia de contraposição do teatro oriental ao
ocidental surge em Artaud a partir da apresentação de
um grupo de teatro de Bali, em que a dança está
sempre presente, assim como a ênfase nas expressões
faciais, mimese de um processo cósmico em que o ator
oferece seu corpo à divindade e ao espectador, ritual
de um templo que aproxima o mundo divino como uma
espécie de yoga. Não estava muito longe a visão do
poeta como um sacerdote, peculiar ao romantismo
alemão; inclusive, a partir de Wagner o teatro passa
a ser pensado de modo antropológico. Na seqüência da
evolução dessa ruptura com o tradicional teatro da
palavra, vai surgir o teatro do corpo: não que
renuncie completamente ao texto, mas que o incorpora
com um dos elementos do processo de criação; um
teatro que busca sair da mimese e do espetáculo para
se constituir em um modo de viver, pois o ator deixa
de ser apenas um intérprete e pactua da própria
inauguração artística.
A ênfase na ação física do corpo também será
encontrada em outros teóricos importantes do teatro
como Stanilavski, Meyerhold, Piscator, Reinhardt,
Jacques Copeau, Grotowski. Posteriormente no Brasil,
Augusto Boal com seu Teatro do Oprimido, de ideologia
brechtiana, também irá transformar o espectador em
protagonista. Entretanto, observa-se que a
proximidade de Artaud com a dramaturgia alemã do
século XIX (Woyzeck, de Büchner) e o mencionado gosto
pelos seus românticos (Kleist, Hölderlin) irmãos de
maldição e vítimas dos “enfeitiçadores”, como de
resto o foram os franceses Baudelaire e Nerval, o
holandês Van Gogh. A considerar-se que há também
afinidade de Artaud com Nietzsche (valorização do
corpo e exaltação dos valores vitais face aos da
razão intelectiva - escreve com o sangue), vemos que
existia na própria Europa uma recusa ao teatro
psicológico e naturalista, própria do clima que
favorecera as vanguardas.
Daí podermos considerar como integrantes dessa
linhagem à qual pertence Artaud: os futuristas
(teatro circular e desprezo à imitação), os dadaístas
(ritual coletivo com atores improvisados que se
descobrem a si mesmos e ao público), os surrealistas
(invasão soberana do inconsciente), Adolphe Appia
(eliminação da diferença palco/platéia; a base é
sempre o gesto), Edward Gordon Craig (o dançarino foi
o pai do dramaturgo, a dificuldade do teatro foi a
sua anexação à escrita porque ele não é um gênero
literário), Tairov (rejeição à submissão do teatro ao
texto escrito), Fuchs (fazer do teatro a alma da
multidão), Evreinov (teatro como meio de ultrapassar
a morte), Vakhtangov (como Stanislavski, lutou por um
teatro não discursivo), Syrkus (teórico do teatro
simultâneo), Walter Gropius autor do projeto de
teatro total bastante relacionado ao espetáculo
giratório de Artaud)... Etienne Decroux, Ghelderode,
o ator Conrad Veidt, para não falar de Sade, Fargue,
e sobretudo da Cabala, em que um dos principais
ensinamentos é atentar para o valor sonoro e não
semântico das palavras (Alain Virmaux, 1990).
Rafael Charco PortilloSe na Europa já existia,
portanto, um caminho trilhado nessa direção, o que
haveria de conferir a Artaud o perfil de grande
visionário do teatro no século XX? Desejando
vivenciar seus próprios símbolos e mitos, ele
consegue em 1936 uma bolsa e vai pesquisar os índios
tarahumaras no México, passa quase um ano estudando
antropologicamente o ritual do peyote, acreditando na
cultura indígena como resgate de uma percepção do
mundo que o ocidente dera por perdida. Também Malcom
Lowry estaria em terras mexicanas por duas vezes e
escreveria Debaixo do Vulcão; o sonho de despir-se
Artaud da identidade de civilizado leva-o a alcançar
um estado poético absoluto, onde caem por terra as
estruturas arcaicas da linguagem, onde a retórica é
inútil e a beatitude ultrapassa a reflexão.
Também a identidade acha-se roubada ao eu pelo outro
e Artaud guarda esse dilema, porque cada um carrega
consigo o seu Lautréamont, o seu Hölderlin, o seu
Strindberg, o seu Nietzsche, e eles são irredutíveis,
até o fim da solidão (Joski). Daí a tentativa do
teatro de Artaud de fixar a alteridade, desde o
etnográfico ao metafísico; do questionamento da
superioridade da Europa sobre os povos colonizados à
crítica da superstição do texto em face da explosão
da vida: indagando onde radica a justificativa que um
continente pode ter para servir-se de outro, Artaud
opõe a tirania dos colonizadores à profunda harmonia
dos colonizados e evoca Montezuma, rei dilacerado, o
das paredes de ouro cobiçadas pelos brancos
invasores. Quando retorna à Europa, vai fazer uma
peregrinação nos locais sagrados da cultura celta,
aquela que foi derrotada historicamente pelos
romanos; a partir daí é deportado para a França
(setembro de 1937), por se encontrar sem recursos e
em estado de grande exaltação.
Tem sido constante a consideração dos gênios como
dementes, loucos ou visionários. Veja-se Blake, Goya,
Van Gogh, Rimbaud. Nietzsche foi oficializado doente
ao chorar em praça pública diante do chicoteamento de
um cavalo. Exige-se socialmente uma normalidade com
características de controle e objetividade. Mas a
mente humana é passional, infantil, inocente. A
crítica do conceito de espetáculo de Artaud expulsa a
arte do teatro como falsidade, defendendo a união
entre a poesia, a filosofia, o grito, a biografia em
um único ato: escrever é o mesmo que viver,
desaparecendo a cisão entre vida e obra. Lembra
Claudio Willer que as suas propostas sobre teatro são
hoje práticas correntes: a criação coletiva, a
improvisação em cena, o primado do gestual e da
expressão corporal, união palco e platéia, o
happening, a performance; as correntes de pensamento
da chamada contracultura são de alguma forma um
legado de Artaud; também os estudos sobre a relação
entre o corpo e a consciência, bem como a devoção que
lhe dedicou o grupo reunido em torno da revista Tel
Quel, tudo sinaliza para essa postura de rebelião
radical que se recusa a compactuar com a violência
absurda da civilização ocidental, e deu ensejo à
geracão beat americana (Guinsberg, Burroughs,
Kerouac) bem como ao movimento hippie dos anos
sessenta, seguido por manifestações mais radicais
como os punks, pós-punks e diversos tipos de
orientalismo ocidental cotidiano.
Rafael Charco PortilloO seu exemplo atua como símbolo
icônico de sua plataforma: ele vai viver o que
predica, é ator de seu próprio personagem. Para esses
casos, a sociedade não está nunca preparada: será
trancafiado em clínicas até 25 de maio de 1946,
sempre escrevendo muito e na verdade a sua produção
principal. A acreditar em Foucault, segundo o qual
onde há obra não há loucura, se tivesse família a ela
caberia propor uma ação de indenização por
internamento. Mas Artaud não tinha ninguém, só os
seus amigos que ainda sem as prerrogativas do sangue
conseguiram tirá-lo do excessivo rigor de Rodez, já
próximo de sua despedida (4 de março de 1948).
Diagnósticos: câncer no reto; envenenamento por doses
de heroína e morfina; suicídio. Desde os 24 anos
tomava láudano para aliviar suas dores de cabeça,
tinha convulsões, havia estado em clínicas na
juventude. No período mais longo de internamento, já
na maturidade, sofreu, como terapia psiquiátrica,
mais de cinqüenta sessões de eletrochoque, cuja
violência denunciou com muita coragem.
Importa lembrar que o choque eletroconvulsivo (ou
ECT) é utilizado como terapia por Ugo Cerletti e
Lucio Bini justo em 1937, ano da internação de Artaud
ao regresso da Irlanda; foi bastante divulgado em
1939 na Europa pelo alemão L. B. Kalinovski; foram
submetidos a sessões de eletrochoque os escritores
americanos Ernest Hemingway e Sylvia Plath (ambos se
suicidaram). Dizem que uma mente que passa por
eletrochoques não se reintegra com facilidade, daí
haver originado posteriormente à época de Artaud
muitos processos por parte de pacientes; em 1962, Ken
Casey escreve um romance baseado na sua experiência
em um hospital psiquiátrico de Oregon, que Milos
Forman transformaria no filme Um Estranho no Ninho;
em 1970, a terapia estava derrotada pelos comprimidos
antidepressivos. No Brasil, contudo, recentemente,
Austregésilo Carrano Bueno escreve o livro Canto dos
Malditos, também baseado em sua experiência de
paciente interno submetido a eletrochoques, que foi
transformado em filme por Laís Bodanzy, com o título
de Bicho de Sete Cabeças. Um poema de Antonin Artaud
denuncia a violência dessa terapia até hoje defendida
(às vezes secretamente) por psiquiatras pósgraduados:
Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me
revoltar.
Essa medicina chama-se eletrochoque
, consiste em meter o paciente num banho de
eletricidade
fulminá-lo
e pô-lo bem esfolado a nu
e expor-lhe o corpo tanto externo como interno
à passagem de uma corrente
que vem do lugar onde não se está
nem deveria estar
para lá estar.
O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei
lá como,
que deixa o corpo,
o corpo sonâmbulo interno,
estacionário
para ficar sob a alçada da lei
arbitrária do ser,
em estado de morte
por paragem do coração.
Rafael Charco PortilloDurante o tempo em que passou
internado, Artaud demonstrou estar em plena posse de
sua escrita. Denunciou as clínicas psiquiátricas como
cárceres onde os internos provém mão-de-obra
gratuita, onde a brutalidade é norma. Assim se
dirigiu em sua "Carta aos Diretores de Manicômios":
As leis, os costumes lhes concedem o direito de medir
o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível,
vocês a exercem com o seu entendimento. Não nos façam
rir. A credulidade dos povos civilizados, dos
especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria
de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que
vocês exercem está julgada por antecipação. ...Todos
os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são
as vítimas individuais por excelência da ditadura
social. .... Sem insistir no caráter verdadeiramente
genial das manifestações de certos loucos, na medida
de nossa aptidão para apreciá-las, afirmamos a
legitimidade absoluta de sua concepção de realidade.
Aos 110 anos de seu nascimento só a poesia pode ter
voz ao grande mestrestético e humano autor de um
ensaio tão clarividente e profético como Van Gogh, o
suicidado pela sociedade:
Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, é
tido como louco. Internado em vários manicômios
franceses, cujos tratamentos são hoje duvidosos, ele
é transferido após seis anos para o hospital
psiquiátrico de Rodez, onde permanece ainda três
anos.
Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdière,
médico-responsável
do
manicômio,
uma
intensa
correspondência. Uma relação ambígua se estabelece
entre os dois: o médico reconhece o valor do poeta e
o incentiva a retomar a atividade literária mas,
julgando a poesia e o comportamento de seu paciente
muito delirante, ele o submete a tratamentos de
eletrochoque que prejudicam sua memória, seu corpo e
seu pensamento.
Existe aqui um afrontamento entre dois mundos, o da
medicina e razão social e o do poeta cuja razão
ultrapassa a lógica normal do “homem saudável”.
As cartas escritas de Rodez são para Artaud um
recurso para não perder sua lucidez. Elas revelam um
homem em terrível estado de sofrimento, nos falando
de sua dor através de uma escritura mais íntima e
mais espontânea. São os diálogos de um desesperado
com seu médico e através dele com toda a sociedade.
“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e
quero que eles sejam ouvidos”.
Para Artaud, o teatro é o lugar privilegiado de uma
germinação de formas que refazem o ato criador,
formas capazes de dirigir ou derivar forças.
Em 1935 Artaud conclui o "Teatro e seu Duplo" (Le
Théâtre et son Double), um dos livros mais influentes
do teatro deste século. Na sua obra ele expõe o
grito, a respiração e o corpo do homem como lugar
primordial
do
ato
teatral,
denuncia
o
teatro
digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era
o Teatro da Crueldade de Artaud, onde não haveria
nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam
atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo
tempo.
Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur
Ferdière) ele elabora uma prática vocal, apurada dia
a dia, associada à manifestações mágicas. A voz bate,
cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimensão
material, ela é gesto e ato.
Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois é
encontrado morto em seu quarto no hospício do bairro
de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma
importante produção literária ele desenha, prepara
conferências e realiza a emissão radiofônica "Para
acabar com o juízo de Deus" (Pour en finir avec le
jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se
alia a um formalismo cuidadoso.
Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde
se
refaz
a
vida”,
depois
de
Rodez
ele
é
essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O
“corpo sem órgãos” é o nome deste corpo refeito e
reorganizado
que
uma
vez
libertado
de
seus
automatismos se abre para “dançar ao inverso”.
“A questão que se coloca é de permitir que o teatro
reencontre
sua
verdadeira
linguagem,
linguagem
espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de
expressões e de mímica, linguagem de gritos e
onomatopéias,
linguagem
sonora,
onde
todos
os
elementos objetivos se transformam em sinais, sejam
visuais,
sejam
sonoros,
mas
que
terão
tanta
importância intelectual e de significados sensíveis
quanto a linguagem de palavras.”
O seu trabalho ainda inclui, ensaios e roteiros de
cinema, pintura e literatura, diversas peças de
teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos
polêmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do
cacto mexicano peyote entre os índios Tarahumara (Les
Tarahumaras), aparições como ator em dois grandes
filmes e outros menores. Artaud escreveu: "Não se
trata de assassinar o público com preocupações
cósmicas transcendentes. O fato de existirem chaves
profundas do pensamento e da ação segundo as quais
todo espetáculo é lido é coisa que não diz respeito
ao espectador em geral, que não se interessa por
isso. Mas de todo o modo é preciso que essas chaves
estejam aí, e isso nos diz respeito" - em TEATRO E
SEU DUPLO.
Carta Aberta
Antonin Artaud
Abandonai as cavernas do ser. Vinde o espírito se
revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas
moradas.
Cedei ao Omni-Pensamento. O Maravilhoso está na raiz
do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no
interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, Verdade
(com V maiúscula), Razão: tudo isso oferecemos ao
nada da morte. Cuidado com vossas lógicas, senhores,
cuidado com vossas lógicas; não imaginais, até onde
pode nos levar nosso ódio à lógica.
A vida, em sua fisionomia chamada real, só se pode
determinar mediante um afastamento da vida, mediante
uma suspensão imposta ao espírito; porém a realidade
não está aí. Não venham pois, enfastiar em espírito a
nós que apontamos para certa realidade supra-real, a
nós que há muito tempo não nos consideramos do
presente e somos para nós como nossas sombras reais.
Aquele que nos julga ainda não nasceu para o
espírito, para este espírito a que nos referimos e
que está, para nós, fora do que vós chamais espírito.
Não chamem demasiado nossa atenção para as cadeias
que nos unem à imbecilidade petrificante do espírito.
Nós apanhamos uma nova besta.
Os céus respondem a nossa atitude de absurdo
insensato. O hábito que tendes todos vós de dar às
costas às perguntas não impedirá que os céus se abram
no dia estabelecido, e que uma nova linguagem se
instale no meio de vossas imbecis transações.
Queremos dizer: das transações imbecis de vossos
pensamentos.
Existem signos no Pensamento. Nossa atitude de
absurdo e de morte é da maior receptividade. Através
das fendas de uma realidade em frente não viável,
fala um mundo voluntariamente sibilino.
Carta aos Reitores das
Universidades Européias
Antonin Artaud
Senhor Reitor
Na estreita cisterna que chamais "Pensamento" os
raios do espirito apodrecem como montes de palhas.
Basta de jogos de palavras, de artifícios de sintaxe,
de malabarismos formais; precisamos encontrar - agora
- a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma
Lei, uma prisão, senão um guia para o espirito
perdido em seu próprio labirinto. Alem daquilo que a
ciência jamais poderá alcançar, ali onde os raios da
razão se quebram contra as nuvens, esse labirinto
existe, núcleo para o qual convergem todas as forcas
do ser, as ultimas nervuras do Espirito. Nesse dédalo
de muralhas movediças e sempre transladadas, fora de
todas as forcas conhecidas de pensamento, nosso
Espirito se agita, espreitando seus mais secretos e
espontâneos movimentos, esses que tem um caráter de
revelação, esse ar de vindo de outras partes, de
caído do céu.
Porem a raça dos profetas esta extinta. A Europa se
cristaliza, se mumifica lentamente dentro das
ataduras de suas fronteiras, de suas fabricas, de
seus tribunais, de suas Universidades. O Espirito
"gelado" range entre as laminas minerais que o
oprimem. E a culpa è de vossos sistemas embolorados,
de vossa lógica de dois- e - dois - são - quatro; a
culpa è vossa, Reitores, apanhados na rede de
silogismos. Fabricais engenheiros, magistrados,
médicos a quem escapam os verdadeiros mistérios do
corpo, as leis cósmicas do ser< falsos sábios, cegos
para o alem, filósofos que pretendem reconstruir o
Espirito. O menor ato de criação espontânea constitui
um mundo mais complexo e mais revelador que qualquer
sistema metafísico.
Deixa-nos, pois, Senhores< sois tão somente
usurpadores. Com que direito pretendeis canalizar a
inteligência e dar diplomas de Espirito?
Nada sabeis do Espirito, ignorai suas mais ocultas e
essências ramificações, essas pegadas fosseis, tão
próximas de nossas próprias origens, esses rastros
que às vezes logramos localizar nos jazigos mais
escuros de nosso cérebro.
Em nome de vossa própria lógica, vos dizemos: a vida
empesta, senhores. Contemplai por um instante vossos
rostos, e considerai vossos produtos. Através das
peneiras de vossos diplomas, passa uma juventude
cansada, perdida. Sois a praga de um mundo, Senhores,
e boa sorte para esse mundo, mas que pelo menos não
se acredite à testa da humanidade.
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