2015_retrospectiva indigesta_lawrenberg_OI

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FEITOS E DESFEITAS
2015: Uma Retrospectiva Indigesta
Convido os estimados leitores do Observatório da Imprensa (OI) a realizar uma breve
retrospectiva dos principais fatos decorridos ao longo de 2015 (seja positivo ou
negativamente), embora ainda estivéssemos na terceira semana de dezembro. A ideia é
elaborar um “resumão” de imagens marcantes e bem próximo do produzido pelo
departamento de Jornalismo de algumas emissoras da TV aberta brasileira (Globo, SBT,
Bandeirantes, Record, etc), do qual vai exigir de cada um de nós um esforço hercúleo em
selecionar, julgar e organizar um inevitável quebra-cabeça de sensações boas e algumas
angústias infindáveis. Ah, antes que me esqueça: aos mais impacientes, informo que este
exercício pernóstico de memória vai demandar não mais que 10 a 20 minutos de silêncio
gregoriano para com os outros e consigo próprio (...)
... (alguns minutos depois)
E, AÍ? FIZERAM?! NÃO? SIM? TANTO FAZ! OK, VAMOS CONTINUAR. Feita a
memorização pela maioria de vocês, gostaria, agora, de expor a minha, munido do zelo
necessário para o emprego de determinadas palavras e conceitos da nossa “traiçoeira língua
portuguesa abrasileirada”, e à luz de não cometer os mesmos erros históricos de alguns
historiadores contemporâneos e de profissionais da imprensa sobre o que houveram em
Auschwitz, Hiroshima, Nagasaki, Nova Iorque, Bento Rodrigues, São Paulo e Curitiba.
Primeiramente vem a imagem do desastre da bacia do Rio Doce e, subsequentemente,
do avanço da sua lama tóxica até o oceano Atlântico brasileiro, não somente por estar ainda
muito recente em toda nossa memória mental ou virtual, mas por seus números (9 mortes, 19
desaparecidos, 11 comunidades atingidas, 280 mil pessoas sem água, mais de 11 toneladas de
peixes mortos, mais de 440 km de lama espalhada rio abaixo) nem sequer representarem 10%
de todo seu estrago potencial às próximas gerações da vida ambiental e humana do sul de
Minas Gerais.
Coincidência ou não, mas o conjunto da obra já era uma tragédia anunciada, seja pelo
campo da ficção audiovisual em filmes como Narradores de Javé (dirigido por Eliane Café,
2003), seja pelas vozes silenciadas das famílias ribeirinhas prejudicadas pela construção da
usina Belo Monte. Trata-se de uma mistura aviltante de imperícia técnico-humana e
negligência social por parte da empresa Samarco, de impunidade de parte do segmento
judiciário na demora por uma penalização mais severa à empresa e de insensibilidade humana
por parte de autoridades federais e estaduais; dos quais somente afunilam o buraco semântico
da narrativa social de Brasil do qual todos nós estamos submetidos, isto é, submersos.
Semânticas perigosas...
Não menos indignante que o caso de Mariana, merece uma análise pormenorizada –
de todos nós – a abrangência terminológica dada pela mídia internacional (Time, The Sun) ao
atentado em Paris, com 140 mortes, segundo a Agência France Press (AFP), e à traumática
diáspora síria na Europa, sintetizada na foto trágica do fotografo da Reuters, Nilufer Demir,
onde é retratada uma jovem criança morta numa praia grega, como resultado de uma
travessia malsucedida e suicida. Em ambos os casos não faltaram associações, metáforas e
metonímias ligadas à islamofobia, xenofobia, indignação seletiva, holocausto, terrorismo,
guerra civil, monstruosidade; enfim, a tudo que interdita qualquer constatação de que ainda
somos civilização.
A verdade é que, a grosso modo e replicando aqui o título do livro mais contundente
de Bruno Latour: Jamais fomos modernos. E isso, companheiros, implica pensarmos o quão
ainda nos parecemos frágeis à imprevisibilidade do passado e do presente, e muito mais do
futuro.
Mas, voltando à retrospectiva, vale ressaltar que em 2015 atingimos enquanto “Pátria
Educadora” talvez um estágio de violação ou boicote semântico em proporções nunca antes
visto na história da cobertura jornalística destes tristes trópicos. O que significa incluir nesta
ponderação: os fragmentos de memória dos quase 400 anos de escravidão, e mais 28 anos de
ditadura (1937-44: quando o presidente era Getúlio de Vargas, e 1964-85: após o ato
institucional, AI-5, imposto pelos militares). E, sem sombra de dúvida, o episódio mais
acachapante do ano, do ponto de vista ético e moral, tenha tido como um dos protagonistas o
nosso Congresso Nacional, e outro, a figura grosseira do presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha (PMDB). Sobre ele, além de pesar acusações de crimes de lavagem de dinheiro
e corrupção, em contas na Suíça, escancara-se de maneira proeminente, não por acaso, a
melhor antítese ou pior paradoxo da palavra decência, quando se considerado a atmosfera de
inércia e inoperância de uma maioria de parlamentares e parte da opinião pública brasileira.
Diria mais: temos na atuação de Cunha, a quem ouso atribuir a perífrase de Coringa
brasileiro, o esvaziamento etimológico da expressão cinismo e, por tabela, de todas suas
derivações gramaticais ligadas às artes cênicas. De certa maneira, as peripécias
antidemocráticas do deputado obrigaram tanto de gramáticos atentos quanto de redatores
bem intencionados uma jactanciosa reforma léxica da palavra cinismo, para, assim, chegarmos
às duas novas expressões: cinismo-erótico, da justaposição de cinismo e erótico; e
cinispornográfico, da aglutinação de cinismo e pornográfico. O que soa ironicamente
redundante toda vez que ouço “Que país é este?” de Renato Russo.
Ao lado da assunção emergente destas novas expressões, na minha retrospectiva
sobram também os novos sinônimos, a maioria forjados pela literatura míope-hegemônica da
mídia tradicional brasileira – principalmente, nos diários Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo,
ou A Gazeta de Mato Grosso. Entre eles, a de “golpe” ter o mesmo sentido de, na prática,
impeachment – ao Governo da presidenta Dilma (PT) – ; o de “massacre” ser uma equivalente
hiperbólica da palavra “confronto” – de tropas policiais, sob ordens do Governador do Paraná,
Beto Richa (PSDB), contra professores da rede estadual de educação –; o de “fechamento de
escola” e “ocupação de escolas por estudantes” exercerem respectivamente, segundo a visão
progressista-fascista do Governador de São Paulo, Geraldo Alckmim (PSDB), significados
semelhantes ao de “reorganização escolar” e “invasão de prédio público”, sendo o último
passivo de penalização truculenta de PM, com cassetetes e gás de pimenta. Ou o mais grave: o
de jovens negros serem sinônimos de alvos de fuzis de PMs cariocas.
Uma resposta para Jéssica: 2015 jamais acabará!
E... já acabou, Jéssica?!? (um dos memes mais viralizados na internet tupiniquim) Não,
companheiros leitores. Definitivamente 2015 não acabou apenas nisso. Tivemos ainda nele o
fim do embargo econômico estadunidense à Cuba, após cinco décadas de silêncio diplomático
entre ambos os países. Enquanto na cidade de Houston, Estados Unidos, uma junta médica
promoveu o primeiro transplante de crânio com doador humano, provando, por sua vez, que a
medicina do século XXI, enquanto ciência do possível, em determinados momentos não
economiza empenho em se aproximar da ficção seriada dos doutores House´s da indústria
hollywoodiana, ocidentalizada e abundantemente neoliberal.
Já em meados de novembro e dezembro, meses dedicados no Brasil, respectivamente,
às campanhas de conscientização ao câncer de mama e de próstata, o mosquito Aedes Aegypt
reapareceu mais ultrajante, fatal, desafiando não somente à fonética genuinamente brasileira
da publicidade institucional do Ministério da Saúde (MS), mas a capacidade de toda a
sociedade organizada brasileira (Governo, terceiro setor, iniciativa privada e população) no
combate ao volume crescente do surto de microcefalia, doença que acomete diretamente as
mulheres grávidas.
Exposta a retrospectiva, chego à conclusão que 2015 proporcionou-nos lições valiosas
e ensinadas ao custo simbólico de duras interpretações e ressignificações. Mais do que a
midiatização apocalíptica da perda substancial da fé popular em nossas instituições (Governos
Federal e Estadual, Congresso Nacional, Senado, Supremo Tribunal Federal - STF, igrejas,
Universidades), as imagens televisionadas à exaustão e que marcaram no ano foram também
responsáveis por um escamoteado sequestro de nossas consciências e, sobretudo, dos nossos
sentidos coletivos de ser brasileiros, então construídos após longevas batalhas semânticas
(ideológicas e de orientações contra-hegemônicas).
Logo: ao invés de finalizarmos esta retrospectiva com aquele chavão de origem chinesa
de que uma imagem vale mais do que mil palavras, por que não, dado a escassez de diálogos
face-a-face nos dias atuais, concluirmos com a seguinte frase: às vezes palavras, quando
manuseadas por interesses escusos, podem não somente equivaler e valer mais do que
imagens, como, também, transformarem-se em poderosas armas de destruição em massa.
Obrigado pela atenção e abraço a todos!
Lawrenberg Advíncula da Silva é professor do curso de Jornalismo do campus da Unemat de Alto
Araguaia, coordenador-geral da revista científica Comunicação, Cultura e Sociedade (RCCS) e do
projeto de pesquisa Formação Profissional em Jornalismo em Mato Grosso (FPJMT).
E-mail: [email protected]
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