da lógica do conhecimento

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DA LÓGICA DO CONHECIMENTO PARA UMA LÓGICA DO AMOR
COMO FONTE GERADORA DE VIDA EM COMUNIDADE
Mística da Razão e Mística do Amor
Fio condutor para uma releitura filosófica-teológica do evangelho de João
INTRODUÇÃO
O diálogo entre a Filosofia e a Teologia sempre foi importante para as Ciências Humanas.
A Bíblia, o Alcorão, ou outros livros sagrados que conhecemos, falam das diversas dimensões da
experiência humana. Buscam uma resposta para a eterna pergunta pela integração do racional e
do afetivo, no ser humano. A pergunta pelo transitório e o trans-cendente na vida humana é uma
questão filosófico-teológica.
Escolhemos como paradigma de nossa reflexão o Evangelho de João. A motivação
principal para essa escolha é a conhecida influência gnóstica nos escritos joaninos, bem como
comentários recentes que valorizam a dimensão filosófico-teológica do assim chamado Quarto
Evangelho1.
Situamos o tema central desse ensaio dentro do contexto de extrema valorização da
racionalidade, na época da modernidade e da reação, que poderíamos chamar de mística, na
época pós-moderna. Uma pergunta se impõe como hipótese inicial para nossa reflexão: será que
a lógica do conhecimento tem a tarefa de fragmentar, enquanto a lógica do amor tem a tarefa de
integrar?2
Com o título proposto não pretendemos insinuar uma dinâmica de exclusão ou de
polarização, mas uma dialética e, talvez, priorização entre as duas lógicas: a do conhecimento e
a do amor. São Paulo fala da primazia do amor sobre todas as ciências, mistérios e
conhecimentos: „Ainda que eu tivesse todo o conhecimento de todos os mistérios e de toda a
ciência...se não tivesse o amor eu não seria nada“ (1 Cor 13,2).
Nosso objetivo principal é aprender com a comunidade joanina, como é possível resistir,
pela força do amor, à crescente fragmentação que se impõe à sociedade moderna. Um amor que
não é sentimentalismo nem alienação, mas integração3.Com uma releitura do evangelho de João,
numa ótica feminina, pretendemos resgatar a força das mulheres que contribuiram e contribuem
ainda hoje na incansável tarefa de construir comunidades novas pautadas na lógica do amor.
O corpo da reflexão estrutura-se em 3 partes interligadas:
1
Sobre a influência e o confronto da comunidade joanina com o gnosticismo, cf. SCHOTTROFF, Luise. Der
Glaubende und die Feindliche Welt. Neukirchen, 1970. Um comentário recente sobre o Evangelho de João ressalta a
relação entre a filosofia e a teologia ao longo de todo o texto: cf. KEIL, Günther,Das Johannesevangelium - Ein
philosophicher und theologischer Kommentar. Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1997.
2
Rubem Alves comenta o pintor surrealista Salvador DALI, que, ficando com inveja dos poetas que com o uso de
palavras, gozam do poder mágico das metáforas em sua expressão suprema, resolveu fazer o mesmo com suas tintas.
Pôs-se a pintar metáforas. Numa de suas pinturas colocou as costeletas de porco nos ombros de sua esposa.
Perguntado por que fizera isso respondeu: „ Gosto de costeletas e gosto da minha mulher. E não vejo razão nehuma
para não pintá-las juntas.“ Com isso DALI enunciou uma das regras fundamentais do espaço-tempo surrealistas: as
coisas se ligam umas às outras não pelas relações externas de contiguüdade (uma coisa perto da outra), mas pelo
amor. O amor junta o que estava separado e separa o estava junto. O amor é a potência mágica que constrói os
cenários da alma. Cf. ALVES,R. Pintando Sonhos, in: Tempo e Presença, 292 Março/Abril (1997), p. 5-7.
3
Aqui projeto várias idéias da longa pesquisa feita em vista da Dissertação de Mestrado: O mandamento do amor
em São João (1987) e da Tese de Doutorado: Fonte e Dinâmica do Mandamento do Amor Mútuo: Uma releitura
trinitária a partir da exegese e Hermenêutica de Jo 15,9 (1992).
1. Como se originou a comunidade joanina? - Contextualização histórico-social
2. Fio condutor para uma releitura do evangelho de João: da lógica do conhecimento para
uma lógica do amor.
3. A força feminina na construção de comunidades novas pautadas na lógica do amor
1. COMO SE ORIGINOU A COMUNIDADE JOANINA?
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL NO FINAL DO PRIMEIRO SÉCULO
A via de acesso mais autêntica para tomar contato com uma comunidade
neotestamentária, é o escrito bíblico4. Esse reflete sua situação concreta, dentro do contexto
histórico-social de sua origem. Mostram como Deus se revela e, ao mesmo tempo, como a
comunidade capta a presença de Deus e procura explicitar sua fé.
Uma leitura global do Evangelho de João5 permite encontrar indícios evidentes, embora
nem sempre explícitos, sobre a origem
da comunidade, sobre situações conflitivas
intracomunitárias e sobre confrontos com outras comunidades ou grupos6.
Desde o início e ao longo de todo o texto do evangelho, João Batista e seus discípulos
aparecem em estreita relação com Jesus e seus discípulos, ou seja, com a comunidade joanina
(cf. Jo 1,5-6.19-34). Em conseqüência do testemunho de João Batista, discípulos seus - entre os
quais André, irmão de Simão Pedro e outro discípulo anônimo7 - tornaram-se discípulos de
Jesus8. Pelo contexto rabínico supõe-se que essa passagem de um Mestre para outro tenha sido
conflitiva, ainda que o texto não o explicite, diretamente. Logo em seguida, em Jo 3,22-36, há
um reflexo do conflito existente entre os discípulos de Jesus e os discípulos de João Batista.
Temos aqui o primeiro grupo integrante da comunidade joanina, desde sua origem:
discípulos do Mestre João Batista, considerado como precursor de Jesus, o amigo do Esposo, que
segundo o evangelho de João é o próprio Jesus (cf. Jo 3,27-30).
Outro indicador, para chegar à origem da comunidade joanina, encontramos no fato da
expulsão de judeus pela Sinagoga farisaica. Eram expulsos todos os que acreditavam e
confessavam a Jesus como Messias, Filho de Deus (cf. 9,34). O episódio do cego de nascimento
ilustra bem o processo de fé, como adesão à pessoa de Jesus, o Filho de Deus, e as conseqüências
4
O texto escrito tem a primazia em qualquer ato hermenêutico. Cf. CROATTO, S. Hermenêutica Bíblica. São
Leopoldo, 1986.
5
Sobre a importância de fazer uma leitura global do Evangelho de João e da Bíblia como um conjunto literário
diversificado, interligado por uma mensagem única, cf. TERNAY, H. -WEILER, L. Um instrumental para uma
releitura global da Bíblia a partir do eixo do Exodo, in: REB 184 (1986), p. 760-782.
6
Mais que os comentários sobre o escrito bíblico, valorizamos o próprio escrito, pela sua originalidade, como via
mais direta de acesso ao contexto da comunidade que está por trás do escrito.
7
O discípulo anônimo que acompanha André e é um dos primeiros a seguir Jesus pode ser o Discípulo Amado,
figura central da comunidade joanina. Como Discípulo Amado ele aparece de modo explícito a partir do cap. 13, na
segunda parte do evangelho. Cf. BROWN,R. The Gospel...(vol. I), p. XCIII-XCVIII; cf. tb. THYEN, Aus de
Literatur zum Johannesevangelium ThR 42 (1977), p. 248.
8
Pela interpretação tradicional do evangelho de João era de consenso que o Discípulo Amado seria o próprio
evangelista João. Comentários recentes retomam a teoria de BULTMANN, afirmando que não se trata de uma figura
histórica, mas de um discípulo ideal, ou uma discípula ideal. Cf. KEIL, G. Das Johannesevangelium - ein
philosophischer und theologischer Kommentar... p. 205.
de uma profissão pública dessa fé através do seguimento comprometido. Não resta dúvida que
este cego é um representante da comunidade joanina9
As notas explicativas, próprias do estilo joanino, mostram a situação de medo gerada
neste contexto de medo (cf. Jo 9,22). O motivo da expulsão é claro:
„...pois os judeus já tinham combinado que se alguém reconhecesse (confessasse) Jesus como Cristo, seria
expulso da Sinagoga“ (Jo 9,22b).
Temos aqui um segundo grupo que integra a comunidade joanina, desde sua origem:
Judeus expulsos da Sinagoga, por motivos de confissão religiosa.
Em ambos os grupos a motivação inicial da nova comunidade de fé que vai se articulando
é o chamado, o encontro e a profissão de fé na pessoa de Jesus de Nazaré, reconhecida como
Cristo, Messias, Filho de Deus. Em ambos os casos temos uma situação conflitiva de ruptura
com um modo de acreditar e o início de um novo processo de fé, no seguimento pessoal e
comunitário de Jesus Cristo.
Até aqui a comunidade joanina pode ser compreendida como um grupo judeu-cristão.
Segundo essa comunidade ou o judaísmo continua e se renova em Jesus, ou perde sua razão de
ser. O núcleo central do evangelho de João quer fazer ver que o judaísmo que não assume a
„lente cristológica“ (cristã) para fazer a releitura das Escrituras está falido10. É um judaísmo
fechado, estreito, com esquemas vazios e legalistas: porque não crê em Jesus, o Filho enviado do
Pai, o amor de Deus não está nele e conseqüentemente abandonou o Deus vivo (cf. Jo 5,37-47)11.
A comunidade joanina, porém, não se restringe somente ao grupo judeu-cristão. A cena
do encontro de Jesus com a mulher Samaritana, introduz um grupo de samaritanos na nova
comunidade de fé:
„Muitos samaritanos daquela cidade creram nele em virtude do testemunho da mulher que anunciara: ‘Ele me
disse tudo que fiz’. Por isso os samaritanos vieram até Jesus, pedindo-lhe que permanecesse com eles. E ele
ficou ali dois dias. Muitos outros creram nele por causa de sua palavra, e diziam à mulher: Já não é por causa
do que tu falaste que nós cremos. Nós próprios o ouvimos, e sabemos que este é verdadeiramente o salvador
do mundo“ (Jo 4,39-42).
Além dos samaritanos, a comunidade acolhe também discípulos de Jesus, de origem
grega:
„Havia alguns gregos, entre os que haviam subido para adorar, durante a festa. Estes aproximaram-se de
Filipe, que era de Betsaida da Galiléia e lhe pediram: „...queremos ver Jesus!“ Filipe vem a André e lho diz;
André e Filipe o dizem a Jesus“ (Jo 12, 20-22).
A comunidade joanina, portanto, é formada por: discípulos de João Batista (Jo 1,35ss.);
samaritanos (Jo 4,1-42); gregos-helenistas (Jo 7,35; 12,20); judeus expulsos da sinagoga (Jo
9, 1-41).
O que caracteriza a comunidade joanina?
TUÑI VANCELLS comenta: „O tema da oposição da Sinagoga farisaica teve um papel fundamental na
estruturação interna do evangelho de João. A comunidade, em confronto com o judaísmo farisaico e a influência
desta polarização sobre a comunidade joanina é um dado que marca de modo indelével o próprio centro do
evangelho de João“ (Jesus y el Evangelio en la Comunidad Juânica, p. 149).
10
Não se pode falar de um anti-judaísmo no evangelho de João. Existe sim uma clara proposta de purificação da
originalidade do judaísmo e de toda a religião (cf. Jo 4, 20-24).
9
É uma comunidade eclética e multicultural que busca sua identidade de fé, agregando
pessoas marginalizada e excluídas.
Um acentuado sincretismo religioso dentro da comunidade é também compreensível a
partir da confluência de tantas e diversificadas tradições religiosas.
É uma comunidade de resistência, minoritária e perseguida. Daí por que seu líder
principal é uma figura anônima, conhecida apenas por Discípulo Amado. Dentro desta
característica da comunidade esclarece-se também a presença, a liderança e a atuação positiva
das mulheres, que em toda tradição bíblica e ainda hoje aparecem como símbolo de resistência12.
Além de um confronto permanente com o gnostiscismo, no final do século I, a
comunidade joanina enfrenta dois momentos agudos de ameaça a desagregação:
1° a expulsão da Sinagoga , que pelas conseqüências para a comunidade pode ser
comparada a um novo cativeiro ou exílio;
2° a ruptura interna em conseqüência do escândalo diante da cristologia da Encarnação
( cf. Jo 6,66).
Dentro desse contexto o Evangelho, como Boa Nova, foi vivido pela comunidade e
depois escrito como uma forma de resistência coletiva contra as perseguições vindas de fora e ao
mesmo tempo como mística de animação e fortalecimento da identidade da comunidade em
tempo de fragilidade e desarticulação interna.
Numa primeira fase a comunidade joanina enfrenta a luta dramática contra o judaísmo
oficial que a expulsou da Sinagoga. Contra esses judeus, a comunidade, ou seja o evangelho de
João, denuncia que eles mesmos traíram a raiz do próprio judaísmo, não acolhendo Jesus como
Filho de Deus. Isso mostra, paradoxalmente, que lá onde o evangelho é mais anti-judaico ele é
mais autenticamente judaico. De fato a comunidade joanina não quis abandonar a raiz judaica, ao
otar por Jesus e confessá-lo como Filho de Deus vivo. Assim a expulsão da Sinagoga não deixa
de ser um trauma e uma desintegração interna da comunidade. Sente-se questionada na essência
original e na tradição de sua fé judaica, o que traz como consequencia uma forte crise de
identidade.
O clima polêmico dessa primeira fase não possibilitou que a comunidade e suas
lideranças zelassem por um processo sólido de crescimento interno na fé. Para uma comunidade
de fé subsistir em meio a um contexto desagregador, não basta defender-se contra ataques
externos. É necessário criar solidez interna. Por isso numa segunda fase, situada já no final do
século primeiro, a comunidade enfrenta sérias dificuldades internas de natureza cristológica e
ética13.
Resumindo, vemos que a oposição e expulsão da Sinagoga levou a comunidade a uma
atitude polêmica, defensiva e ofensiva contra os de fora. Internamente, porém, seus reflexos se
fazem sentir na perda de identidade da própria comunidade. Essa perda de identidade, por sua
vez se reflete como problema teológico-cristológico com fortes conseqüências éticas.
11
Cf. TUÑI VANCELLS, ibid. p 150-155; cf. tb. BLANK, O evangelho segundo João, 4/1a, p. 41s.
Cf. WEILER, L. „Jesus e a Samaritana“, in: RIBLA (15) p. 98-103.
13
Cf. SEGOVIA, Love Relationships in the Johannene Tradition: Agape/agapan in I John and teh Fourth Gospel.
USA, 1982, p. 119.
12
Temos aqui um notável paralelo com nosso contexto atual, no final do segundo milênio
da humanidade. Como resgatar a força comunitária da identidade cristã e sua ética liberdadora?
Será pela lógica do conhecimento propagada pelo ressurgimento do gnosticismo, ou pela lógica
do amor, apesar de sua compreensão muitas vezes dúbia e desvirtuada? Ou será pela integração
da lógica do conhecimento e a lógica do amor? Como aprendizes e discípulas, discípulos
tomados pela curiosidade expectante, seguimos as pegadas da comunidade joanina, para
aprender algo para nossa vivência e prática.
Objetivo do evangelho de João
O objetivo principal do evangelho de João é narrar sinais (semeion) de Jesus e não
milagres (dynameis), como os Sinóticos. Esses sinais foram selecionados e transmitidos por
escrito, porque se tornaram significativos para a história da comunidade. Têm a finalidade de
levar a uma integração entre fé e vida
Estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo tenhais a
vida em seu nome (Jo 20,31).
A intenção do evangelista, representante da comunidade joanina, não é fazer um relato
histórico detalhado da vida de Jesus. Trata-se de um trabalho de discernimento ou seletivo de
sinais marcantes, como manifestação de Deus Pai, agindo pelo seu Espírito, na vida e na obra do
Filho.
O critério para a seleção de sinais narrados, por escrito, é para que todos os que os lêem
professem a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, eassim participem da vida plena, com Ele.
João não oferece muito material para uma reconstrução da prática histórica de Jesus, mas
é valioso como chave de leitura para uma compreensão hermenêutica da práxis de Jesus14.
Para entender esse processo de redação precisamos recorrer à função central ocupada pelo
Espírito, o Paráclito, no Evangelho de João. Ele faz a memória de Jesus na comunidade (cf. Jo
14,26). Tuñi Vancells diz:
O mais genuíno da apresentação joanina não provém da tradição de Jesus. Provém da necessária
recuperação dos dados centrais dessa tradição à luz da experiência de fé na comunidade: função
mais característica do Paráclito (Jo 14,26).
Desde a origem do evangelho de João encontramos a proposição teológica trinitária. A
comunidade experimenta a missão de Jesus como interação e interfecundação na vida e no amor
do Pai. Experimenta-a como memória viva e atual do Espírito/Paráclito. É nesta perspectiva e
chave trinitária que podemos entender e fazer a hermenêutica de outros temas teológicos como o
amor e o conhecimento de Deus15.
A estrutura básica do evangelho de João
A maioria dos exegetas admite uma estrutura formal bipartida, com relação à disposição
da matéria no atual texto do evangelho de João.
A primeira parte é chamada de Livro dos Sinais (Jo 1, 19 - 11,55)
Cf. KONINGS, J. „A memória de Jesus e a manifestação do Pai no Quarto Evangelho“, in: Perspectiva
Teológica 51 (1988), p.197; cf. tb. TUÑI VANCELLS, ibid. p. 173ss.
15
Cf. WEILER,L. Fonte e dinâmica do mandamento do amor mútuo. uma releitura trinitária a partir da exegese e
hermenêutica de Jo 15,9. Tese apresentada ao Departamento de Teologia da PUC/RJ como parte dos requisitos para
obtenção do título de doutor em Teologia. Rio de Janeiro, 29 de junho de 1992.
14
A segunda parte é chamada de Livro da Exaltação (Jo 13, 1- 20,31)
Uma transição que poderíamos chamar de dobradiça da estrutura literário-teológica do
evangelho de João encontramos em Jo 11,57 - 12,50.
O prólogo (Jo 1,1-18) é como uma sinfonia de abertura dessa belíssima obra literária, que
é o evangelho de João.
O Epílogo (Jo 21, 1-25) é um acréscimo ulterior, como podemos perceber claramente
pelas duas conclusões (Jo 20, 30-31 e Jo 21, 24-25) conservadas na redação final.
Após essa rápida contextualização do evangelho de João entramos no tema central de
nossa reflexão: Conhecimento e Amor como fio condutor do evangelho de João.
O binômio Conhecimento e Amor faz parte da tradição bíblica, mas encontra seu ponto
culminante de integração no evangelho de João.
2. FIO CONDUTOR DO EVANGELHO DE JOÃO:
DA LÓGICA DO CONHECIMENTO PARA UMA LÓGICA DO AMOR
A linguagem joanina é marcada pelo seu contexto comunitário eclético pluricultural e
multireligioso e pelo seu Sitz-im-Leben, no final do século I. A lógica do conhecimento- „mística
da razão“- é complementada e por vezes superada pela lógica do amor- „mística do amor“16.
Neste final de milênio vivenciamos um fenômeno sem prescedentes de emergência do
religioso com o surgimento de movimentos religiosos, por vezes fanáticos e radicais. Dentro
desse contexto, parece-nos uma necessidade urgente a integração entre a lógica do conhecimento,
ou seja a mística da razão, do bom senso e a lógica do amor. Seguimos nossa reflexão, nas
pegadas do texto do Quarto Evangelho.
A influência e o confronto com o gnosticismo impregnaram o evangelho de João com
uma linguagem e uma visão dualista. Luz e trevas, vida e morte, amor e ódio, conhecimento e
ignorância são alguns dos binômios dualistas comuns ao evangelho de João.
Alguns exegetas deram demais ênfase à compreensão joanina da fé como sendo um ato de
decisão pessoal por Jesus Cristo. Nesse sentido falam de um dualismo de decisão que separa os
filhos da luz (Jo 12,35...) dos filhos das trevas (Jo 3,19.20); 9,39-41). Os filhos de Deus dos
filhos do Diabo (cf. 1Jo 3, 10)17. Tal interpretação pode nos levar a pensar erroneamente num
certo determinismo. Alguns são escolhidos para fazer parte do grupo dos „seus“ e outros são
destinados a permanecer nas „trevas“, no „mundo“, a ficar na incredulidade. O Pai atrai e dá ao
Filho quem ele quer (Jo 6,37.41-42); as ovelhas são dadas pelo Pai ao Filho e ninguém as arranca
de suas mãos; ele as conhece e elas o conhecem (Jo 10, 14. 27-29)18
A única forma de superar esse preconceito do determinismo joanino é resgatar a
dimensão da fé como um processo de conhecimento e amor que leva a uma adesão pessoal e
comunitária a Deus, única fonte da Vida. A via de acesso e única porta de entrada nesse processo
Em seu comentário filosófico-teológico do evangelho de João KEIL fala numa necesária integração entre „Mystik
der Vernunft“ e „Mystik der Liebe“.Cf. op. cit. 209s.
17
Cf. SCHOTTROFF, L. LANGBRANDTNER e outros.
18
Cf. OLIVEIRA C. J. P.. de. O Evangelho da Unidade e doAmor. São Paulo, 1966, p. 196. Talvez seja importante
lembras que esse é o único comentário completo sobre o Evangelho de João escrito por um autor brasileiro.
16
é a pessoa e a prática histórica de Jesus que nos comunica sua experiência de conhecimento e de
amor do Pai (cf. Jo 10, 7-9).
Conhecimento e amor nos escritos joaninos
a) Conhecimento
O tema do conhecimento de Deus não é originalidade joanina, mas recebe uma ênfase
especial no evangelho de João e nas cartas joaninas.
O verbo ginosko existe na literatura grega desde Homero e através da Septuaginta entra
na tradução bíblica do AT. O termo aparece com mais freqüencia no NT.
Ginosco, no sentido bíblico pode ter vários significados. É importante notar que João não
usa o substantivo gnosis. Talvez seja em conseqüência de uma reação contra o gnosticismo. O
uso do verbo aparece com frequência nos escritos joaninos e possui diferentes compreensões:
a) Reconhecer, conhecer: a Verdade (Jo 8,32), o Espírito (Jo 14,17), a árvore é
conhecida pelo fruto que produz (1Jo 4,6; cf. tb. Mt 12,33, Lc 6,44); Deus (Jo 14,7; 17,3.25; 1Jo
2,3.13; 3,1.6; 4,6ss; 5,20), Jesus Cristo (Jo 14,7; 17,3.25; 1Jo 2,3s.); na prática (Jo 6,69; 7,26;
8,52; 13,35; 14,20.31; 17,7s. 25; 19,4; 1Jo 2,3.5; 4,13; 5,2).
b) Experimentar: (Jo 4,1; 5,6; 12,9)
c) Compreender: (Jo 3,10; 12,16; 8,43; 7,49; 10,6; 13,12.28).
d) Perceber, sentir (Jo 6,15; 16,19)
e) Saber, ter reconhecido: (Jo 1,48; 2,9; 15,18; 21,17; 1 Jo 2,29; 3,20;2Jo 1).
f) Reconhecer como algo que se torna exigência (Jo 1,10).
Existe uma similaridade e afinidade de pensamento entre Fílon de Alexandria e o
evangelho de João quanto ao tema do conhecimento de Deus. Para Fílon, conhecer a Deus é a
meta principal da pessoa humana e sua mais alta bem-aventurança. Conhecer a Deus é ser filho
de Deus19
A razão mais profunda da religião, para Fílon, é aprofundar de tal modo o conhecimento
de Deus que se chegue a possuí-lo20. Religião é, segundo Fílon, a saudade do próprio Deus; e
sentir saudade de Deus é amor. Esta busca de Deus só é possível porque o próprio Deus se dá a
conhecer, isto é, se revela e nos ama21.
Nos escritos de Nag Hammadi (Codex II)22, além do conhecimento, é exigida a eficácia
da fé e a perseverança no amor mútuo, como conseqüência prática do dom da Salvação.
Exatamente essa mesma exigência está presente no discurso figurativo da videira (Jo 15,1-17) e
na ética cristã, em geral. Cada ser revela sua natureza através de seu conhecimento e de sua
prática23.
19
Cf. DODD, C. H. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo, 1977, p. 82.
Cf. LÜTGERT, W. Ethik der Liebe. Gütersloh, 1978, p. 46.
21
Cf. ibid.
22
Codex II de Nag Hammadi: „Amai-vos e suportai-vos uns aos outros e cigí-vos com a sabedoria justa de vosso
Senhor. Fiquei firme e perseverai no mundo, até que vossa medida estiver cheia“.
23
Cf. ONUKI, T. Gemeinde und Welt im Johannesevangelium. Ein Beitrag zur Frage nach der theologischen und
pragmatischen Funktion des johanneischen „Dualismus“, Neukirchen, 1984, p.129s.
20
b)Amor
A comunidade joanina compreende o mistério da relação profunda entre Deus Pai e Filho
em termos de „conhecimento“ e „amor“ mútuos. As fórmulas de reciprocidade no
relacionamento Pai-Filho têm como conseqüência a mesma relação recíproca entre Jesus e os
seus.
A parábola do Bom Pastor (Jo 10,1-21) apresenta três realidades em sua mais profunda
corelação: o conhecimento, o amor e a vida. Esta é a compreeensão joanina do verbo „conhecer“,
prolongando a tradição bíblica vétero-testamentária, sobretudo de Oséias24. Jesus não apenas
compara, mas fundamenta o conhecimento mútuo que o liga aos seus no conhecimento mútuo
que existe entre o Pai e o Filho:
Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem,
como o Pai me conhece e eu conheço o Pai (Jo 10,14-15).
Conhecimento e amor mútuos levam às fórmulas joaninas de imanência ou inabitação
mútua até chegar à plena unidade: „Eu e o Pai somos uns“. O Pai está no Filho e o Filho está no
Pai que se tornam um25. Esta unidade não é possessiva, mas é profundamente libertadora. Não é
uma unidade que se fecha num relacionamento interpessoal intimista. Expande-se e acolhe no
amor:
Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
que eles estejam em nós,
para que o mundo creia que tu me enviaste (Jo 17,21).
Explicitando um pouco melhor podemos dizer que o pensamento teológico de João
compõe-se de duas linhas inseparáveis: de um lado temos o conhecimento de Deus, a visão, a
saudade e a escuta de Deus, como dom gratuito que culmina numa inabitação mútua entre Deus e
a pessoa humana; de outro lado temos a insistência na ação, na prática, no fruto.
Estas duas vertentes não caminham paralelamente, lado a lado, mas se fundem e
integram. A realidade na qual convergem é o amor, a agape divina. Quem acredita em Jesus, o
Cristo Filho de Deus, é incorporado no amor, na agape divina, podendo assim conhecer, ver
Deus e receber a vida eterna.
Ora a vida eterna é esta:
que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo...
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes reconheceram que tu me enviaste.
Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo,
a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles (Jo 17,3.25-26).
A prática concreta este amor torna-se um sinal de reconhecimento da autenticidade do
discipulado de Jesus (cf. Jo 13,35) O sinal externo visível da aliança de amor entre Jesus e seus
discípulos e suas discípulas é expresso, metaforicamente, através da imagem do „produzir frutos“
(Jo 15,8.16).
„Produzir frutos que permaneçam“ é obra do Espírito. O imperativo aoristo „permanecei
em mim , permanecei no meu amor“(Jo 15, 4.9.10), não é uma exigência moral, mas é, antes de
tudo uma eleição no amor (cf. Jo 15, 15-17). Um convite aos discípulos e às discípulas para que
24
25
Cf. OLIVEIRA, op. cit. p. 141s.;
Cf. ibid. p. 126s.
acolham o dom que lhes é oferecido no amor gratuito e incondicional de Deus que se dá
totalmente na entrega da Vida e do Espírito, pelo Filho (cf. Jo 10, 15.17 e Jo 19,30)26.
Resumindo, o conhecimento mútuo cria uma profunda reciprocidade e comunhão que
culmina na unidade. O amor mútuo vai além da lógica do conhecimento, pois, por natureza é
expansivo acolhedor e gera a partilha da vida. Só partilha quem acredita na vida27
O conhecimento do Mistério dá-se unicamente por participação no amor e partilha de
vida. Na primeira carta João nos oferece a chave de acesso à experiência do mistério de Deus:
Amemo-nos uns aos outros, pois o amor é de Deus
etodo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conheceu a Deus
porque Deus é Amor (1 Jo 4, 7-8).
O mistério trinitário de Deus se torna conhecido e acessível a nós pela prática concreta do
amor mútuo. Não por um amor abstrato, desencarnado, „platônico“. A pessoa histórica de Jesus é
manifestação do Pai e sem Jesus não é possível conhecer o Pai (cf. Jo 8,19). Da mesma forma a
ação do Espírito é necessária para conhecer e compreender a obra de Jesus, bem como seu
Mistério de união com o Pai (cf. Discursos de Despedida Jo 14-16). Esta ação do Espírito
conhecida por anamnese, não tem por objeto fazer uma memória do passado dessa ou daquela
palavra singular de Jesus, mas „todas as coisas“ que Jesus disse e fez, isto é a totalidade de sua
obra, a totalidade do Mistério de Deus28. Na experiência da anamnese -obra do Espírito/
Paráclito - a comunidade joanina e as comunidades cristãs de todos os tempos, também hoje,
encontram Jesus, ao mesmo tempo, como aquele que já veio, que está presente agora e voltará.
Aquele que veio e está presente, deve vir sempre de novo.
Desde o convite inicial „vinde e vede“ (Jo 1, 35) bem como na sua globalidade de gestos
simbólicos, narrativas, discursos de despedida, discursos pedagógicos, ou figurativosparenéticos, o evangelho de João pretende mostrar a primazia da prática do seguimento, para
chegar ao conhecimento de Jesus, de Deus. Seguimento de Jesus, para João, é adesão livre no
amor até o fim, isto é, até a entrega da vida em favor dos irmãos e das irmãs(Jo 10,1-21; 13,1).
A reflexão joanina sobre a qualidade do amor é clara. No seguimento de Jesus o amor
cristão se concretiza pela entrega da própria vida e implica num compromisso social-político de
partilha de bens com os necessitados, os empobrecidos e excluidos do acesso aos bens
indispensáveis para uma vida digna29. Este Amor precisa tornar-se conhecido:
Nisto conhecemos o Amor:
ele deu a sua vida por nós.
E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos.
Se alguém possuindo os bens deste mundo,
vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração,
como permanecerá nele o amor de Deus? (1Jo 3,17).
26
Cf. BORIG. R. Der Wahre Weinstock: Untersuchunguen zu Joh 15, 1-10. München, 1967, p. 61ss.
Cf. KIESER,B. Österliches Leben weitergeben,Leutesdorf, 1994, p. 28
28
Cf. FERRARO, O Espírito Santo no Quarto Evangelho. São Paulo, 1982, p. 74-75
29
O termo grego
traduzido por „bens deste mundo“ pode significar também: „recursos, meios de
existência, ou sobrevivência, condições de vida digna“; cf. PEREIRA, Dicionário Grego-Portugues, PortuguêsGrego, p. 100. O apelo à solidariedade e à partilha torna-se assim mais concreta e existencial.
27
Amar como Jesus amou, no sentido joanino, não se reduz a um sentimento místico, mas é
ação histórica concreta: partilha solidária dos bens com os necessitados e entrega da própria vida.
Na comunidade joanina, mulheres e homens seguem Jesus, assumindo o que
recentemente chamamos de discipulado mútuc30.
3. A FORÇA FEMININA NA CONSTRUÇÃO DE COMUNIDADES NOVAS
PAUTADAS NA LÓGICA DO AMOR
Como mulher, engajada no labor teológico, não posso deixar de falar daquilo que foi
silenciado ou até negado durante tanto tempo: o discipulado das mulheres.
A presença e a liderança de tantas mulheres, na contrução de comunidades eclesiais de
base hoje, bem como o contexto histórico e literário do evangelho de João, oferecem a moldura
e a fusão de horizontes para a reflexão que segue.
Retomando o titulo: da lógica do conhecimento para uma lógica do amor, como fonte
geradora de vida, temos algumas considerações a fazer.
Durante muito tempo...
Na tradição patriarcal há uma discriminação cultural sexista, que atribui ao homem a
capacidade da primeira dimensão da racionalidade objetiva (razão) e à mulher a intuição
subjetiva (coração).
A presença de mulheres é destacada em sete momentos decisivos para a expansão da Boa
Nova, no Evangelho de João, dividido, como já vimos em dois grandes blocos literários31:
_____________________________________________________________________________
LIVRO DOS SINAIS
TRANSIÇÃO
LIVRO DA EXALTAÇÃO
_____________________________________________________________________________
Jo 2,1-11: Maria nas Bodas
de Caná, pede um sinal da
„HORA“ de Jesus
Casamento = ALIANÇA
Jo 4, 1-42: Mulher Samaritana
dialoga com Jesus sobre as
tradições religiosas do judaísmo
e do samaritanismo. Torna-se
evangelizadora da Samaria
Jo 11, 21-27: Marta toma a
iniciativa de ir ao encontro de
Jesus e falar-lhe sobre Lázaro.
Marta faz publicamente sua
profissão de fé no Messias,
Filho de Deus.
30
Jo 12, 1-3: Maria de
Betânia, sua amiga,
unge Jesus para a
sua HORA suprema.
Jo 16,21: Mulher em estado de parto,
símbolo do sofrimento articulado com
a alegria que gera o NOVO.
Jo 19,25-27: A mãe presente na HORA
suprema de entrega da vida de Jesus:
„Mulher, eis aí teu filho.
Filho eis aí tua mãe“
Jo 20,11-18: Maria Madalena é
testemunha ocular do Ressuscitado
„Vi o Senhor!“ Verdadeira discípula,
ela faz o 1° anúncio da Ressurreição e
da NOVA ALIANÇA: „Vai e dize aos
meus irmãos que subo para meu Pai e
vosso Pai, meu Deus e vosso Deus“32.
Cf. FIORENZA, E. S. Discipulado mútuo - Apostila.
Alguém poderia lembrar que há um oitavo episódio em que aparece a mulher pecadora (Jo 8,1-11).
Consideramos, porém o texto próprio de João e não sua adaptação sinótica, como diz a nota da Bíblia de Jerusalém:
„Esta perícope (7,53-8,11) nos mais antigos documentos, colocada alhures por outros, deixa transparecer o estilo
sinótico e não pode ser de João. Poderia ser atibuído a Lucas (cf. Lc 21,38ss.)“.
31
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Nestes sete momentos, a mulher aparece de forma positiva. Mais que ser ajudada por
Jesus, ela ajuda a Jesus na descoberta e realização de sua missão, de sua hora messiânica.
A mãe de Jesus, no evangelho de João, sempre é chamada de „Mulher“, quando Jesus se
dirige diretamente a ela(cf. Jo 2, 4; 19,26). Este fato não é falta de respeito por parte de Jesus,
como muitas vezes foi interpretado, mas quer colocar em destaque a valorização das „mulheres“
na construção da nova comunidade que marca a Hora da Nova Aliança. Os Sinóticos já fazem
alusão a essa nova compreensão da maternidade quando colocam na boca de Jesus: „Minha mãe
e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática“ (Lc 8,21, cf. tb.
Mc 3, 31-35; Mt 8,18.23-27).
Segundo São João, ser mãe de Jesus é ser mulher que intercede, articula e apressa a
„hora“ messiânica, porque percebe a necessidade do povo, simbolizada na falta do vinho. Sem
vinho não há casamento feliz, na há celebração digna da vida (cf. Jo 2,1-11). Esta „hora“ que
ainda não chegou (cf. Jo 2,4) completa-se na inauguração da comunidade da Nova Aliança (Jo
19,25-27).
A mulher Samaritana, episódio único, narrado somente pelo evangelho de João enfatiza
um dado novo. Num belíssimo diálogo pedagógico-catequético, Jesus conversa de igual para
igual, sentado à beira de um poço, sobre as tradições cúlticas dos judeus e samaritanos, que se
misturam na comunidade joanina. Um verdadeiro debate teológico-religioso, faz a mulher
samaritana superar o nível superficial do diálogo33 e a leva a um profundo reconhecimento de
Jesus como Messias e Profeta. Professa publicamente esta sua fé e se torna evangelizadora da
Samaria. Diferente do relato da Evangelização da Samaria na Igreja Apostólica (At 8,4-25), que
atribuem a Filipe, Pedro e João a evangelização da Samaria, encontramos aqui uma mulher,
marginalizada por ser mulher e por ser samaritana, considerada prostituta, transformando-se em
evangelizadora dentro de sua própria cultura e a partir dela(34.
Marta, a ativista dos Sinóticos(cf. Lc 10,38-42), é apresentada aqui, como uma mulher
que atenta aos sinais da presença de Jesus, toma a iniciativa de ir ao seu encontro, falando
pessoalmente com Ele sobre aquilo que a faz sofrer no momento: a vida e a morte de seu irmão
Lázaro. Após professar sua adesão de fé à pessoa de Jesus que se apresenta como Ressuscitado,
ela vai chamar sua irmã Maria, para que também vá ao encontro daquele que a chama. A
profissão de fé de Marta: „Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao
mundo“(Jo 4,27), tem o mesmo conteúdo da profissão de fé feita por Pedro ( cf. Mt 16,16; cf. tb.
Jo 6,68-69).
No centro do evangelho (Jo 12, 1-11) temos uma cena narrada também pelo evangelho de
Lucas, a saber a unção de Jesus por uma mulher. Chama-nos a atenção, mais uma vez, que essa
mulher vista pelos evangelhos sinóticos como pecadora (cf. Lc 7,36-50) em João é a amiga de
Cf. WEILER,L. „Jesus e a Samaritana“, in: RIBLA (15), p.101.
João usa a técnica literária dos „mal-entendidos“ como recurso catequético de aprofundamento da mensagem
evangélica. Nenhuma personagem é poupada do „mal-entendido“, com excessão do Discípulo Amado.
34
Cf. Ibid. Comparando o relato da evangelização da Samaria em At 8,4-25 com Jo 4, 1-42, percebemos um
deslocamento do sujeito, agente da evangelização. Nos Atos dos Apóstolos é Filipe que vai à Samaria para fazer o
anúncio de Jesus Cristo. Por não ser Apóstolo necessita da legitimação apostólica vinda do colégio apostólico
sediado em Jesusalém. Enviam Pedro e João para completar a missão evangelizadora iniciada por Filipe(cf. At. 8.1417).
32
33
Jesus Maria, irmã de Lázaro e de Marta (cf. Lc 10,38-42). Num gesto simbólico de extremo
amor, Maria unge Jesus para a sua HORA suprema. A entrega de sua própria vida não é mais
apenas um gesto simbólico, mas um ato de amor comprometido até a últimas conseqüências.
Na segunda parte do evangelho encontramos a mulher em estado de parto (Jo 16,21),
como símbolo do sofrimento articulado com a alegria, querendo gerar o NOVO. Imagem bonita
de esperança e vida nova.
Maria Madalena (Jo 20,1.11-18) pode ser considerada um protótipo do discipulado
feminino. A cena da Ressurreição que narra a busca apaixonada e o encontro cheio de amor de
Maria Madalena com o Mestre Jesus, reúne, numa impressionante convergência todos os
critérios necessários para legitimar o verdadeiro discípulado35.
Entrar no processo do discipulado de Jesus, para João, é passar da lógica do
conhecimento para a lógica do amor. Isso implica numa exigência de superação dos malentendidos que geram equívocos porque ficam apenas no nível superficial da comunicação
racional. Um exemplo ilustrativo é a intervenção de Nicodemus:
Em verdade, em verdade, te digo: Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.
Disse Nicodemos: ‘Como pode um homem nscer, sendo já velho?
Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer de novo?’ (Jo 3, 3-4).
Considerado um Mestre em Israel, não compreende o que significa nascer de novo,
porque permanece na lógica do conhecimento biológico e não entra na lógica do mistério, do
amor. Sua curiosidade o leva a perguntar novamente: „Como isso pode acontecer?“ (Jo 3, 9a).
Jesus ironisa seu conhecimento superficial, dizendo: „És mestre em Israel e ignoras essas
coisas“?(Jo 3,9b).
CONCLUSÃO
A passagem da lógica do conhecimento para a lógica do amor mais que um tema, é uma
atitude, ou um método que não pode ser resumido numa conclusão teórica. Por isso mesmo não
queremos concluir essa reflexão com uma síntese das idéias desenvolvidas, mas com uma
parábola.
Lucia Weiler
Texto publicado em homenagem aos 60 anos do Prof. Dr. Urbano ZILLES
35
Cf. WEILER,L. „A mulher no Novo Testamento“, in: Renovação 24, Porto Alegre (1990), pp. 2-6.
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