Cognição e compreensão da música pós-tonal

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ACTAS DEL X ENCUENTRO DE CIENCIAS COGNITIVAS DE LA MÚSICA
COGNIÇÃO E COMPREENSÃO DA MÚSICA PÓSTONAL
ANTENOR FERREIRA CORRÊA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Resumo
Tem-se como objeto de estudo a compreensão da música pós-tonal. Objetiva-se
descrever os fatores que concorrem para a percepção e apontar possibilidades compreensivas
para o repertório erigido fora do domínio da linguagem tonal. Nesse intuito, percorre a seguinte
problemática: como se dá a compreensão musical fora do domínio tonal? Quais e como os fatores
culturais norteiam e ou modelam a percepção e o entendimento da música não tonal? Inicialmente,
é feita a revisão de estudos no campo da cognição musical considerando as propostas de alguns
autores sobre os aspectos inatos e invariantes envolvidos na percepção musical (Sloboda, Meyer).
Em posse dessas considerações, são analisadas as perspectivas experienciais e analíticas de
escuta e compreensão musical (Debellis, Levinson), estabelecendo paralelos e afastamentos dos
processos ligados à percepção tonal. Com essas análises, considera-se a importância da
funcionalidade na modelagem dos processos de escuta musical, bem como sua projeção para a
compreensão do repertório pós-tonal.
Abstract
The main object of study in this paper is the understanding of post-tonal music. It aims to
describe the factors that contribute to the musical perception and set out possibilities for
understanding the repertoire erected outside the domain of tonal language. It covers the following
issues: how is accomplished the musical understanding outside the tonal domain? Which cultural
factors direct and shape the perception and the understanding of non-tonal music? Initially, it’s
made the revision of two studies in the field of musical cognition in order to consider the proposals
of some authors about issues involving innate and invariant aspects of perception (Sloboda,
Meyer). Following, are considered experiential and analytical perspectives of listening and musical
understanding (Debelle, Levinson). With these analyses, I assume the importance of functionality in
modeling the processes of music listening as well as his extension for the understanding of posttonal repertoire.
Introdução
John Sloboda, em seu livro A Mente Musical, descreve um experimento no qual um
tabuleiro de xadrez com algumas peças é mostrado, por um curto período de tempo, a alguns
enxadristas e a pessoas leigas neste jogo. A seguir, pedia-se a eles que reproduzissem a disposição
das peças no tabuleiro que acabaram de observar. Notava-se um acerto de quase 100% por parte
dos enxadristas quando as peças estavam posicionadas de maneira lógica, isto é, de forma na qual
fariam sentido em uma partida de xadrez. Todavia, quando as peças encontravam-se dispostas de
maneira aleatória, a memorização e posterior reprodução do posicionamento dessas peças era mal
sucedida por parte dos enxadristas. Os leigos, contudo, mantinham uma proporção baixa, porém
similar, de acertos nas duas situações.
No caso da música, ocorre algo muito semelhante. Quando pessoas, iniciadas ou não
iniciadas musicalmente, são requisitadas a recordarem de fragmentos de melodias, tendem a
lembrar-se com muito mais facilidade dos fragmentos melódicos formatados segundo regras da
harmonia tonal (Sloboda 2008), mostrando que a percepção da coerência desempenha papel
primordial para a faculdade de memorização. Por conta disto, quando a percepção destes padrões
sonoros conseguia estabelecer uma lógica, quando o material musical fazia sentido, eram mais
facilmente reconhecidos, memorizados e resgatados posteriormente.
Eu realizei experimentos similares com alunos universitários dos cursos de bacharelado em
instrumento e de licenciatura em educação musical, portanto, todos possuidores de conhecimentos
musicais. Tratava-se de uma atividade simples na qual era pedido que observassem (visualmente)
memorizassem uma sequência de notas por 10 segundos e depois a transcrevessem. As sequências
foram as seguintes mostradas na figura 1.
Alejandro Pereira Ghiena, Paz Jacquier, Mónica Valles y Mauricio Martínez (Editores) Musicalidad Humana:
Debates actuales en evolución, desarrollo y cognición e implicancias socio-culturales. Actas del X Encuentro de
Ciencias Cognitivas de la Música, pp. 265.272.
© 2011 - Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Música (SACCoM) - ISBN 978-987-27082-0-7
FERREIRA CORRÊA
Figura 1. Sequência de notas usadas no experimento de memorização.
Neste simples exercício, notou-se que os alunos apresentaram alto grau de acerto na
memorização da primeira sequência. Esse nível de eficácia foi decrescendo proporcionalmente nas
sequências seguintes, sendo que a de número 4 não foi acertada completamente por ninguém.
Mesmo na conhecida Happy birthday to you (dividida em três pentagramas que, provavelmente,
desviaram a atenção dos observadores), o coeficiente de acertos foi baixo. Esses dados apontaram
que os alunos não buscavam reconhecer o resultado sonoro do trecho apresentado, mas que
tentavam memorizar nota a nota o grupo observado. Quando o fragmento apresentava uma estrutura
conhecida, como a escala maior da sequência 1 ou a descida em terças da sequencia 2, o nível de
acertos foi maior. No entanto, quando não era reconhecida alguma estrutura familiar, o índice de
acertos foi baixo.
Por outro lado, as mesmas sequências foram apresentadas sonoramente, ou seja, a partir
de uma gravação, a outros alunos do curso de música e lhes foi solicitado que a reproduzissem
cantando. Os resultados demonstraram aquilo que era esperado: alto grau de acerto nas sequências
de 1 a 3 e um menor índice de eficiência na reprodução da sequência 4 (houve outras sequências
não tonais, não indicadas neste artigo, que também mostraram baixo grau de acerto). Ressalte-se o
fato de que a sequência de número 4, que não havia sido acertada por ninguém, no procedimento de
memorização auditiva obteve um nível de acerto de 55%.
Esses experimentos citados, seja no caso dos ouvintes musicais quanto dos enxadristas,
implicam procedimentos de memorização que apontam para a importância da percepção de uma
ordenação lógica na organização dos componentes envolvidos. Deduz-se daí que as situações
compreendidas como organizadas são memorizadas com maior eficácia que aquelas nas quais as
disposições foram percebidas como aleatórias. No caso das experiências com músicos (iniciados ou
não), também se pode inferir que “as pessoas não lembram de melodias simples com base em
alturas e ritmos precisos, mas sim, em termos de padrões e relações” (Sloboda 2008, p. 8).
Dentro deste quadro, é possível propor que compreensão demanda a necessidade de se
estabelecer relações entre os elementos envolvidos. No caso da música, o estabelecimento e a
percepção dessas relações pode se dar no momento da escuta da obra ou posteriormente, com o
estudo da partitura. Essas duas formas de compreensão têm sido nomeadas como experienciais e
analíticas. Até este ponto há consenso entre os autores (que divergem sobre terminologias, mas não
sobre o conceito); todavia, as dicotomias surgem de maneira mais acentuada na preponderância que
cada autor designa a cada um desses dois planos da compreensão. Roger Scruton classifica esses
domínios como ordem musical (baseada sobre uma gramática da escuta) e ordem intelectual
(alicerçada em uma gramática composicional). Não obstante, Scruton somente admite a real
efetivação da compreensão musical no domínio de uma ordenação sonora passível de ser
apreendida na escuta da música. Mark Debellis (1995), por sua vez, entende que a instância analítica
é quem viabiliza a compreensão musical, já que ouvintes não iniciados musicalmente, não
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conseguem acompanhar uma obra musical nos aspectos de seu desenvolvimento e de sua estrutura
fundamental (apud Renero 2009).
E no caso do repertório erigido fora do sistema tonal, o que acontece? Se tomarmos como
ponto de partida a afirmação de Roger Scruton, seríamos forçados a crer que fora do orbe da
tonalidade não há compreensão musical, pois segundo ele “a música tonal é a única música que
realmente significará algo para nós, e se a música atonal, por vezes, ganha uma audiência, é porque
podemos extrair dela uma ordem tonal latente” (Scruton 1997, p. 308). Todavia, é preciso ter em
conta que habilidades cognitivas são moldadas e desenvolvidas em contextos sócio-culturais, sendo,
também, transmitidas culturalmente. Caberia, então, indagar se é possível verificar nas distintas
culturas a ocorrência de modos não tonais de transmissão musical. Ainda, na própria cultura ocidental
não poderiam ser encontrados exemplos de escutas não tonais (como a escuta motívica, por
exemplo)?
Para tentar lançar luz a essas indagações, iniciamos com outra pergunta: o que engendra a
lógica e coerência responsáveis por formatar a percepção e viabilizar a compreensão musical? Seria
útil, neste momento, apresentar as definições de compreensão musical conforme propostas por seus
autores. Porém antes disso, esclareço que este artigo divide-se em tópicos nos quais são tratadas de
modo sumário as seguintes questões: O que é compreensão musical? O que significa entender de
música? Quais são os aspectos inatos e ou invariantes presentes na percepção musical? Quais são a
as características culturais envolvidas na percepção musical? O que é organização tonal? Há
possibilidades de compreensão musical fora do domínio tonal? Pretende-se, assim, aventar
alternativas diferenciadas de entendimento do repertório pós-tonal, contestando, em certa medida, a
significativa argumentação de Roger Scruton e oferecendo a alternativa funcional ao padrão de
escuta tonal.
Compreensão musical
É curioso notar que as pessoas não iniciadas musicalmente, de maneira geral, ao
conversarem sobre música, sentem a necessidade de começar suas considerações com a ressalva:
eu não entendo nada de música. Mas o que significa exatamente entender de música? Scruton
propõem a seguinte colocação: “compreensão musical é, em parte, uma atividade cognitiva: uma
atividade de organização mental que congrega sons e os registra como tons organizados em uma
ordem tonal” (Scruton 1997, p. 211).
Examinando detalhadamente a frase de Scruton, percebemos de saída a colocação do
plano cognitivo, ou seja, compreensão enquanto aquisição de conhecimento, cognição como ‘tomar
ciência de’. Porém, não se trata de um simples perceber sensório, mas a percepção de uma
organização pela via mental, envolvendo, portanto, processos cerebrais/intelectuais. Para realizar-se
essa compreensão o ouvinte deve ser capaz de reunir os sons escutados como partes de uma única
moldura musical de modo a entendê-los como participantes de um mesmo contexto. Ainda, pela
audição, esses mesmos objetos sonoros (até então meros fenômenos acústicos) devem propiciar
serem captados como objetos musicais, donde estabelecerão relações entre si, pois do contrário não
serão registrados com pertencentes ao mesmo ambiente composicional. Sloboda enfatiza esse
aspecto notando que “a principal característica da música é que os sons existem em relações
significativas uns com os outros e não de maneira isolada” (Sloboda 2008, p. 203).
Vale enfatizar que essa definição traz algumas implicações. A primeira é a diferenciação
entre ‘som’ e ‘tom’. No inglês há a distinção, não existente no português, entre tom e som (tone e
sound). Sound é aquilo captado pelo sentido da audição, ao passo que tone implica no estatuto
musical que o som adquire (isto é, altura, timbre, duração e intensidade) quando inserido no contexto
da música. Assim, tone é um som que existe no domínio musical, similar ao que Pierre Schaeffer
designava como objeto musical em oposição ao objeto sonoro. Desse modo, fica esclarecida a
definição de Scruton “congregar sons e registrá-los como tons”, pois implica justamente na atribuição
de sentido musical a uma gama sonora percebida.
A segunda implicação terminológica da frase de Scruton reside no entendimento de ‘ordem
tonal’. Se a intenção é fornecer uma definição abrangente, então essa expressão não pode
simplesmente restringir-se às sucessões pertencentes ao sistema tonal (mesmo porque tonal referese àquilo que é próprio dos sons, em oposição, por exemplo, a rítmico: pertencente ao ritmo, ou
timbrístico: particular ao timbre). A possibilidade da disposição ordenada de elementos não se limita à
tonalidade clássica, podendo ocorrer em quaisquer sistemas sintáticos musicais como o sistema
modal, por exemplo. E mesmo o serialismo integral é tido como altamente estruturado 1. Cabe, porém,
a ressalva fundamental de que o importante é a atribuição desta ordem pelo cérebro durante o ato da
1
A própria definição de estrutura é útil no contexto desta argumentação, designando a congregação de relações
entre elementos de modo a criar uma ordem, ou também “o conjunto de relações lógicas e racionais que se
deixam descrever sob a forma de leis” (Jakobson, apud Pomian, p. 151).
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escuta. Com isso, é lícito pensar que a compreensão musical é a organização impingida no processo
cognitivo aos eventos sonoros de modo que estes adquiram sentido. Esta aquisição de sentido
implica que os componentes da música compartilhem alguma espécie de relação, pois do contrário
correm o risco de serem tidos como díspares, não pertencentes ao mesmo contexto.
A partir dessa definição poder-se-ia perguntar: como o indivíduo constrói essa organização
mental dos sons que escuta? A partir de um aprendizado musical? A partir de sua experiência com a
música? Se as respostas para essas duas últimas questões forem ‘sim’, então necessariamente
temos que levar em consideração os fatores culturais, pois os hábitos de escuta se dão no interior da
cultura da qual o ouvinte faz parte. Seria justo, então, indagar: quais são os hábitos culturais de
transmissão e percepção intrínsecos ao ambiente sócio-musical daquele determinado ouvinte? Ainda
neste sentido, se é contumaz para a compreensão musical perceber relações, há que se considerar
aquilo que um indivíduo aprendeu a discriminar como sendo uma relação.
Esses são aportes iniciais que serão retomados adiante. Por ora, resgatemos as duas
perspectivas sobre compreensão musical formuladas inicialmente: experienciais e analíticas (cf.
Renero 2009).
Sob a perspectiva experiencial, a compreensão musical implica em um vínculo cognitivoafetivo, isto é, existe a necessidade do ouvinte sentir a progressão musical. O entendimento se dá de
forma dinâmica, durante o processo de escuta, no qual o ouvinte se envolve e reage a fluxo de
eventos sonoros que se lhe apresenta de modo a organizá-los coerentemente. Já sob a ótica da
compreensão analítica, o entendimento é puramente cognitivo, isso é, intelectual, sendo atingido pela
retenção dos componentes da estrutura da obra (a identificação das partes e de componentes
estruturais, como motivos, temas, cadências, entre outros). Esse modelo pressupõe uma espécie de
consciência reflexiva do ouvinte a respeito dos atributos formais da música, bem como de seus
mecanismos de articulação. A compreensão analítica é proposicional (há o exame daquilo que é
proposto), enquanto que a experiencial é processual (é sentida no desenrolar dos eventos).
Outros autores realizam a mesma diferenciação desses orbes da compreensão musical sob
outros termos. Leonard Meyer, por exemplo, fala da distinção entre “compreender a estrutura musical
e os processos apresentados à mente do ouvinte, por um lado, e compreender, ou descobrir, o
repertório de materiais tonais e as regras para sua manipulação sob as quais a composição foi
baseada” (Meyer 1994, p. 267). De modo similar aos estudos de Lerdahl e Jackendoff (A generative
theory of tonal music), Meyer enfatiza a distinção entre a gramática perceptual e a gramática da
composição musical. Scruton (1997) resume a situação propondo a divisão entre o que chama de
‘ordem musical’ e ‘ordem intelectual’ da música, aproximando-se, assim, respectivamente, das
perspectivas experiencias e analíticas.
O fragmento melódico da figura 2 tem o intuito de exemplificar essas duas perspectivas.
Perceber durante a escuta a expressividade dessa linha, que descende e alcança o ponto culminante
e, depois, chega a um desfecho ou relativo repouso na última nota (Gb), é uma compreensão
musical. Talvez, nesta mesma escuta, um ouvinte treinado possa captar que não há repetição de
notas e deduza, então, tratar-se de uma linha dodecafônica. Todavia, a observação que se trata de
uma série simétrica, cujas 12 notas estão dispostas de modo que a segunda parte espelhe a
sequência intervalar da primeira parte da série, é um conhecimento intelectual, facultado pela análise.
Figura 2. Fragmento melódico construído a partir de uma série simétrica de 12 notas.
Esse tipo de informação conseguida por meio da dimensão intelectual ou analítica da obra,
na visão de alguns autores, não revela uma real compreensão musical. Jerrold Levinson entende que
a “apreensão intelectual e consciência (a qualidade de se estar cônscio, ciente) da macro-forma
musical só podem contribuir em um grau muito pequeno para o entendimento da obra, mas não de
uma forma significativa” (Levinson, apud Renero 2009, p. 24). Para Scruton, compreensão musical
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refere-se somente ao modelo experiencial, não analítico, pois para ele a formulação de relações entre
os eventos musicais devem ocorrer durante a escuta. Leonard Meyer entende que o conhecimento
das regras que nortearam a realização da obra, bem como a identificação de materiais e técnicas
usadas e o entendimento da estrutural da obra não são necessários para a compreensão musical,
assim como não é necessário que um falante entenda as normas gramaticais para poder
compreender o conteúdo da fala ou de um texto literário. A posição de Meyer é certamente válida
para o repertório ao qual ele se dirige: o serialismo integral. Todavia, existem outras possibilidades de
renovação da escuta que, consequentemente, irão envolver e demandar outro tipo de compreensão.
O que ocorre quando o compositor justamente propõe uma obra na qual confronta essas
normas compositivas? Ou, como em diversas correntes estéticas do século XX, discute o conceito do
que se entende por obra artística? Perceber o questionamento do autor não é um tipo de
compreensão? Esse aspecto do entendimento, exemplificado nessas situações, demanda do ouvinte
a familiaridade com os códigos característicos das distintas estéticas, pois do contrário não terá
ferramentas para viabilizar-lhe o entendimento do objeto artístico. Isso denota que entendimento do
tipo intelectual integra a compreensão musical. Além disso, essa situação indica a importância do
legado cultural, já que recebemos e armazenamos informações peculiares ao meio social de onde
somos fruto. Imagine-se, por exemplo, uma situação na qual o ouvinte pela primeira vez assiste a
apresentação de Farben de Schoenberg ou de Atmospheres de Ligeti. Se esse expectador
desconhece ou não percebe que a intenção do compositor é desenvolver outro parâmetro acústico (o
timbre no caso de Schoenberg) ou, no caso de Ligeti, experimentar novas texturas sonoras, ele não
logrará uma compreensão total da obra, podendo apenas fruí-la de modo passivo. Vislumbra-se,
neste caso, que a compreensão plena da obra vem do entendimento proposicional do autor, que se
revela no fluxo discursivo musical.
Em vista disso, estudiosos (ver por exemplo, Renero 2009) entendem e propõe a existência
de níveis ou graus de entendimento. Do mesmo modo que uma segunda audição pode modificar a
escuta de uma música, a análise seguida de nova audição também a modifica, influenciando,
portanto, na compreensão da obra. Assim, existem níveis e graus de compreensão, demonstrando a
ineficácia de se considerar unilateralmente um só tipo de conhecimento, seja este analítico ou
experiencial. Esses dois modos concorrem para a compreensão musical sem se excluírem.
Funcionalidade
É interessante notar que os entendimentos de todos os autores citados a respeito da
compreensão musical apontam para a importância da funcionalidade, pois demandam que os eventos
sonoros escutados sejam passíveis de estabelecerem algum tipo de relação entre si. Corroborando
essa afirmação somem-se os dizeres: “A maneira como alguém ouve música depende crucialmente
daquilo que é capaz de lembrar dos eventos musicais passados” (...) “perceber um evento
musicalmente é relacioná-lo a eventos passados” (Sloboda 2008, p. 229). E esse aspecto parece
estar comprovado nas experiências mencionadas inicialmente com enxadristas, músicos e leigos.
Nesses experimentos, quando o observador consegue extrair uma lógica da disposição das peças
sobre o tabuleiro, ou na sequência de notas ouvidas, é porque esses componentes comportam uma
relação entre si que permite ser percebida. Desse modo, a compreensão está atrelada à possibilidade
de abstrair a relação existente entre os diversos elementos que participam do evento apreciado, seja
este musical, literário, arte-visual ou uma partida de xadrez. Especificamente no caso da música,
poder-se-ia perguntar: essa lógica a ser deduzida da relação entre os elementos sonoros está
inexoravelmente atrelada ao sistema tonal? A cognição musical é tonal?
Roger Scruton responde a essas questões com um sonoro sim, pois segundo ele
“a compreensão musical deduz uma ordem elaborativa no domínio intencional dos tons”
(...) [e] “se essa ordem elaborativa permite ser estendida para novas direções (pós-tonalidade) é
porque a tonalidade pode ser estendida ou porque seus efeitos podem ser preservados através de
um pensamento tonal oblíquo.” (Scruton 1997, p. 308)
Por outro lado, diversas culturas, ocidentais ou não, já provaram que o sistema tonal não é
o único meio, tampouco a condição indispensável para se erigir um discurso musical passível de ser
compreendido pelos ouvintes. Como simples exemplos, basta lembrar dos conjuntos de gamelão da
Indonésia, da música indiana com suas escalas em quartos de tom, da música do didjeridu
australiano, entre outras. No repertório ocidental, comento dois procedimentos composicionais
distintos, a música motívica do período do atonalismo livre (tendo em Schoenberg e Webern seus
principais representantes) e o minimalismo (de Reich e Glass).
No caso do minimalismo, embora a música estruture-se sobre procedimentos repetitivos
que, em certa maneira, possam até soar como um convite ao transe, ou seja, a uma escuta
contemplativa ou meramente sensória, deve-se atentar para o fato de a estrutura da obra ser
revelada gradativamente. Por meio de processos de exposição gradual, os materiais são
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introduzidos, articulados e transformados, de modo que a forma vai sendo construída e revelada
neste processo reiterativo e gradual. É, certamente, um tipo de percepção experiencial, pois a
compreensão se dá no fluxo musical à medida que a estrutura se deixa transparecer. Contudo, esse
processo também é funcional, pois o evento subseqüente é relacionado ao anterior (quando o
material é modificado ou acrescido de algo) e irá se articular ao próximo, e assim sucessivamente.
Nas obras de característica motívica, é evidente a postura exigida do ouvinte, que deve ser
apto a identificar o padrão melódico-temporal configurado como motivo e perceber suas relações na
estrutura da obra. Em menor grau, esse pensamento também vale para a música serial, na qual não
se percebe a série, mas sim os padrões ritmo-melódicos construídos com a série de base. Como
enfatiza Meyer em obras seriais “a série é usada temática ou motivicamente (...) em tais casos,
ocorre a percepção de um padrão ou grupo de relações que, também, acontecem de ser uma série”
(Meyer 1994, p. 268).
A identificação do motivo requisita uma habilidade mental da parte dos ouvintes. Ao que
poderíamos indagar se se trata de uma prerrogativa inata ou cultural, ou colocada de outro modo:
existem tendências perceptuais inatas?
Sem deter-se em demasia sobre esse assunto, por motivo de espaço e por estar além do
escopo deste artigo, entendo que existam disposições e restrições cognitivas de ordem biológica e
cultural. A capacidade de armazenamento e o volume de processamento de dados pelo cérebro é
uma restrição biológica. A habilidade em identificar, diferenciar, descrever, classificar, categorizar e
conceituar são disposições cognitivas também de ordem biológica. A apreciação musical é uma
atividade cultural, todavia, psicólogos identificam tendências perceptivas inatas baseadas nos
princípios gestálticos de agrupamentos. Dentre esses estão as relações de proximidade, similaridade,
simetria, boa continuação e fato comum2. A música timbrística (klangfabermelodie) baseia-se em dois
princípios gestálticos: boa continuação e fato comum. Quando um elemento de uma gama perceptual
engendra uma continuidade simples para outra série de elementos, terá condições de ser entendido
como parte da série, e não como conflitante. Por conta disso, uma melodia fragmentada e dispersa
pelo efetivo timbrístico orquestral não perde seu caráter ou padrão rítmico-melódico. Comprove-se,
essa afirmação, com a escuta do Ricercare da Oferenda Musical de Bach orquestrado por Anton
Webern.
Deduz-se, daí, que faz parte da natureza humana a capacidade de identificar e relacionar
padrões musicais, quer sejam relações de similaridade, contraste, modificação, etc. Nesse sentido,
pode-se também afirmar que essas relações são passíveis de serem observadas e construídas em
quaisquer conjuntos de fenômenos, independente do sistema sob os quais foram concebidos. Assim,
para o estabelecimento de relações funcionais é necessário que estruturas musicais permitam ser
conectadas de alguma maneira, isto é, os objetos musicais precisam articular-se de modo a serem
ouvidos como partes integrantes da mesma obra. E essa possibilidade de relações pode acontecer
no sistema tonal como em qualquer outro paradigma não tonal. Considere-se, por exemplo, a obra
baseada na textura de massa sonora, como na prática de Edgard Varése. Neste procedimento, os
densos aglomerados sonoros são percebidos enquanto totalidades de blocos sonoros. Esses blocos
podem ser justapostos sequencialmente, possibilitando serem contrastados, ou podem ser
sobrepostos como camadas, gerando novas texturas.
Contudo, as considerações do parágrafo anterior não implicam que qualquer conjunto de
fenômenos sonoros irá permitir ser relacionado funcionalmente, pois podem ser percebidos com
sistemas caóticos ou aleatórios. Porém, afirma-se que a possibilidade de relacionar estímulos
captados perceptualmente é uma atividade cognitiva inata, independente, em certa medida, de
fatores culturais. Assim, quaisquer conjuntos de estímulos musicais, enquanto percebidos como
coerentes e organizados, trarão consigo a potência de serem compreendidos funcionalmente,
independente de estarem ou não estruturados no sistema tonal.
Conclusão
A partir das considerações a respeito dos experimentos aqui apresentados, fica evidente a
importância da percepção de ordem para conduzir à compreensão de um quadro fenomênico. No
caso específico da música, a possibilidade de se perceber eventos de maneira organizada, viabiliza
seu entendimento no âmbito experiencial. Todavia, não se pode negar a participação da dimensão
intelectual integrada à maneira como a música é apreciada. Após estudo ou análise de uma obra,
outra audição associará e contemplará aspectos não percebidos ou que inicialmente causaram
estranheza. Observe-se o caso de citações musicais, comuns em Alban Berg, porém mais facilmente
2
Uma descrição pormenorizada dos princípios gestálticos aplicados à música pode ser encontrada em: Shepard,
Roger. Cognitive Psychology and Music. In: Cook, Perry R. Music, Cognition and Computerized Sound.
Massachusetts: MIT Press, 2001.
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COGNIÇÃO E COMPREENSÃO DA MÚSICA PÓS-TONAL
lembradas no uso do hino da Russia por Tchaikovisky na Abertura 18112 ou na Marcha Eslava. O
ouvinte conhecedor do referido hino imediatamente o reconhecerá auditivamente, porém, a razão
dessa inserção nas obras citadas só é esclarecida pelo programa das mesmas, ou seja, uma
informação extra-musical.
Assim, uma nova escuta a partir dos aportes analíticos direcionará e conduzirá à
compreensão musical. Isso se dá porque nem todas as características da obra, imprescindíveis para
a compreensão da mesma, são passíveis de reconhecimento auditivo, assim, a análise da obra irá
desvendar aspectos que poderão direcionar a percepção para a observação de aspectos
organizacionais que poderão direcionar a escuta da peça. Em vista disto, afirma-se que ambos os
domínios, experiencial e analítico, interagem e concorrem para a compreensão musical. Essa
compreensão se dá nas diversas estéticas, tonais ou não, pois a percepção da ordem não se
encontra na dependência da existência de um centro ou pólo hierárquico principal, como comentado
no caso das obras minimalistas. Compreensão implica a possibilidade do estabelecimento de
relações entre os componentes musicais, ou seja, à funcionalidade. Se um elemento da obra é
passível de associar-se coerentemente a outro, então será iniciada uma rede cognitiva de relações,
cujo processo cerebral de identificação, distinção e classificação conduzirá à percepção da
organização musical.
Postula-se, assim, não a separação entre tonal e não-tonal, mas sim a distinção entre obras
cujo material musical permite inferir relações funcionais entre si e aquelas peças nas quais os objetos
musicais possuem um fim em si mesmos, sem envolver ou implicar associações ou relações com os
demais. Este tipo de peça propõe uma escuta sensória, que intentam uma imersão sonora, exigindo
do ouvinte a apreciação das qualidades acústicas (timbrísticas, texturais, etc.) do material
apresentado. Esse material será sucedido por outro com distintos atributos que também deverão ser
fruídos em si mesmos, independentemente daquele que o precedeu ou daquele que o sucedera.
Cada etapa sonora é uma situação única, localizada, independente e não teleológica.
É correto, portanto, identificar parâmetros sintáticos na escuta funcional, enquanto a escuta
sensória possui parâmetros estatísticos, posto que só se pode inferir a sucessão dos eventos por
meio de probabilidades de ocorrência e não pela necessidade de acontecerem por motivo de
lograrem relações.
Sob essa ótica, nota-se que a possibilidade de se promover relações entre os elementos
musicais também pode ocorrer nos domínios não tonais, como se exemplifica na música motívica, na
qual os gestos ou padrões rítmico-melódicos são apreendidos e relacionados de acordo com sua
repetição, diferenciação, elaboração e transformação.
Por fim, contestando a proposição de Scruton de que obras pós-tonais somente são
compreendidas na medida em que preservam efeitos próprios da tonalidade triádica, entendo que os
artifícios de elaboração e de prolongamento não são exclusivos das obras tonais, fato esse já
demonstrado em diversas análises schenkerianas do repertório pós-tonal. Similarmente, efeitos de
tensão e distenção não são únicos e particulares da tonalidade harmônica, mas baseiam-se,
sobretudo, na estruturação rítmica e no controle de densidade e intensidade sonoras, que favorecem
a percepção de fechamento, conclusão, desfecho.
Observando a distinção aqui proposta entre os modos de escuta sensório e funcional,
entendo como perfeitamente possível a compreensão das obras musicais pós-tonais.
Referências
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FERREIRA CORRÊA
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