UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA PPG EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ Aspectos lógicos na música clássica do século XVIII: o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental. Ouro Preto 2012 RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ Aspectos lógicos na música Clássica do século XVIII: o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental. Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte Orientador: Prof. Gilson Iannini Ouro Preto 2012 N122a Nachmanowicz, Ricardo Miranda. Aspectos lógicos na música clássica do século XVIII [manuscrito] : o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental / Ricardo Miranda Nachmanowicz - 2012. viii, 188f.: il. color. Orientador: Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini. Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Programa de Pós-graduação em Filosofia. Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte. 1. Música - Filosofia e estética - Teses. 2. Estética - Teses. 3. Lógica - Teses. 4. Juízo (Estética) - Teses. 5. Juízo (Lógica) - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título. CDU: 111.852:78.01 Catalogação: [email protected] AGRADECIMENTOS Agradeço a meu orientador Gilson Iannini pela liberdade de trabalho. A meu coorientador Eduardo Soares pelo rápido entendimento e avaliação. Agradeço a meus colegas de turma. Entre eles em especial: Rafael Abras, Lucas Marinho, Cláudia Dalla, Fran Alavina e Marcela Tavares. Agradeço aos professores da UFOP assim como o departamento como um todo que vêm permitindo um ambiente de trabalho único e bastante gratificante. Em especial aos professores: Cíntia Vieira, Bruno Guimarães e Imaculada Kangussú. Agradeço a um mote que sempre me faz abrir as páginas certas. A certo magista que envolve nossa vista a cada página. E às súbitas extensões de nosso pensamento em livros. À CAPES, pelo apoio financeiro sem o qual seria impossível este trabalho. Este trabalho é dedicado a Rameau, e à ciência de nos fazer perceber gravitações em música. Resumo A dissertação consiste em uma investigação de caráter epistemológica acerca da experiência musical, e em especial, da música instrumental tonal clássica produzida no século XVIII. A relação estabelecida foi que o objeto musical escolhido pode ser compreendido a partir do paradigma transcendental kantiano e de seu fundamento para o conhecimento, quer seja um fundamento lógico, determinante ou recognitivo. Contudo, esta mesma vinculação possui um impedimento na própria obra kantiana, que reserva um outro fundamento para o objeto musical, o estético. A dissertação conclui que a relação entre o fundamento lógico kantiano para o conhecimento e as técnicas e artifícios da produção musical instrumental clássica possuem uma complementaridade teórica que não possui o mesmo paralelo no fundamento estético kantiano. Resume The dissertation consists of an investigation about the epistemological character of musical experience, and in particular, instrumental classical tonal music produced in the eighteenth century. The relationship was established that the music-object chosen can be understood from the Kantian paradigm and its transcendental foundation for knowledge, whether a rationale, determining or recognition. However, this same binding has an impediment in his own work, Kant reserving another musical foundation for the musical object, the aesthetic. The dissertation concludes that the relationship between the Kantian logical foundation for the knowledge and the techniques and tricks of classical instrumental music production are complementary, and that has no parallel in the same Kantian aesthetic grounds. Sumário INTRODUÇÃO.........................................................................................................01 A Estética musical de um ponto de vista epistemológico 02 Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a musica instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical. 21 SEÇÃO 1: O lógico e o estético................................................................................36 CAPÍTULO I - Estatuto e conteúdo do juízo estético puro. 44 1. O juízo estético. 1.1. O estatuto do juízo da beleza. 1.1.1. O conteúdo expresso no juízo da beleza. 1.1.2. A hipotipose. 1.1.3. A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo. 47 50 56 60 62 2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza. 2.1. Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível. 2.2. Limites de um sistema do juízo de gosto. 67 69 73 3. A divisão entre lógica e estética implicada na separação entre natureza e arte. 3.1. O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo parágrafo §9. CAPÍTULO II – Estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade sintética da apercepção. 77 79 84 1. A apercepção enquanto autoconsciência. 1.1. Os produtos das faculdades. 86 88 2. Estatuto e conteúdo do juízo determinante. 2.1. A exibição esquemática e simbólica dos juízos. 89 93 3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento. 3.1. A representação da faculdade do entendimento. 3.1.1. Conceito: definição do termo. 3.2. O esquematismo. 4. As representações das faculdades em relação à síntese 94 96 99 101 da apercepção. 4.0.1. O objeto. 4.0.2. Os atos das faculdades transcendentais do conhecimento. 4.1 A representação da sensibilidade: a intuição. 4.2. O produto da imaginação: o esquema. 4.3. A representação do entendimento: o conceito. 104 105 108 109 111 113 5. Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades. 5.1. Pensando o fenômeno musical a partir de um modelo recognitivo do conhecimento. 115 119 SEÇÃO 2: Extrato lógico-musical.....................................................................123 CAPÍTULO III – Análise do estatuto musical. 1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitos para uma experiência: a recognição aplicada a objetos. 1.1. Análise da constituição de objetos visuais. 1.1.1. Análise categorial de um objeto visual. 1.1.2. Atos lógicos, gênero e espécie: análise lógica sob o exemplo das garrafas. 1.1.3. Propriedades conceituais de um objeto visual. 1.2. Diferença entre objetos sonoros e musicais. 1.3. Objetividade e subjetividade musical. 1.3.1. Relação espaço-temporal dos objetos. 124 128 132 133 135 138 141 144 145 2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental dos elementos musicais. 2.1 Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica. 155 3. Graus de síntese e ajuizamento sobre um objeto empírico. 3.1 Cópula de predicados. 162 164 CONCLUSÃO 153 166 1. A hipótese de Hanslick. 166 2. A condição sine qua non da experiência musical. 170 3. Considerações gerais. 174 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................178 ANEXO.............................................................................................................188 Introdução 1 A estética musical de um ponto de vista epistemológico Na música há sentido e conseqüência, mas musical; é uma linguagem que falamos e entendemos, mas que não somos capazes de traduzir. Há um conhecimento profundo em aludir também a “pensamentos” nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório. (Eduard Hanslick) A filosofia conduziu-se historicamente por um modelo de conhecimento norteado por uma primazia do órgão da visão. Se por um lado Platão criticava aquilo que aparecia à vista como uma ‘cópia’ ou ‘casca’ do real, em seu mito da caverna dá o máximo significado à luz que ‘faz ver’ as idéias. As metáforas a este respeito são abundantes e o repertório da filosofia e mesmo da linguagem ordinária o demonstram: iluminismo, iluminar, esclarecer, fazer ver, visão, etc. Ver, enquanto conhecer, é de fato uma metáfora que nos rendeu muitos frutos: Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propormos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. (Metafísica 980 A: 2001-2) Antes de qualquer coisa detenhamo-nos ante a um embate entre nossos órgãos dos sentidos. Comecemos apenas por dar atenção a outro órgão, talvez não tão repleto de metáforas a ponto delas adentrarem ao vocabulário epistemológico e científico, mas que sem dúvida estão presentes em outros campos, como a tão rica e pedagógica metáfora de ‘dar ouvidos’. Tal órgão não passou despercebido do mestre de Estagira, que reconhece e concede certo poder ao órgão auditivo: São inteligentes, mas incapazes de aprender, todos os animais incapacitados de ouvir os sons (por exemplo a abelha e qualquer outro gênero de animais 2 desse tipo); ao contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição. (Metafísica 980 A: 2001-2) O filósofo entende, por assim dizer, que aprendemos e ensinamos através da audição. E toda a proficuidade da expressão ‘dar ouvidos’ parece ao menos perfazer uma porta de entrada ao reino ‘superior’ do conhecimento. Não precisamos mais, assim como fez Aristoteles, hierarquizar a função dos órgãos dos sentidos por seu vínculo cognitivo, mas podemos vir a alcançar uma perspectiva de nossa capacidade cognitiva a partir do órgão da audição e do que podemos constatar em seus objetos. Falamos em ‘órgão’ do ouvido para lembrar que o fenômeno musical possui uma porta de entrada. E elegemos o ato de ouvir, a escuta1, como ato onde o conhecimento musical é erigido. Aproveitando-nos de uma problemática presente em Nancy, lançamos a questão sobre a própria capacidade da filosofia em compreender as capacidades auditivas enquanto capacidades cognitivas superiores. Escutar é algo ao qual a filosofia é capaz? Ou - vamos insistir um pouco, apesar de tudo, correndo o risco de exagerar o ponto - não teria a filosofia sobreposto sobre a escuta [listening], de antemão e por necessidade, ou ainda substituído a escuta, por alguma coisa que pudesse ser mais da ordem da compreensão [understanding]? (Nancy 2002:1) A língua francesa possui este duplo significado do termo entendre (traduzido como understanding ou to hear). No português, como no inglês, não há qualquer relação entre escuta e entendimento, ou escuta e conhecimento, não há uma relação prefigurada já na palavra. Nancy quer pensar o quanto escutar e entender se identificam, e o quanto o sentido da audição, impresso no termo entendre teria sido deixado de lado pela filosofia. Nosso itinerário é semelhante para com o objeto musical, pois que, em comum com todo conhecimento, a escuta musical estabelece-se como uma ponte, que encarrega uma facticidade sonora pelo trajeto de uma compreensão. Acompanhando ainda o diagnóstico de Nancy somos obrigados a nos perguntar: como nos tornar atentos, na escuta, à uma compreensão musical? E como descreve-la a partir de um modelo filosófico ligado a uma concepção de entendimento 1 Definição de ‘escutar’: Tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a; aplicar o ouvido com atenção para perceber ou ouvir. (Dicionário Novo Aurélio). 3 que se volta tradicionalmente ao visual? Há, pelo menos potencialmente, mais isomorfismo entre o visual e o conceitual, mesmo que apenas em virtude do fato de que a morphé, a "forma" implícita na idéia de "isomorfismo" seja imediatamente pensada ou apreendida no plano visual. (Nancy 2002:2) Como contrapartida, o sonoro, observa Nancy, foi identificado sempre com o esotérico, o confessional, o secreto. Porém, desde o século XVI, vê-se que música e ciência tornaram-se cada vez mais próximas, em grande medida pela necessidade da organização sonora pelos músicos, e concomitantemente, o interesse do cientista em compreender as relações sonoras. (Weber 1995). Este mesmo impulso é verificado ao longo dos séculos, mas é sobretudo a partir do século XX, e presentemente no século XXI, que conquistas teóricas e técnicas, artísticas e tecnológicas passaram a ter um enlace em proporções que atualmente suscitam questões acerca dos limites entre arte, técnica e ciência (Iazzetta 2008). Porém, retrocedendo alguns séculos, mais especificamente ao século XVIII, nosso trabalho não quer pensar na interação entre tecnologia, ciência e música, assunto este que já vem sendo contemplado nos trabalhos musicológicos atuais, mas diferente, centrarmo-nos na relação que o procedimento composicional e a escuta musical estabeleceram diretamente com o conhecimento, introduzindo ao debate uma perspectiva eminentemente epistemológica. Nosso escopo histórico localiza-se no interior da nascente música clássica, período este que se destaca pelo uso sistemático e preponderante da tonalidade e do discurso instrumental. O objeto musical passa a conter e ser o resultado de um procedimento composicional, de critérios e valores de escuta, concomitantemente cifrados junto à partitura e aos hábitos de leitura e execução. Notabiliza-se assim, sobretudo no período clássico, a figura do compositor. Assim, uma filosofia que pretenda dissertar acerca dos processos de conhecimento inerentes à experiência musical acaba por levar em consideração os próprios processos composicionais de um autor e de uma escola. A inter-relação necessária entre o objeto e a escuta é de tal importância em uma tradição musical erudita como a que vamos contemplar que podemos ligar o que seja essencialmente a música ao que seja essencialmente o trabalho de um compositor. Do mesmo modo, ligamos o nome de um compositor a uma determinada escuta, e 4 esta, a um objeto. Se lhe pergunto: ‘o que acha de Messiaen?’, pergunto, sob a esfera da escuta e do objeto, tudo, menos o que se pese acerca deste nome enquanto signifique uma pessoa. É aqui que adentramos em um problema bibliográfico, afinal, músicos não se preocuparam, antes do século XX, em publicar trabalhos teóricos que contemplassem a escuta, mas apenas a feitura das obras e técnicas as quais trabalhavam, o que não quer dizer que a escuta não corresse sempre implícita nestes trabalhos. O micrologus de Guido D’Arezzo, o Le Institutioni Harmoniche de Gioseffo Zarlino, o Der vollkommene Capellmeister de Johann Mattheson, e o Handbuch der Harmonielehre de Hugo Riemann, entre outros, ilustram esta bibliografia (Christensen 2002). A partir de certas características destes tratados podemos indicar constantes presentes nas descrições, embora o conteúdo deste processo se modifique a cada período histórico. Há um esquema geral, desde o medievo, que atende aos seguintes critérios: a) a obra musical desperta certo ‘efeito’. b) o ‘efeito’ musical possui vínculo causal com a organização sonora da obra. c) é possível organizar a obra a partir de um princípio teórico geral, o tratado. A ordenação do material musical parece ser assunto essencial desta arte. Os comentários a este respeito, todos centrados no conceito de harmonia, remontam a Aristóteles. Em sua concepção a aplicação da harmonia sob as artes se realizaria pela ‘lei’ do movimento: “notas que soam juntas não provocam sentimento” (Menezes 2002:28). A tradição ocidental vincula, assim, o efeito artístico à idéia de obediência a uma lei da harmonia, uma ordenação. Notamos tal empresa no conceito de ‘qualidade e afinidade’ (modi vocum) de D’Arezzo em seu Micrologus de 1026. Observamos também a relação entre ‘ordem’ e ‘efeito’ na idéia de ‘proporção’ onde “Zarlino pontua em seu importante tratado Le Institutioni Harmoniche de 1558 a relevância sobretudo das proporções para o dado harmônico.” (Menezes 2002:28). A música renascentista aplicava sons simultâneos e seqüenciais sob diferentes vozes, enquanto que a música medieval apenas seqüenciais. Essa diferença, contudo, deu lugar ao conceito de proporção, que permitiu adaptar a idéia de harmonia para os dois níveis do objeto, horizontal (melodia) e vertical (acorde) 2. O conceito de 2 Na música renascentista (erudita) não há uso de ‘acorde’, entendido como ataque simultâneo de três ou mais notas, porém, na condução das vozes polifônicas, as notas soam juntas e, portanto, geram acordes, sem que esses, contudo, sejam atacados como tais. Esta é a principal característica da harmonia renascentista. 5 ‘harmonia’, tratando inicialmente de medidas, proporções e qualidades, ampliava-se conforme o montante material a que deveria dar forma, e este montante pode se estender do macro ao microcosmo do objeto musical, o que denotaria a extensão de uma dada lógica composicional. Em todos os tratados examinados há descrições sobre a qualidade intervalar, as regras escalares e estruturação de formas. Tais descrições precisas, acompanham toda a história da música ocidental e dos subseqüentes tratados. Porém, os tratados, e mesmo a interpretação dominante acerca de cada época, não se limitavam a tratar da música apenas em seu aspecto técnico. Estes viam aliados à uma ‘visão de mundo’ que se estruturou tipicamente em cada período. Embora atualmente possamos estender o adjetivo ‘musical’ a toda obra contida nesta tradição, o ‘significado’ destas obras para cada período diverge, ou seja, os valores, afetos, conhecimentos, etc., reivindicados por cada período histórico não foram os mesmos. Por exemplo, no medievo, dizia-se da música que esta evoca a ordem divina, porém, apenas quando sob os cuidados da palavra bíblica. No barroco, as escalas e graus atuam em função de uma doutrina dos afetos (Affektenlehre), e assim por diante. No classicismo, período pelo qual nos interessamos, há também uma estrutura pertinente à uma ‘visão de mundo’, porém, destacamos que o que marca distintivamente o período clássico é o surgimento de um pensamento preocupado com a autonomia musical, com sua capacidade de prescindir de outros veículos expressivos a dar fundamento à sua forma artística. Tal novidade ilustrou-se através de obras musicais e configurou o modelo tonal, onde seu discurso, podemos destacar, passou por três momentos. Um primeiro, marcado por uma certa herança dos afetos do barroco, mas que os interpretou por uma via naturalista, e "tendeu para uma estética da música como som natural, não como obra de arte" (Dahlhaus 1989:61), resultando na teoria da Empfindsamkeit, que de acordo com Dahlhaus (1989), ainda se manteve presente nas décadas de 80’ e 90’ do século XVIII. Um segundo momento veio a suplantar tal tese com o Sturm und Drang e sua apropriação do conceito de sublime: Assim, o conceito de sublime, assim como o de "maravilhoso" [wondrous], serviu para justificar um fenômeno que escapava às categorias da estética da imitação e dos afetos que dominavam o século dezoito. O que havia sido 6 percebido como uma desvantagem, a indeterminação da música instrumental, foi reinterpretado como uma vantagem. (Dahlhaus 1989:60) Neste segundo momento percebemos o percurso que as estéticas começam a empreender em busca de um conteúdo autônomo, unificando o conteúdo artístico ao caráter formal das produções emergentes. Este caminho deságua na eleição da música instrumental, gênero já estabelecido quando do limiar do período romântico, e cunha seu primeiro conceito autônomo da arte musical, a Música absoluta: “[...] desdenhando qualquer ajuda, qualquer mistura de outra arte, expressa a natureza característica da arte que é somente reconhecida no interior da música em si." (Hoffmann In. Dahlhaus 1989:60) Dado este percurso, que de modo geral prescinde do pathos a definir a essência da música, surgem propostas acerca do que seria o conteúdo da música absoluta – atribuindo-se um lugar vazio a esta estética desde o fim da predominância do pathos enquanto conteúdo - dando lugar a novos discursos estéticos direcionados à música: Originalmente a música só possuía valor enquanto arte aplicada [angewandte Kunst], isto é, era utilizada somente como expressão de sentimentos de um sujeito e foi preciso um longo tempo antes que fosse praticada como arte pura [reine Kunst], isto é, que a melodia, harmonia, etc. fossem cultivadas como jogo belo [als schönes Spiel], mesmo sem estarem ligadas a um texto ou coisas do gênero. (Triest, Allgemeine Musikalische Zeitung, In. Videira: 2010) Contudo, esta autonomia que hoje se recobre em excesso com teorias científicas era por sua vez recoberta por concepções metafísicas. O conteúdo instrumental autônomo era interpretado enquanto uma inexprimibilidade metafísica. Neste ínterim não faltaram propostas a conceber os novos elementos da música instrumental. Segundo Dahlhaus (1989), Körner introduziu entre as tendências da época uma recuperação do valor do pathos no interior do conteúdo musical autônomo. Neste caso, o pathos é introduzido como o elemento de menor valor em uma hierarquia de valores espirituais que a música poderia alcançar, a saber, um ethos que perpassaria pelos estados passionais. Körner visa com esta teoria estabelecer um elo entre o conteúdo formal das sinfonias e um resultado perceptivo humanizado: Körner contrasta caráter (ethos) e afeto (pathos). "Dentro daquilo que chamamos de alma, distinguimos entre uma coisa persistente e algo que é transitório, entre o espírito e os movimentos do espírito, entre o caráter - ethos 7 - e os estados passionais - pathos. [...] a música clássica que a dialética estético-histórico-filosófica de Körner procura justificar, surge como "unidade na diversidade:" unidade de caráter em uma variedade de estados passionais. (Dahlhaus 1989:65,66) Havíamos aludido a três momentos das estéticas musicais do período tonal, mas uma tese mista como a de Körner não configuraria nenhum momento característico. Compreendemos que um terceiro momento serviria a uma estética que trouxesse um novo enfoque sobre a música tonal do século XVIII e XIX, sem recair de algum modo nas estéticas passadas. Dado a teoria naturalista da Empfindsamkeit, e a estarrecida conclusão do Sturm und Drang a respeito da inexprimibilidade da arte musical, parece que este terceiro momento viria apenas com Eduard Hanslick na obra Do belo musical. Ao invés de criar uma teoria conciliadora entre estes pólos, os absorve no sentido de uma sublevação teórica a abarcar ambas as percepções, por isto, um terceiro momento interpretativo, posterior aos demais. Hanslick trabalha por diferentes flancos. De um lado rebate a ainda vívida teoria dos afetos, e recorre até a psicoacústica para exemplificar que tipo de estado anímico o som pode provocar. Mas, diferente da teoria da Empfindsamkeit, Hanslick não se fixa nestes dados enquanto expressão do musical, por entender que esses são apenas suportes os quais a música não pode prescindir, mas que não configuram a expressão musical ela mesma: A música, pelo contrário, pode, com os seus peculiaríssimos meios, representar de modo substancial certo domínio de idéias. Tais são, em primeiro lugar, todas as idéias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as idéias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.[...] meras idéias que podem encontrar nas combinações sonoras a correspondente manifestação sensível. [...] mas ainda, costuma-se confundi-la, não poucas vezes, com as propriedades puramente musicais. (Hanslick 2002:25) Sua análise, incorporada a uma teoria tonal sólida, interpreta os sons sob uma perspectiva estética bastante diferente da perspectiva programática impulsionada por Wagner, e assim se distancia do romantismo que vinha dominando o discurso artístico (Dahlhaus: 70,71). Hanslick promovia uma ‘filosofia crítica’ para a estética musical, cumprindo a estratégia de sair da perspectiva da mera crença na existência real dos objetos, ou, de 8 modo transposto, sair da perspectiva da mera crença na realidade do discurso estético aplicado à música até então, para encetar uma investigação das condições de possibilidades inscritas a priori em nossa subjetividade. Tal refreamento produziu uma visão bastante divergente, porém não completamente desvinculada das tendências interpretativas de então, já que seu trabalho contemplava produções e decisões estéticas da época, sobretudo no que diz respeito ao compositor Johannes Brahms. O inexprimível, significando a poética do infinito, do inalcançável e, por decorrência, do transcendente, um problema comum ao romantismo, ganha em Hanslick uma expressão transcendental, argüindo portanto seus próprios limites. O inexprimível passa a se delinear em um corpo filosófico. Para ilustrar esta nova relação, tipicamente tonal, Hanslick por vezes se utiliza de imagens: Cada um de nós, como criança, ter-se-á deleitado no variável jogo de cores e formas de um caleidoscópio. A música é semelhante caleidoscópio a um nível de manifestação infinitamente mais elevado. Produz formas e cores belas em constante e progressiva alternância, ora em transição suave, ora em contraste pronunciado, sempre simétricas e em si cumuladas. (Hanslick 2002:42) O discurso da autonomia musical, que transcorreu desde o século XIX, passando de uma inexprimibilidade metafísica para um discurso não-conceitual e nãorepresentacional, ou seja, vinha por tendências interpretativas pautadas na inexprimibilidade do conteúdo musical, sobretudo entre o pré-romantismo e o romantismo, foi tomado por Hanslick enquanto problema, mas sobre este problema pretendeu dar um passo extra e que contudo o retirava da concepção anterior, ao tentar especificar o sentido desta inexprimibilidade típica da música. Este impulso não foi exclusivo de Hanslick, embora sua resposta, de caráter formalista, seja única. Esta mesma problemática da inexprimibilidade deu lugar a uma das teses musicais mais radicais acerca do conteúdo musical, a de Schopenhauer, e sua identificação metafísica da música com a vontade. Se voltarmos ao exemplo do caleidoscópio veremos que Hanslick está dando um enfoque extremamente prosaico à experiência musical, em detrimento ao conteúdo metafísico e poético típico do século XIX (Dahlhaus 1989:69,70). Qualquer poder metafísico da percepção musical parece se esvair com a simploriedade do exemplo, que contudo nos remete ao modelo kantiano de belezas livres e puras, dos desenhos à la grecque e dos temas de papel de parede (CFJ: 49). Hanslick se debruça criticamente sobre temas que pareciam já acertados entre 9 a estética romântica, tais como; metafísica, inexprimibilidade, sentimentos e o sublime. Hanslick substitui os objetos em voga e retraça preocupações transcendentais, ocupa-se da expressão de um domínio de idéias que os sons podem de fato nos infringir, critica a manutenção da tese barroca dos afetos e de sua continuada e acrítica retomada sob a interpretação poética (sobretudo de um romantismo menos radical e até popular), e por último, retoma o tema da beleza, porém critica a superficialidade da estética musical kantiana. Hanslick intenta um enfoque que quer mesmo suplantar o mero estético em direção ao científico, até alcançar o filosófico. Sua pretensão propõe uma empresa de reflexão acurada e lógica, respeitando as características artísticas do fenômeno musical, o que se mostra bastante original para o período. Leva adiante o projeto da autonomia da arte musical, porém, sem necessitar incluir a música em programas filosóficos, morais, espirituais ou religiosos. Hanslick intenta uma investigação que parte do musical e chega a suas determinações típicas sem maiores alusões. Mantémse assim filiado ao projeto clássico inicial de uma música instrumental autônoma. A questão epistemológica No que diz respeito ao nascente conceito de música pura ou absoluta, e de como a música pôde influenciar toda a filosofia estética e em alguns casos a filosofia como um todo (Videira 2009), há bibliografia suficiente em Dalhaus (1989), Christensen (2002), Videira (2009,2010) entre outros pesquisadores muito competentes nesta área, que conseguiram unir em uma medida mais do que satisfatória, rigor técnico musical à suas condicionantes culturais. É certo que nossa leitura se alia a estes retratos históricos, mas ainda pretende uma contribuição por uma via ainda pouco especulada. A música instrumental, germe da realização do classicismo, ao renegar uma série de prerrogativas culturais presentes quando de seu engendramento, foi, por isto mesmo, responsável por um discurso inédito, tanto para a música quanto para as artes em geral. O fato de uma seqüência acústica sem qualquer recurso representativo, mimético ou textual configurar uma obra artística e incutir beleza, certamente se mostrou forte o suficiente para que fosse incluído enquanto um problema estético, cultural e então filosófico. 10 Interessam-nos então os frutos teóricos que uma música instrumental nestes moldes inseriu, já no século XVIII, e que nos permite fazer a seguinte interrogação: Como foi possível erigir, em termos de estratégia composicional, um discurso musical instrumental puro, compreensível, sem contar com uma base cultural previamente legitimada? Ou seja, estamos perguntando sobre o fenômeno musical, ele mesmo, sofrendo uma distinção em seu modo de produção e escuta. A conseqüência destas produções de Carl Phillip Emmanuel Bach, Joseph Haydn, Mozart e Beethoven – citamos os mais eminentes – já são conhecidas e problematizadas, porém, o uso da técnica e a criação de um modo de fruição proposta em termos de execução e racionalização têm ainda um lugar menor neste debate. O nível de compreensibilidade alcançado por estes compositores, antes mesmo de haver um discurso plenamente difundido, nos fez voltar a considerar quais seriam as condicionantes epistemológicas empregadas pela técnica tonal do século XVIII que tornaram possível empreender músicas puramente instrumentais. Dada esta compreensibilidade, qual seria o modelo epistemológico suscitado pela música instrumental tonal? Nossa metodologia consiste em analisar os elementos de um modelo epistemológico presentes na estratégia musical tonal, a compreender de que modo a música instrumental do período foi capaz de comunicar-se, tornar-se compreensível, sem lançar mão de discursos vigentes. Nossa imersão exclusivamente sobre a obra kantiana busca a composição de um intermediário teórico, não no sentido de uma ‘compreensão profunda’ das obras do autor, mas de um componente que perpassa obras, compositores, autores e sobretudo os espectadores, conscientes ou inconscientes, de estarem exercendo certas funções lógicas que se objetivam em técnicas de composição e são evocadas na escuta. Esboço de um pensamento estético-musical Uma história das técnicas musicais pode dar lugar a dois debates distintos: às distinções sensíveis que são demarcadas em procedimentos técnicos, e a debates acerca do conteúdo musical. Mas se acompanhamos o percurso histórico vemos que 11 os debates acerca do conteúdo findam muitas vezes sem continuidade enquanto que muitas distinções sensíveis mantêm-se atuais. Muito sucintamente, D’Arezzo denomina música como “o movimento dos sons”. Não houve por nenhum período musical uma definição que parecesse contradizer tal assertiva, e assim conclui Menezes: “O que importa à escuta musical é, no entanto, perceber como se motiva (do latim motus – movido) o som, aproveitando o que de essencial distingue a música da maioria das outras artes: o tempo, mas através da transformação (direcionalidade).” (Menezes 2002: 30) Aos tratados, é incumbida a tarefa de fornecer a regra de uma ordem ‘direcional’ para o som. De posse deste conhecimento para a confecção de objetos musicais, um músico pode ter segurança na composição de sua obra, a organizar seus elementos segundo princípios e assim garantir uma ‘direcionalidade’ compreensível. Estes trabalhos se inscrevem no campo da ciência musical e não podemos ligálos imediatamente ao inquérito filosófico: ‘o que é música?’. Respondendo tais questões no que diz respeito ao desenvolvimento harmônico de uma obra, pode-se estender tal conclusão também aos outros fenômeno da composição musical (tais como densidades, alturas, intensidades, as próprias durações, os timbres): uma obra pode ser direcional ou adirecional. Será direcional quando atrair o ouvinte a um tipo de escuta no qual este possa perceber a transformação de um estado acústico a outro, seja num determinado aspecto (fenômeno) sonoro, seja na combinação de algum destes (ao menos algum parâmetro, no entanto, não deverá transformar-se a fim de se evitar um acumulo negativo de informação).” (Menezes 2002: 30) A técnica, e a atividade de compor ou escutar, colocam a música sob um terreno genericamente descrito como um mover do ouvinte, a atividade de estarmos sendo movidos é tida como música, e a atividade de compor tais ordens, de musical. Neste jogo restrito entre músicos e ouvintes a filosofia pouco participa, não encontramos nos trabalhos teóricos da antiguidade o que seja a condição de possibilidade ou a causa última dos fenômenos acústicos se destacarem como musicais. Embora notemos uma adição progressiva de técnicas pela história, Porém, felizmente para nós, os trabalhos não correram sempre neste sentido. A primeira obra que parece confluir para si exigências filosóficas em conjunto com a prática musical é sem sombra de dúvida Do belo musical de Eduard Hanslick. Hanslick foi capaz de aliar a definição técnico/musical a uma inquirição a respeito do jogo que o ouvinte empreende com os elementos sonoros, sem necessidade de 12 interpor neste processo uma poética a priori, mas entendendo que uma poética conjuga ou deriva de uma compreensibilidade dada na técnica de composição. Mas, se os movimentos percebidos na escuta são qualidades e quantidades agrupadas em uma percepção acumulativa, o que seria expresso por este objeto, o que estes ‘direcionamentos’ vêem a expressar? É justamente esta questão, que vinha sendo respondida de antemão, que faz de Hanslick um genuíno filósofo da música, colocando-se socraticamente ante ao que vinha facilmente respondido: ‘o que é música?’ Sua resposta à questão é tão inovadora quanto pouco esclarecedora. Parece abrir um campo, uma perspectiva, ao invés de resolutamente responder: “Se se perguntar o que se há-de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim: idéias musicais.” (Hanslick 2002:41) Se por um lado a música é uma percepção e entendimento (Hanslick 2002:16) de qualidades e quantidades sonoras, por outro ela é uma compreensão destes elementos que expressa um sentido próprio. Assim como um pensamento, estabelece argumentos e julga aqueles adequados, corretos e falsos. Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimentos e pensamentos, embora possa possuir em alto grau aquela sugestividade simbólica, reflectora das grandes leis cósmicas, com que deparamos em todo o belo artístico. (Hanslick 2002:41,42) Tal ponto de vista abriu, retrospectivamente, perspectivas que se tornaram lugar comum da cultura musical atual, que deram ainda lugar para a música concreta e eletrônica [elektronische]. Se já estamos a falar de entendimento e pensamento em âmbito musical, estamos aludindo a pontos de vista possibilitados pela filosofia, pois que a experiência musical tradicional é pré-filosófica. Contudo, nosso trabalho busca um correlato epistemológico para esta experiência pré-filosófica. Hanslick nos dá o caminho, mas ele mesmo não possui uma epistemologia formalizada, portanto, não por acaso, este correlato será buscado na filosofia kantiana. Marques (2010b) nos fornece uma ponte inicial ao introduzir uma crítica da primazia da visão sobre a constituição de objetos, mostrando que tal possibilidade é plenamente justificada na filosofia kantiana: 13 Mas aqui convém, antes de tudo, ficar alerta contra os caprichos de nossa linguagem. Pois embora se diga normalmente que vemos objetos, e não que vemos apenas a luz emitida por objetos, ou que vemos apenas sensações luminosas, não é tão comum dizer que ouvimos objetos, preferindo-se dizer que ouvimos os sons produzidos pelos objetos. Um pouco de reflexão basta, porém, para mostrar que essa predileção da linguagem não tem qualquer base sólida, e que a visão não tem prerrogativas especiais quanto a fornecer-nos um acesso aos objetos de nossa experiência como de resto o Bispo Berkeley já observara 300 anos atrás. (Marques 2010(b):139) Concordando com Marques, e por decorrência com Berkeley, vemos que é mais do que razoável que tratemos da representação auditiva com a mesma disponibilidade com que tratamos as visuais. Buscando, neste caso, um correlato de ordem lógica e epistemológica, entre o modelo kantiano e o processo de escuta da música instrumental clássica. Trata-se de equacionar dois âmbitos. De um lado experiências que podem ser comprovadas faticamente, no caso, a escuta musical instrumental clássica, e de outro lado um discurso de ordem epistemológica, no caso, o modelo da filosofia transcendental kantiana. Este tipo de empreendimento, segundo a perspectiva de Dieter Heinrich, fez parte da própria metodologia kantiana. O método da dedução transcendental partiria igualmente de um componente não teórico da experiência, um fato, que é posto sob júri a se aplicar um julgamento, análise, dedução, etc. Do mesmo modo, faremos circunscrever uma experiência musical, dada de modo fático, e buscaremos traduzi-la em um conceito de objeto que se adeque a um argumento transcendental, e então aplicar um julgamento sobre sua forma lógica. A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito, elucida Heinrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos (nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII "dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um "fato". (Klotz 2007:146) Eduard Hanslick e o projeto de uma epistemologia da música. E. Hanslick, além de delimitar uma ‘estética musical’ (strito sensu), inclui em seu conjunto determinidades materiais e formais do som no modo como atuam em nossa 14 percepção em um jogo musical. Esta ligação essencial entre a técnica composicional e as categorias de escuta faz incluir em seu sistema uma perspectiva epistemológica crítica, elenca assim uma verdadeira condição de possibilidade para a percepção musical. Entendemos que a obra de Hanslick fez colidir dois princípios de diferentes trabalhos do século XVIII, que por motivos historicamente contingentes não se identificaram imediatamente, seriam estes a filosofia crítica de Kant e a música clássica instrumental. A estética de Hanslick inclui um discurso acerca do musical enquanto lança mão de estratégias lógicas, e promove assim um aprofundamento epistemológico no interior de uma estética, a estética musical, que passa a ser a partir do projeto de Hanslick uma estética voltada para o objeto e seu modo de conhecimento. Houve claramente uma recuperação do âmbito geral da aisthesis, ou seja, de uma filosofia da percepção, que contudo almeja promover um enlace entre o âmbito dos sentidos e sensações, com a significação do entendimento, através das categorias lógicas. De modo geral, não tratamos de examinar o que venha a ser uma característica geral das artes extraído do exemplo musical, mas diferente, examinar um modelo de conhecimento pautado no discurso musical autônomo. Estamos ao fim somando esforços a tratar do diagnóstico feito por Hanslick: “ [...] mas a arte sonora ainda não soube apropriar-se deste ponto de vista científico e, na sua estética, ficou para trás das restantes artes.” (Hanslick 2002:14) O fundamento epistemológico através de Kant: juízo determinante ou juízo reflexivo? A posse, circulação e transferência de conhecimento é algo comum a uma cultura. Para Kant, tal atividade intersubjetiva ocorre em comum acordo, pois há algum fundamento comum entre os homens acerca de um juízo de conhecimento. Tal fundamento mínimo de intercomunicação pode ser encontrado no juízo estético, e este é o fundamento mesmo do sensus communis (CFJ: §40). Do ponto de vista lógico tal senso está garantido no ato de recognição. No caso estético, consegue-se este consenso às custas da especificidade de conteúdo, abdicado de uma forma precisa de 15 juízo e constituindo-se apenas como um pensar alargado. A divisão destes juízos visava delimitar fatos e costumes de uma cultura já bastante influenciada pela ciência moderna. Vale ressaltar que os conceitos, sobretudo o de recognição, que aludimos para ilustrar o juízo determinante, foram cunhados não em um mero sentido de reprodução do meio cultural antecedente, mas interessado em processos novos que adentravam na vida social e intelectual ocidentais3. Trata-se de um modelo emergente e podemos agora dizer, um modelo que se tornou paradigmático para uma era que ainda discutimos seu fim. O universo musical não ficou alheio a estas mudanças. Uma mudança análoga ocorre quando da normatização da música tonal, ancorando-se em um modelo de composição que, demonstraremos, recorre amplamente a artifícios que podemos compreender como pertencente a um paradigma da recognição 4. Mesmo a perspectiva não recognitiva do juízo reflexivo vem somar em complexidade a ação deste novo tipo de consciência preconizada por Kant. Contudo, os discursos acerca do conhecimento possuem uma dinâmica muito volátil, e se o juízo reflexivo não ocupa o mesmo número de páginas que o determinante, veremos que após poucas gerações da recepção kantiana, esta configuração se alterará. Contudo, nos deteremos ainda ao modo mesmo como Kant distribui estes juízos. O termo recognição compreende a ação de subsumir uma intuição a um conceito, ou seja, o papel do entendimento (CRP A 97). A recognição não seria possível no juízo reflexionante pois este se identifica, segundo Rego (2005), com a própria potência da faculdade de julgar em sua atribuição autônoma, sem ser subsumida pelo entendimento, mas buscando uma regra por si só. Kant define sucintamente estes juízos: A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular é determinante (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva. (CFJ: XXVI) 3 “As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrito a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante às revoluções científicas iniciam-se [...]” (Kuhn 2006:125,126) 4 No caso, mostraremos como que perceber as relações tonais significa a recognição das três funções elementares e necessárias a todo campo de forças relacionado ao sistema tonal. Estas funções são: Tônica, subdominante e Dominante. 16 É intrigante que o juízo tenha como função subsumir, ao mesmo tempo que em seu modo reflexionante não contemple necessariamente esta função. Rego (2005) pensa que o juízo reflexionante subsume uma lei que ele dá a si mesmo, sanando assim a condição do juízo em subsumir. E pensa que tal modo de julgamento antecede mesmo qualquer modo determinante, pois que se dirige diretamente ao intuído, a fim de formatar um conceito onde não se sabe de antemão sua lei: “ O conhecimento das leis empíricas da natureza depende, num certo sentido, funda-se, num certo sentido, no ato reflexionante, e, portanto, no seu princípio judicativo.” (Rego 2005:225) O sentido destacado por Rego não contempla o juízo aplicado à obra de arte de modo direto. Dirige-se ao juízo de uma maneira bastante genérica, onde uma função reflexiva ou determinante ainda não se destacam. Porém aludimos ao fato de que Kant é sempre taxativo quanto ao papel diferenciado entre juízo reflexionante e determinante: Numa crítica da faculdade do juízo, a parte que contém a faculdade do juízo estética é aquela que lhe é essencial, porque apenas esta contém um princípio que a faculdade do juízo coloca inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza, a saber, o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade de conhecimento, conformidade sem a qual o entendimento não se orientaria naquelas. (CJ, Int. VIII, p. 268 apud Rego 2005: nota pé de página n. 8) Contudo se observamos a tese de Lyotard veremos que bibliografias como a de Rego não configuram interpretações isoladas: "A reflexão é o laboratório subjetivo de todas as objetividades" (Lyotard 1993). Não seguimos em busca deste tipo de interpretação. O destaque dado ao juízo da beleza e do sublime na primeira seção (Crítica da faculdade de juízo estética) não parece conferir nenhuma primazia ao juízo reflexionante. Não existe nenhuma passagem em toda a seção que confirme esta posição como sendo a de Kant, muito pelo contrário, juízos reflexionantes puros se distinguem dos determinantes de modo a excluírem a própria esfera lógica. E mesmo admitindo que para Kant o juízo reflexivo, sobretudo o juízo da beleza, acaba por revelar uma ação autônoma da faculdade do juízo, antes que este pudesse se misturar com dados conceituais, como no caso do juízo teleológico ou determinante, como um ‘ultra-som’ da operação do esquematismo, o estatuto do juízo 17 de gosto não passa a ser fundamento nem a participar dos juízos determinantes. Dado que iremos investigar a relação e possível aplicação entre a primeira Crítica e objetos musicais, não nos preocupa o fato das obras de Kant, e sobretudo a primeira e terceira Críticas perfaçam ou não um sistema interligado. Não faz parte de nosso objetivo costurar qualquer ponte que unifique, corrija ou aperfeiçoe os obras kantianas. Tais questões são de interesse para o estrito estudioso de Kant. Dedicamosnos a um modelo que cumpra somente com as exigências do material musical em questão, contemplados nos tratados, obras e escutas musicais em questão. Aspectos lógicos em uma análise musical O aspecto lógico que destacamos é aquele pertinente à lógica kantiana e portanto um contexto epistemológico a que damos o nome de modelo recognitivo. De acordo com Deleuze o modelo recognitivo: […] se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido [...] (Deleuze 1988: 221). É este tipo de unidade conceitual do objeto que será aplicado sobre a análise de um objeto musical. A função recognitiva, a subsunção e a identidade regrada, tornam-se condição de escuta, onde são subsumidos o campo harmônico, o tema e desenvolvimentos, sintetizando um objeto musical único e identificável sob variáveis situações. Esta função recognitiva aplicada à atividade musical instrumental tonal foi, sobretudo, fruto de um intrincado complexo de técnicas, teorias e teses acerca da escuta, da composição e execução musical. Podemos dizer que é o resultado e acúmulo do tratado de Rameau de 1722, onde estabelece as bases da tonalidade e das funções dos acordes, de Haydn e suas estratégias composicionais de núcleo temático e formalização na aplicação do tonalismo, e enfim, da lógica axiomatizada da percepção das funções tonais proposto por Riemann. Certamente muitos outros personagens os quais não temos nem acesso ou conhecimento foram igualmente influentes, porém, aqueles que enumeramos foram sem dúvida responsáveis diretos pela definição do que ficou conhecido como música instrumental pura. Se o modelo recognitivo parece ter concorrido de modo amplo pelas mais 18 diversas áreas da cultura européia do período, no tonalismo podemos traçar com precisão teórica e prática como um modelo epistemológico deu condição à emergência de uma escuta, que contou com vários parâmetros inéditos, e ao mesmo tempo propondo um modelo teórico universal para esta escuta. Tendo em vista este meio cultural e as próprias técnicas do período, analisar os processos de um juízo determinante refletidos na prática musical parece ser bastante insuspeito, e pode revelar uma porta de interpretação útil ao fenômeno musical, e, ao modo como este evolui pelos séculos adiante. É certo que o momento de sublevação de uma música pura coincidiu com um projeto maior, ilumunista, e foi parte decisiva dele. Hanslick não é exceção: “Esta orientação objetiva não podia deixar de bem depressa se comunicar à pesquisa do belo.” (Hanslick 2002:13). Seu projeto dissolve certas normas que indispunham a relação entre o lógico e o estético, e assim distingue, em proveito do papel do entendimento, sentimento de sensação. O exame musical, além de prescindir do sentimento para sua determinação, não necessita que ele seja compreendido fora de um horizonte do entendimento. Diante do belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, i.e., um representar e um julgar, este último decerto com tal rapidez que os processos individuais não nos chegam à consciência e surge a ilusão de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de múltiplos processos espirituais mediatos. (Hanslick 2002:16) Além de rejeitar a relação de contraditoriedade entre estética e lógica, estabelece intercessões entre entendimento e sentimento no nível da experiência musical, e da experiência como um todo. Os sentimentos não existem isolados na alma de modo que se possam, por assim dizer, salientar por meio de uma arte à qual está oclusa a representação das demais actividades espirituais. Pelo contrario, dependem de pressupostos fisiológicos e patológicos, são condicionados por representações, juízos, em suma, por todo o campo do pensar intelectual e racional, a que se contrapõe de tão bom grado o sentimento como algo de antitético. (Hanslick 2002:24) Contudo, Hanslick não adentra nas especificidades das determinações lógicas as quais queremos explorar nos capítulos subseqüentes. 19 Considerações finais a respeito da guinada de um domínio lógico para a análise de uma experiência musical. O tema parece amplo e pleno de ramificações, mas de início trata-se de equacionar uma série de fatos concernentes à percepção musical sob exigências filosóficas. Para estreitar o leque da pesquisa situamos nosso objeto musical em um período específico, o período tonal, que em grande parcela coincide com a música clássica e romântica do século XVIII e XIX, e nele mais especificamente o período clássico. Notamos que a partir da ascensão da música tonal no século XVIII o discurso musical veio sofrendo grandes modificações. Mas se nos atemos à produção instrumental e seu papel fundante de um discurso autônomo, vemos que a relação entre conhecimento e música passa a ter um papel preponderante nesta tradição, e notamos mesmo que desde este marco da música instrumental clássica o assunto parece cada vez mais proeminente. A transposição do ritornello por tonalidades [key] diferentes, e desenvolvimentos modulatórios nos episódios entre as áreas tonais [key] estáveis do ritornello, produz um arcabouço [scaffolding] formal harmonicamente baseado: um arcabouço que permite a comparação entre a música e a arquitetura, que se tornou um lugar-comum, parecer plausível. Por outro lado, partes do tema podem ser isolados, variados, ou reagrupados, de modo que emergem os princípios do processo que mais tarde, enquanto trabalho temático-motívico em Haydn e Beethoven, tornou-se a epítome da lógica musical discursiva. E a diferença entre a exposição temática ou recapitulação e o trabalho motívico está intimamente relacionado com a fundação tonal da forma, porque fechamentos temáticas e tonais estão relacionados um com o outro da mesma maneira como o desenvolvimento motívico e modulatório. (Dahlhaus 1989:108) "Toda a música pura", escreveu Friedrich Schlegel em algum momento entre 1797 e 1801, deve ser filosófica e instrumental (música para o pensamento). (Dahlhaus 1989:107) Em resumo, aquilo o que seja a beleza de uma obra musical específica parece conter muito mais do que um mero sentimento de agrado, ou mesmo um sentimento de beleza, ou de sociabilidade. A escuta caminhou de modo a abarcar mais do que sensações e sentimentos, e ainda mais sutilezas entre eles, em caracteres, juízos e idéias cada vez mais bem definidas. 20 Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a música instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical. Em um sentido bastante diferente de nosso intuito e a partir de chaves interpretativas igualmente diferente, Kant esboçara uma compreensão do fenômeno musical a partir da estrutura que se revelava em sua terceira Crítica, e que por isto, não incluía uma atividade lógica estrita do entendimento. Sua avaliação da arte musical corre conjuntamente com avaliações comparativas às demais artes, em um pequeno debate sobre a produção da cultura em geral, tudo, de início, em um tom bastante especulativo. Em uma nota de rodapé humildemente inicia sua incursão na interpretação dos fenômenos artísticos: O leitor não ajuizará este projeto de uma possível divisão das belas artes como teoria proposital. Trata-se apenas de uma das muitas tentativas que ainda se podem e devem empreender. (CFJ: 204 [nota de rodapé]) A música enquanto uma arte bela A recepção da Crítica da Faculdade do Juízo por parte da crítica musical não foi muito favorável. Podemos citar ente outros, Triest, em seu empenho de incluir a música no conjunto das belas artes, sobretudo a música instrumental. Assim nos diz Mario Videira, em seu artigo A recepção da crítica do juízo na literatura musical do início do século XIX (Videira 2010). As correções e críticas ao trabalho de Kant não se reduzem a Triest. Michaelis chega a afirmar que a música, por ser mais afeita ao trabalho livre da imaginação, por estar desligada da imitação e da conceitualidade, é por isto a arte mais original e mais ideal de todas (Marques 2010:200). Dado que os comentários empreendidos, sobretudo na terceira Crítica, vêm sendo alvo de constantes críticas ou correções tomamos o caminho inverso ao de elucidar os argumentos de nosso filósofo. Iniciaremos com a avaliação mais drástica para depois progredirmos nas razões que nos fizeram decidir sobre os comentários de 21 Kant. A avaliação que recorremos é de Wheterston e nosso processo visa ir decantando seu comentário pelos demais comentadores. Wheterston assim avalia as especulações de Kant acerca do musical: Sua análise se move inicialmente de uma análise transcendental para uma concepção de música que se torna cada vez mais pessoal e implausível. (Wheterston 1996:63) De uma postura inicialmente tão humilde de Kant, para uma assertiva tão drástica quanto esta muito há o que se considerar. O método kantiano de aproximação das artes individuais dá-se através de uma espécie de hierarquização das artes. As artes mais elevadas seriam aquelas que compõem o seleto grupo das belas artes: Pois em toda arte bela o essencial consiste na forma que convém à observação e ao ajuizamento e cujo prazer é ao mesmo tempo cultura e dispõe o espírito, para idéias, por conseguinte o torna receptivo a prazeres e entretenimentos diversos; não consiste na matéria da sensação (no atrativo ou na comoção), disposta apenas para o gozo [...] (CFJ:171) Estão aqui resumidas todas as características que fazem a arte bela ser considerada um campo nobre da atividade humana. Resta-nos ver onde a música se encaixa nesta descrição. Nos casos da poesia recitada ou musicada, da ópera, do balé e do teatro musicado, a música serve de suporte, e somente nestes casos é considerada uma arte bela. Averigüemos então o exame mais minucioso que Kant promove sobre as artes em separado. Estas se dispõem, quão mais elevadas, mais aptas às idéias estéticas: Aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível (CFJ: 192,193). Tal princípio de hierarquização concede à poesia a primeira posição. Posição esta reivindicada por Michaelis, à música: Nós nos perdemos na contemplação espiritual do elemento objetivo de uma bela composição musical, tanto quanto na sublimidade de uma ode de Klopstock; mas com a diferença que aqui [na ode] a nossa atividade é mais 22 determinada, através de conceitos, enquanto lá [na música], a liberdade permanece, para acrescentar um conteúdo [Inhalt] para a mera forma da sensação. (Michaelis apud Marques 2010:199) Acontece que Kant não está tomando tão somente o critério da liberdade promovida pela aconceitualidade. O componente essencial para esta classificação residiria na capacidade de uma arte sediar um máximo de idéias estéticas: [...] a idéia estética é uma representação da faculdade da imaginação associada a um conceito dado, a qual se liga a uma tal multiplicidade de representações parciais, no uso livre das mesmas [...] portanto, permite pensar de um conceito muita coisa inexprimível. (CFJ:197). Assim fica implícito ao conceito de idéia estética, e este ao conceito da arte bela, que é necessário certa aderência (CFJ:§16) para o juízo estético produzir aquela beleza capaz de sociabilidade e cultura. Ou seja, a hierarquia das artes é ascendentemente marcada pela pertença de idéias estéticas, sociabilidade (CFJ:§60) e aderência. Wheterston indica que há uma estratégia no uso da idéia estética ligada a aderência do objeto, na classificação da arte bela. O intuito seria incutir ideias morais nesta experiência. Tal investigação excede nosso escopo, porém pode ser uma boa explicação o incremento de certa aderência para dar ao juízo reflexivo uma matéria que “dê o que pensar”, e enfim comparar a característica inexponível da idéia estética com a indemonstrabilidade da idéia da razão: Se conectarmos uma idéia estética a uma idéia da razão, a inexponibilidade [unboundedness] da idéia estética age como um símbolo para a indemonstrabilidade [unboundedness] de uma ideia da razão e, portanto, nossa capacidade racional é animada por este aspecto aparente do racional na experiência sensorial [§49 (314-15)]. (Wheterston 1996:58)5 Não está explícito de que modo Kant vincula a idéia estética com a aderência, pois há uma diferença no modo como a idéia estética, enquanto ato de uma imaginação produtiva, se apropria do entendimento a ‘dar o que pensar’ sendo igualmente inexponível, e, a apropriação feita pela aderência, que exige e “[...] 5 O autor usa originalmente o termo unboundedness para adjetivas tanto a idéia estética quanto uma idéia da razão. Ele parece querer apontar para o fato de ambas não possuírem limites precisos dentro de uma exigência regular do conhecimento. Porém mantemos a individualidade de cada adjetivação apenas no sentido de situar o leitor habituado com a terminologia de Kant . 23 pressupõe um tal conceito e a perfeição do objeto segundo o mesmo.” (CFJ:48) Porém, tais sutis distinções não parecem incomodar Kant. Mais propriamente importa a esta hierarquia a observância da capacidade de instigar-nos idéias estéticas, a sociabilidade, e a promoção da cultura de modo geral. Assim é com o caso da pintura que inegavelmente se insere nos moldes da arte bela. E sua diferença para com a arte musical consiste no fato dela, a pintura, se caracterizar como uma arte que parte de idéias determinadas (CFJ:221) rumo às sensações. O fato dos objetos presentes em uma pintura encerrarem conceitos segundo uma perfeição do objeto é para Kant uma vantagem e não desvantagem, como uma leitura superficial poderia corroborar. Fica assim estabelecido que a aderência, em uma quantidade tolerável é quem permite este trânsito da bela arte pela sociabilidade a favor das ideias estéticas. Resta então averiguar se a música conteria estas exigências, de uma porção conceitual e sociabilidade, para a composição desta cultura que a arte promove. O quesito sociabilidade é, segundo a avaliação de Kant, a maior fraqueza da música. A música parece conter a pior das indiscrições, sendo incapaz de se conter a um espaço só, perturbando assim a liberdade alheia e sendo avesso a um bom espírito de urbanidade. Contudo Rodrigo Duarte nos informa que Kant retroage desta postura bastante ‘mal-humorada’ na Antropologia (Duarte 2010:290). No quesito cultura, a música, diferente da pintura, seria incapaz de produzir uma “impressão permanente” (CFJ:221), sendo esta sempre transitória e impossibilitando o trato cultural. Independente de meios de registro sonoro do fenômeno musical, Kant se refere à própria percepção musical em seu estado temporal. Para Kant um caráter duradouro e estável é essencial na promoção da unificação entre entendimento e sensibilidade. Ou seja, o caráter estável do quadro a que a pintura se inscreve permite um contexto mais educativo das faculdades. Ao passo que na música, não haveria, digamos assim, uma consistência inerente à sua forma de apresentação, que nos dispusesse a uma apreciação frutífera6. A solução a uma transitoriedade realmente inerente à música produziu diversas estratégias, mas destaquemos o uso do ritornello a partir do barroco, ampliado nas formas clássicas. Porém este recurso é igualmente criticado por Kant que considera a repetição em uma obra musical, ou mesmo sua 6 Dahlhaus compreende que houve um descompasso teórico que impossibilitava o século XVIII em perceber fenômenos temporais tais como a música como eventos consolidados em uma configuração, ao invés da expressão kantiana de uma profusão transitória. (Duarte 1998:145) 24 reprodução possibilitada pela fantasia, como recurso que somente produziria sensações enfadonhas (CFJ:221). Resta senão avaliarmos a posição kantiana sobre a aconceitualidade da música. Kant está muito atento a esta questão, pois, embora desconsidere qualquer caráter cultural que a música possa propiciar, caso assuma que há conceitualidade na escuta musical então ele terá que abrir uma porta à possibilidade dela suscitar idéias estéticas e maior valor cultural, pois seria mais aderente. De outro lado, considerando a aconceitualidade da música, poderá abrir a possibilidade dela propiciar um juízo estético puro, embora com isto não seja considerada uma arte bela. Mas vemos que a argumentação kantiana desconsidera estes dois extremos, e a música instrumental resulta esteticamente insuficiente. A opção kantiana embora seja pela aconceitualidade, seu julgamento estético sobre a música é um tanto problemático, ou como Rodrigo Duarte adverte, “comporta um grau não desprezível de ambigüidade.” (Duarte 2010:286) Também se pode computar como da mesma espécie [belezas livre] o que na música denominam-se fantasias (sem letra), e até a inteira música sem texto. (CFJ:49) Ao fim vemos Kant creditar beleza à música. É impossível desmentir Kant diante de uma passagem tão direta. Porém, como vimos, isto não faz da música uma arte bela, somente uma beleza livre. Creio que a posição que Kant confere à música fique mais clara quando a colocarmos ao lado de outros exemplos similares de belezas livres; folhagem para molduras, desenhos à la grecque e papel de parede (CFJ:49). Como podemos ver, são todas belezas livres. Argumentar sobre a inserção do papel de parede no Hall das grandes artes seria estranho ao senso comum, e provavelmente concordaríamos que o papel de parede ou o desenho à la grecque, depois de algumas poucas observações, produziriam igualmente enfado 7. E justamente este é o ponto de vista de Kant, bastante polêmico para qualquer músico e admirador desta arte. Mas ele não nos deixa com esta conclusão sem algumas justificativas. Sua justificativa foi dada de modo negativo quando das enumerações das condições de uma arte bela. Mas de modo positivo Kant possui duas definições da arte dos sons. Uma a que nos dedicaremos mais ao fim, pois que traz questões de 7 Interessante notar que Hanslick, que tem a música na mais alta cota artística, é naturalmente relacionada com os arabescos e com o caleidoscópio, sem com isto indicar qualquer enfado, muito pelo contrário. 25 grande interesse para nosso trabalho, porém, interpretado de modo diferente em Kant, e outra, segunda, que sutilmente engloba a primeira definição. Por motivos didáticos expomos antes sua segunda definição. Esta segunda definição diz da música enquanto uma beleza livre, por isto, apenas sob o domínio das sensações. Ou seja, ela se encontra mais próxima do deleite, ao invés do que apraz (CFJ:222). Enquanto livre jogo das sensações a música chega a expressar tão somente a forma de um afeto. A teoria dos afetos na música, vimos, é a principal corrente teórica do barroco, e embora comece a sofrer abalos no período tonal, perdura até o romantismo, e no senso comum, até os dias de hoje. A posição de Kant se assemelha bastante a de Rousseau, porém, diferentemente, não confere um afeto real ligado à música, tão somente uma forma não determinada de um afeto. Um desligamento entre o afeto e sensação musical marca a definição do livre jogo para a música, o que não deixa de ser um passo diverso ao tradicional discurso da teoria dos afetos. Os jogos livres da sensação são divididos em três: jogo de sorte, jogo de sons e jogo de pensamento (CFJ:223). O jogo dos sons é assim definido: [...] exige simplesmente a alternância das sensações, cada uma das quais tem sua relação com o afeto, mas sem o grau de um afeto, e desperta idéias estéticas. (CFJ: 224) A diferença para uma teoria tradicional dos afetos está em Kant não considerar o afeto presente ou encarnado na música, mas apenas uma ‘forma vazia’, que por isto é capaz de mover nossa imaginação e entendimento de modo a produzir uma idéia estética. Curiosamente Kant concede uma idéia estética para a música, sem conceder nenhum tipo de aderência substituindo o afeto por uma forma do afeto. Esta dinâmica parte de uma sensação corpórea e chega pelo livre jogo até uma idéia estética, porém é simplesmente recomposto ao corpo, de modo a conjugar o sentimento corpóreo inicial, amplificando-o (CFJ:225). Por isto, um livre jogo das sensações, e tão somente uma beleza livre. A questão matemático-musical na terceira Crítica Vicente de Paulo Justi ao abordar a questão da matemática cita Giordanetti, e aproveitamos para traçar um comentário sobre a posição de ambos: 26 Sobre este problema, Giordanetti afirma: Não se sabe, se realmente Kant assumiu a teoria de Euler. Ele também não sabe. (2005, p. 199). Esta é a maneira de raciocinar de Kant, que Giordanetti explicita. Kant parece não desejar saber se Euler tem razão, mas se tiver a música será bela. (Justi apud Marques 2010:100) Diferente do que tenta imprimir, a questão matemática não emerge como um quesito importante na caracterização da beleza na música. A questão matemática aqui se liga intimamente ao trabalho de Euler sob a percepção dos sons. Mais precisamente do som [ton] aplicado à construção musical, e sua classificação enquanto freqüência regular [pitch]. Estes são aspectos desvendados pela física de então e que Kant quer ilustrar e mostrar-se atualizado. Sem grandes interpretações, apenas adjetiva a freqüência [pitch] enquanto qualidade pura. O próprio Euler havia proposto a tipificação do timbre enquanto qualidade de individuação dos instrumentos (Velázques 2008:13) e da freqüência para a determinação da nota, entendendo assim o som enquanto complexo de freqüência. Euler compartilhava de uma herança, própria da divisão das ciências, que incluía a música no interior de uma disciplina acústica, e esta, em uma disciplina matemática que formava o quadrivium8. Dentro desta tradição Euler cria uma correspondência entre o ajuizamento estético musical e as relações sonoras acústicas, baseado em relações matemáticas. Esta transposição de campos, consistindo em uma psicoacústica primitiva faz com que se cunhe os conceitos de consonância e dissonância, relacionando gosto a critérios matemáticos, e estes a critérios acústicos. Contudo, Euler não usa o termo ‘belo’ em suas descrições: Então Euler explicou como, a partir da idéia pitagórica, se pode estabelecer um esquema que mostre as regras de combinação harmônica das notas musicais e das que são agradáveis ao ouvido [...] as consonâncias se encontram em proporções mais simples e preferíveis ao entendimento, enquanto que as dissonâncias correspondem a proporções mais complicadas e por tanto são mais difíceis de compreender. (Velazquez 2008:15-16) Estes conceitos que vinculam o prazer e gozo musical à consonância (relativo aos primeiros intervalos da série harmônica) foram sendo paulatinamente abandonados, e tem fim apenas no século XX. Embora tal concepção seja muito forte no século XVIII e XIX, Kant neste aspecto parece seguir um caminho mais interessante, corroborando em parte a crítica de Rousseau: A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na 8 O quadrivium: aritmética, música, geometria e astronomia. 27 pintura – assinala traços e figuras nos quais os acordes e os sons não passam de cores [...] o império que a música possui sobre a nossa alma não é obra dos sons. (Rousseau 1998:189) Rousseau vai incluir a música, por motivos singulares à sua tese, na lista das belas artes, inclusive, como obra imitativa. Kant não concede tanto à música, porém difere aquela percepção do tom [ton] da percepção propriamente musical [musik], assim como empreendido por Rousseau: Mas no atrativo e no movimento do ânimo, que a música <Musik> produz, a matemática não tem certamente a mínima participação; ela é somente a condição indispensável (conditio sine qua non) daquela proporção das impressões... (CFJ:220) Conjuntamente com a consideração musical descolada da percepção pontual do som, que toma emprestado de Rousseau, Kant introduz sua própria teoria que parte para uma análise das proporções das faculdades. Justi discute um aspecto do som ligado à beleza, e propõe que Kant encontrara uma questão crucial para sua consideração musical. Porém, no trecho acima, Kant faz invalidar maiores pretensões da matemática, em sentido oposto ao de Euler. Esta distinção entre o musical e o meramente sonoro, herdado de Rousseau, já faz deslocar qualquer posicionamento contundente acerca da natureza do som, seguese que qualquer vínculo do som com a matemática se mostraria igualmente insuficiente, assim a passagem acima dirime qualquer dúvida sobre sua posição. Outro aspecto importante sobre esta questão matemática é que Kant se inquire somente a respeito do som enquanto som [ton]. Ele se pergunta, e não simplesmente afirma: “uma cor ou um tom [...] é em si um jogo belo de sensações.” (CFJ:226). Tal detalhe é crucial, pois faz desta uma questão do próprio Kant e não de Euler, que em seu trabalho não diz de qualidades estáticas como o som [ton] e a freqüência se darem a ajuizamentos estéticos, mas sim que na música são ajuizados seus intervalos. Ou seja, nunca os sons isolados em sua freqüência, mas em dinâmica uns com os outros, e esta é sua metodologia inclusive para o princípio de afinação: Em seguida abordou o problema da afinação justa dos instrumentos musicais, considerando que o ouvido não julga os sons porque satisfaçam as justas proporções, senão pela percepção agradável e conveniente, de modo que há que centrar a atenção nas seqüências de som que resultem harmoniosas. (Velazquez 2008:18) 28 Então, diferente de Vicente Justi, não vemos qualquer tentativa de Kant em fundamentar a beleza musical matematicamente (Justi apud Marques 2010:99), este seria o propósito de Euler. Kant já se posiciona contra tal fundamento na música [Musik], assim como se posiciona contra as teorias fisiológicas da beleza, como a de Burke (CFJ:130). Também discordamos de Justi quando aponta que uma decisão de Kant, em aceitar ou não o som, isolado, como uma beleza em si, acarretaria assim a inclusão ou não da música como uma arte bela, ou mesmo de um compromisso com a teoria de Euler (Justi apud Marques 2010:100). Tendo em vista este ‘mínimo’ de decorrências que uma decisão kantiana sobre a beleza do som acarretaria sobre a beleza da música, temos que discordar mesmo de Giordanetti, não sobre o fato de Kant não se decidir, pois de fato ele não se decide sobre a questão, mas da própria idéia que Kant estaria, nesta reflexão, pensando em aderir ou não à teoria de Euler. Nossa posição é a de que Kant está fazendo uma reflexão própria, que não se apóia na estética de Euler, mas, tão somente, em sua acústica e óptica enquanto estas dissertam sobre eventos vibratórios pertinentes à percepção sensória. Assim, ele se pergunta se um som ou uma cor poderiam por si mesmo ser dotados de beleza. Esta pergunta Euler não se faz. Para Euler o som em si pode ser musical (consonante, dissonante) ou não musical (ruído). Euler, em sua pequena estética, considerava a beleza como que um desenrolar das proporções matemáticas que se mostram dinamicamente nas proporções dos tons. Porém, o modo como estas proporções desencadeiam a beleza musical estaria para além de seus trabalhos, e que até então pessoa alguma havia desenvolvido (Fischer 2006:49). Sua obra Do verdadeiro caráter da música moderna data de 1764, e Kant ao publicar CFJ em 1790 acaba por tentar desautorizar esta pretensão. Marcando mais uma vez a diferença entre os autores, Euler ao fim considera o prazer musical como o resultado de um julgamento acerca dos elementos que o compositor nos dispõe, e a satisfação acaba tendo por base um julgar mais afeito à conjunção psicofísica: O prazer provém de que imaginemos os pontos de vista e sentimentos do compositor, cuja execução, enquanto a julguemos satisfatória [heureuse], enche a mente de uma agradável satisfação. (Euler apud Fischer 2006:49) Euler, possuidor também de uma estética, pretende confluí-la no sentido de 29 conferir um fundamento físico/matemático, caráter este que tira elogios de Bernoulli, e influencia decididamente a obra de Helmholtz. Traz assim um mote muito interessante de questões musicais, mas que não estão presentes no trabalho de Kant. A interpretação do fenômeno estético musical na terceira Crítica: a idéia estética musical De fora do Hall das belas artes, e ao mesmo tempo, sem qualquer relação matemática ou objetiva com o sonoro, resta um espaço muito limitado ao fenômeno musical na obra de Kant. Não se tratando de uma beleza pura, de uma beleza aderente, de uma bela arte, ou de um cálculo de percepções sonoras, a música prefigura um caso muito específico de beleza livre. Notemos que diferente das demais artes, a música é única a ter sua idéia estética esmiuçada e explicitada em uma definição. Porém, ela se mistura a outros assuntos, em um longo parágrafo de quase três páginas intermediada apenas por quatro pontos finais. Vamos contemplar alguns trechos separadamente, a fim de dirimir prováveis confusões, dado a efusão de conteúdos sob dimensões tão curtas. O seu atrativo, que se deixa comunicar tão universalmente, parece repousar sobre o fato de que cada expressão da linguagem possui no conjunto um som que é adequado ao seu sentido (CFJ:219) Novamente parece que a teoria musical de referência para Kant é a de Rousseau, que se expressa em texto provavelmente escrito por volta de 1750, porém editado postumamente em 1781, praticamente dez anos antes da terceira Crítica. O texto é Ensaio sobre a origem das línguas. A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor, ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhes todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. (Rousseau 1998:190) Rousseau acredita que a música faz imitar as inflexões da linguagem, Kant parece apenas entender que as compartilham e não confere o poder afigurativo e imitativo como faz Rousseau. De todo modo, o sentido que é originariamente 30 lingüístico, a modulação dos sons, possui o poder de ornamentar melhor as expressões que se ligam a sentimentos. Kant acredita que quando desligada de seu conteúdo lingüístico original, o som musical traça uma sucessão de formas de afeto que se remetem a sentenças, sem contudo representar nada além da forma do afeto. Seria como uma “linguagem universal das sensações” (CFJ:219). As conseqüências deste ponto de vista já esmiuçamos anteriormente. Seguindo o parágrafo vemos que Kant possui ainda outra camada, mais profunda, de interpretação da experiência musical. Esta parece ser a que mais contempla a produção musical contemporânea ao filósofo, nos permitindo mesmo criar um diálogo com a forma sonata que se inscrevia: [...] pelo fato de aquelas idéias estéticas não serem nenhum conceito e pensamento determinado, a forma da composição destas sensações (melodia e harmonia) serve somente de forma de uma linguagem para, mediante uma disposição proporcionada das mesmas (a qual pode ser submetida matematicamente a certas regras, porque nos sons ela assenta sobre a relação do número das vibrações de ar no mesmo tempo, na medida em que os sons são ligados simultânea ou também sucessivamente), expressar a idéia de um todo coerente de uma indizível profusão de pensamentos, conforme a um certo tema que constitui na peça o afeto dominante (CFJ:219). A explicação do livre jogo e da aconceitualidade proporcionada pela arte dos sons [Tonkunst] é devida justamente a este elo entre som e a capacidade deste em traçar formalmente um afeto. Esta capacidade deriva, para Kant, do modo como os sons modulados suscitam sensações em nível corporal. A teoria dos afetos já vinha vinculando som com afetos, e estes com sensações no corpo, assim como a própria ciência moderna vinha fazendo. De modo análogo, a música, em uma sucessão de sons, mediante uma organização que pode contar com a ajuda da matemática, promove um agradável jogo dos sons (CFJ: 224), ou seja, de sensações, que acabam por suscitar uma corrente de afetos, que deleitam, em jogo, por não possuírem conceito ou um pensamento determinado. Mas o jogo não se encerra apenas nesta correspondência. Há um ‘clímax’, ou seja, um momento máximo onde tal jogo pode chegar, precisamente, a idéia estética musical. Porém deste ponto máximo de um juízo puro, retorna novamente a uma realimentação da própria sensação corpórea e não se manterá como livre jogo da imaginação com o entendimento (CFJ:225). A concepção kantiana de idéia estética se faz sempre acompanhar de um apelo 31 intelectual, uma aderência. O afeto que, de acordo com a citação, se liga ao construto temático da obra se liga também a uma sensação corporal e a toma como fundamento do prazer musical. Tal conteúdo da sensação acabaria por frustrar uma dinâmica típica da idéia estética. Notemos que na composição musical instrumental o tema é substrato da obra em sua totalidade. O tema se vê variado, desenvolvido e destrinchado sob esta profusão que é inicialmente sonora, e que Kant diz ser então substituída por uma profusão de afetos. A passagem para o livre jogo e deste para a idéia estética deve contar não apenas com o afeto por si, ou mesmo a forma do afeto, mas com a profusão de pensamentos, puramente formais e sem determinação. Esta profusão é a própria profusão de sons, que Kant tanto criticara como meramente transitória, sendo então encapsulada por uma profusão formal de afetos, e, deste quantum de material sensível é possível um livre jogo, e a elaboração de uma precisa idéia estética, tipicamente musical, “de um todo coerente”. A sonata não seria justamente um percurso melódico harmônico que busca uma unidade temática sobre as profusões as quais se imprimem em seu prosseguir temporal? Não seria a escuta musical por si mesma, da música pura, o percurso de uma tensão entre um ‘todo coerente’ e uma aparente multiplicidade disforme? Então, a única idéia estética que a música é capaz de evocar não se encontraria em uma simetria tal, ou analogia, com o próprio modelo do conhecimento? Ou seja, a tarefa de, em meio a uma imediata desorganização e profusão da natureza, encontrar uma regra universal, um todo coerente? Sabemos que Kant conduz tal idéia novamente para uma sensação corporal, e que esta não aparece como uma experiência consistente da reflexão. Além de a idéia estética musical conter uma forte analogia com o próprio processo do conhecimento [interpretação nossa], ela sem dúvida demonstra um conhecimento que excede mesmo o trivial, sobre a questão da percepção musical instrumental da época. Porém a solução de Kant para a experiência reivindicada por músicos da era instrumental é por ele interpretada como mero efeito das sensações no corpo. Sobre esta mesma passagem se pronuncia Clélia A. Martins. Ela interpreta o trecho específico, “todo coerente”, como uma correspondente da idéia de verdade: Trata-se aqui de compreender a Idéia no sensível, de reabilitar de algum 32 modo o mundo fenomênico como o lugar da expressão da Idéia, o que permite compreender os efeitos da música no Gemüt. (Martins 2010:84) Embora ela tenha um propósito de análise que vá em direção a uma esfera mais ampla da própria liberdade e vivificação do Gemüt, não identificamos a passagem (§53) fora de nenhuma consideração que a estritamente musical e sua relação estética. Não podemos corroborar com o ponto de vista expresso de que a ideia musical venha a preencher uma dimensão da liberdade enquanto correlato de uma verdade ou encarnação de uma idéia, pois a idéia de verdade enquanto correlato da liberdade excede a obra kantiana em muitos aspectos. Vemos que Kant tende a manter a opinião geral da teoria dos afetos, propondo certas modificações, e mesmo que contemple em alguma medida a nascente música absoluta, não inclui em seu programa a inclusão da música no panteão artístico, sendo apenas uma beleza livre. O contexto musical ao qual nos inserimos A decisão kantiana acerca do livre jogo na música, podemos ressaltar, é única e original do filósofo. Seu fundamento passa por Rousseau e a teoria dos afetos, o que aproxima seu pensamento estético das teorias mais tradicionais e que pouco vinha ecoando na recente música tonal. Ao mesmo tempo foca-se sobre o conteúdo sensório e indistinto que perpassaria a percepção musical, o que configura um impedimento material de acesso intelectual a esta percepção. Se não intencionalmente, visto que a produção da música clássica lhe foi contemporânea, de todo modo tal concepção segue filiada a um movimento contrário a esta nascente música, que viria a ser qualificada de música pura ou absoluta. O período era de efervescência nesta área, Euler, Rousseau, Kant, D’Alembert, Triest, Michaelis, Reinhard. Se há pouca unidade entre estes trabalhos, podemos também dizer que a vinda do século XIX não os ajudou em nada, acrescentando uma unidade metafísica ao debate musical. De toda forma, trouxe articulações importantes para todas as questões e propostas de então, que talvez só começariam a se unificar a partir do trabalho de Hanslick, que por sua vez acaba por pôr em prática a antiga proposta de Diderot, de individualizar a estética para cada arte tendo em vista suas técnicas próprias. 33 A noção de que a música compreende uma autonomia fica notadamente estabelecida como fundamento desta arte desde o século XVIII, liberando-a de seu julgo das palavras. Julgo este que tem início no concílio de Trento (séc. XVI), ao qual a produção musical se viu obrigada a estar em favor do texto e não o contrário. E que viu um de seus últimos impulsos no próprio Kant. Porém, inadvertidamente, é a partir de uma resposta aos estudos deste mesmo filósofo que vemos surgir os primeiros feitos teóricos no sentido da autonomia musical. Johann K. F. Triest elabora e publica em 1801 (oito anos após a publicação da segunda edição da CFJ) na revista de crítica musical Allgemeine Musikalische Zeitung, o termo música pura, marcando assim o advento, no meio filosófico, da então supremacia da música instrumental autônoma, que vinha sendo composta, a rigor, desde Carl P. E. Bach (1714-1788). Resta então reavaliarmos a citação inicial de Wheterston: seria a obra kantiana pessoal e implausível? Afora certa implausibilidade que acompanha todo discurso hipotético filosófico, é certo que Kant se notabiliza por adjurar uma estética musical tradicionalista, ainda vinculada à palavra, não aceitando o discurso da então música instrumental. Porém há bastante plausibilidade em seus inquéritos sobre o perseguimento de ‘um todo (musical) coerente’ numa experiência de escuta. Contudo, sua classificação da música, fazendo-a constar no mesmo patamar de um papel de parede, faz com que, mais do que implausível, sua concepção seja obstruída por uma pré-concepção cultural ou mesmo pessoal que certamente torna sua análise bastante datável e com certeza pouco atualizada para a época. O objetivo da dissertação Trouxemos um montante muito grande de informações a respeito de debates acerca da história da música e da crítica musicológica, além do posicionamento kantiano acerca do assunto. Porém, dentro de toda a problemática da música instrumental que a rigor perdura por toda a existência da música tonal - do século XVIII até o final do XIX nos interessou uma pequena brecha ou mesmo espaço por preencher nos discursos 34 filosóficos de então. Se um escopo de modelo epistemológico surge com Hanslick no século XIX a partir de uma defesa, ainda, em termos de uma música tonal, reivindicando processos lógicos da ação do entendimento para sua concatenação, como estariam ligados os elementos musicais neste enlace epistemológico? Ao mesmo tempo, qual seria a relação das estratégias composicionais da segunda metade do século XVIII, que lançou os padrões e formas tonais que notabilizaram a música clássica, com os padrões do entendimento estabelecidos no mesmo período por Kant? E, de que modo esta relação vislumbrada por Hanslick já não estaria pronta para ser erigida meio século antes, tendo sido ignorada tendo em vista o debate estético que se seguia? E por fim, dado esta brecha, de uma análise lógica não realizada, podemos realizar uma ligação entre o que seja uma escuta musical e a composição transcendental de um objeto musical, a partir da ação do entendimento, permitindo assim um enfoque epistemológico para a atividade musical. É nosso intuito promover uma análise que resulte em um modelo de compreensão lógica do objeto musical. Um modelo que seja capaz de posicionar as questões levantadas de modo útil para a contextualização pregressa da música tonal em seu surgimento, para dar respaldo à posição de Hanslick, e ainda contribuir para uma atualização do papel que a música pode desempenhar no contexto geral da epistemologia. 35 Seção 1 O lógico e o estético “Da investigação de um fundamento lógico que preceda o estético no objeto musical” 36 D. – [...] a natureza e número dos pés, isto é, que classe de pés e quantos formam um verso, se obtêm em virtude de uma ciência, e por ela se poderá julgar se ressoou um verso em meus ouvidos. M. – Mas esta ciência, qualquer que seja, não fixa, por certo, aos versos uma regra e medida como venha equivocar-se, senão conforme a uma proporção. D. – Se em verdade é uma ciência, não devia e nem podia ser de outra sorte. M. – Investiguemos, portanto, esta razão e sigamos de perto, se te agrada. (Agostinho de Hipona) O ponto de vista que introduzimos nas páginas que se seguem incidem no modo como percebemos e ajuizamos música, sob o ponto de vista de sua atividade cognitiva 9. O objetivo de se firmar tal ponto de vista, eminentemente epistemológico, é o de prover um modelo epistemológico mais compatível com a prática musical tonal clássica, representada pela inauguração de procedimentos sistematicamente aplicados por Haydn (1732-1809) o que inclui a estrutura harmônica tonal que remonta ao tratado de Rameau (1682-1764). Dado esta construção musical que tem sede no século XVIII e que se notabilizava por criar um discurso musical instrumental autônomo, seria necessário eleger, dentre os trabalhos filosóficos, aquele que contemplaria não somente um modelo epistemológico, mas um que estivesse em acordo com os procedimentos adotados pelo classicismo musical. O debate estético que vinha desde o século XVII, conhecido como a querela dos antigos e dos modernos, pouco contemplaria o enfoque e o modelo epistemológico das questões que aqui levantaremos. Este primeiro século se notabilizara por postular regras rígidas as quais todo o conjunto das artes deveria contemplar para a composição de seus objetos. A constituição deste objeto em vista do conceito de mímesis parece ter sido hegemônico e na verdade acabava funcionando 9 Usamos o termo cognição para descrever um aspecto epistemológico de modo amplo e não necessariamente coincidente com o caráter semântico da linguagem. Bicknell (2001) entende a perspectiva semântica como expressão de um conteúdo independente dele se remeter a uma ordem gramatical ou lingüística, ou seja, um análogo a linguagem, enquanto veículo de transporte de algum conteúdo. Peter Kivy em Music, Language and Cognition (2007), nos mostra como o termo ‘semântico’ é usado impropriamente no caso musical, e não há como a música proceder sob o mesmo conceito que a linguagem. Porém, isto não exclui o fato da experiência musical encerrar pensamento e cognição. Tomando uma perspectiva cognitiva, indicamos assim que nosso propósito visa identificar processos lógicos transcendentais, que estão regidos no mesmo nível em que se insere uma coordenação das categorias kantianas, a partir de um ponto de vista transcendental, compreendendo estas estruturas como extratos a priori. 37 como espelho de uma exigência moral, através de paixões evocadas por certos princípios de organização de um material. Mas, para alguns, a revolução copernicana colocara sob júdice não apenas a filosofia, mas a própria literatura: mutatis mutandis, o espírito metodológico que caracteriza o pensamento cartesiano deveria ser aplicado também ao domínio do belo e do sublime […] Esta inflexão acentuada sobre o método está, entretanto, longe de representar um consenso entre os grandes críticos do período. Muitos permaneceram fiéis aos princípios mais gerais do classicismo, aos quais não se ajusta perfeitamente a suposição de que a razão constitui, por si mesma, o justo padrão de medida para a avaliação e produção artística (BATE, 1961, pp. 25-26). Os choques reincidentes, não raro violentos, entre defensores de uma ou outra posição, os quais podem ser observados pelo menos até o final do século. (Vieira 2003:21) O século XVIII por sua vez, caracteriza-se por uma oposição a estes preceitos: “De modo análogo, ele servia aos propósitos de todos os que procuravam mobilizar forças contra as regras: boa parte dos leitores ingleses de Longinus tinha sob a mira a rigidez formal que caracteriza as vertentes racionalistas do classicismo [Bate 1961:47].” (Vieira 2003:40) . De acordo com Vieira foi a partir do conceito de sublime, introduzido por Longinus, que o discurso do século XVII pôde ser substituído por um enfoque que privilegiava as paixões suscitadas pela obra e menos por regras fixas. Isto poderia ser representado pelo movimento Je ne se quoi, que fez introduzir a ‘regra’ de que as regras pouco importavam, mas sim os efeitos passionais que uma organização poderia suscitar. Este teria sido, segundo Vieira (2003:40), o fio condutor que levou ao discurso literário romântico, onde predominava a liberdade de criação e a evocação dos sentimentos. Observamos, dentro deste quadro que evolui pelo século XVIII, que este discurso estético se torna hegemônico. A antiga postulação de regras e princípios poéticos que regeriam a obra, ao passar para um modelo que privilegia o efeito subjetivo, passa então a contar mais com o fundamento psicológico, em detrimento do objeto enquanto portador de propriedades objetivas. Este giro subjetivo pode ser exemplificado pela obra de Edmund Burke (1993). Vemos então que o discurso técnico deu lugar a um modelo de ‘poética’ ligada aos afetos e sentimentos, convertendo o interesse técnico-artístico em um interesse eminentemente estético, em uma investigação acerca das sensações suscitadas por objetos enquanto encarnadas em um sujeito. A virada transcendental promovida por Kant acarreta ainda outra mudança. Embora esteja já situado no discurso estético acerca de nossa receptividade subjetiva e da centralidade dos conceitos do ‘belo’ e do ‘sublime’, Kant, poderíamos assim dizer, 38 coloca o enfoque psicológico sob uma crítica transcendental. Tratou-se de uma investigação mais profunda, com a incumbência de desvendar o aparato mental a priori que desse respaldo ao julgamento destes sentimentos. Assim, o juízo de gosto em geral, e o juízo da beleza, aparecem munidos de estruturas que haviam sido erigidas já na Crítica da Razão Pura e Prática, porém, analisadas em seu pormenor na Crítica da faculdade do juízo. A solução kantiana constitui uma mudança histórica no enfoque estético – que saiu de uma primazia da feitura e postulação de princípios aos quais devem impregnar um objeto e rumou para o ponto de vista subjetivo, de como um sujeito é afetado por este objeto – e passa para um modelo de organização das faculdades que faz dividir, já em sua condição de possibilidade, o enfoque estético do lógico, criando assim diferentes acessos para o que seja a experiência de um objeto (juízo determinante) e o que seja a experiência de sentimentos estéticos (juízo reflexivo) 10. Ao cindir o lógico do estético Kant postula uma necessidade de assentimento subjetivo para o caso da arte (aspecto antes defendido em sentido psicológico) e de um juízo objetivo para o caso do conhecimento. Esta primeira seção se dedica a compreender de que modo esta cisão entre o lógico e o estético se estrutura na filosofia kantiana. No primeiro capítulo tratamos de compreender o que seja o modelo epistemológico adotado por Kant para compreender o julgamento de fenômenos artísticos, e o modo como esta estrutura afasta os componentes de qualificação lógica. No segundo capítulo empreendemos o caminho inverso e investigamos como o modelo epistemológico que compreende o conhecimento afastaria os componentes estéticos. O objetivo desta primeira seção é o de explorar os dois modelos epistemológicos possíveis para o objeto musical, o estético e o lógico. Em ambos os capítulos, além de expor a tão conhecida filosofia kantiana, analisamos implicações inerentes ao modelo kantiano, onde o lógico implique o estético e vice-versa. 10 Utilizamos o termo ‘acesso’ para caracterizar a ação do juízo para os dois casos (reflexivo e determinante) no sentido de ambos juízos prefigurarem possibilidades teóricas inscritas nas faculdades do conhecimento com acento para o entendimento. Isto quer indicar tão somente que Kant não cria novos objetos e novas faculdades além do entendimento e razão, mas demonstra certos caminhos da cognição que fazem a distinção estético/lógico valer em uma experiência: “O campo da crítica estendese a todas as pretensões das faculdades, para pô-las nos limites de sua legitimidade” (Kant 1995:102). 39 * * * De modo geral, lógico significa uma estrutura cognitiva que contempla uma regra. Esta característica válida para os objetos e para nosso modo de percebê-los é tema da primeira Crítica e de sua obra homônima. Quando pensamos no modo como estas regras se inserem nas ciências, seja na matemática, física ou mesma em uma ciência moral (Lógica A 3) temos um aspecto contingencial das regras dado em casos particulares. Mas quando voltamos-nos para o próprio entendimento dos particulares, vemos que o nosso entendimento possui regras as quais podemos derivar aplicações, ou seja, nosso entendimento enquanto faculdade de cognição possui regras de aplicação necessária para todos os particulares. O exercício de nossos poderes também acontece segundo certas regras que seguimos, a princípio, sem consciência delas, até chegarmos aos poucos ao conhecimento delas mediante diversas tentativas e um prolongado uso de nossos poderes, tornando-as por fim tão familiar que muito esforço nos custa pensá-las in abstracto. Assim, por exemplo, a Gramática geral é a forma de uma língua em geral. Mas também falamos sem conhecer a Gramática; e quem fala sem conhecê-la tem realmente uma Gramática e fala segundo regras das quais, porém, não está consciente. (Lógica A 2) O estudo das regras que desempenhamos para a consecução de experiências perfaz o âmbito lógico. Na definição original de Kant: “Esta ciência das leis necessárias do entendimento e da razão em geral, ou – o que dá no mesmo – da mera forma do pensamento em geral, é o que chamamos de Lógica (Kant A 4). O estético por sua vez – compreendendo o juízo de gosto investigado na Crítica da faculdade do Juízo – assenta-se em uma regra de concordância entre o entendimento e a sensibilidade (Lógica A 8), mas ela mesma não possui e não reivindica uma regra ou lei – de acordo com Kant – apenas uma “norma (um modelo ou prumo para a simples avaliação)” (Lógica A 8) que consiste no assentimento, quase como uma função própria que é requisitada em certas condicionantes, que também e inevitavelmente perpassam por regras. Veremos que as normas estéticas e as regras lógicas possuem diferenças pontuais quando do percurso transcendental das faculdades que percorrem. Cabe averiguarmos como estes quadros podem ser úteis em um modelo epistemológico que tome a música clássica instrumental como objeto exclusivo. 40 Para o caso da análise da terceira Crítica optamos por determo-nos no juízo da beleza enquanto paradigma para nosso modelo epistemológico. A decisão não contou com muitas opções visto que os juízos estéticos se vinculavam majoritariamente ao belo ou ao sublime. Sendo que o juízo reflexivo puro, ou seja, aquele que atua em toda sua autonomia e por isto atua independente de aspectos lógicos é o juízo da beleza. Esta decisão não deixa de contar com alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, a música é tida pelo próprio Kant como fenômeno belo, mais especificamente como uma beleza livre (CFJ:49). Em segundo lugar, a crítica musical desencadeada imediatamente após a edição da terceira Crítica reclama para si um estatuto ainda mais ‘elevado’ de uma beleza pura, dado a condição essencialmente não conceitual 11 da música. Mesmo que certa tradição se esboce acerca do tema, não seria razão suficiente para que adotássemos o juízo da beleza como modelo concorrente para o caso musical acriticamente. O sentimento do sublime é rapidamente descartado tendo em vista a ligação deste sentimento com episódios de terror e grandiosidades que nos dispõe a um estado de perigo ou de aspectos infinitos que não concorrem para a produção musical do século XVIII. Assim, o que chama atenção no juízo da beleza, além do fato de se ligar explicitamente às obras artísticas, é sua relação entre o objeto artístico e a faculdade de conhecimento. Pôde-se observar em nossa introdução que o modelo musical kantiano, mostrando-se como uma teoria excessivamente exterior à atividade, poderia ser corrigido tomando-o como juízo estético puro. Concorremos portanto com dois modelos possíveis, um considerando a música como uma beleza pura, como pensou Triest, ou, como um juízo determinante pertencente a um modelo lógico. De todo modo, a eleição de um modelo para o caso musical significa necessariamente a exclusão do outro, pois que o lógico se satisfaz por uma relação inversamente proporcional ao estético: “sem dúvida, entre a perfeição estética e a perfeição lógica de nosso conhecimento persiste sempre, a rigor, uma espécie de conflito, que não pode ser totalmente superado” (Lógica A 48). Se pegarmos o exemplo de um quadro, não há nada que impeça, ou mesmo, nada que nos convença que não seja possível uma recognição sobre aquilo que está ali representado, sobretudo num período onde imperava a arte figurativa. A não 11 Ver introdução. 41 superação do lógico pelo estético e vice-versa não retira, no caso da aderência, uma possibilidade de contaminação, que de acordo com Kant não faz superar o horizonte estético em questão. Esta é uma sutilidade que não possui paralelo musical quando pensamos no contexto da música instrumental, onde a figuração, salvo nos casos da música programática (e muitas vezes mesmo nestes casos) 12 não pode ser evocada. A possibilidade de um juízo poder vir a ser reflexivo e resultar em um uso puro do juízo de gosto, e não em uma determinação, requer não apenas uma regra mas uma condição que disponha nossas faculdades a esta possibilidade, indicando quando seria e quando não seria o caso de um juízo reflexivo tomar a frente de um objeto e vice-versa. Identificar a dinâmica que divide estes dois usos do juízo requer que investiguemos aquilo que diz respeito a seu ‘estatuto’, aspecto descritivo de um modelo epistemológico. Chamamos de estatuto à legalidade definida por operações e relações entre faculdades ou princípios, que regem o modelo epistemológico ao operarem uma única função. Os dois estatutos que mais nos interessam aqui seriam justamente o do juízo reflexivo e o determinante. Uma função descrita em um estatuto tem como finalidade ilustrar um modo como um conteúdo é depreendido. É em geral a este conteúdo que nos referimos pré -filosoficamente a suscitar um modelo epistemológico posterior. Assim, o sentimento da beleza para o juízo reflexivo, e um conceito empírico para o juízo determinante. Nosso par conceitual estatuto/conteúdo ilustra a totalidade do domínio filosófico com que Kant opera, constitui o solo <Boden> (CFJ: XVI, XVII) por onde se estabelecem cumprimentos de um conteúdo, as sínteses empreendidas pelo juízo, tão caras à nossa vida consciente (CRP B 104,105). 12 A capacidade de denotar é sempre controversa, porém, nunca impossível na música. Hanslick (2002) nos dá um panorama desta questão. Em um sentido a música pode ser usada para “fins exteriores” (2002:19) como a guerra ou a religião. Dificilmente algo está sendo denotado nestes casos, e mais compreensível seria entendê-los instigando atos. Porém, os sentimentos e posturas que poderiam estar sendo ali instigados, alguns interpretam, são derivados diretamente de uma relação entre o musical e sua expressão em nossa alma. Hanslick recusa este tipo de ligação, e mesmo qualquer relação denotativa entre música e objetos ou sentimentos: ‘Nos mais superficiais trechos pianísticos, onde nada há, “mero nada, para onde se viram os meus olhos’, depressa surge a tendência para reconhecer a ‘nostalgia do mar’, ‘à noite antes da batalha’, o ‘dia de Verão na Noruega’ e outras absurdidades que tais, se a portada tiver apenas a ousadia de aduzir o seu pretenso conteúdo.” (Hanslick 2002:19). De outro lado, a estrutura musical compartilharia parâmetros com outros fenômenos, e uma alusão é de fato possível, como a Bachiana Brasileira n.2 não deixa de atestar em sua imitação de uma locomotiva: “Tais são, em primeiro lugar, todas as ideias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as ideias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.” (Hanslick 2002:25) 42 Pensar um modelo epistemológico para o objeto musical, é portanto pensar um estatuto, conteúdo e modo de exibição. A estrutura mais geral da consciência, a apercepção, enquanto autoconsciência pura, descreve nossa relação direta com os produtos pré-filosóficos. Segundo Martins: “[...] o saber, que o sujeito adquire de si, consiste em uma percepção e não em um ato de conhecer.” (Martins 1999:67). Mesmo sendo as exibições auto-evidentes, uma exibição pode contudo ser descrita. Adiantamos que as condições da apercepção para a exibição de qualquer conteúdo parecem, em alguns aspectos, implicar certas contrariedades com as condições do juízo estético puro. Tais questões só podem ser reportadas em um encontro dos princípios da apercepção para a formação de um conhecimento (Crítica da Razão Pura) com o conteúdo do juízo estético (Crítica da Faculdade do Juízo). Porém, em última instância, são distinções dadas em um objeto ou mesmo em um sentimento que devem ser sempre postas em questão para que os modelos epistemológicos possam assim se enriquecer. O mesmo vale para o objeto musical. Todas as representações claras, às quais só podemos aplicar as regras lógicas, podem agora ser diferenciadas com respeito à distinção e indistinção. Se estamos conscientes da representação inteira, mas não do múltiplo que está nela contida, então a representação é indistinta. (Lógica A 42) Se quisermos, além disso, um exemplo da indistinção nos conceitos, podemos recorrer para isto ao conceito de beleza. Cada um tem da beleza um conceito claro. Só que nesse conceito se encontram diversas notas características; entre outras, que o belo deva ser algo que (1) caia sob os sentidos e que (2) agrada universalmente. Se não conseguirmos agora, destrinçar o múltiplo destas e outras notas características do belo, nosso conceito do mesmo ainda será indistinto. (Lógica A 42,43). A análise do pormenor empírico e de sua ligação com uma estrutura transcendental das faculdades fica a encargo da segunda seção. Nesta primeira levantamos questões que dizem respeito ao estatuto estético e o estatuto lógico, a preparar o terreno teórico de nossas análises. 43 Capítulo I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro É prova irrefutável de fraqueza de nosso julgamento apaixonarmo-nos pelas coisas só porque são raras e inéditas, ou ainda porque apresentam alguma dificuldade, muito embora não sejam boas nem úteis. (Michel de Montaigne) Dentre as Críticas, sem sombra de dúvida, a que mais trouxe discussões ao conjunto da obra kantiana foi sua terceira e última. Grande parte destas discussões giram em torno de suas pretensões anunciadas logo na introdução, pretensões de um fechamento do ‘sistema’ da filosofia Crítica. Lyotard (1993) pensa a precedência do juízo reflexivo enquanto princípio comum de todas as obras críticas; Rego (2005) compreende o juízo reflexionante enquanto ponto de encontro das demais faculdades; Banham (2010), traça aspectos gerais acerca da possibilidade de compreendermos o juízo reflexivo apenas enquanto uma postulação transcendental, pois que não é constitutivo de objetividades como o entendimento, ou regulativo de princípios como a razão. Outra parte considerável da bibliografia trata de problemas formais da própria estruturação do texto, como indica Shaper13 (2009:449). De modo mais evidente, um fechamento ou uma unidade entre as Críticas parecia estar dada em um princípio teleológico do juízo reflexionante, na finalidade da natureza: “a conformidade a fim da natureza não funda nem um conhecimento teórico da natureza, nem um conhecimento prático da liberdade” (Perez 2008:261). Este ponto médio seria portanto a possibilidade de passagem, de ponte, entre naturezas tão distintas como as do conhecimento e da liberdade. Tal interpretação se 13 Para a autora a terceira Crítica não apresenta uma divisão consistente entre a analítica e a dedução. Argumentos que estariam no escopo da analítica se encontrariam na dedução, sobretudo do segundo e quarto momento, fazendo com que os comentadores tenham um trabalho inicial de organizar qual percurso traçar diante da obra. 44 basearia no texto da primeira introdução onde Kant nos mostra como a estrutura da finalidade a fins do juízo serve de “fio condutor à investigação da natureza” sem contudo determiná-la sinteticamente (Perez 2008:260). Lyotard compreendeu este fechamento sistêmico de outro modo. Sua tese pode ser ilustrada com a seguinte frase: "A reflexão é o laboratório subjetivo de todas as objetividades" (Lyotard 1993). Seu diagnóstico passa por uma análise daquilo que motivara a estranha junção de vocábulos que Kant adotara na terceira Crítica, demonstrando a dificuldade em se definir um campo que não se coordena ao prático e ao lógico. A distorção ou a monstruosidade que afetam as categorias por meio das quais a análise do gosto procede resultam do fato de que aqui o movimento de anamnese reflexiva trabalha o subjetivo a partir do objetivo. Se as categorias fossem aplicáveis tais quais ao gosto, este seria um juízo determinante. (Mas é verdade, e tentaremos compreender por quê, que esse juízo que não é determinante tem necessidade de ser analisado por meio das categorias para aparecer como tal, paradoxalmente). (Lyotard 1993:23) O fio condutor da sistemática kantiana encontrar-se-ia no juízo reflexionante puro, no sentido deste ser um juízo comum a toda atividade do sujeito, a característica mais autônoma do juízo. Tornando assim a terceira Crítica uma peça central do projeto de todas as críticas. Assim também pensa Lopes (2010) quando nos diz: [...] para Lyotard, pensar criticamente [função reflexiva (inclusão nossa)] é afetar-se, é deixar-se orientar pelos sentimentos de prazer e desprazer antes de se fazer qualquer inferência acerca da verdade e falsidade de um determinado conhecimento ou do justo e injusto de determinadas ações. (Lopes 2010:76) Rego (2005) destaca o caráter autônomo do juízo de beleza no exemplo da anterioridade e pureza do juízo reflexivo, em consonância com Lyotard. Ressaltamos que na beleza a capacidade de procurar uma regra sem mais, independente de um universal estar ou não estar dado, independente mesmo da relação com outras faculdades, é de fato um privilégio deste juízo: A faculdade do juízo reflexionante vive, assim, às voltas com uma dupla tarefa. É em virtude da primeira delas que ela se chama reflexionante, ou simplesmente não determinante, justamente a tarefa de que a determinante se vê dispensada, a saber, a tarefa de pensar para si mesma uma lei. (Rego 2005:221) 45 Um outro ponto de vista vai defender ainda que o sentimento de prazer e desprazer não encerram apenas uma sensação imediata no contexto do juízo reflexivo. Perez (2006) detalha a operação reflexiva a partir do texto kantiano da Orientiere, que revelaria uma função de distinção e discriminação que guarda um valor eminentemente maior do que um mero juízo de gosto (prazer e desprazer). A atividade crítica neste caso se ampararia em uma função reflexiva, mas não exatamente aquela caracterizada na terceira Crítica, como Lyotard majoritariamente identifica: "[...] a razão, na determinação da sua própria capacidade de julgar, não está em este caso, em condições de submeter seus juízos a uma máxima determinada de acordo com princípios objetivos de conhecimento, mas, unicamente de acordo com um princípio subjetivo de diferenciação" [Kant: Orientieren A 309-10]. (Perez 2001) A interpretação de Perez (2006) revela uma função obscura do juízo reflexivo, que não apenas imprime uma finalidade autônoma em sua atividade, mas distingue pré–filosoficamente um domínio transcendental por uma sensação, um sentimento. Segundo Perez esta seria a função mais elementar de qualquer operação consciente de um sujeito transcendental. Loparic (2001) representa um resgate, ao mesmo tempo em que conservador, no sentido de dirimir os paradoxos do argumento da terceira Crítica, também contemporâneo, na medida em que empreende sua interpretação através de uma análise semântica do juízo da beleza, ou seja, crê ser possível estabelecer uma leitura lógico/lingüística para o juízo da beleza de modo que este não se inclua excentricamente dentro de uma harmonia que pareceria ter sido previamente moldada para o conhecimento. Guyer (1997)14 empreende o mesmo tipo de análise porém não possui interesse em evitar qualquer paradoxo, e assim conclui: [...] todo juízo estético do gosto é um juízo da forma "Isto ... é bonito" (§ Cj 32, pp.281-282) Todo julgamento estético faz a mesma afirmação sobre seu objeto – em termos das funções lógicas do julgamento, cada juízo estético é um julgamento assertórico categorial afirmativo e singular. (Guyer 1997:114) 14 Definir o termo cognitivo para uma análise de algo não cognitivo não pode deixar de encerrar contradições, assim mostra Guyer: "A natureza não cognitiva de nosso prazer na beleza aparenta ser a premissa onde repousa [for the rest] a análise de Kant [...]" (Guyer 1997:110), Já a análise semântica, sob o ponto de vista lingüístico, prevê com maior ênfase que a nossa uma consideração objetiva do significado do juízo de gosto puro. 46 Loparic qualifica o juízo estético entre afirmativo, negativo e indiferente (Loparic 2010:31) enquanto que Guyer o classifica sempre enquanto afirmativo 15. O papel do juízo reflexivo e a medida em que ele cumpre com certas pretensões de Kant para com a terceira Crítica, não é matéria que esteja livre de disputa. Porém, se não há muito consenso quanto à questão de um fechamento sistemático da obra kantiana, nosso foco não quer se inserir no interior deste debate, mas tão somente compreender o juízo reflexivo em seu estatuto para o objeto de arte. Mantendo distancia de uma pretensão de vir a qualificar toda uma constelação de obras kantianas, nos interessamos aqui em partir de um modelo estético o mais consensual possível, e pôr sob análise aquilo que diz respeito a um estabelecimento conseqüente do estatuto em questão. Os tópicos que se seguem se subdividem em quatro. Aqueles que possuem subtópicos apenas subdividem um mesmo tema para o fôlego de um processo de leitura. Adotamos dividir em tópicos e subtópicos como em quadros os mais independentes possíveis, na medida em que estes seguem uma progressão em direção a nosso objetivo de caracterizar o estatuto do juízo estético e este no sentido de vir a adaptar-se a um modelo para a experiência musical. As respectivas temáticas são; 1. O juízo estético: aspectos da legalidade do juízo estético puro quanto a seu estatuto, conteúdo e exibição, 2. As implicações do juízo estético em uma experiência estética. 3. Implicações de uma adoção do modelo reflexivo e a nossa posição frente à separação entre o campo lógico e o estético. 1. O juízo estético. Estético refere-se de modo geral a aquilo que é da ordem sensível, e por extensão e obra de Baumgarten (1993:95), ao terreno da arte. Em Kant podemos encontrar dois sentidos para este termo, um identificado com as intuições puras da sensibilidade, e outro identificado com a atividade judicativa do gosto, onde também se insere a beleza. Podemos começar por defini-lo negativamente: “O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético.” (CFJ: 15 “[...] que todo juízo estético é assertórico, singular, afirmativo e categórico” (1997 [1979], p. 114). (Loparic 2001:32) 47 4). Pensar o juízo estético como um juízo não lógico, ou seja, um campo que se afasta daquilo que entendemos por conhecimento, requer ainda uma breve exposição do papel geral do juízo estético. O juízo é caracterizado na introdução da terceira Crítica (CFJ: XXIX-XXXVIII) como uma faculdade que contém o princípio da conformidade a fins formal da natureza. Fato este, por si só, demasiadamente impregnado de uma função determinante. Porém, Kant nos esclarece que tal função encerra uma autonomia, o que confere ao juízo um status de faculdade. Este caráter autônomo de sua legalidade irá repercutir de forma decisiva para a caracterização do horizonte estético, ou seja, o domínio do juízo de gosto, e assim da beleza artística: [...] a faculdade do juízo, que no que diz respeito às coisas sob leis empíricas possíveis (ainda por descobrir) é simplesmente reflexiva, tem que pensar a natureza relativamente àquelas leis, segundo um princípio de conformidade a fins para a nossa faculdade do juízo, o que então é expresso nas citadas máximas da faculdade do juízo. (CFJ: XXXIV) Kant fez coincidir a máxima da faculdade do juízo, em seu exercício autônomo de uma função de conformidade a fins, com o próprio caráter reflexivo adotado no juízo estético. E como veremos, entre as classes deste juízo, o juízo da beleza é aquele onde esta autonomia aparece de forma mais pura. Na medida em que o juízo é qualificado em sua autonomia enquanto estético, compreendendo assim uma ‘máxima’ (CFJ: XXXIV) reguladora, é curioso o fato de a sensibilidade ser matéria de uma ‘estética transcendental’ na primeira Crítica enquanto faculdade passiva e pré-discursiva16. A partir da terceira Crítica estes conceitos ficam irreconciliavelmente separados, no sentido de que um múltiplo da intuição não será objeto no juízo de gosto da mesma maneira como é referencia para o julgamento lógico, o limite do estético surge quando o juízo reflexivo dá lugar a um julgamento. A receptividade dos sentidos fica excluída do discurso sobre a beleza das obras artísticas. Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, 16 Em Kant a qualificação do produto do entendimento é discursivo e passível de teoria, argumento, representação. Todo produto que não tenha passado por um ajuizamento determinate fica por isto fora de qualquer perspectiva discursiva do conhecimento: “Fora da intuição, não há outro modo de conhecer senão por conceitos. Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é intuitivo, mas discursivo.” (CRP B 93) 48 aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa representação (CFJ: XLII). Fica assim determinado, neste capítulo, enquanto estéticos, aqueles juízos relativos a sentimentos de prazer e desprazer, ao mesmo tempo em que não são capazes de participar consistentemente em uma representação objetiva (CFJ: XLIII). Este endereçamento do juízo da beleza atesta inicialmente, sobretudo no que diz da relação entre o montante sensível e o objeto de arte, que a consecução de uma ligação entre o intuído e um juízo demandaria uma subsunção conceitual, o que afastaria assim o sentido subjetivo do juízo estético para o caso da arte, e invalidaria todo o estético em detrimento do lógico (CFJ: XLIV). Em vista deste curioso estatuto do juízo da beleza, fazemos nosso o inquérito kantiano: “Só que agora surge a pergunta: existe em geral uma tal representação da conformidade a fins?” (CFJ: XLIV). A pergunta se torna pertinente tendo em vista a falta de subsunção e de função lógica no campo estético definido enquanto juízo do belo. É certo que a explicação de um tal horizonte de nossas faculdades que venha a excluir o lógico (o processo de conhecimento que gera representações para nossa apercepção) postularia, enquanto problema, a possibilidade de uma representação estética. Este é um direcionamento crucial para o estatuto do juízo de gosto, sobretudo quando pensamos que esta estrutura deva contemplar uma experiência musical. Esta relação entre o lógico e o estético se torna tão mais instigante quando vemos os traços comuns destes estatutos, o da beleza e do conhecimento. Em ambos os casos está implicado uma ação do entendimento, faculdade esta que tem como função implicar uma conformidade a fins objetiva, porém, no juízo estético daria lugar a uma conformidade a fins que vincula apenas uma forma do ‘conhecimento em geral’. E não se chega a nenhuma solução supondo que haja objetos especiais com respeito aos quais se chegue a uma tal proporção, ou que os objetos belos devam ser realmente interpretados no pano de fundo da teoria kantiana. Assim, não é o caso que, para cada objeto dado, se siga uma outra proporção das faculdades do conhecimento. Creio ser mais provável que Kant queira dizer que, no processo de conhecimento, duas proporções entre a imaginação e o entendimento se apresentam. Em face de diferentes objetos dados intuitivamente, pode-se chegar a mais ou menos grandes disparidades de uma proporção ideal das faculdades do conhecimento. Primeiro, a existência de uma proporção ideal propícia ao conhecimento em geral permite-nos distinguir se uma representação intuitiva está sob um certo conceito. (Bradl 1995:4) 49 Acompanhando Bradl, o juízo de gosto se insere em um limite da harmonia das faculdades. O limite está traçado na inclinação diversa a que o juízo de gosto toma no interior de uma estrutura que tenderia a cair sob um conceito. Não possuindo um conceito e não se referenciando a uma objetividade, o juízo estético e o que seja sua representação, cumpre somente com uma estrutura do ‘conhecimento em geral’ (CFJ:§9). É desta estrutura do conhecimento em geral, mesmo que ainda indeterminada, que advém uma ação do juízo, que, livre de sua ação determinante vem a assentir um sentimento de prazer ou desprazer. A realização de toda e qualquer intenção está ligada com o sentimento do prazer e sendo condição daquela primeira uma representação a priori – como aqui um princípio para a faculdade de juízo reflexiva em geral – também o sentimento de prazer é determinado, mediante um princípio a priori e legítimo para todos. (CFJ: XXXIX) Se o juízo, de modo geral, traz consigo o cumprimento de uma ‘intenção’ que se dá sempre no sentido de constituir a priori uma representação, Kant nos diz que este sentimento de prazer que se associa a estas intenções cumpridas possui também um princípio a priori, que não se coincide com o estatuto desta representação inicial. A função autônoma do juízo permite assim que se evada aquela ligação espaço/temporal dos fenômenos à consecução de um fim lógico, e, abstendo-se desta linearidade da consecução de um propósito, esquematiza apenas com o montante da intuição que passa então a reflexionar, ou seja, buscar regras onde em realidade nenhuma regra ou limite prevalece ou se dispõe. O próximo tópico se dedica a demonstrar como este estatuto é acionado para o caso do juízo da beleza. 1.1 O estatuto do juízo do belo. O juízo da beleza ocupa duas seções na terceira Crítica. Ele está definido na Analítica do Belo e escrutinado na Dedução dos juízos estéticos puros. A exposição deste juízo na analítica está organizada em paralelo com a estrutura categorial da primeira Crítica, sendo assim Kant expõe o juízo da beleza dividido em quatro momentos que correspondem, ou corresponderiam, à atividade de cada categoria; qualidade, quantidade, relação e modalidade. Guyer acredita se tratar de um processo bastante curioso, visto que ao buscar 50 definir um estatuto não lógico, mas estético, Kant utiliza de um procedimento que busca resguardar categorias e faculdades lógicas (Guyer 1997:114). Comentemos cada um destes momentos. O primeiro momento, Qualidade: “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo.” (CFJ: 16) Logo nas primeiras páginas encontramos uma série de questões concernentes a este estatuto. Primeiro, que a beleza é uma complacência. Segundo que esta complacência é função da faculdade do juízo de gosto que ajuíza um objeto ou modo de representação. Deste ponto já podemos distinguir duas espécies de complacência; aquela que ajuíza um objeto, e aquela que ajuíza um modo de representação. Desta diferença fundamenta-se uma distinção entre o agrado e a beleza (§3). Porém, não deixa de ser curioso o fato de Kant dizer que o ‘objeto’ da complacência é o que se chama belo, dando a entender uma espécie de representação para o sentimento da beleza, que contudo não será explorado por Kant: Pois, no último caso, a representação é referida ao objeto; no primeiro, porém, meramente ao sujeito, e não serve absolutamente para nenhum conhecimento, tampouco para aquele pelo qual o próprio sujeito se conhece. Na definição dada, entendemos contudo pela palavra ‘sensação’ uma representação objetiva dos sentidos; e, para não corremos sempre perigo de ser falsamente interpretados, queremos chamar aquilo que sempre tem de permanecer simplesmente subjetivo, e que absolutamente não pode constituir nenhuma representação de um objeto, pelo nome, aliás, usual de sentimento. (CFJ: 9) A diferença entre um objeto e um ‘modo de representação’ é sutil. Assim mostra Vladimir Vieira: Juízos estéticos, por sua vez, guardam com estes [lógicos] uma semelhança meramente formal: “belo” não é um conceito de objetos, e não pode ser portanto utilizado para decidir se o que é apresentado sensivelmente é ou não o seu caso. (Vieira 2003:56) A estranheza da passagem é a seguinte. Se ‘belo’ não é uma predicação de um objeto17, mas uma complacência de algo formalmente semelhante, esta mesma 17 “ [...] a universalidade estética, que é conferida a um juízo, também tem que ser de índole 51 complacência, a beleza, é ao mesmo tempo tratada como um objeto, uma curiosa representação que não predica nada de nenhum objeto, mas que seria, por si, em si, uma representação subjetiva, e ‘objetivável’ apenas neste sentido. Quando Kant utiliza inadvertidamente o termo ‘objeto’ para designar a complacência da beleza somos obrigados a compreender este ‘objeto’ pela expressão geral =x, ou seja, um simples algo que é o sentimento da beleza. Ao mesmo tempo o caráter desinteressado do juízo passa de, independente do interesse, para uma condição de pré-suposto qualitativo deste mesmo juízo, por isto um estatuto necessário. O desinteresse diz que no juízo do belo não importa à minha complacência que aquele objeto permaneça existindo materialmente para que eu possa vir a ter um sentimento de beleza (§ 2). Porém isto não pode significar que o objeto ali diante de mim não exista, apenas indica que o caminho que o juízo traçou independe dele, mas depende exclusivamente de meu estado subjetivo. Diferentemente, no agradável, nossa subjetividade se prostra em direção a um objeto, pois sei qual variedade de maçã me agrada, em que estágio de sua maturação. E neste sentido eu poderia aferir a predicação do agradável a uma maçã específica, ‘esta maçã me agrada o paladar’ (§3). A implicação para a contemplação artística encontra-se aqui no esforço do espectador em anular sua tendência a encontrar um conceito para tudo que lhe caia na sensibilidade, e deixar-se fazer passar deste estágio para o mero desfrutar formal: “diante de um produto da arte bela tem-se que tomar consciência de que ele é arte não natureza” (CFJ:179). De que modo podemos vir a tomar consciência do que seja a arte, sem que seja um objeto de arte, entre outras questões relativas à ligação entre beleza e objeto, ainda vão suscitar maiores embates. O segundo momento, Quantidade: “Belo é o que apraz universalmente sem conceito” (CFJ:32). A universalidade expressa neste momento não se refere a qualquer propriedade que se possa unir à representação de um objeto, mas diz de uma universalidade que em cada indivíduo é a mesma, e que rege para todos os indivíduos em sua capacidade a priori de promover um juízo subjetivo (CFJ: 18). Disso não se pode deduzir a priori uma necessidade para todos ou mesmo unanimidade de um mesmo juízo (CFJ: §8). peculiar, porque ela não conecta o predicado da beleza ao conceito do objeto [...].” (CFJ: 24) 52 Novamente, a possibilidade de que o juízo da beleza expresse uma universalidade mesmo que subjetiva implicaria alguma relação com o conhecimento, mas como vemos em Bradl (1995), ela só diz respeito ao aparato geral do conhecimento, seu conjunto de faculdades que podem se coordenar em diferentes proporções. Neste caso, um mínimo de parcela do entendimento estaria comprometido, e ao mesmo tempo a imaginação atuaria em maior proporção a possibilitar uma reflexividade do juízo. [...] a universalidade estética, que é conferida a um juízo, também tem que ser de índole peculiar, porque ela não conecta o predicado da beleza ao conceito do objeto, considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto estende o mesmo sobre a esfera inteira dos que julgam.” (CFJ: 24). Aqui a universalidade diz respeito à capacidade que cada um tem em aferir beleza, referenciado exclusivamente em sua subjetividade, mas que porém, pelo fato desta mesma estrutura ser comum a toda a espécie, fundamenta a possibilidade de estendermos este estado subjetivo como possível a qualquer outra pessoa. Se esta universalidade contar com outros elementos que não apenas a estrutura do conhecimento em geral, mas com um conceito presente neste julgamento, então esta contaminação atua em sentido contrário ao juízo estético puro: “a solução deste problema é a chave da crítica do gosto e por isso digna de toda atenção.” (CFJ: 27). O estatuto do juízo estético tem que contar assim com uma legalidade que não permita esta contaminação do entendimento. Kant conclui que a universalidade do juízo de gosto só pode estar fundada em um livre jogo das faculdades do entendimento e da imaginação (CFJ:29), consistindo esta universalidade em uma capacidade transcendental de todo sujeito. Esta estrutura do conhecimento em geral movida no livre jogo, um simples esquematismo não determinante, constitui uma anterioridade a qualquer juízo, seja do agradável, seja de juízos lógicos. O juízo estético puro compartilhando de uma estrutura que é anterior a uma ação determinante, possui como fundamento unicamente este mesmo estado subjetivo de livre jogar a imaginação em sua função produtiva para com o entendimento. Se se avança sobre este estado implicar-se-ia uma representação de uma objetividade: “[...] mas esta validade subjetiva universal da complacência, que ligamos à representação do objeto que denominamos belo, fundase unicamente sobre aquela universalidade das condições subjetivas do ajuizamento dos objetos.” (CFJ:29) 53 O terceiro momento, Relação: “Beleza é a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela é percebida nele sem a representação de um fim” (CFJ: 61). É marca da faculdade do juízo expressar uma conformidade a fins. Sua finalidade é cumprida na composição de uma unidade, seja dada pela razão, seja dada pelo entendimento. A expressão imediatamente confusa, ‘finalidade sem fim’, se explica neste contexto. O juízo, conforme a fins, implica a consecução de finalidade. Uma finalidade só pode ser dada na composição de uma unidade, porém, no caso do juízo da beleza não se cumpre uma unidade em sentido lógico, pois nenhuma representação é atingida, ou seja, nenhum fim. A estrutura esquemática é aquela onde uma finalidade é movida, porém quando esta se move apenas no sentido de um livre jogo nada é determinado e a finalidade a fins permanece assim sem um fim. Kant apontava para esta condição desde o primeiro momento do juízo da beleza: “Ora, não temos sempre necessidade de descortinar pela razão (Einsicht)18 segundo sua possibilidade, aquilo que observamos.” (CFJ:33). Ou seja, de acordo com Kant uma finalidade não é constrangida por uma obrigatoriedade de execução final. O quarto momento, Modalidade: “Belo é o que é conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária” (CFJ:68). Trata-se de uma tipificação acerca da ‘necessidade’ do juízo da beleza. Como vimos, sua universalidade não é conceitual, mas subjetiva, e nesta medida não poderíamos imputar necessidade. Porém o prazer que se liga ao ajuizamento subjetivo é necessário, desde que as condições para o juízo da beleza tenham sido contempladas. Isto acrescenta mais uma característica à universalidade deste juízo, pois podemos imputar a qualquer um como necessário não apenas a capacidade de perceber beleza, mas um vínculo necessário entre o cumprimento de seu estatuto e o desprendimento de tal sentimento. Tal necessidade não pode contar com o aparato do conhecimento e Kant classifica esta necessidade do juízo estético como exemplar: “como necessidade que é pensada em um juízo estético, ela só pode ser denomina de exemplar, isto é, uma 18 Rohden escolhe o termo “razão” para a tradução de “Einsicht”, mesmo tendo alertado que o termo, traduzido como “insight” no inglês, não significa razão, mas sim, intuição, compreensão, e atos que se aproximam de um visão clara de um objeto obscurecido. O que a passagem quer denotar é o fato do objeto, no juízo do belo, estar completamente fora do conteúdo produzido, a beleza. Tal fenômeno é possível porque esta possibilidade está assentada em condições transcendentais, embora não tão explicitadas. Kant nos diz claramente: não há necessidade em termos sempre “objetos discernidos” para nossa consciência. 54 necessidade do assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal que não se pode indicar.” (CFJ:62,63) Diante da exemplaridade do juízo da beleza, sua necessidade surge não enquanto uma obrigação, mas como uma pressuposição de um sentido comum propício a uma comunicabilidade universal deste sentimento (CFJ: §21). Os quatro momentos elucidaram, analiticamente, aquilo que seria o estatuto do juízo da beleza. Montemos então o estatuto de forma unificada levando em consideração sua seqüência lógica: Um múltiplo apreendido na intuição / uma atividade esquemática da imaginação produtiva (CFJ:69) / um livre jogo da imaginação com o entendimento / uma ação reflexionante do juízo a conferir desinteresse no objeto / uma falta de finalidade19 no processo reflexionante implicando no não regramento do conteúdo da imaginação / uma ação autônoma do juízo de gosto que passa a operar em exclusiva referencia subjetiva ao estado das faculdades em jogo / desprendimento de um sentimento denominado beleza (atuante aqui como uma exemplaridade). A ordem que estabelecemos marca uma precedência do juízo reflexivo ao sentimento de beleza. Esta é uma sugestão de Kant a qual Guyer interpreta como sendo dúbia (Guyer 1997:109), e acredita que os mesmos argumentos kantianos justificariam o inverso. Porém autores que seguem uma interpretação dada por Lyotard vão tender a conceber uma simultaneidade entre a reflexão e a beleza. Contudo, os demais momentos permaneceriam os mesmos. 1.1.1 O conteúdo expresso no juízo da beleza. Já sabemos de antemão que o conteúdo expresso no estatuto do juízo estético puro é o próprio sentimento da beleza. Mas em que consiste este sentimento e como se relaciona aos demais conteúdos de nossa Gemüt veremos neste tópico. Comecemos por relacionar este conteúdo da beleza com o objeto real, fático. O 19 Este caráter negativo do estatuto indica mesmo o processo de não subsunção, que embora não seja processo algum, se destaca de outros estatutos justamente por especificamente se voltar para a conformidade a fins reflexionantemente, sem contudo encontrar um conceito. 55 princípio do desinteresse já havia afastado do juízo da beleza uma forma contundente de participação de uma objetividade, mas colocamos ainda duas questões a respeito desta relação: 1) A exclusão de toda e qualquer objetividade do juízo da beleza, no intuito de salvaguardar o prazer da beleza do prazer do agrado, deixaria o objeto como um resíduo incognoscível da operação? 2) A forma do objeto acarretaria algum vínculo especial para o conteúdo da beleza? Para a segunda questão é possível pensar uma resposta em Kant. Temos no conceito de ‘aderência’ uma possibilidade de participação da forma do objeto (conceito) enquanto componente de um juízo de gosto. No caso das artes belas (§44) conceitos presentes na obra nos disporiam a ideias estéticas, e estas a um componente de sociabilidade e cultura inesperado.20 Mas a rigor o que é ajuizado como belo não pode ser computado à forma do objeto. Esta aderência funcionaria no sentido de possibilitar um contexto amplo de cultura: "Portanto, enquanto um puro e livre julgamento de gosto meramente aprecia [assesses] a harmonia da imaginação e do entendimento, o juízo sobre a beleza aderente promove a cultura dos poderes mentais [§ 44 (306)]" (Wetherston: 1996:58). A aderência conceitual acaba exercendo este alargamento conceitual promovendo laços culturais. Já o traço epistemológico correspondente à aderência estaria demarcado pela consecução de idéias estéticas (CFJ:192,193), fundamentada na faculdade da imaginação produtiva (CFJ:193). O contexto destas funções surge de uma seqüência de argumentação em prol da arte bela, que se inicia no parágrafo §44 e tem seu fim no parágrafo §51, dentro da seção da dedução. Como parece ser uma constante na terceira Crítica, mais paradoxos e formas paradoxais se colocam: “pode-se em geral denominar a beleza (quer ela seja beleza da natureza ou da arte) a expressão de ideias estéticas, só que na arte bela esta idéia tem que ser ocasionada por um conceito do objeto;” (CFJ: 204) Aqui se faz necessário uma equalização dos quatro momentos da analítica. Pois, se a beleza implicar necessariamente em idéias estéticas, não haverá motivos para que Kant não as incluíssem no estatuto do juízo da beleza. Porém, este conceito aparece agora na dedução e implica que o estatuto que exclui a ação conceitual diga respeito às belezas da natureza, enquanto que a arte seria bela apenas quando implicasse 20 Ver introdução pp. 27. 56 aderência em seu objeto. Nossa pergunta ainda não foi respondida. Mesmo encerrando conceitos, de que modo estes se ligariam a uma idéia estética e configurariam um laço, um vínculo necessário entre um dado objetivo e o sentimento da beleza? Antes de responder a esta questão temos que estabelecer, antes de tudo, que a arte bela, segundo Kant, é aquela que abre uma concessão em prol de uma “representação da faculdade de imaginação que dá muito a pensar” (CFJ:162,163). A idéia estética possui um estatuto ao qual entraremos em detalhes mais a frente, por enquanto podemos apenas apontar que a idéia estética é fruto de uma ação igualmente reflexionante e por isto, ela mesma, não é determinante. Porém, é de se supor que a idéia estética, estando restringida mesmo que minoritariamente por um conceito do objeto, difira daquele juízo puro que não se liga a um conceito de modo algum. Contudo não encontramos nenhuma literatura ou passagem em Kant que especificasse a relação das ideias estéticas com a aderência, e desses com o esquematismo em geral ou o estatuto estético, o que temos seria algo como a expressão, ‘dá a pensar’. De todo modo, o juízo da beleza, seja para uma arte bela, uma beleza livre, ou beleza pura, alicerça-se em um sentimento. O conteúdo, mesmo no caso de uma idéia estética, é um sentimento prazeroso. Esta sutilidade inscrita na idéia estética, embora faça gravitar alguma conceitualidade na arte bela, possui a mesma forma da reflexividade do juízo puro, impossibilitando a apreensão de uma objetividade, assim mostra Silke Kapp: “Um juízo estético não envolve conceitos e, ao mesmo tempo, a conformidade objetiva a fins não pode ser percebida, apenas deduzida a partir de um conhecimento” (Kapp 1998: 254). De todo modo parece ser justo dividirmos o juízo da beleza entre aderente (aplicado à arte bela), e puro (aplicado a objetos da natureza): “[...] na natureza bela, porém, a simples reflexão sobre uma intuição dada, sem conceito do que o objeto deva ser, é suficiente para despertar e comunicar a idéia da qual aquele objeto é considerado expressão” (CFJ:204). A referência desta experiência com a natureza é tão importante para Kant que toda a arte bela – obra do gênio – é aquela capaz de se ‘passar por natureza’ (CFJ:180). No caso musical Kant reserva pouco espaço para a aderência, pouco espaço para a idéia estética e pouco espaço para a beleza, ficando assim na fronteira de um mero 57 agrado21. Porém, isto que é um acessório empírico, a aderência, apenas reforça o livre jogo, e continua sem expressar um conteúdo, ou pelo menos, o conteúdo é sempre o mesmo, o sentimento da beleza. Loparic aponta para uma interpretação diversa onde seria possível, mesmo estando impossibilitado a distinção da beleza no nível do prazer, pelo menos torná-la indelével por sua referencia reflexiva, enquanto consciente de produzir idéias estéticas. Esta referência poderia ser decisiva no estabelecimento de uma distinção entre o prazer do agrado do prazer da beleza, em nível fenomenológico. O sentimento estético resulta da ‘representação refletida’ do objeto sensível, isto é, da reflexão sobre a forma do objeto dado numa representação perspectiva (percepção) que constata ser essa representação ligada ao comprazimento ou desprazimento desinteressados. (Loparic 2001:13) A resposta de nossa segunda questão (a primeira permanece ainda em aberto) parece estar ainda impedida, o juízo estético não poderia se referir a um objeto (CFJ:30), e no excerto de Loparic a ‘representação refletida’ estaria apenas referida ao próprio ato de reflexionar, não criando uma correspondência material com o objeto. A percepção cumpriria apenas um papel de prover a imaginação de um montante de dados, ou seja, seria o combustível do processo que contudo não contaria mais com suas características no sentido de promover determinações deste material. Strito sensu, nenhuma representação do objeto, em qualquer sentido, pode ser reivindicada na experiência da beleza. O que é incluído no caso das idéias estéticas são montantes conceituais que se inserem no esquematismo e ali perdem sua referência objetiva e passam igualmente a reflexionar, ou seja, procuram uma regra para o todo da experiência sem a ter finalizado. O trecho de Loparic permanece ainda indeterminado, pois uma representação refletida seria uma representação auto-consciênte, e necessitaria de uma ação da apercepção que provavelmente se afastaria do estatuto da beleza (veremos no próximo capítulo). Em todos os casos, optamos, contrariamente a Loparic, em interpretar o sentimento da beleza enquanto o conteúdo da experiência estética pura para Kant, onde a única diferenciação, mesmo que indelével, parece correr entre o fenômeno do ‘dar a pensar’ do juízo da arte bela, e da pureza do juízo para o caso do juízo da beleza da natureza. Contudo, o conteúdo do juízo da beleza constando apenas como um sentimento 21 Ver introdução. (CFJ:225) 58 subjetivo puro parece ser pouco palpável para o contexto de uma descrição que pretende erigir um modelo epistemológico musical. Parece que uma possibilidade pelo menos mais aberta a uma análise estaria em focarmo-nos apenas no juízo da beleza enquanto jogo. Romero Freitas entende que a falta de propositividade do juízo da beleza é devido ao jogo das faculdades, e assim a falta de referência a um objeto – interpretamos – seria substituída, de um foco objetivo para o foco de uma atividade subjetiva: Pode-se dizer que o juízo de gosto é pensado como mera atividade de ajuizamento, ou seja, como ato sensível da faculdade do juízo. O juízo de gosto não constitui uma proposição. Ele exprime apenas, ou melhor, ele é apenas a relação entre as faculdades do sujeito e um objeto natural [...] Por isto, pode-se supor que o que lhe dá um conteúdo específico é a idéia de jogo. (Freitas, R. 1998:155) Ainda assim não se resolve de que modo este estatuto em jogo depreende ou se identifica com o sentimento da beleza. E mesmo não encontramos em Kant como o montante sensível desencadeia um jogo e como somos capazes de nos evadir intencionalmente da referencia do objeto, pois que até onde vimos, Kant parece mostrar que o desinteresse se atrela necessariamente ao processo transcendental do juízo reflexionante. O conteúdo estético não pode ser a ‘idéia de um jogo’, mas tão somente o próprio jogo, ou, aquilo que depreende deste jogo, como parecia deixar transparecer a analítica do belo. Ficam assim nossas duas questões deste subtópico sem resposta. A seqüência dos demais tópicos carrega esta problemática e as colocam sob outros temas relacionados. O mais importante nestas perguntas é buscar estabelecer os limites do estatuto da beleza descrito por Kant. 1.1.2 A hipotipose. O conteúdo do juízo estético compreendido como o resultado de um estatuto, pressupõe que uma exibição o tenha sublevado. Na terceira Crítica esta função é compreendida sob o titulo de hipotipose. A hipotipose é a exibição de um conteúdo para a consciência. Ela pode ser direta (esquemática) ou indireta (simbólica) quanto a seu objeto, nos explica Lincon Frias: 59 Kant pensa a exibição como um estágio necessário na preparação para a aplicação ou simples associação (como no juízo estético reflexivo) de qualquer conceito a um múltiplo da intuição, pois qualquer aplicação desse tipo requer que o conceito seja ligado a suas possíveis instanciações. Quer dizer, quando o conceito de um objeto é dado, a função do juízo no uso desse conceito para a cognição consiste na exibição, i.e., pôr ao lado do conceito uma intuição que lhe corresponda [Cf. KrV A141/B180, 146]. (Frias 2006:35) No caso de uma hipotipose esquemática, juízos subsumem intuições sob conceitos, este processo é direto pois o conteúdo da intuição é expresso conceitualmente sob a representação da intuição. No que diz respeito aos juízos estéticos, estes se exibem por um modo peculiar, dito simbólico. Esse processo se dá no âmbito do juízo reflexivo, quando a predicação não é sobre o objeto, mas sobre as faculdades do sujeito – e com isso, não se dá a subsunção de um particular a um universal […] (Frias 2006:36) Este processo simbólico tem que ser capaz, no juízo estético, de exibir algo que não está dado na intuição, e que ao mesmo tempo nenhum conceito subsume. A função de exibição neste caso parece se encontrar em um caso limite, e neste sentido a analogia surgiria como a única possibilidade de fazer exibir tal estatuto. O simbólico reside em uma operação de analogia (CFJ:256), dependendo de quatro termos alinhados em dois pares para que a relação analógica se estabeleça. Porém, no uso de tal procedimento para o caso da hipotipose simbólica relativa a um juízo estético puro não temos como formar um dos pares necessários através da intuição e do conceito. Isto implica a falta de um dos termos, e torna a função simbólica de exibição para o caso da beleza uma questão peculiar: Na Filosofia, porém, a analogia não é a igualdade de duas relações quantitativas, mas de relações qualitativas, nas quais, dados três membros, apenas posso conhecer e dar a priori a relação com um quarto, mas não esse próprio quarto membro; tenho sim, uma regra para o procurar na experiência e um sinal para aí o encontrar. (CRP A 179,180) Adiantamos-nos um pouco e trazemos um conteúdo da primeira Crítica, mas apenas para confirmar a relação lógica em questão. De modo geral a analogia tem de um lado algo intuído e conceituado (primeiro par da analogia), e de outro, um conceito “...que somente a razão pode pensar...” (CFJ: 255) e que contudo nenhuma intuição lhe será adequada, portanto, a intuição surge como o termo vazio no segundo par. 60 Este termo que falta deve ser substituído a partir da relação estabelecida na analogia. Esta transposição não pode ser dada quantitativamente como na regra de três, mas preenchida qualitativamente, ou seja: “...simplesmente segundo a forma da reflexão, não do conteúdo.” (CFJ: 255) Podemos notar que o exemplo tratou de uma idéia da razão, o que não faz imediatamente esclarecer o estatuto desta exibição para o juízo da beleza. O juízo da beleza não possui intuição nem conceito. A idéia estética é referida a uma capacidade produtiva da imaginação. Como estabelecer os pares lógicos para uma hipotipose simbólica da beleza? Lyotard organiza os elementos do juízo estético de forma a coincidir conteúdo e estatuto: Porque “logicamente” esta se chama faculdade de julgar, mas “psicologicamente”, se se autoriza por um instante esse uso abusivo do termo, ela é só um sentimento de prazer e desprazer. Ora, como faculdade de conhecimento, está voltada à heurística, enquanto procurando “sensações” no sentido que vamos esclarecer, revela plenamente seu caráter tautegórico, termo pelo qual designará somente este fato notável que o prazer ou o desprazer são ao mesmo tempo um “estado” de alma e a “informação”. (Lyotard 1993:12) Se o prazer do belo não se confunde com qualquer outro, de acordo com Lyotard, seria justamente porque este sentimento está intimamente ligado a uma consciência de um livre jogo. Para Lyotard, a identidade entre estas esferas confere um efeito: “a contemplação [do belo] fortifica-se e reproduz a si mesma; é um estado análogo (mas não idêntico) à Verweilung, à pausa’, à ‘passividade’ que um objeto atrativo suscita no pensamento [65;61].” (Lyotard 1993:14) Portanto, o que seria o simbólico para uma idéia da razão, no juízo estético puro apareceria de modo não ortodoxo, pois que strito sensu não compõe nenhum termo de um par lógico, pois não é um conceito que busca expressão sensível nem uma intuição que busca um conceito. Os dois termos do juízo da beleza (um sentimento e uma reflexão) coincidem e em verdade não se diferenciam, e não permitem assim uma analogia pois não lhe falta qualquer representação. A partir de Lyotard, assim lemos, a exibição do juízo da beleza, sua hipotipose, surge ao modo de uma ‘pausa’. Sua referência puramente subjetiva faz deste juízo uma ocorrência singular de difícil comparação. O ato de julgar a beleza não encontra analogia, detêm-se tão somente em 61 sua própria heurística, na consciência silenciosa de um sentimento refletido a si. Em uma interpretação mais conservadora, onde a beleza e reflexividade não se coincidam, teríamos igualmente uma posição estranha, visto que a beleza depreendida do livre jogo já seria o sentimento e portanto já seria o fenômeno em questão, um sentimento da beleza. O conteúdo da beleza dispensaria tanto o mecanismo de exibição simbólico quanto esquemático, suscitando para si um modo de exibição próprio o qual não se sabe. 1.1.3 A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo. Passamos pelas descrições mais gerais do estatuto e conteúdo do juízo da beleza. Resta ainda remeter estes dados à totalidade da terceira Crítica, para podermos interpretar a totalidade da experiência descrita para este estatuto. Para Lopes o juízo da beleza cumpriria um propósito sistemático kantiano. Em sua interpretação o assentimento do juízo da beleza emergiria a partir de uma série de postulações aparentemente paradoxais, pois se trataria na verdade de uma região onde razão e entendimento se conciliariam na produção de um fenômeno: Para Lyotard, portanto, o senso comum estético não é mais que a harmoniosa proporção entre entendimento e imaginação, diante do desafio de se apropriarem da forma do objeto, fonte do prazer, um jogo livre (freie Spiel) das faculdades de conhecimento, curtocircuitando as imposições do conhecimento e da moralidade (Lopes 2010:77) Tal ponto de vista deve ser esclarecido. O termo ‘curtocircuito’ quer fazer referência a dois domínios, ao da razão, enquanto faculdade da moralidade e ao entendimento enquanto faculdade do conhecimento. No texto kantiano o grande impasse vivido pelo juízo estético puro se encontra no livre jogo entre imaginação e entendimento. As discussões acerca do parágrafo §59 Da beleza como símbolo da moralidade com freqüência se esquecem que o simbólico neste parágrafo trava uma relação de analogia (CFJ:257). Neste caso a moralidade não se estabelece como um conteúdo do juízo de gosto, mas apenas como Kant mesmo diz, a beleza pode servir analogamente como símbolo da moralidade, visto que esta é uma idéia da razão a qual carece de uma intuição correspondente: 62 A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós frequentemente damos a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contem algo analógico à consciência de um estado de ânimo produzido por juízos morais. (CFJ: 260) A analogia, necessitando sempre de um modelo de comparação determinado (árvores e edifícios), no caso de tomar como modelo a beleza, dispõe apenas da forma deste juízo a servir de símbolo para a moralidade. O próprio Lyotard, a quem Lopes recorre para legitimar sua fala, ainda nos diz: [...] o julgamento estético manifesta a reflexão no seu estado mais “autônomo”, mais nu se se pode assim dizer. (Lyotard 1993:14) É a relação destas entre si que, enfim, confere ao gosto a autoridade de pretender a universalidade [...] Pretensão inteiramente subjetiva, é certo, mas universal, posto que o jogo do entendimento e da imaginação a propósito da forma do objeto basta, “sem consideração de nenhum conceito, ohne Rücksicht auf einen Begriff” (37 t.m; 22) para suscitar no pensamento o prazer que lhe dá, em geral, a conveniência entre essas duas faculdades de conhecer [37; 28-29]. (Lyotard 1993:12) Não faz parte da essência do juízo da beleza conter qualquer analogia. Esta pode ser traçada como uma possibilidade e não como uma marca própria de seu estatuto ou conteúdo. Detendo-nos nesta questão vemos que as distinções que Kant faz entre o juízo moral e estético são inúmeras, e superam mesmo o número de elementos comuns para a analogia. Vejamos um exemplo no parágrafo §59: 3) A liberdade da faculdade da imaginação (portanto, da sensibilidade de nossa faculdade) é representada no ajuizamento do belo como concordante com a legalidade do entendimento (no juízo moral a liberdade da vontade é pensada como concordância da vontade consigo própria segundo leis universais da razão). (CFJ: 259) Torna-se essencial entender a legalidade da operação analógica. Em termos lógicos é controverso que a relação A está para B, assim como C está para D, expresse alguma verdade. Segundo o próprio Kant: “No caso da inferência segundo a analogia, entretanto, não se exige a identidade do fundamento (por ratio). (Lógica: A 208). A inferência para ser minimamente válida exigiria que as espécies comparadas residissem sobre um mesmo gênero (CFJ: 449 [pé de página]), para que alguma 63 conseqüência sobreviesse da analogia. Manter tal equalização requer bastante cuidado, em virtude da limitação que a analogia confere sobre a conseqüência dos análogos. Eu sou capaz de pensar a comunidade dos membros de uma coletividade, segundo as regras do Direito, segundo a analogia com a lei da igualdade de ação e reação [Wirkung und Gegenwirkung] na atração e repulsão recíproca dos corpos entre si, mas não de transpor aquela determinação específica (a atração material ou a repulsão) para estes a atribuí-la aos cidadãos, para constituir um sistema que se chama Estado. (CFJ:450) Para o caso da analogia com o juízo moral se passa o mesmo, e o mesmo se coloca no artigo de Romero Freitas (1998), onde pensa uma analogia entre o juízo da beleza e o do conhecimento a partir da expressão “como se” 22 empregada por Kant. Não nos parece coerente com a filosofia kantiana querer definir o conteúdo da beleza enquanto simbólico. Interpretemos uma passagem de Verlaine Freitas (apud Duarte:1998), que toma o belo como símbolo sem problematizá-lo no sentido em que fazemos: O belo é uma apresentação simbólica do moralmente bom, em segundo lugar, por ser precisamente uma apresentação intuitiva deste, ou seja, a operação da mente que admite uma vontade sobre-humana é realizada na contemplação de formas dadas aos sentidos. (Freitas, V. 1998:98) artigo de livro Se admitirmos, ao pé da letra, que o belo ‘é’ uma apresentação simbólica, perdemos de vista toda a autonomia alcançada pelo juízo estético. Se contarmos com as ressalvas de Kant, ao longo do parágrafo §59, sobre o uso, princípio e limite da analogia, a confusão de que a analogia seria um elemento do estatuto do juízo estético estaria facilmente desfeita. Kant nos diz que a analogia só pode dizer respeito à “[...] forma da reflexão, não do conteúdo.” (CFJ:255). Mais a frente nos diz: “queremos mostrar alguns elementos desta analogia, sem ao mesmo tempo deixar de observar sua diferença.” (CFJ:259). Ao fim do parágrafo pontua sua fala: O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento; na medida em que ele representa a faculdade da imaginação como determinável também em sua liberdade conforme a fins para o entendimento e ensina a encontrar uma complacência livre, mesmo em objetos dos sentidos e sem um atrativo dos sentidos [grifo nosso]. (CFJ: 260) 22 “[...] ele falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do objeto e o juízo fosse lógico” (CFJ:18). 64 Dada estas considerações não é possível incluir qualquer valor moral ao conteúdo do juízo estético puro, mas é possível através da analogia conferir ao juízo da beleza uma transposição de sua função habitual para ocupar o lugar de símbolo de um outro processo. E fiquemos com a recomendação de Lyotard sobre a pressa em se identificar o belo ao bom: “arcaico argumento, arcaico para o pensamento ocidental, segundo o qual do belo ao bem a conseqüência é boa e que bem sentido far-se-á bem. Mais até: fazendo sentir o belo, far-se-á bem. [...] ocultar-se-ia a diferença estética, obscurecerse-ia um território, o das formas belas, e um desafio, o prazer puro que elas proporcionam [...]” (Lyotard 1993:156). Não há na exibição simbólica do moralmente bom qualquer violação de legalidades pois o próprio processo não implica uma ligação da quantidade do conceito. A beleza enquanto símbolo do moral predica uma possibilidade de inferência, que contudo não é essencial para a definição de nenhum dos dois juízos. Compreendendo que todo juízo encerra uma relação a fins, acrescentaríamos que há um percurso ‘apropriado’ a cada juízo para que possa se realizar. Esta realização se vincula à estrutura geral da Gemüt (CRP: B102,103), e é esta vinculação precisa que queremos encontrar para o caso do juízo da beleza. Porém até aqui só fizemos mostrar como o juízo da beleza não é ele mesmo uma exibição simbólica, e ainda não definimos seu tipo próprio de exibição. Neste sentido o juízo da beleza poderia ser entendido como uma ‘feliz insuficiência’ do entendimento, a dar lugar a uma liberdade reflexionante, prazerosa, que por sua vez é um ambiente lógico propício a idéias estéticas. [...] ou, no segundo caso, somente com uma concordância final e sem fim – que se sobressai espontânea e acidentalmente – com a necessidade da faculdade do juízo, relativamente à natureza e às suas formas produzidas segundo leis particulares. (CFJ: 247) Ainda no parágrafo §58 uma nova questão entra em cena, Kant se pergunta acerca do paradigma a que o modelo geral do juízo estético se organizaria, se racionalista ou idealista. Como o título do capítulo já demonstra, Kant opta pelo princípio idealista para o juízo estético. Sendo que seu estatuto é fruto de um ocaso, ‘espontânea e acidentalmente’ desviado da determinação do entendimento. Seria o caso do próprio Kant compreender nosso aparato cognitivo geral enquanto construto 65 movido para um uso lógico mas que por uma feliz espontaneidade e acidente, possibilitam uma experiência em outro sentido. Esta passagem de uma estrutura determinante que acaba desembocando em um juízo reflexivo não está descrita como uma voluntariedade, e nem como uma necessidade da forma do objeto. Vamos aproveitar de uma imagem do próprio Kant para ilustrar a possibilidade, em nível epistemológico, de uma espontânea e acidental passagem do lógico para o estético. Não sendo possível estabelecer uma contigüidade entre estes dois estatutos (lógico e estético), estando ambos tão diametralmente opostos, se faz necessário alguma mudança direcional no interior do esquematismo, que venha a qualificar o estético ou o lógico. Ilustramos esta possibilidade como uma operação quântica 23: O exemplo mais comum desta espécie de formação é a água que se congela, na qual se produzem primeiro pequenas agulhas retas de gelo, que se juntam em ângulos de 60 graus, enquanto outras igualmente se fixam a elas em cada ponto até que tudo se tenha tornado gelo; assim que durante esse período a água entre as agulhas de gelo não se torne progressivamente mais resistente, mas esteja tão completamente liquida como o estaria durante um calor muito maior e contudo possua o frio inteiro do gelo. A matéria que se separa e escapa rapidamente no instante da solidificação é um quantum considerável de matéria calórica, cuja perda, pelo fato de que ela era requerida meramente para a fluidez, não deixa este gelo atual minimamente mais frio do que a água pouco antes líquida. (CFJ: 249,250) Se súbita, quântica ou acidental, cabe a outros trabalhos avaliar em que medida o próprio Kant pesaria tal relação entre lógica e estética em termos tão estritos. 23 Para o caso da física quântica o termo corresponderia a um ramo da ciência que se ocupa de processos atômicos discretos (descontínuos), em virtude de uma impossibilidade de utilização de recursos clássicos da física, dado as dimensões ínfimas dos eventos medidos. No nosso caso, o pormenor atômico de um aparato epistemológico não pode ser postulado como um objeto em três dimensões no qual pudéssemos dispô-lo em nossas mãos a encontrar onde e como uma possibilidade estética e uma lógica se inscreveriam. Dado esta condição da dimensionalidade de nosso objeto de pesquisa (um modelo epistemológico), podemos apenas compreender que por motivos que desconhecemos e que Kant não se ocupa deles, a causa final da dupla possibilidade de um estado de esquematismo permanece velada, e podemos nos referenciar apenas ao salto ‘quântico’, descontínuo verificável. 66 2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza. Para a elaboração de um modelo epistemológico musical cremos que os elementos até aqui levantados são suficientes, se não para encerrar um modelo, pelo menos a estruturá-lo, caso o fenômeno musical se mostre consonante ao paradigma estético. Tendo em vista as características do assentimento e do desinteresse, bem como das particularidades de exibição do juízo da beleza, abrimos este segundo tópico a traçar relações entre estas normas estéticas e uma realidade palpável referente ao objeto de arte em geral. Do ponto de vista histórico, não há como negar uma influência por parte destas concepções de Kant para com o discurso estético subseqüente. Porém, distingamos o quanto esta relação se inscreve em uma crítica geral, incidindo diretamente em um discurso sobre uma prática artística, e o que as regras estatutárias estéticas definem para um objeto da arte: Se o lume de Giotto, diferentemente da luce, da luz, ainda tem algo de divino, o Iluminismo é uma luz racional, cada vez mais secularizada a partir dos anos de 1700, século ao qual Kant deu feições filosóficas precisas, nos campos da Epistemologia, da Ética e da Estética. Aliás, os domínios da aisthesis grega serão deslocados, ampliados e demarcados. O conceito de Estética, tal qual lemos nos dicionários modernos, "estudo racional do Belo", é tributário da modernidade, da busca por repensar constantemente as normas artísticas sob um ponto de vista cada vez menos autoritário – autoridade da Antigüidade ou daquele Belo como bem – e cada vez mais humano, racional. E é neste sentido que Kant fala em "juízos estéticos", em julgamentos estéticos, e não em normas estéticas, em regras, idéias ou modelos. (Rufinoni 2007: 2,3) É a partir de Kant que podemos centralizar as atividades humanas num sujeito transcendental, e assim acontece com a arte, onde seu critério era dado por princípios estéticos postulados de antemão. Acompanhando o giro copernicano, transporta todos os encargos dos pormenores do mundo da arte para a subjetividade do gênio24, ao mesmo tempo em que concede poderes inalienáveis ao espectador em julgar a beleza, a par de toda e qualquer burocracia social, porém, de uso estrito das possibilidades de suas faculdades. Com o sujeito soberano em ajuizar e produzir a arte, onde nenhuma instituição é capaz de dar correção normativa, o estético passa a assumir outro tipo de liberdade, 24 “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte.” (CFJ:181) 67 para além da própria esfera da teoria moral e lógica, e que contudo, segundo Lopes, contribuiria para a composição de um sujeito crítico: A matriz espaço-temporal-estética é o aqui e o agora. Dela é que surge a promessa de um sujeito que – diferentemente do sujeito formal da primeira e segunda Críticas - se encontrará nascendo a cada vez que existir o prazer do belo; todavia, não permanecerá nascente, pois o tempo estético não possui passado, nem futuro que possa escorar uma identidade do sujeito. (Lopes 2010:77). Em consonância com Lyotard e a experiência da ‘pausa’ provocada pelo juízo estético puro, Lopes dispensa ao juízo estético qualquer sucessão ou localização inerente a seu conteúdo. Sendo assim, faltaria ao sujeito que julga uma possibilidade de ligação não somente entre dados de uma objetividade, mas entre eventos estéticos diversos, e o que se tem é uma e mesma experiência que se dá em diferentes contextos, mas enquanto experiência, significaria sempre uma e mesma coisa, a beleza.25 Recordando estes diversos predicados, só se pintam tons, matizes dos sentimentos; não se constrói um sujeito. O sentimento estético na singularidade de sua ocorrência é o subjetivo puro do pensamento, isto é, o Juízo refletido em si mesmo. (Lyotard 1993:30) Embora possa promover a sociabilidade e ‘dar o que pensar’, nenhum sujeito se constitui neste jogo livre, de um tempo e espaço subtraídos à um presente estático. Parece que se o juízo moral pode fazer da beleza um símbolo para si, o juízo da beleza, ele mesmo, parece apenas encerrar um frutuoso e prazeroso solipcismo da reflexão. Se a analogia é capaz de transpor o objeto da complacência em um símbolo, alargando o escopo da experiência estética, sua autonomia e conteúdo puro parecem dar lugar apenas ao prazer estático da beleza. Resta analisar se a idéia estética implicaria uma relação diversa desta que destacamos. 25 Lopes está correto em sua avaliação, baseado no estatuto do juízo estético, porém o gênio é uma exceção a regra, pois mesmo que não lhe seja importante uma história da arte, enquanto disciplina, os demais objetos de arte lhe servem como modelo de seu gênio. (CFJ:185,186) 68 2.1 Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível. Inexponível é o termo que Kant utiliza para qualificar uma idéia estética, no sentido desta não poder ser regrada, visto que o juízo estético promulga um caráter circular frente o esquematismo, fazendo com que a capacidade produtiva da imaginação se sobressaia como que o motor da reflexividade pura: Ao deixar a capacidade de imaginação “alastrar-se por um grande número de representações afins, que permitem pensar mais do que se pode expressar, em um conceito determinado por palavras” (KU 195, 160) a idéia estética nos leva a pensar sobre a relação do conceito com outros; portanto, idéias estéticas aumentam os conceitos ao mostrar sua limitação. (Frias 2006:89) Devemos lembrar que as idéias estéticas pressupõem uma aderência, o que explica esta referência ao conceito a que Frias se agarra ao interpretá-lo como um ‘aumento dos conceitos’. Não cremos que tal aumento do conceito seja possível, pois é certo que a marca inexponível desta dinâmica excede estes conceitos ali dispostos. Diferentemente, as idéias da razão, por não se adequarem a nenhuma intuição são entendidas como indemonstráveis. É inexponível apenas uma idéia que assenta na intuição de um objeto mas que o entendimento não pode sintetizar. De que modo esta estrutura aderente mudaria o conteúdo da beleza ou a relação deste com o objeto de arte? Rufinoni propõe pensar a ação da imaginação na idéia estética como produtora de hipóteses, enquanto fábrica delas: E a arte, tanto do lado do artista capaz de criar idéias estéticas, quanto do sujeito que julga, passa a ser um lugar privilegiado para se buscar hipóteses de exposição do inexponível, relacionando-se, então, com a filosofia de uma maneira impensável para a crítica de gosto tradicional. (Rufinoni 2010:103) De acordo com a autora o estatuto conferido para as obras de arte, para o caso das artes belas, possibilitaria não apenas uma liberdade criativa, mas um escopo de possibilidades tanto para o artista quanto para o espectador: A arte moderna é devedora dos juízos de Kant, portanto não tem regras externas e se deve apenas à articulação que o artista faz entre idéias estéticas. O criador moderno só pode conhecer suas regras após a feitura da obra, em uma reflexão de seus próprios meios, sendo a criação sempre pós-moderna. (Rufinoni 2010:10) 69 Nessas idas e vindas, tudo se passa como se os artistas "modernos" – sejam eles os do século XVI ou XVII – estivessem se debatendo entre uma autoridade e uma norma já consagrada e a possibilidade de abertura a outras formas, à liberdade. (Rufinoni 2010:2) Sua leitura é bastante histórica e cultural e não nos convencemos integralmente até que ponto uma história da arte acompanhou de fato esta estrutura. Parece-nos mais razoável compreender que o trabalho kantiano foi uma, dentre diversas soluções da crescente demanda da filosofia estética do período. Mas não deixa de ser necessário investigar se a ‘articulação’ entre as idéias estéticas pode de fato vir a mudar o teor do conteúdo da beleza em uma experiência. É importante ressaltar que o romantismo e o classicismo ainda travavam embates, e a postura classicista parece mais aflorada em Kant. Contudo, tal movimento de volta ao classicismo afetou o próprio Goethe, que diz em 1788: “Clássico é o que é são; romântico o doentio" (Goethe 2003:47) . Para proveito estrito de nossa análise, as implicações históricas indicam que a própria teoria ‘deu o que pensar’ a artistas, em uma perspectiva não causal entre teoria e produção. Compreendendo que analisamos o modelo do juízo estético enquanto tal - não enquanto motivou ou inspirou obras - mas somente em sua potência de vir a explicar um fenômeno artístico como o musical, parece que as questões culturais a que Rufinoni quer ilustrar excedem esta nossa perspectiva. Para um enfoque direto com o objeto, encontramos mais contemporaneamente o trabalho de Thierry De Duve (2009), em seu artigo: A ‘improvisação’ de Kant à luz da arte minimalista, um exemplo de aplicabilidade do estatuto estético da beleza kantiana. De Duve empreende uma descrição detalhada de sua experiência com a obra de Robert Morris, originalmente sem título, L-beams. A obra L-beams foi originalmente confeccionada em compensado e depois refeita em aço inoxidável e fibra de vidro : 8 x 8 x 2 feet e data de 1965. Seu autor assim comenta sobre a obra: Uma função de espaço, luz, e do campo de visão do espectador [...] pois é o espectador quem muda a forma constantemente por sua mudança de posição em relação ao trabalho [...] Há dois termos distintos: o conhecimento constante e a variável experiência. (Morris) 70 Morris, sobretudo nesta obra, foi muito influenciado pela fenomenologia de Merleau-Ponty. De Duve conhecendo a natureza do estudo empreendido por Morris, claramente alicerçado em uma fenomenologia da percepção, empreende uma experiência própria, referenciada exclusivamente em Kant, porém alicerçada pelo formalismo de Greenberg: Eu imagino que já ficou claro para você que eu mesmo falo em defesa, se não do formalismo como tal (o que isto possa significar), pelo menos da validade continuada da estética kantiana. O lugar mais duro e, portanto, o melhor deles para testar a validade é o discurso interpretativo dos seus detratores. (De Duve 2009:282) O texto de De Duve é de difícil aproximação, sobretudo pelo mau uso da terminologia kantiana que claramente não domina, como vemos no uso dos termos; ‘percepção’, ‘representação’, ‘síntese’ e ‘imaginação’, entre outros. Afora detalhes terminológicos e seu discurso bastante passional, a falar de ‘detratores’, interessa para nosso proveito a oportunidade de travarmos uma relação direta entre o estatuto da beleza e um objeto. O que De Duve quer neste artigo é mostrar que a experiênica dos Three Lbeams26 ou não é suficientemente artística, ou cumpre com os requisitos para um livre jogo das faculdades como descrito na terceira Crítica kantiana. Duve conclui: O que acontece é que no caso dos Three L-beams, meu sentimento não concorda com a interpretação que se faz acerca do significado da desarmonia dos poderes cognitivos eliciados pela peça. [...] Mas há o sentir que tem sempre a última palavra. (Duve 2009:290) Quando fala em ‘desarmonia das faculdades’ trata-se de um ponto de vista bastante peculiar do autor, visto que Morris diz de uma diferença entre o conhecimento e a experiência. De toda forma, Duve julga má a obra de Morris, por esta não praticar um livre jogo, mas implicar um pensamento sob critérios notadamente físicos e conceituais, e o verdadeiro aval estético, o sentimento de prazer, não seria assim erigido. 26 De acordo com o próprio Duve, e esta é a interpretação de Krauss e Turcke (Duve:283-286) esta obra é comumente compreendida contendo em si a ambigüidade de um objeto empírico portando um conceito lógico de sua forma, no caso, o formato de um L. Esta relação é implicada pois é referida a seu contexto espaço-temporal real e não a um jogo subjetivo como propõe Kant. Aqui, inspirado pela fenomenologia, Morris faz modificar o objeto a cada visada, sendo a experiência empírica múltipla confrontada pelo conceito que tenta entende-los como idênticos entre si. Isto implica um tipo de experiência que excede a teoria kantiana, pois além de contar com conceito e pensamento determinado, faz referencia direta a uma objetividade. 71 Em muitos momentos, e alicerçado-se no conceito de Greenberg – concocted uma maneira pejorativa de se referir ao trabalho da arte minimalista, Duve tende a tratar a arte minimalista inteira como um fracasso artístico justamente por não saber produzir o sentimento do belo. Novamente precisamos entrar com correções, pois como um gênero pode encerrar toda a possibilidade de beleza se o juízo estético é singular? O remédio a todo julgamento lógico aplicado sobre a beleza não pode ser a confecção de um conceito sobre um gênero artístico, mas, ao contrário, dar um passo atrás e converter não o julgamento, mas a postura lógica em uma postura subjetiva de refinamento. O tom de Duve é certamente militante e por isto podemos desconsiderar este tipo de enfoque sobre a arte minimalista. Não é nosso interesse definir possibilidades artísticas de gêneros inteiros. Dadas estas limitações, Duve de fato põe o modelo kantiano em teste. Sua análise se divide em cinco momentos os quais tratamos resumidamente. Os dois primeiros momentos partem de aspectos lógicos da experiência do objeto L-beams (Duve 2009:278). O quarto momento é dedicado a pensar como se insere o terceiro momento em um pensamento kantiano (Duve 2009:279). O quinto e último momento trata-se de um juízo sobre a intenção da obra, Duve chama de ‘interpretação’ o que também se encontra em um nível regrado já que chega a conclusão que a obra trata de pôr em cena uma divergência entre o conceitual e o empírico (Duve 2009:281). Apenas o terceiro momento descreve a sensação que Duve retém da experiência, onde no quarto momento postula que ela teria que ser anterior ao primeiro e segundo momento, visto que estes já apareceriam regrados: “O que eu vejo não é o que sei; o que eu sei não é o que eu vejo.” (Duve 2009:279) [frase a qual Duve descreve sua sensação.] Duve nomeia de conflito das faculdades a relação entre a igualdade dos três Lbeams dadas conceitualmente e a experiência empírica diferente a cada ângulo. Porém, Duve estaria a tratar de aspectos lógicos se esta diferença se colocar realmente como um problema. Pois logicamente isto não é um problema, mas apenas uma distinção tão comum em desníveis de gênero e espécie. Porém, se ele descreve este descompasso como condição de assentimento e não apenas de avaliação lógica, então, perde-se a referência kantiana. Duve vai indicar que não foi possível adentrar satisfatoriamente em um nível de livre jogo, e por isto a obra estaria invalidada. Entendemos assim que não houve nem 72 um assentimento, o que faz com que o estético tenha se anulado. A conclusão desta análise de Duve é bastante dura, e realmente se esbarra com questões pertinentes à história da arte. Quando a acusação de Duve ao minimalismo não se estende a um trabalho geométrico de Kandinsky por exemplo, faz parecer que estão em jogo dois pesos e duas medidas. Ou seja, o que aparece censurável em Morris, o uso de objetos geométricos, não vale para Kandinsky que utiliza alto grau de atrativos para os mesmos. Fica em aberto não só a capacidade de Duve empreender uma análise deste tipo, mas, se coloca mesmo a questão de ser possível descrever uma experiência que se quer subjetiva a partir dos critérios kantianos, pois que quando descrevemos arte sempre nos colocamos a indicar experiências pertinentes a aspectos materiais de um objeto. Como seria possível termos acesso, em uma experiência, a um cumprimento de um estatuto epistemológico como o do juízo da beleza? 2.2 Limites de um sistema do juízo de gosto. Parece haver um descompasso entre o que os artistas fazem ao impregnar formalmente uma matéria e a subjetividade reflexiva enunciada por Kant. O estatuto da beleza precisa ainda dirimir certas contradições entre sua exigência inexponível e a constante necessidade do artista em materializar uma obra. Kant sugere que pratiquemos um ato de esvanecimento 27 sistemático da referência ao objeto de arte, o que contudo não parece ser, intuitivamente, algo que a história da arte venha a contemplar. Quando imaginamos que um objeto de arte possa vir a guardar uma ‘mensagem’, ou mesmo um conteúdo em sua forma, Kant propõe que isto, a que artistas e críticos procuravam arduamente, se encontrava o tempo todo em uma legalidade subjetiva. Ou seja, esta inscrição misteriosa só poderia ser decifrada se decifrassem a essência do próprio juízo de gosto. Alguns comentadores se empenharam, não pela mesma problemática que expomos, em desvendar sob termos semânticos e sintáticos o juízo estético puro. A motivação destes pesquisadores parece de cunho reativo a trabalhos da filosofia analítica. Mas se temos que compreender de que modo o juízo estético possa carregar 27 O esvanecimento é a mudança gradual, ao longo de repetições sucessivas, de um estímulo que controla a resposta, de maneira que a resposta eventualmente ocorre diante de um estímulo parcialmente modificado ou completamente novo. (Deitz & Malone: 1985) 73 algum conteúdo, de acordo com a filosofia kantiana, só poderíamos compreender este conteúdo a partir da operação reflexiva do juízo estético. E é neste sentido que lançamos mão destas investigações: A estranheza dos juízo de gosto vem desse “como se”, que transforma “belo” em um quase-predicado. Kant trata do mesmo assunto num outro trecho, onde diz que, num juízo estético, o “sentimento de prazer (ou desprazer)”, que acompanha a representação (percepção) do objeto, “faz as vezes do predicado [statt Prädicats dient].” (Loparic 2001:12) Segundo Loparic, esta característica cíclica não impossibilitaria o juízo estético de possuir denotação e sentido, dado sua definição deste juízo: “representações perceptivas das formas de objetos sensíveis ligadas a priori a sensações ou sentimentos de comprazimento e de desprazimento desinteressados.” (Loparic 2001). O que está sendo denotado, segundo o autor, é a própria operação da reflexão ligada ao intuído, porém de modo desinteressado, e seu sentido é propriamente o sentimento que depreende de tal operação. Antes de prosseguirmos temos que destacar o caráter especulativo do projeto de Loparic, pois que alicerçado em um princípio descartado por Kant para o caso do juízo de gosto em geral. No parágrafo §37 a relação entre o juízo de gosto e o objeto, e mesmo qualquer relação semântica está expressamente definida: O fato de que a representação de um objeto seja ligada imediatamente a um prazer somente pode ser percebido internamente e, se não se quisesse denotar nada além disso, forneceria um simples juízo empírico. (CFJ:149) No juízo de gosto, portanto, a representação é tão somente o prazer, e não denota mais nada que este sentimento interno, enquanto um juízo de gosto. De toda forma o objeto ocupa um lugar muito desconfortável na teoria kantiana e inevitavelmente provoca contradições em sua definição. Qual a justificativa da ligação a priori da ‘forma de um objeto sensível’ a um ‘sentimento’ que não seja a própria forma do objeto intuído mas justamente o ‘desinteresse’ dele? A insistência que vemos em Loparic de querer ligar denotativamente o juízo da beleza insere-se nesta problemática. Pois porque querer reatar um resquício do intuído quando ele é justamente o que Kant parece querer subtrair? Uma solução bem mais razoável para montar esta problemática, que se esbarra em Kant sempre que ele pretende definir o estético a furtar-se do objeto, encontra-se 74 nesta passagem de Türcke: O que Kant chama de gosto reflexivo não passa do gosto sensorial que cresceu além de si mesmo e sublimou-se: não é um estado natural, mas um estado altamente artificial do sensorium humano. Estão excluídos todos os que não dispõem de uma oportunidade para cultivar os seus sentidos [...] O ponto frágil de Kant está no fato dele reconhecer erroneamente nesse gosto reflexivo uma disposição natural dos homens, existente à parte. Seu ponto forte, no fato de que ele vê, graças a esse equívoco, luzir algo no privilégio social que cabe a todas as pessoas. (Türcke 1999:82) Seu ponto de vista perfaz mesmo uma genealogia do próprio juízo de gosto. Türcke indica que o gosto reflexivo não é mais do que o produto de uma cultura situada em um momento histórico, ao mesmo tempo em que este produziu um tipo específico de gosto sensorial. Neste sentido não é sem propósito que Kant se refere sempre a um objeto quando quer justamente abrir mão dele, Kant denega, pois que a educação do gosto prega justamente este exercício. Resta ver se este tipo de exercício justificaria um estatuto que em seu modelo prega uma necessidade de desinteresse de modo a priori. Pois o ato de retirar referências objetivas de um objeto poderia ser igualmente explicado enquanto ato lógico da abstração. Porém, se pretendemos caracterizar o prazer enquanto sentido semântico de algo, como quer Loparic, e descolar ele da própria percepção de um livre jogo das faculdades fazendo este jogo de ‘objeto’ denotado, então restam ainda mais questões a tratar. A análise semântica de Loparic não faz mais do que por em termos diferentes a mesma questão que movia Lyotard, que, de acordo com ele, estatuto e conteúdo se identificam. A denotação pensada por Loparic faz criar um círculo, do estatuto reflexivo orientado para a intuição em um esquematismo, sendo este o verdadeiro objeto da complacência pura da beleza. Neste sentido, mesmo que seja duvidoso reconhecer tal processo como algo denotável, ele não é capaz de mostrar o motivo porque a beleza é sacada de tal processo, do porque a beleza poder se referenciar a um processo e não a um objeto. Esta ligação com o sentimento de prazer, pensa Vieira, não segue nenhum padrão já apresentado por Kant. Mas isto não está por sua vez assegurado de antemão, pois não se pode distinguir, no nível fenomenológico, “deleite”, “comprazimento” e 75 “aprovação” – para fazer uso da terminologia proposta por Kant no §5. As diferenças entre estas três espécies de prazer só fazem sentido através de uma referência a determinadas relações entre as faculdades cognitivas que não se faz presente quando pretendemos simplesmente julgar a beleza. (Vieira 2003: 66) É justamente este o ponto. Diante da falta de componentes essenciais para uma interpretação lógico/lingüística em um modelo denotativo, o sentimento da beleza assim como postulado por Kant, faz dispensar um modo de hipotipose seja esquemática ou simbólica, sendo sua exibição justamente um sentimento condicionado transcendentalmente que, contudo, parece difícil vir a levantar uma prova e mesmo aplicação desta estrutura em uma experiência que poderíamos colocar em evidência. Se a estrutura do juízo da beleza não aponta para nada a não ser a própria atividade subjetiva fugindo de definições conceituais, a reflexão e seu caráter cíclico e tautológico concorrem, a nosso ver, em uma direção também contrária a qualquer relação semântica. Não é sem propósito que Lyotard classifica de ‘pausa’ o que se passa com o sujeito que contempla a beleza. Kant mesmo parece não ter dado importância em fundamentar uma hipotipose para a beleza. Parece que o limite para uma arte que tenha como objetivo sacar uma experiência inexponível, acaba por afastar qualidades possíveis a esta experiência e se atém em um sentimento, acompanhando Lyotard, de suspensão de todas as faculdades, uma pausa em favor de um gosto puro, subjetivamente encerrado. Torna-se assim impossível que esta experiência da beleza nos diga algo, denote ou se imponha à realidade. Se a teoria estética kantiana pôde inspirar novas formas artísticas, como quer dizer Rufinoni (2010) foi justamente por uma teoria nada impositiva em seu sentido lógico, porém, verificamos, altamente restritiva quanto a postura do espectador. Há portanto duas facetas do juízo da beleza, uma implicando a autonomia do juízo, e outra implicando uma nulidade do processo consciente do sujeito no que Lyotard caracteriza como pausa. Ativemo-nos aqui em possibilidades de inferências e deduções que o trabalho kantiano viria a permitir. Nossa estratégia quer que princípios teóricos estabelecidos no trabalho de Kant e dos comentadores deixem-nos um leque aberto de possibilidades para compreendermos o que se passa em uma experiência musical concreta, para então pensar um modelo epistemológico para esta atividade. 76 3. A divisão entre lógica e estética. É certo que a teoria estética kantiana possui uma predileção e em algum nível até uma devoção à natureza. O papel do gênio, em fazer de um objeto uma emulação de um princípio que é autentico na natureza, uma finalidade do organismo (Campos 1998:103), indica que a razão de ser da arte, para Kant, liga-se de forma muito essencial à forma de ser da natureza, a partir da seguinte diferença; na natureza o ser é um princípio que se organiza a si mesmo, na medida em que seu princípio de ser é sua natureza mesma, e na arte, o ser (objeto) possui uma causa interna de coerência e não é seu próprio produtor, na medida em que seu princípio é humano (Campos 1998:105). Diremos que o conhecimento da natureza implica um tipo de relação teleológica, voltada a “conformidade a fins dos seres” (§66), e uma relação determinante voltada a uma unidade conceitual. Enquanto que a beleza reivindica uma relação estética, voltada a uma causa puramente subjetiva do próprio ajuizamento, o que no senso comum é creditado como ‘intenção’ do artista de colocar algo para a ‘nossa’ contemplação, e no caso da natureza, algum princípio transcendente que parece ‘intencionar’ uma comunicação, por meio da beleza, para nossa subjetividade. Ou seja, o princípio organizacional que na natureza precisa ser imputado teleologicamente e que não diz respeito a seu ‘ser’, na obra de arte ele pode ser imputado realmente como intenção do artista em um ato de imitação, de tentativa, de chegar até este princípio que não contempla nosso entendimento. Kant quando pensa na figura do artista pensa-o como gênio e como capacidade de imprimir aos objetos uma lei análoga da própria natureza. Não transparece nada da tradição que queremos referenciar, e na terceira Crítica figura tão somente o nome de Euler. Porém poderíamos estender esta lista a Kepler, Tartini, Mersenne, Werckmeister, Huygens, Sauveur, Rameau, entre tantos outros (Nolan 2010). Estes eram físicos, filósofos e músicos que comumente reservavam parte de seu trabalho a escrever uma estética, sempre voltada para o caráter material e organizacional da música. O objetivo de montar um modelo epistemológico em específico para a música já figurava um propósito sólido desde o século XVII, e teria sido pela primeira vez resolvido por Rameau em seu tratado de 1722 (Lester 2002), na época, arrancando elogios de D’Alembert: 77 M.Rameau foi o primeiro a começar a desembaraçar o caos. Ele encontrou na ressonância do corpo sonoro a origem mais verossímil da harmonia e do prazer que ela nos causa: ele desenvolveu esse princípio, e demonstrou como os fenômenos da música nascem. (D'Alembert apud Kintzler & Malgoire 1980:26) Um enfoque totalmente diverso é suscitado pela teoria kantiana e retomamos Lyotard para esclarecer esta oposição: entre um pensamento que via na unidade do entendimento a condição da percepção musical, e outro que via na pausa destas mesmas faculdades a potência artística. Enfoco esta união singular e recorrente, mas sempre “nova”, que aparece cada vez pela primeira vez, como o esboço de um “sujeito” [...] Está nascendo a cada vez que existe prazer do belo. Não permanece nascente. Para que o permaneça, seria preciso pelo menos que seja possível a síntese de suas “promessas de unidade” numa unidade que persistiria idêntica a si mesma através do tempo. (Lyotard 1993:25) Sendo assim nossas disposições conscientes permaneceriam estagnadas, sendo o único processo educativo possível a própria tarefa de ser capaz de chegar a um estado como este da beleza kantiana. Kant retira assim qualquer vínculo ao paradigma mais colado à ciência do século XVII e XVIII. Em Kant o que há de interessante no fenômeno estético é justamente fazer ver a separação entre conhecer e ajuizar esteticamente um objeto. Não se trata de apenas mais uma possibilidade de representação pictórica, de composição formal, mas sim de o sujeito experienciar uma nova disposição ativa de suas faculdades. A significação histórica do modo como essa obra instaura uma maneira radicalmente inédita de o sujeito compreender a atividade de seus poderes racionais constitui seu conteúdo (Freitas,V. 2003:273) Diferente da posição de Lyotard, e mesmo de todo um debate sobre o conteúdo do juízo estético puro, Verlaine Freitas não apenas implica historicidade na contemplação artística a partir do juízo da beleza, como diz incidir sobre ela o conteúdo deste juízo, enquanto uma ‘compreensão’ de ‘novas’ disposições ‘ativas’. Freitas, consciente de que questões culturais e históricas extrapolam o limite do conceito de beleza em Kant (Freitas, V. 2003:275) quer demarcar uma possível função do que Lyotard chamou de ‘pausa’, interpretando como um ‘estranhamento’ frente a realidade habitual. Nas palavras de Freitas: ‘ruptura que a arte exerce frente à realidade trivial” (Freitas, V. 2003:275). Mas, por mais que seja aceitável, desejável e mesmo perceptível em 78 experiências musicais, ou artísticas de modo geral, a emergência de ‘novas disposições’, ou de uma ‘compreensão’, ou de esferas ‘ativas’, todo nosso trabalho com o texto kantiano e seus comentadores não mostraram qualquer possibilidade destas operações. Tanto é assim que Freitas está em verdade a fazer uma leitura de Adorno (Freitas, V. 2003:273) e pouco ou quase nada de Kant está de fato presente neste parágrafo. A rigidez com que Kant divide a disciplina lógica da disciplina estética cria este campo lacunar, que vem sendo reiteradamente preenchido por comentadores. Aquilo na estética kantiana que é muitas vezes interpretado como liberdade instala-se como cláusula pétrea e dificulta qualquer diálogo com uma experiência da arte que esteja comprometida com aspectos inerentes a uma experiência construída a partir de um objeto, e que conta com adjetivações muito próximas a procedimentos do conhecimento. Para avaliarmos estes aspectos de uma experiência com o fenômeno musical seria necessário lidar com termos os quais não estão comprometidos com o que Kant postula para a experiência estética; percepção, experiência, juízo, pensamento, conceito, entre outros que perpassam sua teoria lógica. Romper-se-ia assim a cláusula pétrea com o objetivo analítico de entendermos melhor como um objeto musical comporta teorias. 3.1 O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo parágrafo §9. A diferença entre a causa da natureza enquanto um problema da razão e a causa do objeto de arte enquanto se liga diretamente a uma intenção, já demonstra como a arte não encerra os problemas presentes na natureza e ao mesmo tempo tem como objetivo, segundo Kant, espelhar características que só são realmente livres na natureza, a saber: que a “finalidade técnica se faz gratuita (contingências despojadas de fins técnicos)” pois que para um estado puro do gosto a arte teria que “dar lugar a produtos que pareçam contingentes” (Campos 1998:105). É neste sentido que Kant desmerece a intencionalidade imposta matematicamente para a forma musical; “a matemática não tem certamente a mínima participação” (CFJ:220). Uma forma musical matematicamente composta conteria somente regularidades, e não seria capaz de tomar a forma contingencial que a arte 79 deveria expressar para conseguir sair do âmbito determinante, a abrir espaço para uma função reflexiva do juízo. Expressando tão somente uma transitoriedade das sensações a partir de um princípio regulado matematicamente, gerando a repetição e tornando a música ainda mais suscetível ao enfado (CFJ:221). Esta crítica à transitoriedade que tanto influencia a decisão de Kant sobre a música, aponta para a deficiência maior da concepção kantiana do musical: A estética musical kantiana enferma de uma concepção demasiado estreita da função do tempo na música, numa arte que ele concebe simplesmente “transitória”, como incessantemente evanescente, em vez de reconhecer que também acontecimentos no tempo se podem consolidar em configurações. (Dahlhaus apud Duarte 1998:145) Mas, caso excluíssemos estas questões polêmicas de Kant com a música e a incluíssemos no Hall das artes belas, isto não auxiliaria ainda nosso propósito, visto que o estatuto epistemológico do juízo de gosto parece excluir toda uma dimensão impressa nos objetos, e por decorrência, nos musicais. A relação entre o objeto e a experiência artística e por decorrência entre o lógico e o estético, o que chamamos de cláusula pétrea, delineia-se a partir de uma reflexão de Kant no parágrafo §9 Se no juízo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou vice-versa. Lyotard havia nos mostrado como o juízo reflexionante incidindo sobre as faculdades em livre jogo ajuizava ao mesmo tempo um prazer da beleza e sua própria ação reflexiva. Bayer por sua vez localiza uma questão crucial ao parágrafo §9: “o prazer e o juízo, em vez de se sucederem ou se precederem mutuamente, dão-se ao mesmo tempo, o que é absolutamente contrário às leis do tempo.” (Bayer apud Passos 1998:139). Dado esta concomitância que já havíamos identificado, a beleza configura um caso sui generis em vista de toda a estrutura transcendental: Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual determinações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um. (CFJ: 28) A precedência do objeto é condição comum à faculdade de conhecimento, e por isto uma condição necessária da universalidade para qualquer juízo. Esta estrutura do conhecimento em geral é somente uma estrutura e não uma função sendo exercida, não é um estatuto, mas um ‘ambiente lógico’. 80 Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representação, pelo qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (CFJ: 29). É este o preciso momento do salto que qualificamos quanticamente. Segundo a citação, nossa Gemüt encontra-se totalmente ocupada por um procedimento esquemático, e neste preciso momento não reverte seu conteúdo para o entendimento, e de acordo com Kant, se insere numa precisa ordem do esquematismo, anterior ao regramento, e portanto, precede o objeto como também o prazer ligado a um objeto, ficando a referência ao objeto impossibilitada, “logo, aquela unidade subjetiva da relação somente pode fazer-se cognoscível através da sensação” (CFJ: 31). O termo ‘sensação’ estaria para o estético assim como o conceitual para o lógico. Porém o modo como esta sensação é remetida para o núcleo da apercepção não se esclarece. Seria o caso de pensar em como uma sensação pode ser exibida mesmo não sendo remetida para uma autoconsciência, e aqui reside toda a problemática; a) a sensação se explicaria como uma ‘pausa’ de todas as faculdades, de todo nosso sistema transcendental, onde nem mesmo um juízo se opera mas só uma sensação, b) restaria ainda uma lacuna, compreender uma exibição para a sensação estética visto que esta não foi contemplada pela estrutura da apercepção na primeira Crítica, c) a possibilidade ‘a’ estaria descartada pois Kant afirma haver uma representação da sensação da beleza, ao mesmo tempo em que ‘b’ estaria dispensado visto que a intenção de Kant era se contrapor ao circuito da apercepção. A condição para que uma sensação que não predica nada, de objeto algum, se exiba, é que se sobreponha às condições do regramento da apercepção, ou seja, a validade do modelo de juízo da beleza necessita passar por um crivo, de fazer a primeira Crítica ressoar por sobre a terceira Crítica: Mas uma vez que entendimento é a síntese da capacidade de imaginação ligada à apercepção (KrV A119,150), e por isso, os conceitos puros do entendimento são regras da síntese do múltiplo à unidade originária da apercepção realizada pela capacidade de imaginação produtiva (KrV A127, 159), a exibição é um processo do entendimento apenas na medida em que ela segue as regras desse. Por outro lado, se a faculdade de julgar é a capacidade de subsumir sensações sob conceitos (KrV A132 B171, 142), é razoável supor que a exibição é função dessa faculdade somente na medida em que a subsunção implica a exibição do objeto do conceito na intuição (KU 25-6, 56; KrV A140-1 B179-80, 145-6). (Frias 2006:36,37) 81 Esta relação entre a sensação e a exibição de um conteúdo se torna crucial para compreendermos o estatuto do juízo da beleza, assim como suas implicações no contexto geral das faculdades, que se ocupam em sua totalidade na confecção de conhecimentos. Uma análise musical – De Duve por motivos contrários acabou demonstrando o mesmo – não tem como partir de uma sensação desligada de um objeto. Se não há predicação não há o que se experienciar, e se há uma sensação sem predicação seria o caso de se falar em uma ‘sensação em si’, o que parece muito excêntrico mesmo ao sistema kantiano. Faz-se necessário, diferente do caminho ‘idealista’ escolhido por Kant para a definição do juízo estético puro (CFJ: 254), verificar uma via ‘racionalista’ deste mesmo princípio, ou seja, pensar a ligação deste juízo com a objetividade da obra. * * * Um modelo epistemológico musical deve levar em consideração, antes de qualquer coisa, a peculiaridade formal do objeto musical, que diz respeito não apenas ao aspecto acústico, mas sobretudo à sua constituição enquanto objeto da consciência. Sua estrutura justificada para a arte bela parece não conciliar certas experiências com objetos musicais de modo a incluí-los no estatuto estético, ao mesmo tempo, cria um modelo teórico para o juízo da beleza que muito beira o tautológico, impossibilitando uma crítica ao nível do entendimento e da apercepção de modo geral. O aspecto cíclico do juízo reflexionante aliado ao caráter autônomo do juízo de gosto faz da beleza um aspecto estranho ao critério de qualquer prazer – “o cumprimento de uma intenção” (CFJ: XXXIX) - sendo impossível distinguir o prazer da beleza da operação do juízo de gosto puro, impossibilitando assim um acesso fenomenológico da estrutura sugerida. Diante desta estrutura não parece haver nenhum vínculo necessário entre o que seja um objeto de arte e o que seja o juízo da beleza, haja visto que o critério para resguardar o âmbito artístico impõe um desinteresse radical, como vemos na conclusão do parágrafo §9. Sendo assim, aquilo que garantiria o acesso a uma sensação pura da beleza (objetos da natureza e da arte) acaba por ser desconsiderado neste estado puro. O que o juízo da beleza acaba fazendo, a contragosto de alguns preceitos que tenta resguardar, é inculcar algo como uma postura, uma postura que dá 82 acesso a um tipo de experiência que Kant confia ser um juízo de gosto puro. A noção kantiana de que a beleza não pode ser predicada a nenhum objeto acaba por impedir, ou ao menos deixar obscura a relação que temos entre beleza e objeto de arte ou mesmo beleza e natureza, e torna sem critério a ligação entre estes objetos para uma relação exclusiva. Nesta mesma proporção, qualquer espécie de fenômeno que oferecesse material para a intuição poderia vir a esquematizar e então, por um motivo que desconhecemos, passar a reflexionar, podendo chegar a um sentimento da beleza, visto que este não será predicado do objeto em questão. Uma estrutura divorciada do objeto, que não é capaz de criar ligações possíveis entre eles, ou ao menos algum tipo de causalidade, parece pouco hábil a descrever individualmente um campo como o musical, e aparenta gratuidade frente à quantidade de elementos que deixa escapar. Porém, rever o modelo implica, antes, em atermo-nos aos objetos, única porta de entrada, visto que não há qualquer acesso fenomenológico direto para o que Kant compreende enquanto beleza. 83 Capítulo II O estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade sintética da apercepção A Arte quer deixar de ser uma aparência e um jogo, quer tornar-se um conhecimento lúcido. (Adrian Leverkühn) Em vista de um modelo que contemple nossa ambição de constituir uma epistemologia musical, passamos da estrutura estética para uma estrutura do conhecimento, que traçaria as condições de possibilidade para um acesso lógico do conteúdo musical. Especulamos igualmente sobre estas possibilidades a nos dar um leque de possibilidades, o maior possível, para nosso objeto de pesquisa. As faculdades em questão; sensibilidade, imaginação, entendimento, julgamento e apercepção, envolvem-se agora em um estatuto que pouco conta com o uso reflexivo, portanto, torna sua exibição mais simples e diretamente alicerçada em um modelo lógico mais autoevidênte do que o modelo estético. Neste mesmo sentido a análise do juízo estético revelou sutilezas que mostravam-se pouco evidentes. A expressão ‘como se’ foi largamente utilizada nestas caracterizações: “ele falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do objeto e o juízo fosse lógico” (CFJ:18). Isto é previsto pois não se trata de um conteúdo lógico, onde, de acordo com Kant, não é possível uma distinção, ou caráter discursivo. Porém, em sentido transcendental isto implicou que o próprio ‘mecanismo’ da beleza evidenciado não contasse com definições e elementos básicos de sua instanciação, como um modelo de exibição. Isto implicou em problemas entre a estrutura da apercepção e sua ligação estética com o objeto de arte. Por sua vez, a autoevidencia dos juízos lógicos, como veremos ao longo do capítulo, não faz do juízo determinante uma operação óbvia nem de pouco interesse 84 para a epistemologia, para o conhecimento, e mesmo para a arte e o juízo da beleza. A faculdade do juízo na terceira Crítica possui um foco centrado no princípio de conformidade a fins sem contudo implicar a finalidade inscrita em seu princípio. Para o juízo determinante, veremos, o juízo cumpre sua finalidade através do entrave entre as legalidades do entendimento e sensibilidade no processo de esquematismo, ou seja, a faculdade do juízo executa um processo completo através de uma atividade compartilhada por todas as faculdades. O juízo determinante opera a virtude própria do pensamento, é o ‘supremo ato da síntese da apercepção’ capaz de trazer fenômenos a uma apercepção. A capacidade de pensar intuições é a função da faculdade do juízo, como estipulada na primeira Crítica. Aqui se ajuiza não apenas sob sua autonomia, mas enquanto parte de um sistema do conhecimento, Kant a adjetiva como um talento: “[...] a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido.” (CRP B 172). Este talento indica capacidade de realização de sínteses. É uma faculdade desiderativa em sua própria legalidade, podendo vir a fracassar o cumprimento de seu princípio, em esquematizar e determinar uma síntese. Trata-se de uma habilidade. Desta faculdade depende o próprio conhecimento, uma competência nos dois sentidos da palavra, aquilo a que seu princípio diz respeito, e aquilo que é capaz de realizar, ou seja, uma finalidade. Notemos ainda que enquanto as faculdades apresentam um rigoroso formalismo estatutário, a palavra final da síntese do conhecimento se baseia em uma ‘habilidade’ do juízo. Ressalta-se também que o conhecimento não é mero encontro mecânico de representações impressas na subjetividade, mas processo radical implicando a criação de esquemas pela imaginação e o talento das sínteses do juízo. O conhecimento é um produto criativo, fruto de uma atividade de criar regras. Neste capítulo a estrutura do juízo possui um relevo ainda maior, e é sem dúvida a faculdade que em seu conjunto possui o maior número de propriedades; de seu princípio conforme a um fim, de um uso autônomo deste princípio, de um uso regrado, de sua aplicação como um talento, até uma estrutura hipotética do conhecimento (CRP B 114,115). O juízo em geral e sobretudo sua forma determinante parecem estar longe de ser uma atividade segura a ponto de sua qualificação lógica poder ser comparada a qualquer tipo de determinismo ou passividade. O juízo fica responsável por dirimir todos os necessários desacordos de uma 85 tarefa que conta com os maiores abismos possíveis, de fundar uma objetividade a partir de um diverso sensível e de conceitos a priori. O juízo determinante, quase que colado à estrutura experimental das ciências da natureza, encerra assim a maior finalidade da Gemüt, a consecução de teorias que liguem os conceitos empíricos entre si e constituem um só sistema da natureza. O princípio sintético de nossa Gemüt promove uma heurística com pretensões que irrompem em uma superação de seu próprio meio de procedimento, quer compor uma ciência que seja um dia capaz de fundar um conhecimento universal e inabalável, ao mesmo tempo em que um conhecimento fundado em um procedimento esquemático configure sempre hipóteses. A capacidade de vir a conciliar ambos é tarefa da habilidade do juízo. É no interior desta perspectiva que iniciamos uma investigação acerca do estatuto do juízo determinante. Nosso objetivo mais imediato será caracterizá-lo mediante estatutos que possam ser transpostos ulteriormente em uma estrutura epistemológica para o fenômeno musical. Dividimos assim as temáticas do capítulo; 1) Definição de apercepção e as funções elementares das faculdades, 2) O juízo determinante; estatuto, conteúdo e exibição, 3) O entendimento; espontaneidade, conhecimento, conceitualidade e esquematismo, 4) As representações da apercepção: Objeto, intuição, esquema e conceito, 5) A relação entre as legalidades estéticas e lógicas e a escolha de um modelo epistemológico musical. 1. A apercepção enquanto autoconsciência. Gemüt é o conceito mais geral de nossa disposição viva. Unidade sintética da consciência, do ‘eu penso’, da autoconsciência: “o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu restante uso” (CRP B 137). É um conceito que pode ser discernido em funções, e é este o empreendimento kantiano por toda a primeira Crítica. Suas funções mais amplas podem ser descritas em dois desdobramentos de seu conceito; apercepção pura e empírica. A apercepção pura ou autoconsciência seria o movimento mais amplo onde uma objetividade se dá a exibir, “ pois que nela o saber, que o sujeito adquire de si, consiste em uma percepção e não em um ato de conhecer. A autoconsciência, 86 em si mesma, embora esteja na base da estrutura cognitiva humana não elabora conhecimento” (Martins 1999:67). Simplificadamente diríamos que a autoconsciência exibe conteúdos sintetizados, e atua apenas enquanto “ princípio de unificação das faculdades” (Rohden 2009:7). A apercepção é a síntese de diversos estatutos que nossa Gemüt encerra, ou seja, coordena toda a série de faculdades, desde a intuição até uma recognição do juízo. Existe um encadeamento que faz mover esta série de funções 28: O princípio supremo desta mesma possibilidade em relação ao entendimento é que todo diverso da intuição esteja submetido às condições da unidade sintética originária da apercepção. [...] na medida em que têm de poder ser ligadas numa consciência; de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (CRP B136,137) O que localizamos como princípio unificador de todas as faculdades aparece na citação imiscuído à própria função do entendimento. O entendimento parece então levar a cabo uma exigência direta da apercepção que acaba por se definir também por esta faculdade: “é o princípio supremo de todo uso do entendimento.” (CRP B136) Enquanto autoconsciência pura, a apercepção fundamentalmente nos dá a intuição do ‘eu sou’. Tal esfera representa o mais alto grau, ao mesmo tempo, o estado mais genérico de nossa consciência. Neste âmbito temos o quadro vivo de nossas experiências, que surgem espontaneamente como; mundo, pensamento, juízo, imagens, sensações, enfim, de tudo aquilo que é exibido naturalmente. Kant a adjetiva como "uma faculdade sublime” (Martins 1999): A pura apercepção não significa, portanto, o autoconhecimento de um sujeito pensante e tampouco o conhecimento de seus pensamentos empíricos e de seus estados mentais; pois ela apenas determina a forma na qual este sujeito tem conhecimentos sem ser, todavia, o saber de si que este sujeito tem e precisa ter. (Martins 1999) A apercepção exibe uma finalidade cumprida, em experiências para si, de objetos visuais, auditivos, táteis, intelectuais e etc. 28 “Na primeira passagem, do final da Introdução à KrV, ele pensa a primeira Crítica à maneira de um organismo, mais especificamente de uma árvore, com troncos e raiz. A partir da anunciada divisão do conhecimento nos elementos do entendimento e da sensibilidade” (Rohden 2009:7) 87 Como não podemos falar de elementos empíricos no nível da apercepção pura, temos portanto que descer um degrau e falar da apercepção empírica. Se pudéssemos cunhar uma expressão apropriada para a apercepção empírica, em paralelo com o ‘eu penso’ da apercepção pura, ilustraríamos: ‘eu sintetizo’. Enquanto máxima ela aponta para o enfoque, que na apercepção empírica, passa de mera autoconsciência de conteúdos para a autoconsciência de nosso próprio processo de conhecimento. É justamente um empreendimento do porte da filosofia Crítica quem pode vir a traçar tal fio condutor dos processos de síntese. A autoconsciência empírica é quem se apresenta enquanto hábil a desvendar o estatuto de nossas operações “[...] para se tornar objeto para mim” (CRP B 138). A apercepção empírica por isto não é apenas autopercepção, mas consciência da atividade cognitiva (Martins 1999). Duas outras funções fundamentais de nossa Gemüt se abrem a partir da apercepção empírica, pólos estes de um conflito ao qual a apercepção cumpre sintetizar, são eles: o entendimento e a sensibilidade. Se a apercepção é uma função de síntese ela é propriamente síntese entre estas faculdades. A disposição das funções de nossa Gemüt se alinha hierarquicamente, e o conhecimento, uma síntese determinante, possui um lugar privilegiado na harmonia destas estruturas, é fim de um processo bem sucedido do entendimento, remetido à exigência e unidade da apercepção. Finalidade cumprida por uma harmonia das diversas funções as quais vamos distinguindo ao longo do capítulo. Este sucesso do cumprimento de um conhecimento é derivado de um princípio inscrito na legalidade do entendimento, definido como sua espontaneidade, ato sintético necessário entre os dados da sensibilidade (natureza sensível) e as categorias do entendimento (natureza conceitual). Em resumo, a apercepção é a culminação de toda uma engrenagem das faculdades, onde se exibem conteúdos. Prosseguiremos então, passo-a-passo, em uma escalada descendente, da unidade sintética da apercepção às determinações de sua função mais inferior, a sensibilidade. 1.1. Os produtos das faculdades. Dado que toda faculdade encerra um estatuto próprio e assim algum tipo de conteúdo, a operacionalidade de cada faculdade ao mesmo tempo encerra certa autonomia e 88 modos próprios de processamento. Dado esta particularidade dos atos de cada faculdade nos focamos em alguns, no sentido de caracterizar esta série de atos que culminam na apercepção, são eles: síntese, atividade, representação e produto. Introduzimos este tópico a fim de precisar estas diferenças estatutárias quanto a certas diferenças entre os conteúdos. Vamos utilizar a definição geral de produto (Frias 2006:10) para designar os conteúdos principais das faculdades, podemos citar: intuições, conceitos, ideias, esquemas e juízos. Estes são produtos das respectivas faculdades; sensibilidade, entendimento, razão, imaginação e juízo. Estamos utilizando o termo 'produto' de modo intencionalmente genérico, por reunir em seu conceito produtos que em verdade são considerados heterogêneos; representações (intuição, conceito e idéia), e atividades das faculdades (esquema e juízo). (CRP: A320 B376-7, 243-4) A síntese não preenche o critério de um conteúdo, representação ou produto. A síntese é um ato fundamental. A possibilidade transcendental de qualquer experiência (CRP A 97) é garantida por atos especiais de síntese, e as faculdades podem ser interpretadas como legalidades sintéticas: a intuição enquanto síntese da apreensão, a imagem enquanto síntese da reprodução, e o conceito enquanto síntese da recognição (CRP A 97). Compreendida estas classificações podemos analisar o estatuto e conteúdo do juízo determinante. 2. Estatuto e conteúdo do juízo determinante. O juízo, quando do cumprimento de seu princípio, faz remeter uma síntese para a apercepção: “[...] um juízo mais não é do que a maneira de trazer à unidade objetiva da apercepção conhecimentos dados” (CRP B 141) [...] segundo princípios da determinação objectiva de todas as representações, na medida em que daí possa resultar um conhecimento, princípios esses que são todos derivados do princípio da unidade transcendental da apercepção. Só assim dessa relação surge um juízo, ou seja, uma relação objetivamente válida, que se distingue suficientemente de uma relação destas mesmas representações, na qual há validade apenas subjetiva, como por exemplo a que é obtida pelas leis da associação. (CRP B 142) Contrariamente à associação (ligação livre) o juízo conduz a uma ligação 89 objetivamente válida. Seu princípio a priori se cumpre na ligação entre representações sob categorias do entendimento. 29 O caso da associação pouco compete a um conhecimento, pois se um enlace não é estabelecido é devido à falta de determinações categoriais, como por exemplo a relação causal entre os objetos (CRP B 143). Mesmo os juízos empíricos condicionam-se de modo determinante, implicando sempre em uma causalidade fundada em um princípio a priori. O caráter necessário das categorias se ajusta às condições dadas pela sensibilidade. Kant parece, aqui, separar o princípio causal universal das leis causais particulares tão nitidamente quanto se poderia desejar. O princípio de que todo evento B tem uma causa A certamente é a priori e necessário. No entanto, leis causais particulares – instanciações particulares (via conceitos empíricos particulares) da generalização de que todos os acontecimentos do tipo A são seguidos por acontecimentos do tipo B – ficam completamente indeterminadas pelo princípio causal. (Friedman 2009:208) A tese kantiana sobre o conhecimento consiste em fazer ultrapassar o argumento indutivo, insinuado como um método científico, substituindo-o por uma pretensão válida universalmente, dada no interior de nossa estrutura do entendimento. Esta pretensão inscrita em nossa mente e o uso sistemático dela consiste no ‘despertar do sono dogmático’ e sustento de nossa pretensão que ajuíza, por exemplo: ‘os corpos são pesados.’ Quando Kant afirma que ‘há uma conexão necessária entre causa e efeito’ (Friedman 2009:197), mesmo quando esta conexão seja dada por um conceito puro que não pode constranger os eventos empíricos mas tão somente os subsumir, faz superar a perspectiva de Hume sob uma operacionalidade lógica do juízo. Por isto o juízo é sempre caracterizado como determinante na primeira Crítica. Podemos entender agora que o estatuto do juízo está comprometido com uma função do entendimento em dar objetividade e universalidade a uma representação, demarcando uma diferença essencial entre associação e determinação. A associação é uma relação fundada na imaginação, ao passo que a determinação é fundada no entendimento. Neste sentido, um trabalho da imaginação 29 A citação pontua tão somente a função determinante da faculdade do juízo. Sabemos que esta posição será revista na terceira Crítica, porém, fica em aberto a questão de como Kant relaciona definições tão estritas da primeira Crítica para com a terceira. Nossa percepção é a de que Kant mantém este princípio do juízo como definido na primeira Crítica. Porém descobre uma função separada da harmonia sintética da apercepção para o caso do juízo estético. 90 seria capaz de proferir o seguinte juízo, ‘há um corpo e uma sensação de peso na minha mão, enquanto que o entendimento permite-nos dizer, ‘o corpo representado possui um peso’. Os processos de associação ligam-se à capacidade da imaginação. Seja enquanto reprodutivos (CRP A 100) ou produtivos (CRP B 151). É mais evidente entendermos a associação como que ligada ao processo reprodutivo da imaginação, pois que este pode dispor objetos entre si: “faculdade de representar um objeto, mesmo sem a presença deste na intuição” (CFJ B 151). Kant define a imaginação enquanto faculdade ligada à sensibilidade, e isto explica a relação entre associação e imaginação, pois que se situa anteriormente às síntese do entendimento, e portanto ‘associa’ e não ‘determina’ um múltiplo da intuição. Embora os esquemas da imaginação sirvam a uma “conformidade com as categorias” (CRP B 152), eles em sua autonomia apenas associam. Quando tomamos o exemplo de associação em Kant, o objeto citado, embora objetivo, possui um modo de ligação que se refere somente à subjetividade: ‘Sinto o corpo e o peso em minha mão’. A mera associação não representa um juízo levado a cabo. A associação é ainda subjetiva e não dispõe da objetividade exigida por um juízo completo. O juízo no exemplo empírico, ‘este corpo possui peso’, fundamenta-se em conceitos puros, possui um valor de verdade que pode ser colocado a prova para cada caso singular, e pode vir a estender este juízo, igualmente fundamentado em leis a priori de nosso entendimento, para uma forma axiomática: ‘todos os corpos são pesados’. Notemos também que a associação pode tomar conceitos empíricos como base, pois como no exemplo de Kant, corpo, mão e sensação de peso, são objetividades enquanto tais, ou seja, são produtos determinados, embora o juízo que os ligue o faça apenas subjetivamente. Neste caso o juízo que os liga não estabelece qualquer conexão necessária. A questão polêmica a respeito do juízo que expressamos quando de um corpo em nossa mão faz somente ressaltar a implausibilidade de tal ocorrência. Duas vezes que tenhamos um objeto na mão, saberíamos que o peso é do objeto, assim indica Hume30. Porém, afora fenômenos aos quais já tenhamos este hábito de ligação 30 “29. [...] Se nos for apresentado um corpo de cor e consistência parecidas às do pão, que já comemos, não temos receio de repetir a experiência, certos de que ele nos proporcionará o mesmo alimento e sustento.” (Hume 1973:141) 91 determinante, fica patente a capacidade associativa própria da imaginação. Compreendida a função do juízo determinante, deduz-se dela uma estrutura do conhecimento. Desta estrutura decorre o fundamento da estrutura da ciência, que percorre ascendentemente de juízos empíricos até as teorias tão fundamentais para o conhecimento da natureza. O juízo determinante é uma resolução da síntese intelectual do entendimento remetido à apercepção, o que faz com que sua estrutura conceitual se some a uma rede de conhecimentos ao qual se dá o nome de ciência. A ciência por sua vez, esta rede de conhecimentos, toma ideias da razão para seu estabelecimento. Não vamos adentrar nas discussões acerca da legitimidade transcendental da razão no estabelecimento da ciência, mas apenas indicar duas referências a esta questão. Uma sugerida por Körner: Kant soaria muito bem como um instrumentalista na filosofia da ciência. Isto é, ele estaria afirmando que termos teóricos funcionam na ciência como unificadores de conceitos e leis, que, por sua vez, se referem genuinamente à realidade empírica, e, também, que os termos teóricos por si mesmo, porém, não se referem a essa realidade. Eles são gerados como conveniências para o nosso uso, mas seria um grave erro teórico compreendê-los como se nos dessem um conhecimento mais adequado da realidade empírica do que aquele que adquirimos pelo uso de conceitos empíricos não teóricos. (Wartenberg 2009:279, 280) E outra a qual Wartenberg discute esta possibilidade: O único conhecimento a priori obtenível aos seres humanos está limitado à estrutura geral da experiência e aos objetos empíricos que perfazem o mundo fenomênico. Já que Kant procede a afirmar que a razão tem somente uma função regulativa, e não constitutiva, com respeito ao conhecimento, parece impossível atribuir a ele a visão de que a razão fornece um fundamento transcendental para a prática científica [...] embora ele atribua conhecimento transcendental à razão como a base para a prática científica, esse conhecimento não significa uma extensão ilegítima de nosso conhecimento a priori além de seus limites legítimos. (Wartenberg 2009:280,281) Como o papel da razão e uma eventual justificação transcendental da estrutura da ciência excedem nossos objetivos, permanecemos no estatuto do juízo determinante. Este estatuto leva a cabo uma subsunção dos conceitos puros das categorias do entendimento sobre os esquemas da imaginação. O seu conteúdo é exibido pela apercepção de modo a estabelecer um conhecimento objetivo. Diferente do juízo reflexionante o juízo determinante é apresentado como uma 92 exigência da apercepção, e implica necessariamente em um regramento capaz de aferir objetividade, tendo uma exibição esquemática de seu conteúdo. Assim, por exemplo, quando converto em percepção a intuição empírica de uma casa pela apreensão do diverso dessa intuição, tenho por fundamento a unidade necessária do espaço e da intuição sensível externa em geral e como que desenho a sua figura segundo a unidade sintética do diverso no espaço. Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa [grifo nosso], esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da quantidade, à qual deverá portanto ser totalmente conforme esta síntese da apreensão, isto é, a percepção. (CRP B 162) Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (CRP B 163) Fica assim o juízo determinante vinculado intrinsecamente ao entendimento e este à apercepção. 2.1 A exibição esquemática e simbólica dos juízos. No capítulo anterior abordamos o tema da hipotipose para ilustrar questões concernentes à exibição do juízo reflexivo. Porém, como nos mostra Beckenkamp (2001) o procedimento de inferência analógica que constitui a exibição simbólica foi utilizado por Kant inicialmente para caracterizar a possibilidade de uma exibição de uma idéia da razão em uma imagem sensível: É claro que na mitologia posteriormente reivindicada se trata de uma “simbólica universal” (cf. K.F.A. Schelling, SW I/6, Stuttgart, Cotta, 1856, p. 571) compartilhada por todo um coletivo, enquanto em Kant a necessidade de uma simbolização das idéias decorre naturalmente da limitação da própria razão, que faz com que “tenhamos sempre necessidade de uma certa analogia com seres da natureza, a fim de nos tornar apreensíveis disposições suprasensíveis” [Die Religion, AA VI, 65 nota]. (Beckenkamp 2001:5) A hipotipose esquemática se confunde com a estrutura da síntese da apercepção, torna-se direta, em contraposição à simbólica, pois é inerente ao juízo 93 determinar uma finalidade. A exibição é indireta no caso do juízo moral, dada sua incapacidade de se exibir sensivelmente, e no juízo da beleza, pois não possui representação, nem sensível (uma imagem da intuição) nem conceitual, mas apenas um sentimento puro. Na primeira Crítica, a razão pura propõe modelos que superam a legalidade do entendimento, embora contribuam para ele (Wartenberg apud Guyer 2009). Um exemplo simples desta interferência encontramos na idéia da perfeição do objeto, que raramente encontramos nas medições científicas, mas que contribuem para a postulação de suas leis. (CRP A 664-666) A exibição de um juízo determinante não requer sequer uma terminologia diferenciada como a de hipotipose para caracterizar sua exibição, pois que esta é direta, objetiva e se mostra imediatamente na apercepção. O termo hipotipose é derivado de uma tradição retórica, de convencimento em um discurso. Kant o resignifica para tentar demonstrar por um meio sensível, uma idéia moral. O termo é criado para dar conta de uma situação onde o conhecimento moral não é capaz de se atrelar a um objeto, não é capaz de correspondência lógica em sentido ontológico (CRP A 664-666), ou seja, a hipotipose simbólica gera um ‘convencimento’ por uma exibição que é analógica. Nesta mesma linha interpretativa vemos o inverso acontecer, o termo apercepção não aparece nas páginas da terceira Crítica. 3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento. Pudemos observar que em Kant existe uma relação exemplar das faculdades que desemboca em um conhecimento. A proficuidade do estatuto do conhecimento é confirmada na finalidade regrada de um juízo determinante. O termo utilizado para adjetivar este trabalho é a espontaneidade. A espontaneidade do conhecimento é a “espontaneidade dos conceitos” (CRP B 74) do entendimento. A espontaneidade do entendimento indica, diferentemente uma capacidade de produção, ela é capaz de pensar o objeto da intuição (CRP A 51). A síntese do conhecimento é esta disposição ativa, espontânea, da faculdade do entendimento por sobre a representação da sensibilidade. Na dedução transcendental por exemplo, o que está em jogo é justamente a prova desta relação 94 necessária entre sensibilidade e entendimento, presidido pela unidade sintética da apercepção. Ou seja, dada a experiência, há contradição em afirmar que intuições não estão subsumidas sob conceitos de objetos; mas não há contradição em afirmar que intuições lout couri não estão subsumidas sob conceitos de objetos. Desse modo, pode ser posta em dúvida a validade necessária e universal do conceito de experiência tal como fora analisado por Kant, isto é, pode ser posta em dúvida a validade necessária e universal da experiência enquanto conhecimento objetivo. (Esteves 1996:15) De acordo com Esteves, Kant precisa superar o argumento empírico de que uma intuição possa ser representada sem que com isto implique qualquer conceitualidade. Kant necessita demonstrar como a experiência de algo intuído, para além de encerrar uma possibilidade de subsumir sob um conceito, contém anteriormente e necessariamente uma síntese conceitual. A resposta necessária a uma filosofia empirista e cética é o próprio método transcendental. O método consiste em acolher um objeto, um comportamento, qualquer esfera pré-filosófica para dar-lhe uma interpretação analítica: “[...] na Crítica da Razão Pura, procede inicialmente à análise de um conceito dado, à análise do conceito de experiência enquanto conhecimento objetivo, remontando às suas condições de possibilidade.” (Esteves 1996:34). A análise pré-filosófica que já apontava a experiência e o conhecimento como fatos, exige uma justificativa destes comportamentos, no qual resultou na filosofia transcendental. A experiência, como descrita na primeira Crítica, possui uma primazia fundacional que traz consigo uma instanciação consciente, objetiva e regrada. A estrutura que possui a finalidade de cumprir este requisito é o entendimento e sua atividade é a espontaneidade. Esta estrutura se expressa como uma exigência em conceituar tudo o que caia sob a sensibilidade, e assim o caminho analítico traça as etapas que desencadeiam em uma experiência cumprida. A fundamentação do fato legitimador, como sugere a interpretação de Dieter Heinrich (Klotz 2007), faz da filosofia kantiana uma filosofia analítica, pois que faz deduzir estruturas não aparentes de um fato autoevidênte. O entendimento destaca-se como faculdade emblemática de toda síntese do conhecimento, sua representação é o próprio objeto da experiência. A experiência enformada pelo entendimento toma formas diversas a depender das relações que se fazem presentes em uma intuição. De toda forma, o conhecimento é erigido a partir desta síntese e toma formas como o teórico, axiomático, nominal, 95 singular, a espécie e o gênero. A todas estas classificações aplicáveis a uma experiência podemos, de modo geral, denominá-las conceituais, mas os conteúdos nestes casos diferem, em virtude da complexidade dos estatutos e sua inserção em uma hierarquia de atos e funções. Dada esta ligação entre experiência e entendimento, a apercepção emerge como núcleo duro de toda exibição, via espontaneidade: [...] de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (CRP B 136,137) 3.1 A representação da faculdade do entendimento. Acompanhando Deleuze, “faculdade designa uma fonte específica de representações” (Deleuze 1994:15). O conhecimento porém, assenta em um antagonismo original: O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de receber um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos). (CRP B 74) ...re-presentação implica uma retomada activa daquilo que se apresenta, portanto, uma actividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade inerentes à sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, já não temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de representações. É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta. (Deleuze 1994:16) A espontaneidade do conhecimento assenta na capacidade de síntese da apercepção com base nas regras do entendimento. A espontaneidade do entendimento se contrapõe à receptividade da sensibilidade justamente pelo caráter privilegiado do entendimento em colocar o representado diante da apercepção, através do ato judicativo. Para Deleuze neste ponto já não é necessário interpretar o termo representação (para o caso do entendimento) como mero produto de mais uma faculdade que contudo sofrerá sínteses ulteriores. Neste ponto o que se apresenta é o próprio conhecimento, ou seja, o termo ‘re-presentar’ pode ser interpretado ao pé da letra e indicar uma posição ativa, sem o risco de polissemia o conhecimento é a 96 própria representação, pois que ‘a síntese do que se apresenta’ (do que é apreendido). Porém, a espontaneidade do nosso pensamento exige que este diverso seja percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento. A este acto dou o nome de síntese. (CRP B 102) Todavia, reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra. (CRP B 103) Para qualquer relação sintética é necessário dois termos, o diverso da intuição e o conceito. Um terceiro termo é por certo o seu resultado, o conhecimento. Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (CRP B 93) [...] todos os corpos são divisíveis, o conceito de divisível refere-se a diversos outros conceitos; entre eles refere-se aqui, particularmente, ao conceito de corpo, e estes por sua vez, a certos fenômenos, que se apresentam a nós. (CRP B 93) O conhecimento, tratando-se de coisa conceitual, é uma união entre o que quer que seja a categoria (conceito puro) com uma intuição correspondente. Neste caso o resultado da relação entre categoria e o diverso da intuição é expresso em um conceito empírico. Este pode vir a se acumular em sínteses subseqüentes instanciando juízos mais necessários em direção à universalidade pretendida pela ciência. Mas a estrutura do que seja o conceito já subsiste separadamente do conhecimento, enquanto categoria, e eis seu caráter a priori. De que modo então o conceito enquanto produto do entendimento se destaca singularmente? De que maneira a condição de possibilidade, que é conceitual, cria células conceituais distintas entre si? Definimos o conhecimento como um terceiro termo, distinto da categoria e da intuição, uma síntese entre eles. Temos contudo que considerar que a síntese é de incumbência do entendimento. Por um lado, o sintetizado não passa de uma configuração singular das categorias, e neste caso o conhecimento parece coincidir com um esquema montado por estas. Muito mais identidade parece haver entre o sintetizado e as determinações do entendimento do que com o diverso da intuição, pois os esquemas devem se adequar ao conceitual e não o contrário. 97 Como, porém, há em nós uma certa forma de intuição sensível a priori, que assenta na receptividade da faculdade de representação (sensibilidade), o entendimento, como espontaneidade, pode então determinar, de acordo com a unidade sintética da apercepção, o sentido interno [grifo nosso] pelo diverso da representação dada e deste modo pensar a priori a unidade sintética da apercepção do diverso da intuição sensível, como condição à qual tem de encontrar-se necessariamente submetidos todos os objetos da nossa (humana) intuição; é assim que as categorias, simples formas de pensamento, adquirem então uma realidade objetiva, isto é, uma aplicação aos objetos que nos podem ser dados na intuição, mas só enquanto fenômenos; porque só destes somos capazes de intuição a priori. (CRP B 150,151) Há ainda um segredo inerente a este procedimento, e se encontra em uma faculdade intermediária por natureza, mediadora entre sensibilidade e entendimento, a imaginação. A imaginação possui muitas atribuições, e Kant a divide entre imaginação produtiva e reprodutiva. Em sua capacidade mais radical, a produtiva, depreende-se esquemas essenciais a ação do entendimento para o conhecimento, “é portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade [...]” (CRP B 152). Acima havíamos grifado a expressão ‘sentido interno’, cabe ainda algum esclarecimento do parágrafo: [...] sentido interno, pelo contrário, contém a simples forma da intuição, mas sem a ligação do diverso nela inclusa, não contendo, portanto, nenhuma intuição determinada; esta só é possível pela consciência da determinação do seu sentido interno mediante o acto transcendental da imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno) a que dei o nome de síntese figurada. (CRP B 154) Podemos ver que Kant faz cercar por todos os lados seu argumento, base de toda a filosofia transcendental, que prega a dependência de regramento para qualquer conteúdo, mediado pela imaginação. A imaginação é comumente relacionada com sua capacidade reprodutiva, em fazer exibir em abstrato um objeto (CRP B 154), uma imagem de nosso sentido interno. Seu caráter produtivo é aquele que forma esquemas tão essenciais à síntese de um juízo. Seu duplo papel pode ligar a intuição ao conceitual em sua ação produtiva, ou pode vir a montar representações reprodutivamente. Especifiquemos um pouco mais a ação conceitual para então abordarmos o processo do esquematismo empreendido pela imaginação produtiva. 98 3.1.1 Conceito: definição do termo. O termo ‘conceito’ é referido na obra de Kant em três sentidos: conceito empírico, conceito puro e esquema de um conceito. Esquema de um conceito (CRP B 179) seria uma espécie de abstração, não do objeto, mas de certos caracteres essenciais em um conceito do objeto no sentido de identificá-lo facilmente em uma experiência, ou lidar com ele na imaginação. O esquema de um conceito é um corpo formal, referido apenas a uma regra de ocupação no tempo e espaço, que serve como apetrecho para identificação de um conceito na realidade: Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que designo pelo nome de esquema deste conceito. (CRP B 179,180) De fato, os nossos conceitos sensíveis puros não assentam sobre imagem dos objetos, mas sobre esquemas. Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. (CRP B 180) O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal de quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (CRP B 180) A expressão ‘conceito sensível puro’ aparece empregada apenas enquanto sinônimo para o esquema de um conceito, tão facilmente representado pelo pensamento de um objeto geométrico: “No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter de sua existência.” (CRP B 272) O esquema de um conceito é um trabalho realizado pela imaginação, e não pelo próprio entendimento ou pelo juízo. Seu caráter esquemático não se relaciona com o conhecimento diretamente, mas apenas com a ‘possibilidade’ de corresponder intuições em conceitos. Isto dirá respeito ao esquematismo, ou seja, ao processo de subsunção de intuições em conceitos. A ‘possibilidade’ está contudo imprimida na categoria da modalidade. A categoria da modalidade trata de uma função dos juízos, que diferentemente das demais categorias, não visa a composição de conteúdos, trata apenas de “[...] se referir ao valor da cópula em relação ao pensamento em geral.” (CRP B 100). A possibilidade, realidade e necessidade de um juízo são os conceitos da 99 categoria da modalidade em questão. Seu caráter modal dá-se sob as seguintes condições: 1. O que está de acordo com as condições formais da experiência (quanto à intuição e os conceitos) é possível. 2. O que concorda com as condições materiais da experiência (da sensação) é real. 3. Aquilo cujo acordo com o real é determinado segundo as condições gerais da experiência é (existe) necessariamente. (CRP B 266) Podemos inclusive facilitar nossa exposição com uma interessante analogia entre necessidade, realidade e possibilidade, com conceitos puros, conceitos empíricos e esquema de um conceito. Os conceitos puros dizem respeito à necessidade de um juízo. São condições necessárias de toda experiência. Não são reais, são formas puras categoriais. Sozinhas são vazias e não encerram conhecimento. Os esquemas de um conceito encerram uma possibilidade. A imaginação traça certo ordenamento, este ordenamento que pode ser uma abstração de um conceito empírico ou um esquema montado para aplicação em um esquematismo, ele mesmo, não possui qualquer realidade, embora encerre necessidades. É por isto nem necessário nem real, mas possível. Os conceitos empíricos, por aliarem as exigências dos conceitos puros (em um esquematismo) a um diverso da intuição, constituem uma experiência, seu ajuizamento implica em uma realidade do objeto sintetizado. O conceito puro não é produto de um estatuto, mas a própria regra impressa do entendimento, é uma instância a priori. Portanto, vamos nos referir aos conceitos puros daqui em diante apenas enquanto categorias. Sendo impossível a uma categoria constituir imediatamente um objeto (CRP B 129), é necessário que uma dinâmica entre em cena a mediar a atividade de regrar o intuído. A atividade em questão é o esquematismo. 100 3.2 O esquematismo. O esquematismo é uma operação condicionante da legalidade do juízo por sobre um diverso da sensibilidade. É o processo de subsunção, ou seja, de enquadrar o intuído dentro de um conceito, ou mais precisamente, subsumir uma representação da imaginação sob conceitos do entendimento. Com respeito à diferença de natureza a que nosso aparato transcendental de conhecimento deve superar, ou melhor, sintetizar, o esquematismo garante a conceituação de um diverso sensível. Esta conceituação, em acordo com as categorias, reflete já uma legalidade própria da faculdade de julgar, a qual sabemos, remete juízos para a apercepção (CRP: B 106). Ou seja, o que se quer é que o esquematismo prepare o diverso da sensibilidade de modo que o juízo possa agir de modo determinante. O esquematismo é o momento de se conjurar todos os elementos, faculdades, atos e capacidades de nossa Gemüt. Definiremos alguns destes elementos, os menos conhecidos, apenas para termos a dimensão de como todas nossas faculdades são mobilizadas na expectativa de um juízo determinante: a) Tempo: O tempo é uma intuição pura. Portanto, a marca de todo diverso apreendido pela sensibilidade. Kant atribui ao tempo a seguinte função no esquematismo: “Assim, uma aplicação das categorias aos fenômenos será possível mediante a determinação transcendental do tempo que, como esquema dos conceitos do entendimento, proporciona a subsunção dos fenômenos na categoria.” (CRP: B 178) b) Percepção: A percepção é justamente a contrapartida do conceito: “Se o conceito precede a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa; mas a percepção, que fornece a matéria para o conceito, é o único caráter de realidade.” (CRP: B 273). c) Significação: É a relação estabelecida entre um esquema do conceito para com um objeto, ou seja, a resultante do processo do esquematismo (CRP: B 186). Nem a intuição, nem os conceitos puros são significativos por si, o surgimento para a apercepção de tal conteúdo dá-se exclusivamente em uma experiência. Hentz (2008) nos diz que o capítulo dedicado à exposição do esquematismo na primeira Crítica é comumente criticado quanto sua real necessidade na linha argumentativa da filosofia Crítica. Parece que o exposto no parágrafo §24, e em geral 101 na dedução transcendental, já seriam suficientes para entendermos a natureza da síntese figurada e da síntese da apercepção. Ou seja, segundo Erdmann (Hentz 2008:2) o capítulo do esquematismo não acrescentaria nada de original, ou seja, não possui uma “função própria”. De modo explícito, o que o capítulo do esquematismo faz é tentar demonstrar a possibilidade da aplicação necessária de categorias ao intuído, o que corrobora a tese de que ela não desempenharia um papel tão relevante para a trama transcendental. Porém Hentz quer mostrar que há um papel a ser desempenhado por este capítulo, que faz com que a estrutura do esquematismo se faça mostrar sobretudo como prova de que as categorias devam a priori ser capaz de exibir uma possibilidade para todo o sensível: "a filosofia transcendental ao mesmo tempo tem antes de expor, segundo características universais mas suficientes, as condições sob as quais objetos podem ser dados em concordância com aqueles conceitos” (Hentz 2008:3). Neste sentido o real intento do esquematismo seria demonstrar um uso correto das categorias, na atribuição de esquemas que orientem corretamente o juízo em sentido determinante, esta seria a condição logicamente válida para todo o conhecimento, e viria a fazer parte constituinte do argumento da dedução transcendental. O esquema passa a desempenhar, contra a tese empirista, a possibilidade de determinação do dado intuído, a partir de um terceiro termo entre sensibilidade e entendimento. A operação lógica em questão, cabe salientar, “não é aquela existente entre todo e parte (subsunção lógica), devendo tomar-se o termo ‘subsunção’ como equivalente a ‘aplicação’ [Allison, 1992]” (Hentz 2008:4). O que ocorre em nível transcendental é uma síntese direta entre duas naturezas que não se dispõem hierarquicamente, esta é pois uma síntese originária que, nos mostra Allison, não pode ser compreendida como mera operação lógica de subsunção. Outro tipo de subsunção, como pode ocorrer entre juízos empíricos, vai operar sob relações de espécie e gênero, contando com uma homogeneidade conceitual. Esta homogeneidade não pode ser dada em nível esquemático puro, pois não há homogeneidade alguma e este é o caso onde esquemas devam atuar. É pela falta original de uma homogeneidade pré-disposta que é introduzido o tempo, na consecução do esquema: A homogeneidade da determinação transcendental do tempo com relação à categoria se dá pelo fato de que estas determinações são tanto universais 102 quanto repousam sob uma regra a priori […] as determinações transcendentais do tempo estão submetidas às categorias que são responsáveis pela síntese da multiplicidade da intuição em geral (Hentz 2008:5) Peguemos um exemplo do próprio Kant: o esquematismo é aquilo que permite com que um objeto, como um prato (CRP: B 176), seja subsumido como tal e homogeneamente ao conceito de círculo. O conceito geométrico de círculo pode subsumir diversos objetos no mundo, e podemos assim pensar na capacidade do esquema em fornecer um complexo onde podemos pensar a priori a possibilidade de fenômenos. No caso de um diverso ‘x’, sendo esquematizado através do tempo, ou seja, organizado segundo um princípio da unidade a que a imaginação tenta contribuir, a partir de determinações categoriais, o que está sendo traçado ao fim é uma possibilidade já inscrita transcendentalmente, uma regra, para a experiência de um intuído. No caso, de subsumir este ‘x’ sob o conceito de círculo e somar através de outras notas individualizantes o conceito empírico de prato. Do ponto de vista estrito do esquema “não é necessária a apresentação de uma imagem para provar a realidade objetiva de um conceito” (Hentz 2008:6), porém, para a constituição de uma experiência se faz necessário que este esquema se remeta a um diverso intuído. É neste sentido que o juízo estético não cumpre formalmente uma exibição, pois não se referencia ao diverso intuído e nem se recobre com as regras do entendimento. Fica igualmente de fora o papel reflexionante do juízo enquanto prova para o caráter necessário de nossas faculdades, que deve imprimir conhecimento sobre os objetos. A fundamentação da filosofia transcendental, não sem propósito, pretende qualificar o juízo determinante. Ao fim o esquematismo faz acomodar as categorias lógicas no intuído. Estas categorias são divididas entre matemáticas e dinâmicas. As categorias matemáticas possuem uma atuação imediata por sobre as intuições: “através dos esquemas destas categorias é possível construir na intuição pura tanto a quantidade extensiva quanto a quantidade intensiva (grau)” (Hentz 2008:8). Os próprios espaço e tempo, por mais puros que sejam estes conceitos de todo o elemento empírico e por maior que seja a certeza de que são totalmente representados a priori no espírito, seriam destituídos de validade objectiva, privados de sentido e de significado se não fosse mostrado o seu uso necessário para objetos da experiência. (CRP: B 195) Com Dieter Henrich (Klotz 2007)31, pensemos novamente no fato legitimador. 31 “O fato de o segundo passo tratar essencialmente de um problema que surge da diferença 103 Em uma experiência temos acesso imediato a um objeto e suas características, esta imediatidade se funda, assim Kant quer fazer entender, nas propriedades que as categorias matemáticas conferem em um vínculo necessário constituído no esquematismo, garantindo a objetividade de nossa experiência. O passo seguinte para o conhecimento encontra-se na aplicação das categorias dinâmicas, que atuam sobre a existência de objetos da experiência já definidos em seu aspecto matemático. Interessa à ciência uma ligação entre objetos que se paute legitimamente perante a existência e exigência lógica da experiência. Diferente da ação matemática, a dinâmica é sempre mediata, e “não podem ser construídas a priori na intuição; os seus esquemas devem ser concebidos mais como uma síntese pura, a qual não pode ser posta sob imagem alguma” (Hentz 2008: 9). Tratam-se das categorias da relação e da modalidade que devem aplicar seus princípios sobre objetos. Seu enlace por sobre objetividades constituídas ‘matematicamente’ excede a mera ligação a priori entre representações, estas devem fundar acordos entre conteúdos da experiência. Fazer o intercâmbio entre as duas faculdades fontes principais de nosso conhecimento não parece ser uma função secundária, tanto é assim que Kant se questiona sobre nossa capacidade de ajuizar e conclui: “[...] é uma arte oculta nas profundezas da alma humana...” (CRP: B 180). Sendo o entendimento a faculdade do conhecimento, o juízo determinante é então o remetimento do resultado bem sucedido do esquematismo para a apercepção. Assim o estatuto do conhecimento se cumpre, e uma esfera de objetividade e significado é formada em nossa Gemüt. entre entendimento e sensibilidade explica, segundo Henrich, porque Kant volta-se então para os resultados da Estética Transcendental, enfatizando a tese de que tempo e espaço são intuições puras que constituem, ao mesmo tempo, condições formais de todas as intuições empíricas (cf. B 160). Kant emprega essa concepção no segundo passo da dedução para destacar que tempo e espaço são intuições que possuem unidade; conseqüentemente, a unidade deles deve ser concebida de acordo com o resultado do primeiro passo da dedução, isto é: como uma unidade que está de acordo com as categorias. Assim, tempo e espaço, nos quais todas as intuições sensíveis são dadas, são unidades estruturadas de acordo com as categorias. Todos os dados sensíveis como tais, em virtude da unidade de tempo e espaço, estão submetidos à condição de estar de acordo com a unidade exigida pelo entendimento (cf. B 160).” (Klotz 2007:147) 104 4. As representações das faculdades em relação à síntese da apercepção. Vimos que a síntese da apercepção é condição para qualquer exibição de um conteúdo. Vimos também que a condição final desta síntese é a subsunção conceitual. Vamos agora compreender três principais representações de cada faculdade em separado; a intuição, o esquema e o conceito. Antes, em dois subtópicos trataremos da representação de um objeto exibido em geral e das principais atividades movidas nesta representação geral e objetiva. Nosso intuito é passar por modelos de representação e suas condições de possibilidades, o que será útil quando qualificarmos a representação própria da música. Entendemos ainda que há um estatuto, e aqui podemos usar o mesmo termo do capítulo anterior, uma cláusula pétrea, que implica com que todas as representações se liguem a uma única função conceitual. Todas as intuições, enquanto sensíveis, assentam em afecções e os conceitos, por sua vez, em funções. Entendo por função a unidade da acção que consiste em ordenar diversas representações sob uma representação comum. (CRP B 93) Ao mesmo tempo esta exigência da função é uma função do juízo, criando unidade do entendimento remetendo para uma apercepção: “[...] o entendimento em geral pode ser apresentado como uma faculdade de julgar.” (CRP B 94) Como vimos no tópico anterior, a imaginação em sua função esquemática faz uma ponte entre as faculdades superiores e a sensibilidade (Frias 2006:10), resta ainda o último degrau de nossa descrição descendente pelas faculdades de nossa Gemüt, a sensibilidade. Seria possível que sua representação dispensasse esta cláusula pétrea do regramento? A divisão entre faculdades superiores e inferiores marca decerto uma diferença de naturezas. No capítulo passado vimos que o juízo em sua autonomia promovia um tipo de conteúdo particular, a beleza, porém, a autonomia das faculdades inferiores como a sensibilidade e a imaginação teriam tal capacidade? Tudo indica que elas ao fim se aliam a uma estrutura de exibição postulada pela autoconsciência, na unidade da apercepção, mas vejamos em cada caso como isto acontece. 105 4.0.1 O objeto. O termo ‘objeto’ encerra acepções diversas, e em certo sentido, até mesmo problemáticas. O termo em sentido vulgar significa os objetos exibidos objetivamente, aos quais lidamos no cotidiano, onde podemos depreender deles qualidades estáticas; cor, posição, textura e forma, ou em movimento; queda, giro, aparecimento, ou seja, as propriedades conferidas pelas categorias matemáticas. Mas também propriedade de possíveis inter-relações; dureza, peso, probabilidade e universalidade, ou seja, propriedades conferidas pelas categorias dinâmicas. O objeto assim compreendido carrega consigo um caráter de fim de um processo: “Os conceitos, porém, referem-se, enquanto predicados de juízos possíveis, a qualquer representação de um objeto ainda indeterminado.” (CRP B 94), estes conceitos encontram sua forma plena em uma intuição, o que determina o objeto enquanto tal. Mas segundo o comentário de A. Ewing existe um problema geral no uso do termo ‘objeto’ na obra kantiana, que pode fazer confundir o objeto enquanto produto de uma síntese, do objeto enquanto algo que nossas faculdades tentam determinar mas que se encontrariam para além do nível da intuição: [...] aqui, nós precisamos escolher entre admitir uma inconsistência no uso da terminologia por parte de Kant e uma inconsistência fundamental e extraordinária nas visões expressas, eu prefiro a primeira alternativa. (Ewing apud Faggion: 2008) Segundo Faggion (2008) a origem deste engano remonta da terminologia filosófica representacionista, onde o conhecimento seria a representação de um objeto exterior, sem caráter transcendental. Porém, o que a tese kantiana visa é justamente mostrar uma impossibilidade para a tese representacionista: É fácil de ver que este objeto apenas deve ser como algo em geral = X, porque nós, fora do nosso conhecimento, nada temos que possamos contrapor a esse conhecimento, como algo que lhe corresponda. (CRP A 104) Completa ainda Loparic: 106 O “correlato” de nossas representações intuitivas, que na consideração do senso comum é garantida pela existência de um objeto externo, nada mais é do que a consciência da unidade de uma “função [Funktion] de síntese”, mais precisamente, uma “função do entendimento” capaz de gerar padrões unificados de aparecimentos “em conformidade com uma regra” que torne a priori necessária não apenas a reprodução (A 105), mas também a antecipação do múltiplo (A 108). (Loparic 2000 apud Faggion 2008) E nos diz Wolff: A função do objeto então é servir como o fundamento da unidade necessária das representações em um juízo. Em outras palavras, objetividade e necessidade, as marcas do conhecimento, são relações de representações entre si, não a um objeto independente.” (Wolff 1973 apud Faggion 2008) E mais uma vez Kant: “... o objeto, não pode ser coisa diferente da unidade formal da consciência na síntese do diverso das representações.” (CRP A 105) Então, quando não significa um objeto do senso comum 32, dado à consciência, o termo se refere, no interior da obra kantiana, a uma unidade formal, lugar lógico onde a função conceitual sintetiza. ‘é aquilo no conceito do que o múltiplo de uma dada intuição é unida.’ Portanto, a conexão que nós localizamos no objeto não é nada mais nada menos do que a unidade que o entendimento impõe sobre a consciência das representações. (Wolff 1973 apud Faggion 2008) O sentido controverso do termo seria aquele que remeteria à coisa em si. Este caráter aparece de fato em algumas passagens. Faggion indica que há de fato um resquício da terminologia representacionista, porém nos interessa mais resguardar a filosofia transcendental e adotar a postura inicial de Ewing em admitir que houve uma inconsistência no emprego do termo. Mas que, dado a estrutura transcendental geral, é possível corrigir este emprego no interior da própria obra. Para o debate que ainda levaremos adiante nos interessa ter em mente apenas estas duas definições de objeto: a) espaço lógico de uma proposição, onde será recoberto por uma síntese conceitual em um juízo; b) o objeto cotidiano resultado de uma exibição da apercepção, aquilo que vemos e que Loparic dá o nome de aparecimento (Faggion 2008). Em uma definição mais sintética: “objeto, porém, é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada” (CRP B 137). 32 O sentido aqui corresponde à diferença no alemão entre Gegenstand e Objekt. “A partir daí, o Gegenstand incondicionado torna-se condicionado pelas sínteses e constitui-se, assim, no próprio Objekt, no objeto transcendental.” (Vaccari 2004:166) 107 4.0.2 Os atos das faculdades transcendentais do conhecimento. As faculdades encerram propriedades a priori que não se atrelam necessariamente a uma atividade. Mas alguns atos são essenciais para o remetimento de representações a outros níveis, até que chegamos a um conhecimento. Vamos tratar de duas atividades, ligadas ao entendimento e à sensibilidade respectivamente, para ilustrar esta operação de remetimento das representações. Pensamento: “Um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo tempo pela autoconsciência seria intuitivo; o nosso só pode pensar e necessita de procurar a intuição nos sentidos.” (CRP B135). “[...] acto de submeter à unidade a síntese do diverso.” (CRP B 145) No parágrafo §21 Kant qualifica de orgânico o processo de conhecimento hierarquizado e unificado sob uma síntese. Assim todas as etapas e processos representam um e só ato da totalidade de nossa apercepção. O pensamento aparece como ato geral deste enlace com o intuído. De certo modo poderíamos falar mesmo que o juízo pensa, o entendimento pensa, a apercepção pensa. Se atentarmos às citações o pensamento possui um sentido amplo indicando todo e qualquer ato de remetimento ou síntese, indicando o caráter mediado necessário do conhecimento. Síntese da apreensão: “[...] a reunião do diverso em uma intuição empírica, pela qual é tornada possível uma percepção isto é, a consciência empírica da intuição (como fenômeno).” (CRP B 160) A síntese da apreensão é o ato da sensibilidade que funda o intuído, a partir das intuições puras do espaço e tempo. Anterior a este ato não há nenhuma possibilidade de estarmos tratando com nenhum nível de nossas faculdades. Esta síntese contudo não se relaciona com a apercepção, não é síntese conceitual, tão somente sensível. Os termos ‘percepção’ e ‘consciência empírica’ contrapõem-se respectivamente a ‘experiência’ e ‘apercepção’. Como nos primeiros não existe nenhuma participação conceitual não há também qualquer pensamento, 108 consequentemente não podemos remeter qualquer conteúdo à apercepção. A percepção precisa de regramento para constituir uma experiência, do mesmo modo a apercepção que é uma autoconsciência precisa de uma experiência formatada para que uma mera consciência empírica (fenômeno) se exiba enquanto um conteúdo. 4.1 A representação da sensibilidade: a intuição. A intuição é assim definida por Kant: “A representação que pode ser dada antes de qualquer pensamento”(CRP B 132). Ou seja, em seu sentido autônomo, não é autoconsciênte. Por conseguinte, toda a síntese, pela qual se torna possível a própria percepção, está submetida às categorias; e como a experiência é um conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da experiência. (CRP B 161) Kant inicia o parágrafo §20 com um título bastante sugestivo e esclarecedor: Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias, como às condições pelas quais unicamente o diverso daquelas intuições se podem reunir numa consciência. (CRP B 143). A representação da intuição é uma percepção 33, que contudo diferentemente do uso cotidiano da palavra não possui qualquer determinação do entendimento. Vamos adjetiva-la como uma representação ‘crua’. Queremos significar com isto que o estatuto da sensibilidade pela síntese da apreensão que faz ligar um diverso aos conceitos puros não é capaz de exibir seu resultado. Este apenas serve de matéria a demais processos: “Numa intuição dada, o diverso se encontra necessariamente submetido às categorias” (CRP B143). Caracteriza-se assim que, de acordo com a teoria kantiana, não há nenhum estágio semântico, qualquer juízo, ou consciência do intuído. Porém mesmo que ‘cega’ as intuições puras da sensibilidade aplicam uma ação, a síntese da apreensão. Nestas o tempo imprime uma ligação na continuidade: 33 No artigo de Thierry de Duve que abordamos sucintamente no capítulo anterior, o autor confunde claramente a terminologia kantiana com o uso cotidiano dos mesmos termos. Isto fica patente em seu uso do termo percepção. 109 Se deixasse sempre escapar do pensamento as representações precedentes e não os reproduzisse à medida que passo às seguintes, não poderia reproduzir uma representação completa. (CRP A 102) O espaço, por sua vez, é uma condição a priori unificadora de toda a intuição possível, sobre um espaço homogêneo, pois infinito (CRP B 39,40), que implica igualmente na consideração da extensão de qualquer intuição. Parsons sinaliza para uma definição kantiana deste sentido do espaço presente na Dissertação: O conceito de espaço é representação singular que compreende tudo em si, não uma noção abstrata e comum que contem tudo sob si. Pois o que chamamos diversos espaços não são senão partes de um mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante (§15 B,2:402). (Parsons 2009:99) Na síntese da apreensão o espaço determina a forma para qualquer fenômeno, é “a condição subjetiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa” (CFJ B 42). Portanto o espaço perfaz a condição da exterioridade e o tempo a condição da interioridade. O espaço é condição da forma e o tempo condição da ligação. São contudo apreensões do sensível. Trata-se de acoplamentos onde são indexados propriedades do espaço e do tempo ao múltiplo apreendido. Acrescenta ainda Kant: “A síntese da apreensão está, por tanto, inseparavelmente ligada à síntese da reprodução” ( CRP A 102). A sensibilidade, de posse de um diverso, faz indexar a partir das intuições puras do tempo e espaço, que apenas a imaginação pode estocar de forma esquemática, isto é válido para a imaginação produtiva e reprodutiva. A imaginação reprodutiva quando atua na ausência de um objeto faz, como indica a citação, contar com os indexadores da intuição na mesma medida em que foram apreendidos originalmente, mas retraça-os em abstrato, já condicionado a conceitos, em uma reprodução de uma imagem. No caso produtivo a imaginação só possui o recurso de contar com as categorias para a produção de um conceito do objeto. Vemos que a intuição seria uma condição necessária para a percepção de caracteres temporais e espaciais, para qualquer evento sonoro ou musical. Porém o intuído ele mesmo depende sempre de um regramento para que estes dados que chamamos de indexadores possam se exibir em uma objetividade. 110 4.2 O produto da imaginação: o esquema. A imaginação é uma faculdade, mas não no sentido de portar um conteúdo a priori, a imaginação enquanto faculdade encerra uma atividade, e o produto de uma atividade não é uma representação, mas tão somente uma regra, como Frias nos diz: “são regras de determinação da intuição para a sua subsunção sob conceitos [KrV A141-2 B1801, 146]” (Frias 2006:9) A pretensão destes subtópicos é tratar das representações das faculdades, porém nenhuma representação é cumprida pela imaginação, o que faz Kant adjetiva-la enquanto uma faculdade “cega” (CRP B 103). Isto se explica também pelo fato de ser tida como uma faculdade inferior, mais afeita ao sensível por lidar com o múltiplo da intuição. De toda forma, mesmo não constituindo uma representação, sua ação acaba por ilustrar as representações, superiores e inferiores de nossa mente. Vimos no esquematismo como as noções de tempo e espaço se impregnam em todo objeto, e, como todo intuído é subsumido por conceitos. Já a imaginação não confere qualquer tipo de dado, conteúdo, ou característica, que seja distinguível no conceito do objeto. Isto é explicado pelo caráter abstrato que o esquema encerra, é uma regra de confecção. Estes esquemas são somente mapas para a incidência dos conceitos do entendimento, e em consonância com o entendimento promovem uma síntese transcendental, constituindo esta a primeira aplicação das categorias a objetos intuídos (CRP B 152). A imaginação produtiva refere-se a uma produção (CRP B 152), em uso pleno e livre da faculdade, que não se liga a nenhum critério de verdade ou falsidade e conseqüentemente não pode reivindicar nenhuma universalidade, mas tão somente se pôr a disposição de uma confecção regrada do entendimento. A imaginação autonomamente pensada evoca a imagem de faculdade ‘cega’, ela produz variações sem contudo projetar qualquer regra. No caso reprodutivo é possível ligar objetos entre si, e mesmo os traçar criando imagens em nosso sentido interno. Mas a imagem, diferentemente do esquema, poderia ser entendida como uma representação autônoma? Não podemos pensar uma linha sem a traçar em pensamento; nem pensar um círculo sem o descrever, nem obter a representação das três dimensões do espaço sem traçar três linhas perpendiculares entre si [...] atentemos no acto da síntese do diverso pelo 111 qual determinamos sucessivamente o sentido interno e, assim, na sucessão desta determinação que nele tem lugar. (CRP B 154) É importante apenas uma pequena ressalva sobre o “sentido interno” (CRP B 153). O sentido interno surge como contraste ao que Kant nomeia de ‘sentido externo’ (CRP B 37), ou seja, a capacidade de nossa mente em representar objetos num mundo externo. O sentido interno trataria de uma representação que não se encontraria atualizada intuitivamente, é uma produção subjetiva que está amparada pela apercepção sem contudo promover uma síntese atual com o intuído. O ato de trazer uma imagem move um esquema requerido pelo entendimento, de um conceito anteriormente sintetizado, que requer o esquema novamente a uma exibição interna. O que se exibe não é a imaginação nem o esquema da imaginação mas uma imagem que é garantida pelo conceito do entendimento e possibilitada pela imaginação ter impressa em sua faculdade a forma da intuição. Esta relação reprodutiva fica evidenciada na prática de se escutar com o ouvido interno34, na leitura de partituras, em uma lembrança na ausência de suporte material e mesmo na criação imaginativa. Nelas uma possibilidade reprodutiva da imaginação se move a criar uma imagem musical apenas para o sentido interno. Para isto usamos esquemas de experiências anteriores e as dispomos ao sabor de nossa imaginação, seja para lembrar, ler ou interpretar uma partitura. Neste caso o ato da imaginação não é quem determina a imagem, ela está alicerçada em conceitos anteriormente formatados, os quais a imaginação tem capacidade de dispor sem contudo ter uma intuição atualizada, e os remete diretamente à apercepção. A imaginação produtiva, para gerar uma objetividade, necessita de um direcionamento determinante no sentido de abarcar uma intuição dada, e assim não recorre, necessariamente, a um esquema já dado, mas esquematiza o atualmente intuído. No caso reflexionante a imaginação permaneceria com o montante intuído, mesmo para o caso das ideias estéticas, porém como o entendimento não determinaria qualquer representação, estes de certo não se tornariam auto-conscientes. 34 ‘Ouvido interno’ é um termo usual na pedagogia musical e curiosamente diz respeito a exatamente o que o termo kantiano ‘sentido interno’ expressa, uma experiência não referenciada na sensibilidade, mas apenas sob esquemas da imaginação. A pratica de perceber música com o ouvido interno não se restringe apenas aos estudantes e suas práticas de leitura, a simples lembrança de uma música que podemos escutar internamente não é mais que um uso do ouvido interno. O termo pode significar também um aparato de nossa fisiologia, mas não estamos traçando nenhum paralelo com o órgão da audição, mas apenas de nossa habilidade mental. 112 4.3 A representação do entendimento: o conceito. O conceito é uma representação privilegiada do ponto de vista do conhecimento, ele nos faz conhecer objetos (CRP B 74). Desta maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem que ser necessariamente conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está inteiramente contida a priori na categoria. É uma e a mesma espontaneidade, que ali sob o nome de imaginação, aqui sob o de entendimento, promove a ligação no diverso da intuição. (CRP B 163) Já distinguimos alguns sentidos do termo ‘conceito’, que pode se ligar tanto a um conceito empírico como a um conceito puro. No caso dos conceitos puros não estaríamos tratando de representações: Os conceitos puros do entendimento relacionam-se pelo simples entendimento com objectos da intuição em geral, ficando indeterminado se se trata de nossa intuição ou de qualquer outra (sic), contanto que seja sensível; são, portanto, simples formas de pensamento, pelas quais ainda se não conhece nenhum objeto determinado. (CRP B 150) A representação sintetizada pela faculdade do entendimento é um conceito empírico. Fazer conhecer um objeto é determiná-lo conceitualmente e assim a representação do entendimento enquanto um produto de conhecimento atesta este vínculo necessário de nossas faculdades: Fora da intuição, não há outro modo de conhecer senão por conceitos. Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, é um conhecimento por conceitos, que não é intuitivo, mas discursivo [...] O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (CRP B 93) Este conceito aparece na primeira Crítica como o resultado de uma função do entendimento para capturar o múltiplo da imaginação. Na Lógica vemos que existem ainda mais operações que determinam um conceito: Ora, se “os nossos conceitos são notas características” e “pensar é representar por meio de notas características”, então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos [Lógica AK 58/A85]. E um conceito é gerado quanto à sua forma por meio dos três atos lógicos do entendimento: a comparação, a reflexão e a abstração. (Souza 1996:5) 113 O estabelecimento de um conceito empírico se condiciona às categorias, matemáticas e dinâmicas, e outros processos que são objeto da Lógica, como a comparação, reflexão e abstração. Todos eles coadunam um princípio discursivo do conhecimento que podemos ter acesso nas duas distinções do conceito: Primeiro, pode-se tratar de uma distinção sensível. Esta consiste na consciência do múltiplo na intuição. Vejo, por exemplo, a Via Láctea como uma faixa esbranquiçada; os raios de luz de cada uma das estrelas que nela se encontram devem necessariamente ter chegado aos meus olhos. Mas a representação era apenas clara, e é só pelo telescópio que ela se torna distinta, porque agora enxergo cada uma das estrelas contidas nesta faixa leitosa. Segundo, pode-se tratar de uma distinção intelectual – a distinção em conceitos ou distinção do entendimento. Esta baseia-se no desmembramento do conceito relativamente ao múltiplo que está contido nele. É assim, por exemplo, que estão contidos no conceito de virtude, enquanto notas características, os seguintes conceitos: 1) o conceito da liberdade, 2) o conceito do apego as regras (o dever), 3) o conceito da superação da força das inclinações, na medida em que entram em conflito com essas regras. (Lógica A 44) Esta é a caracterização geral da representação do entendimento, que já é um conhecimento e que implica em juízos determinantes. Estes são resultados da ação lógica que tem lugar no esquematismo, que segundo Longuenesse tem a função de: “comparar esquemas, graças aos três atos conjuntos da comparação propriamente dita, da reflexão e da abstração, é acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão mesma de suas identidades e diferenças.” (Longuenesse apud Souza 1996:5) Enquanto produto final do processo de conhecimento a representação conceitual faz cumprir com a operação cognitiva da recognição. A recognição é a síntese do conceito: Assim, a apreensão intuitiva ordena, a reprodução imaginativa conecta e o reconhecimento conceitual unifica (sequência cumulativa); mas a primeira está inseparavelmente ligada à segunda (KrV A102, 132), e a segunda é inútil sem a terceira (KrV A103, 132-3) [sequência pressuposicional]. (Frias 2006:47) Neste sentido a recognição passa a ser o ato do conhecimento e todo conhecer um ato de recognição. Ou seja, reconhecer uma unidade a partir de igualdade, e limites a partir de diferenças. O objeto musical representado originariamente, e não apenas em sentido 114 reprodutivo (quando reproduzimos uma música na memória), encerra estas mesmas características de unidade conceitual, e portanto de um produto recognitivo. De acordo com as condições estabelecidas para um objeto em geral, nossa aposta consiste em procurar entender o modo como um objeto musical vem a se caracterizar como um objeto de forma recognitiva. 5. Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades. Neste último tópico pretendemos reunir o montante de ações de nossa Gemüt e descrever sucintamente quais os modos previstos pela filosofia kantiana a relacionálos, quais os modos possíveis e mesmo impossíveis. Falemos então dos ‘limites’ dos estatutos que analisamos até aqui. A ultrapassagem de um limite certamente pode encerrar tanto um novo campo como campo algum, simplesmente um contra senso. Um exemplo de ultrapassagem estaria em se usar as categorias do entendimento a incluir no conceito do objeto conteúdos que não estão dados em seu estatuto, como por exemplo dizer que um objeto é objetivamente belo (CFJ:23). Segundo Kant, quando predicamos beleza de um objeto não estamos observando atentamente nem ao estatuto da legalidade do objeto, nem ao estatuto da beleza. Um caso bastante diferente seria o de se buscar uma imagem para uma idéia da razão. Carecendo esta, por imposição de seu limite, de uma expressão sensível, Kant percebe que por uma interferência do domínio lógico seria possível através da analogia promover uma exibição simbólica, que não pode ser tida como uma exibição direta e real, mas, por interferência de legalidades permite ao menos um tipo de sensificação (Verssinlichung) deste conteúdo. De modo geral Kant parece aberto a descortinar interferências entre as legalidades, como vemos na introdução da terceira Crítica: Ora, ocorre que as nossas ações morais implicam a produção de um efeito no mundo físico; aquilo que avaliamos moralmente é algo que, causado por um agente livre, se dá entretanto na natureza segundo as categorias do entendimento. Deve haver, portanto, um ponto de contato necessário entre estes dois mundos – os domínios das filosofias prática e teórica – que se encontra, precisamente, no local onde a ação moral toma lugar efetivo no espaço e no tempo. (Vieira 2003:54) 115 A divisão de naturezas de nosso saber entre estético, lógico e moral, e a autonomia destes campos não impede que haja certas áreas de interferências, que como vemos, estão restritas a se prolongarem para além de seus limites. O que o projeto crítico faz é delimitar as competências e limitar as pretensões, pois não se autoriza de imediato qualquer interferência. O juízo teleológico é um caso claro de interferência entre domínios diversos, mas que atuam de maneira positiva para o estabelecimento da ciência biológica, por exemplo: Nada é por acaso. Na verdade tampouco podem renunciar a este princípio teleológico, como em relação ao físico universal porque, assim como se se abandonasse o último não ficaria nenhuma experiência, assim também não restaria nenhum fio orientador para a observação desta espécie de coisas da natureza que já havíamos pensado teleologicamente sob o conceito de fim natural. (CFJ:296,297) Outro caso acontece na exibição simbólica, onde processos analógicos podem fazer com que misturemos legalidades: A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós damos frequentemente a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres... (CFJ:260) Aqui há uma passagem “sem um salto demasiado violento” (CFJ:260) a partir de formas análogas dos respectivos juízos. Não há qualquer incremento para o objeto ou para o prazer estético, mas segundo Kant poderia haver uma sensibilização para o “interesse moral habitual”. Estes recursos de interferências mútuas são sempre bem vindos quando são capazes de nos fazer compreender um fenômeno ou mesmo a natureza do sujeito transcendental, mas apenas na medida em que temos igual compreensão dos limites destas aplicações. Em um sentido totalmente diferente, e aparentemente simples, podemos pensar no juízo determinante. Já está impresso em seu juízo uma união de duas naturezas totalmente distintas, da sensibilidade e do entendimento. A legalidade do entendimento já lida com uma série de processos heterogêneos entre si - ‘elementos heterogêneos do conhecimento’ – e não há de antemão nenhuma garantia de síntese. A 116 estrutura teórica de Kant prevê esta dicotomia para fundar seu discurso. É certo que tais exigências do conceito e suas subtilidades em contraste com a intuição criam o pano de fundo para um longo e árduo processo do conhecimento. Estabelece-se assim um campo de forças que demanda configurações para sua resolução, em sentido determinante: Assim, o critério da possibilidade de um conceito (não do objeto deste) é a definição, em que a unidade do conceito, a verdade de tudo o que dele pode ser imediatamente derivado e, por fim, a integralidade de tudo o que dele se extraiu, constituem o que é requerido para a elaboração de todo o conceito; do mesmo modo, também o critério de uma hipótese consiste na inteligibilidade do princípio de explicação admitido, ou na sua unidade (sem hipótese subsidiaria), na verdade das conseqüências que dele derivam (concordância das conseqüências entre si e com a experiência) e, por fim, na integralidade do princípio explicativo em relação a estas conseqüências, que reconduzem a nada mais nada menos do que o que foi admitido na hipótese e reproduzem analiticamente a posteriori o que foi sinteticamente pensado a priori e com elas concorda. (CRP B 114,115) Para o conhecimento, um limite pode encerrar duas acepções; lugar até onde algo se inscreve, e, a resistência máxima a qual algo pode se manter íntegro. O ponto limite de integridade de um conhecimento encontra-se em sua forma conceitual empírica, e o que desta forma pode-se ainda, em concordância com o intuído, deduzir ou inferir. Tendo este limite respeitado, a forma hipotética do conceito se apresenta determinante, caso este limite seja impossibilitado pela intuição, certamente o conceito se mostrará meramente hipotético e sua aplicação substituída, requerendo um novo esquematismo. O conceito é uma função delimitada onde se inscreve um conhecimento. As confirmações empíricas a depender de seu resultado determinam ‘de fora’ a possibilidade de se manter representações sobre seu núcleo. A forma hipotética de um conceito é sempre vazia, a possibilidade do conhecimento reside portanto igualmente em um intercâmbio entre esquemas conceituais e intuições. Assim, pode alguém pensar no conceito de ouro, além do peso, da cor, da tenacidade, ainda a propriedade de não enferrujar, enquanto outro talvez nada disso saiba. Utilizam-se certos caracteres apenas na medida em que são suficientes para distinguir; novas observações, por sua vez, fazem desaparecer alguns e acrescentam outros; portanto, o conceito nunca se mantém entre limites seguros. (CRP B 756) A condição do conhecimento sob um fundamento heterogêneo resulta em uma 117 estrutura que não pode descartar um colapso ou mesmo fracasso dos limites estabelecidos para um conceito. O paralelo com a estrutura das ciências fica evidente, assim como a possibilidade última para qualquer tipo de conhecimento – dentro de um leque que vai da perfeição lógica de um objeto (Lógica A 46) até seu colapso – estar alicerçada na capacidade da apercepção em trazer sínteses ao nível de nossa consciência. Porém, achamos que o nosso pensamento sobre a relação de todo o conhecimento ao seu objeto comporta algo de necessário, pois este objeto é considerado como aquilo a que faz face; os nossos conhecimentos não se determinam ao acaso ou arbitrariamente, mas a priori e de uma certa maneira, porque, devendo reportar-se a um objeto, devem também concordar necessariamente entre si, relativamente a esse objeto, isto é, possuir aquela unidade que constitui o conceito de um objeto. (CRP A 104, 105) Ora esta unidade da regra determina todo o diverso e limita-o a condições que tornam possível unidade da apercepção, e o conceito dessa unidade é a representação do objeto, que eu penso mediante predicados [...] (CRP A 105) Todo conhecimento exige um conceito, por mais imperfeito ou obscuro que possa ser; este conceito é, porém, quanto a forma, algo universal e que serve de regra. Assim o conceito de corpo, segundo a unidade do diverso que é pensado por seu intermédio, serve de regra ao nosso conhecimento dos fenômenos externos. (CRP A 106) O que queremos ressaltar aqui é que, para a apercepção, uma lei da natureza se apresenta não como um objeto, mas como uma teoria. Ou seja, ela não é objetiva enquanto algo presente no mundo, mas enquanto um juízo de juízos sobre uma experiência, e obviamente, corre todos os riscos de uma hipótese, como Kant ressaltou. O objeto de um conceito empírico surge para a apercepção como um objeto real, como ‘coisa’, não deixando por isto de ser um juízo: Um juízo é a representação da unidade da consciência de diferentes representações, ou a representação da relação das mesmas, na medida em que constituem um conceito. (Lógica A 156) O conhecimento possui exigências a priori, ao mesmo tempo em que o conceito possui limites de aplicação, e o apreendido, determinação alguma. A hierarquia implicada nesta estrutura, diremos mesmo do estatuto da Gemüt, possui uma disciplina a qual não podemos nos desviar, para termos acesso ao menos a uma experiência qualquer. O caso limite de uma experiência coincide com a incapacidade do regramento. 118 E este se torna um limite fundamental para qualquer experiência que um sujeito por ventura possa ter. O caso de não haver regramento, de não haver determinação, acarretaria a simples falta de conteúdo para a autoconsciência: Tornar-se-ia essa relação, para nós, sem dúvida, uma intuição vazia de pensamento, mas nunca um conhecimento, portanto, tanto como nada. (CRP A 111) Estas, tão pouco, pertenceriam à experiência alguma; ficariam, por conseqüência, sem objeto e apenas seriam um jogo cego de representações, isto é, menos do que um sonho. (CRP A 112) Todo conhecimento bem como um todo do mesmo tem que ser conformes a uma regra. (A falta de regra é ao mesmo tempo a irrazão). (Lógica Ak113) O limite imposto pela apercepção apresenta-se como a condição última para o sujeito, independente de vir a confluir legalidades, a apercepção se coloca como uma condição originária. Seu cumprimento significa que um dado se enquadrou em uma de suas inúmeras possibilidades que abordamos ao longo destes dois capítulos. Seu descumprimento implica inexistência, ‘menos que um sonho’, ‘tanto como nada’. 5.1 Pensando o fenômeno musical a partir de um modelo recognitivo do conhecimento. Ao inserirmos o objeto musical em uma perspectiva estética típico kantiana, resulta que o juízo estético puro excluiria, por força de seu estatuto, as dimensões determinantes deste objeto no ajuizamento da beleza. Estaria excluída a experiência do material e toda uma série de referências objetivas que ao fim não podemos subtrair sem que se perca o próprio objeto em questão. Se aderirmos ao modelo do gosto puro ficaríamos assim irremediavelmente atrelados a um estatuto, que como já avaliamos, não é capaz de se ligar de modo direto, ou mesmo interessado, aos conteúdos das predicações feitas sob o material sonoro, base audível para a experiência musical. Neste sentido, nada do musical estaria sendo especificado, ligado ou comprometido no ajuizamento da beleza, e apenas a estrutura do gosto novamente reiterada. O modelo adotado atrairia os problemas originais do estatuto estético kantiano que vimos no capítulo anterior. Se partimos do modelo recognitivo referido ao conhecimento e aos objetos 119 empíricos em geral, cumprimos, inicialmente, com uma exigência da apercepção, de promover uma síntese em sentido determinante. Isto já assegura um lastro fenomenológico com aquilo que podemos predicar enquanto um objeto musical e uma intuição correspondente. Escapamos assim de certos embaraços que o juízo da beleza possui em relação à estrutura da apercepção, pois não parece cumprir nenhuma das exigências postas na primeira Crítica, e como vimos, nos limites ali traçados, uma intuição que não seja regrada, um conteúdo que não cumpra uma síntese pelo juízo seria como ‘um nada’ ou ‘menos do que um sonho’. Resta nesta equação uma origem do desprendimento deste sentimento para uma exibição na apercepção sem contudo contar com qualquer exigência anteriormente estabelecida pela própria apercepção, visto que o estatuto do juízo da beleza não propõe nenhum tipo de abstração de um objeto, mas um estatuto que escapa da objetividade anteriormente à sua determinação. Vimos, com efeito, que os conceitos são totalmente impossíveis, e nem podem ter qualquer significado, se não for dado um objeto ou a esses próprios conceitos ou, pelo menos, aos elementos de que são constituídos e, por conseguinte, não se podem referir a coisas em si (sem considerar se nos podem ser dadas e como); vimos, além disso, que a única maneira pela qual são dados objetos é uma modificação da nossa sensibilidade e vimos que, por fim, os conceitos puros a priori devem ainda conter, além da função do entendimento na categoria, condições formais da sensibilidade (precisamente do sentido interno), que contém a condição geral pela qual unicamente a categoria pode ser aplicada a qualquer objecto. (CRP: B 178,179) Se abdicarmos destas exigências do conhecimento a considerar a estrutura estética da beleza, esta, dado as exigências para toda a apercepção, pareceria tratar apenas de um estatuto particular de um uso autônomo do juízo de gosto, independente de toda e qualquer ação normal das faculdades entre si, mas um vôo solo que diria respeito apenas a si mesmo, e não a qualquer construto humano como objetos de arte. Em uma anamnese de escutas musicais, seria verdadeira uma experiência onde tendemos a excluir os dados objetivos e os juízos que empreendemos sobre os dados musicais a dar espaço para um juízo reflexionante? Ou diferentemente, nossa constante atenção na obra faz com que interpretemos cada vez mais as séries de eventos de modo que cada subdivisão tome formas cada vez mais significativas para nós e a forma musical como um todo se torne cada vez mais compreendida através das escutas? 120 A segunda hipótese nos parece mais plausível e acessível, inclusive, um acesso que consta em trabalhos da psicologia como de Bigand e Pineau (1996) e em diversas disciplinas musicológicas de análise como vemos por exemplo em Falcón (2010). A primeira hipótese, menos provável, necessitaria ainda de um longo trabalho analítico sobre a relação entre juízo de gosto e objetos, em sentido pré-filosófico, para então repensar o estatuto estético que toma apressadamente o sentido do desinteresse e o transporta até um estatuto que o torna inefável. Diferente disso, nos apoiamos em uma experiência imediatamente reconhecível e de fácil reivindicação e comprovação. Porém esta regra empírica da associação, que se tem de admitir universalmente, quando diz que tudo na serie de acontecimentos está de tal modo sujeito a regras, que nunca sucede alguma coisa sem que tenha sido precedida por outra a quem sempre segue, esta regra, considerada como lei da natureza, pergunto: Sobre o que repousa? (CRP: A 112,113) Segundo os meus princípios, esta afinidade é bem compreensível. Todos os fenômenos possíveis pertencem, como representações, a toda autoconsciência possível.” (CRP: A 112,113) Enquanto um fenômeno compreendido pela autoconsciência, a música lança mão de sínteses que devem ser trazidas a uma exibição esquemática de acordo com o modelo recognitivo, o modelo clássico do conhecimento traçado na primeira Crítica. Creditamos ao estatuto do juízo determinante e seus princípios um fundamento consonante à prática musical instrumental clássica. Porém a possibilidade, mesmo a necessidade destas categorias, repousa sobre a relação que toda a sensibilidade, e com ela todos os fenômenos possíveis, tem com a apercepção originaria, na qual tudo necessariamente deve estar conforme às condições da unidade completa da autoconsciência, isto é, deve estar submetido às funções gerais da síntese, a saber, da síntese por conceitos, na qual unicamente a apercepção pode demonstrar a priori a sua identidade total e necessária.” (CRP: A 111,112) Os problemas levantados no capítulo I não dão esclarecimento quanto a remetemos à estrutura recognitiva conteúdos musicais por meio de regramento. Isto vem reforçar nossa decisão sobre o parágrafo §9 da terceira Crítica em interpor um regramento anterior à ação do juízo de gosto puro. O intuito é duplo. O primeiro seria resguardar um discurso sobre a beleza assentado em uma possibilidade de a beleza ser dita de um objeto de arte, o que o estatuto do juízo da beleza torna ambíguo ou mesmo impossível. O segundo seria o de manter uma correção na legalidade do estatuto da beleza em relação ao estatuto maior da apercepção, que exige sínteses para 121 que uma zona de inconsciência seja superada. A possibilidade de que um gosto venha ser puro, a despeito de qualquer outro processo, regramento, referencia ou finalidade cumprida, desautoriza a apercepção de ter para si qualquer conteúdo, inviabilizando até mesmo uma investigação transcendental inicial, pois não haveria um conteúdo pré-filosófico a investigar. Na próxima seção trataremos de demonstrar como uma experiência musical conta com todas as distinções lógicas, sínteses e exibições comuns a qualquer conhecimento trivial, e como estas relações se tornam necessárias para que venhamos a ter uma experiência qualificada enquanto musical, e o quanto sua condição de possibilidade não pode dar lugar ao estatuto do juízo estético sem que tudo o que confere ‘musicalidade’ ao musical se perca. 122 Seção 2 Extrato lógico-musical “Da análise do princípio lógico constituinte da experiência musical instrumental clássica" 123 Capítulo III Análise do estatuto musical Alle Gestalten sind ähnlich, und keine gleichet der andern; Und so deutet das Chor auf ein geheimes Gesetz, Auf ein heiliges Rätsel 35. (J.W. Goethe) Este capítulo trata de elucidar um vínculo entre o objeto musical e uma regra de conceituação dada pela estrutura do juízo determinante, universalmente válida para qualquer conteúdo. Empreendemos esta análise por compreender que uma experiência musical, do ponto de vista epistemológico, deva partir do ponto comum de uma estrutura geral do conhecimento em conexões lógicas, se assim entendermos que o modelo transcendental seria o equivalente mais próximo do paradigma clássico musical. Deduz-se assim que os elementos que identificamos em uma escuta possuem uma condição a priori dada pelo entendimento, e esta, reversamente, preenche a faculdade que condiciona a possibilidade para a experiência musical. Tal posicionamento incorre em um desacordo com certos princípios do juízo da beleza, e com o juízo estético de modo geral, que travam um estatuto bastante particular e diferenciado para os objetos da arte e para a música. Tal desacordo não passa despercebido por Kant que dedica um parágrafo na terceira Crítica a resolver esta questão: §9 Investigação da questão, se no juízo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou se este ajuizamento precede o prazer. Nosso trabalho se situa, intencionalmente, em um lugar preciso do argumento kantiano. Estamos temporalmente localizados na precedência do juízo do objeto sob o juízo de gosto. Posição que Kant considera impossível: Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da 35 Todas as formas são similares e nenhuma é a mesma; E assim o coro aponta para uma lei secreta, para um enigma sagrado. 124 representação, pela qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (CFJ: 29) Se, como Kant indica, a beleza se vincula apenas a um estado subjetivo provocado por um jogo no interior de uma estrutura de ‘conhecimento em geral’, como explicar experiências que dizem respeito de partes de um objeto musical, de partes enquanto belezas, de totalidades enquanto belezas, além de relações musicais que podemos inclusive apontar em uma partitura, aspectos objetivos e comunicáveis por conceitos que não estão contemplados pelo estatuto do juízo estético? Para demonstrar a precedência do ajuizamento lógico em relação ao estético – identificando a música não apenas a um sentimento de prazer em si (é belo!) – nossa análise se detém no cumprimento dos princípios lógicos da primeira Crítica e da Lógica (2003). Não se trata de ensaiar uma união entre as esferas lógica e estética, mas aplicar heterodoxamente o horizonte lógico, desautorizando assim qualquer precedência estética para a análise que se segue. A condição de identificação que se impõe ao nosso objeto musical passa a ser a mesma do entendimento em geral: “[...] o entendimento é a faculdade de pensar, quer dizer, de submeter a regras as representações dos sentidos” (Lógica A 2). Nosso trabalho se resume em escrutinar a natureza de uma regra das representações dos sentidos pertinentes à experiência musical. A tarefa passa a ser uma tarefa lógica, “visto que a tarefa da lógica é, como observamos, tornar distintos os conceitos claros [...]” (Lógica A 94). Vamos nos ocupar em ‘tornar distintos’ estes conceitos que se encontram implícitos em nossa escuta, e convém começar da parte mais geral de qualquer distinção, de seu horizonte. Determinar um horizonte (lógico, prático ou estético) a um dado objeto não é simples. Por exemplo, o horizonte lógico de um grupo de fenômenos como os objetos ‘visuais’, ‘técnicos’ e ‘sem pretensões artísticas’, possui uma confluência de tipo complexa. Mesmo neles o horizonte lógico não consegue exaurir todas suas determinações, mesmo que não intrínsecas ao seu componente objetivo. Esta confluência pode ser observada em um simples conceito empírico como no caso de uma garrafa. Para uma dada garrafa, como retirar o horizonte prático de sua utilidade, e mesmo o estético de nosso julgamento, e como não o conceber enquanto um conceito 125 lógico? Problemas análogos se passam também com o objeto musical, por exemplo, em uma música onde em seu conceito resida uma ‘fruição graciosa das gentes em ambientes de convívio’. De outro lado, uma música dita pura, música pela música, pouco contará com a esfera prática e recairá portanto com maior peso em suas determinações lógicas ou estéticas. Podemos dizer que há uma idiossincrasia pertinente a cada produto da consciência, e que estes estabelecem uma confluência específica entre horizontes. Em uma análise da distinção lógica do objeto musical temos que demonstrar como as definições: claro e distinto, podem concorrer para os conceitos implicados na escuta musical, ou em caso contrário, se não seriam estes ainda indistintos: “se estamos conscientes da representação inteira, mas não do múltiplo que está nela contido, então a representação é indistinta.” (Lógica A 42) A distinção lógica é uma das perfeições do conhecimento aplicada a um conteúdo sensível: “esta é a distinção na intuição, onde, por meio de exemplos, um conceito pensado abstratamente se vê apresentado ou elucidado in concreto.” (Lógica A 50). Tal característica se explicita sob o condicionado da relação de conhecimento, ou seja, o objeto: “se temos consciência de que o objeto intuído é uma casa, devemos necessariamente ter também uma representação das diferentes partes desta casa – janelas, portas etc.” (Lógica A 42) Tal critério prevê uma relação de tipo todo/parte, ao qual em uma percepção distinta de um objeto musical deverá ser igualmente identificado, em sua forma, funções pertinentes a esta relação todo/partes, afinal a porta por si mesma é uma função. Ainda em uma posição intermediária, podemos pensar no artesanato, e em atividades técnico-criativas em geral. Notamos que em todas estas atividades, terminologias especializadas emergiram atreladas a ações, a distinções sensíveis, a ferramentas, a efeitos e categorizações. Tal incremento das atividades denota um caráter distintivo que foi paulatinamente tomando lugar. No caso musical não é diferente, sua terminologia especializada, mesmo com variantes através dos tempos, atesta sempre uma especialização e distinção da escuta, dos elementos e das ferramentas. Podemos observar, por exemplo, na música medieval, uso de terminologia para combinações simples entre notas: Virga (1 nota), Clivis (2 notas, descendente em grau conjunto), Pes (2 notas, salto ascendente), etc. Outro tipo de diferenciação ocorre na música barroca, na correspondência entre 126 contornos melódicos e os afetos, e sobretudo na eleição dos modos maiores e menores e todas as distinções que decorreram na música tonal. A emergência de termos mais abstratos, sobretudo das técnicas de composição, vão tomando lugar: motivo, tema, frase, seção, desenvolvimento, contra-tema, variação. E então, designações da forma enquanto portadoras de partes cada qual funcionalizadas, como a missa e a sonata. Longe de comprovar um vínculo conceitual através de um simples paralelismo, embora se mostre bastante conseqüente, ilustramos aqui apenas os critérios mais gerais que permeiam o lógico. Apenas este caráter já é suficiente para que ascendamos de uma análise da afecção subjetiva para condições objetivamente válidas. De um lado, enquanto distinção sensível, dada em uma experiência do objeto musical intuído, e de outro enquanto distinção intelectual, “distinção em conceitos ou distinção do entendimento” (Lógica A 44), o objeto musical deve conter regramentos que possibilitaram a qualificação da escuta e a forma dos objetos musicais. Não se trata de encontrar um conceito puro ao qual corresponda uma possibilidade a priori da musicalidade, nem de uma análise do ‘conceito de música’, mas sim da constituição de um objeto, do uso empírico do conceito a constituir o objeto musical em uma experiência. Partimos deste lugar, da escuta de um objeto musical, constituído por uma regra, aplicada contingencialmente ao fenômeno sonoro, ancorado todavia em uma capacidade universal a priori de significarmos objetos, e que apenas no caso é referido ao musical. 127 1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitos para uma experiência: a recognição aplicada a objetos. Começamos recorrendo novamente ao argumento de Dieter Henrich. Como interpretação geral do papel do entendimento Henrich destaca que tanto na primeira quanto na segunda edição da primeira Crítica o entendimento era definido em uma dupla via; enquanto uma possibilidade e validade a priori para a experiência, e enquanto via exclusiva de aplicabilidade para objetos empíricos. (Klotz 2007:148) O fato legitimador da dedução acaba por ser toda e qualquer experiência empírica. Poder-se-ia demonstrar, a partir da primeira Crítica, que para todo objeto dado em uma apercepção categorias lógicas do entendimento poderiam não somente ser identificadas sob análise36, mas seria forçoso deduzir-se uma estrutura transcendental. Se a condição inicial é que haja um objeto em uma apercepção, então cumprimos esta condição para o objeto musical. Neste sentido a possibilidade de nomearmos eventos musicais e suas partes constitutivas viria a contribuir para esta atestação de ser o objeto musical também um fato legitimador para o entendimento. Para explorar um pouco este caráter objetivo vamos montar um rápido paralelo entre o que uma linguagem especializada faz e diz e a possibilidade de se criar e nomear. Obviamente estas linguagens surgem de maneira sui generis de acordo com as necessidades e possibilidades vigentes em um dado contexto, mas queremos apenas demonstrar certa ligação entre uma teoria do conhecimento e a nomeação de objetos no sentido de ordenar uma atividade em uma nomenclatura. Se pensarmos que a nomenclatura vem a sistematizar os objetos de uma atividade, ou, categorizar procedimentos, ela não faz nada mais nada menos do que processar uma distinção lógica, ou seja, é um componente conceitual. Este será apenas um caminho que nos levará a compreender como o termo ‘objeto’ pode ser facilmente utilizado para designar fenômenos físicos, sonoros ou visuais, assim como os musicais e pictóricos, e como deste estado geral da 36 “O jurista tem que demonstrar objetivamente seus enunciados sobre os fatos relevantes acerca da origem da posse (o que acontece por meio de documentos e depoimentos). Contudo, a dedução transcendental só pode apelar para um certo ponto de vista – a perspectiva não-humiana da "reflexão – para fazer valer seus "fatos" legitimadores. Assim, não surpreende que a concepção do apelo para um "ponto de vista" fundamental para a filosofia transcendental tenha se tornado central para a discussão metodológica já pouco tempo depois da publicação da Crítica da Razão Pura.” (Klotz 2007:164) 128 objetividade muitos conceitos empíricos se somam. Compreendendo uma nomenclatura enquanto termo conceitual, vejamos como nomes e conceitos se comportam. Como nos lembra Deleuze (1992), conceito, hoje, pode se referir à vanguarda da produção de bens de consumo, da moda e do design. Existe, mesmo que Deleuze discorde, um modo de pensar que legitima tal uso do termo, e de todo, difere de outros substratos que definiriam ‘conceito’ contrária ou contraditoriamente. O que nos importa aqui é que mesmo para bens de consumo, mesmo para dados sensíveis, uma nomenclatura é criada, e independentemente do modelo epistemológico que estejamos discutindo, um modelo conceitual está sendo utilizado. Vamos pegar um exemplo de Kant, o cão. Pensando no cão enquanto um objeto, percebemos certas características: ele é atual, único, individualizado por marcas sensíveis próprias. Tal experiência não pode ser estendida a nada mais, se não a ele mesmo. O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (CRP B 180) Como podemos ver, o que há de conceitual no objeto ‘cão’ não diz respeito à sua individuação mas à possibilidade de universalização. Mesmo um conceito empírico tão restrito como o de cão comporta uma universalidade. Esta habilidade conceitual nos permite reconhecer seres como ‘cães’, e até produzir uma imagem de ‘cão’ pela imaginação. O conceito possui assim um caráter de regra. O conceito, por si só, faz impregnar uma regra em meio a um diverso da intuição, mas não é capaz de preencher este espaço lógico, o preenchimento só pode ser dado pela sensibilidade. Poderíamos pensar que o conceito seria uma espécie de ‘fôrma’ na exata proporção do objeto que se exibe, onde sua massa seria dada pela sensibilidade, faculdade que como bem sabemos não é capaz de fundar uma representação. Para termos uma experiência de um objeto em uma hipotipose esquemática, é necessário proceder por síntese da apercepção: “a síntese incube tornar distintos os objetos” (Lógica A 95). De acordo com a epistemologia dominante no seu tempo, a investigação 129 kantiana das condições de objetividade pressupõe que os dados básicos de todo nosso conhecimento da realidade são "sensações" […] O conceito de objeto inclui condições de constância que as sensações não têm; em particular, um objeto pode continuar o mesmo, enquanto que os dados que o apresentam são alterados. Além disso, a referência a objetos exige mais do que apenas a consciência de apresentações: ela visa à objetividade, distinguindo representações verídicas de "meras" representações. (Klotz 2007:148) É portanto na medida em que um conceito impõe uma regra que uma objetividade é assegurada, e nesta medida permite relações unificadas em gênero e espécie. Sempre quando houver tal relação de síntese determinante a apercepção terá diante de si um objeto e este é todo o fundamento da capacidade da recognição. Podemos verificar este mesmo mecanismo que descrevemos para o nome ‘cão’ em nomenclaturas musicais como, ‘tema’, ‘minueto’, ‘apojatura’, entre outros. Estes conceitos podem ser formados mesmo em grupos ínfimos de notas, são exibições conceituais no sentido de conterem uma função distinta no interior de um objeto. Kant é de opinião contrária a esta possibilidade que antevemos, em dois sentidos; uma aliada à sua concepção não-conceitual, excludente do campo lógico a qual o estético se inscreve, e em outro sentido, especificamente para a música, Kant é de opinião que os dados sonoros sensíveis não poderiam constituir uma distinção intelectual, por um empecilho de sua própria natureza: Kant sustenta que a sensibilidade à cor ou à tonalidade é útil apenas para apreciação estética e não é útil para a cognição dos objetos da natureza em qualquer outro aspecto (embora certamente pudéssemos tergiversar aqui, no caso da cor, pelo menos). O fato de que essas suscetibilidades não são cognitivas faz com que a questão do modo como poderiam ser formais fique em aberto. Sabemos que sensações ordinárias, que não são em si formais, podem ser apreendidas em um conceito do objeto, e, assim, formalmente, mas e a respeito de sensações não-cognitivas? (Weatherston 1996:59) Uma vez que Kant prossegue negando que a música é uma bela arte, parece que ele está assim contestando nossa capacidade de apreciar a forma de uma composição musical. (Weatherston 1996:59) O artigo de Weatherston se dedica mais longamente à consideração kantiana 130 sobre o som musical37 (tom38). Tais considerações kantianas como vemos na citação, impõem um crivo bastante rígido, decorrente das características do ‘tom’ definidas por Kant enquanto impossíveis de serem regradas, e por isto se tornaria impossível percebermos uma ‘forma’ musical a partir destas características. Para Kant nossa percepção se perderia no decorrer do tempo e centrar-se-ia apenas nas características sensórias do ‘tom’ em si. Uma vez que Kant alegou que as artes do tom "estão preocupadas com nada mais do que a proporção dos diferentes graus de disposição (tensão) do sentido pertencente a sensação” [§ 51 (324)], essas diferenças inteligíveis devem então ser ligadas com as características específicas do ouvido, que podem, é claro, difererir entre os indivíduos. Estas 'diferenças inteligíveis' iriam assim reduzir-se a um mero efeito, que não pode servir como base para a composição. (Weatherston 1996:60) Kant está dizendo que não é possível pensar no ‘tom’ como um fenômeno extensivo, apenas intensivo. Isto quer dizer que para ele o ‘tom’ só possui qualidade, e não uma quantidade. Enquanto princípio sintético da categoria da qualidade a intensidade postula o seguinte: “em todos os fenômenos o real, que é o objeto de sensação, tem uma grandeza intensiva, isto é um grau.” (CRP A 166). O tom, de acordo com Kant, não seria capaz de qualquer outra determinação, constitui-se como um ‘efeito’ produzido por ondas mecânicas ao qual nossa mente não é capaz de calcular, mas apenas produzir uma ‘sensação’ unificada. Tal característica impossibilitaria a uniformização da aparição destas qualidades sob qualquer atributo objetivo, ou seja, retira seu pertencimento a uma estrutura de recognição. Weatherston acredita que a qualificação do tom musical como mera sensação incapaz de cognição vem no sentido de extremar o caráter não-conceitual que Kant imprimia à música. A justificativa estaria na própria materialidade sonora, de difícil simbolização e com grande lastro da sensação. Estaria mais propícia ao agrado do que à beleza, embora com o auxílio da poesia ela pudesse se dignificar. 37 Advertimos que o termo ‘som’ abrange na verdade todo o leque perceptivo humano, de 20 Hz a 20 kHz. E desde o fim da primeira metade do século XX podemos incluir toda esta faixa dentre o material musical, independente de sua organização, escalar ou não. Diferente do século XVIII, onde havia um rígido crivo entre os sons musicais e não-musicais. 38 Kant não define o termo ‘Ton’. "Se Kant tivesse analisado o som [tone] enquanto frequência [pitch] e timbre, ele teria achado muito mais fácil ver como as formas musicais são conscientizadas." (Weatherston: 64). De acordo com o autor o próprio caráter sonoro, dividido entre ‘nota’ (frequência) e ‘timbre’ (harmônico) inviabilizaria a própria relação estabelecida entre cor e tom, e auxiliaria a pesquisa kantiana a reconhecer que a forma musical se dá pela inter-relação entre as notas sucessivas. 131 Pois embora ela fale por meras sensações sem conceito, por conseguinte não deixa como a poesia sobrar algo para a reflexão, ela contudo move o ânimo de modo mais variado e, embora só passageiro, no entanto mais íntimo; mas ela é certamente mais gozo que cultura [...]. (CFJ: 218) No que compete à nossa investigação, podemos nos apoiar tanto em tratados acústicos/musicais como o de Helmholtz, onde relaciona a percepção estética de intervalos sonoros à quantidade e relação de parciais contidos no som (Helmholtz 1954:370), ou mesmo na própria história da teoria musical, que sempre qualificou e nomeou suas operações de modo a reconhecermos relações musicais objetivamente (Christensen 2002). Com isto concluímos que não é um argumento suficiente a crença de que o sonoro perfaça apenas um critério qualitativo, de um percepto, que não se adeque a um critério recognitivo. O sonoro, pode ser compreendido, classificado e reconhecido em especificações bastante ínfimas se adequando a um caráter recognitivo sem maiores considerações. 1.1 – Análise da constituição de objetos visuais. Comecemos por um exemplo de fácil acesso, analisando como se constitui um objeto visual, e nele a ação e o papel da sensibilidade, do entendimento e do juízo, de modo que esta estrutura se mostre universalmente válida. Vamos considerar um conjunto de garrafas, todas produzidas em plástico, com capacidade entre 300ml e 500ml, confeccionadas para armazenar água potável. Comecemos pelo produto final e acabado exibido pela apercepção. O que temos é justamente a garrafa exibida e representada pela consciência, aqui exposta em uma fotografia. Consideremos a garrafa in concreto. Diante de nós temos uma existência em uma forma singular, admitida enquanto garrafa, conceito que pode ser aplicado a uma diversidade de objetos, como podemos observar pelas demais garrafas (Img. A)39. Como foi possível a confecção transcendental deste objeto na forma mesma como o vemos? Real, no mundo exterior, com uma forma determinada, com notas 39⇥ Ver anexo. 132 individualizantes, singular e contendo uma relação todo/parte. O objeto em questão só pode ser fruto de uma síntese entre sensibilidade e entendimento. Trata-se portanto do fruto de um juízo de tipo determinante, onde seus componentes se ligam lógica e necessariamente a um princípio transcendental, que subsumiu o múltiplo da sensibilidade. Podemos com assertividade proclamar; ‘é uma garrafa!’ e estender nosso juízo a uma comunidade de falantes. Porém, por não se tratar de um conhecimento ao modo de um axioma da ciência, temos que admitir que estamos diante de um objeto empírico, portanto no uso empírico de um conceito. O conceito empírico traz em si uma pequena contrariedade, qual seja, de conter uma universalidade em uma particularidade sensível, ou seja, um objeto que corresponda a um conceito empírico terá que atender a demandas de duas faculdades em uma proporção que não é a mesma para os axiomas da ciência: Mas, se abstrair da forma do espaço a intuição de uma casa, esta mesma unidade sintética tem a sua sede no entendimento e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, ou seja, a categoria da quantidade [...] (CRP B 162) Em um objeto o núcleo conceitual encontra-se sediado na categoria da quantidade, e aqui está assinalada sua porção conceitual. Porém, há também sua porção sensível, por se tratar de um conceito empírico: O conceito empírico origina-se dos sentidos pela comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o entendimento unicamente a forma da universalidade. A realidade desses conceitos baseia-se na experiência efetiva, donde são hauridos quanto ao conteúdo. – Mas se há ou não conceitos puros do entendimento (conceptus puri) que enquanto tais se originam, independentemente de toda experiência, única e exclusivamente do entendimento é uma questão que a Metafísica tem de investigar. (Lógica: A 141) Kant não nos guia a ponto de narrar uma operação passo-a-passo. Nos próximos subtópicos levantaremos informações sobre a ação das categorias e dos atos lógicos mais gerais, para pensar em que medida podem ser pensados em um objeto. 1.1.1 – Análise categorial de um objeto visual. Chamamos de análise categorial a análise da mera possibilidade contida nas categorias, enquanto condição de possibilidade em aferir conteúdos a objeto. 133 Comecemos pela categoria da ‘Quantidade’. Grosso modo, esta categoria expressa o caráter universal para todo conceito (CRP B 104), e se divide em três conceitos puros que incidem sobre objetos. Temos a ‘unidade’, enquanto generalização promovida pelo conceito, que abstrai as notas individualizantes e promove uma unidade global para assim “desconsiderar as diferenças específicas entre essas instâncias” (Altmann 2007:37). A ‘pluralidade’ enquanto distingue no objeto características múltiplas contidas nele que os faz pertencer a seu conceito, e não enquanto caractere presente na própria definição do conceito, “contendo em si uma multiplicidade em função da qual podem ser distinguidos de outros” (Altmann 2007:39). E por fim a ‘totalidade’, condição de exibição de um objeto real, contendo notas individualizantes e generalizantes, sob um conceito: “qualquer composto pode ser considerado um todo, por exemplo, uma maçã” (Kant apud Altmann: 2007:41), tornando o objeto um singular em nossa experiência. A categoria da ‘Qualidade’ determina uma relação de graus que vai de 0 (negação) a um máximo possível. Sua determinação é dada por uma matéria intuitiva. O que é determinado é a sensação empírica contida num objeto, e não se trata de uma grandeza extensiva dada a priori, mas uma condição para o preenchimento de graus de sensações que perfazem uma condição de realidade do objeto empírico enquanto grandeza intensiva (CRP B 209,210). A categoria da ‘Relação’, categoria dinâmica que se relaciona à existência de objetos, diferente das categorias ‘matemáticas’ que se referem apenas “aos objetos da intuição” (CRP: §11), produz hierarquizações nos objetos, como a instanciação entre acidente e substância. Se observarmos uma série qualquer de garrafas (Img. A) o fato de serem diferentes não causa espanto, todas podem naturalmente ser compreendidas enquanto garrafas. Esta possibilidade é inerente a seu conceito, que consegue facilmente separar o rótulo como componente não substancial. A variação de ocorrências enquanto estabelece uma relação entre sujeito e predicado, em vários níveis, condiciona-se às possibilidades contidas na categoria da relação. Por último, a categoria da ‘Modalidade’, também uma categoria dinâmica, se dirige à ação das categorias em relação ao próprio juízo, “cuja característica consiste em nada contribuir para o conteúdo de um juízo, e apenas se referir ao valor de cópula em relação ao pensamento em geral.” (CRP A 74). 134 1.1.2 – Atos lógicos, gênero e espécie: análise lógica sob o exemplo das garrafas. Além das categorias do entendimento os atos lógicos seriam funções lógicas de relevante importância, são estes atos: comparação, reflexão e abstração (Lógica A 145). 1) a comparação <Komparation>, ou seja, o cotejo <Vergleichung> das representações entre si em relação com a unidade da consciência; 2) a reflexão <Reflexion> , ou seja, a consideração <Überlegung> do modo como diferentes representações podem ser compreendidas em uma consciência; e finalmente: 3) a abstração <Abstraktion>, ou seja, a separação <Absonderung> de todos os demais aspectos nos quais as representações dadas se diferenciam. (Lógica A 145) Tomemos o conjunto de garrafas (Img. A). Estas se dispõem em uma ordem fixa. Além de uma ordem fixa, parecem mesmo compor uma ‘organização’. Para desvendarmos qual seja esta organização devemos operar um trabalho de comparação, tal ato necessita de um critério. Tal critério só é possível por estar a garrafa já previamente ordenada sob categorias, basta agora que destaquemos neste objeto características dadas em seu conceito e comparar estas características por cada garrafa singularmente. No caso da imagem A utilizamos o seguinte critério: a forma do ‘corpo’ das garrafas (Img. D). Na imagem A, se percorremos o sentido da direita para esquerda partiremos da garrafa mais homogeneamente cilíndrica, chegando a um formato alongado em cima e mais curvo embaixo. Se seguirmos o caminho inverso o fim seria a garrafa mais homogênea. Este é um critério progressivo, pois ele interpreta as posições como um percurso gradual da série, e assim interpretamos as ‘deformações’ que vão acontecendo pela série como uma ocorrência advinda da necessidade de fim a que a forma inicial deverá desenvolver ao fim da ordem das garrafas. Notemos também que outros dados se prestam à comparação. O padrão de curvas que adornam a garrafa caminham (da direita para a esquerda) do homogêneo em direção a variações maiores; de anéis retos, anéis curvos, anéis intercalados por espaços maiores, anéis curvos interpolado por outra forma, aparição de formas curvas não circundantes da garrafa, e enfim triângulos (Img. A). Dentro desta perspectiva progressiva podemos observar que a ordem das 135 garrafas aqui estabelecida (Img. A) não foi do padrão do adorno dos anéis. Se a tomamos como critério não se poderia pensar em uma série linear, pois, o padrão triangular ressurgiria na última garrafa, contrariando a progressão. No caso, o corpo da garrafa abstraído de seus adornos é quem conduz a ordem; de um cilíndrico homogêneo, por um achatamento no meio, um achatamento mais agudo no meio, um achatamento no gargalo, um afunilamento do gargalo e enfim a um pescoço cilíndrico (Img. A). Caso escolhamos justamente os adornos como critério teleológico de ordenação das garrafas teríamos outro resultado (Img. B). Os exemplos A e B ilustram comparações sob um critério, no caso um critério que chamamos de progressivo, mas outros critérios de comparação podem ser empreendidos. Na imagem C temos uma ordem intencionalmente aleatória. Isto não impede que façamos comparações entre uma garrafa e outra, ou que estabeleçamos hierarquias e grupos diferenciados para cada critério que elejamos. Podemos destacar dentro deste mesmo grupo diversos modos de comparação. Temos C1 para o caso de adornos triangulares, temos C2 para base achatada, C3 para tampas roxas e C4 para adornos curvos. O mesmo processo podemos inclusive aplicar individualmente a uma garrafa. Peguemos a imagem D. Posso estabelecer as seguintes divisões internas: Tampa, bojo, corpo, base e pé. Como a garrafa é transparente as linhas onduladas tendem a formar figuras ‘em fase’ ou pelo menos em planos diferenciados. O corpo (D1) possui duas partes, um espaço liso e um estriado. A extremidade superior do corpo se iguala à extremidade inferior, porém em uma relação de inversão40 (cabeça-para-baixo) perfeitamente simétrico. A base (D2) é também uma estrutura delimitada (em sua parte superior) por uma linha reta, e em sua parte inferior composto por seções (pés), como pétalas em referência a um centro, moldado por um eixo na forma de uma erupção pontiaguda apontando ao interior da garrafa, em direção a tampa. Ainda constituindo a base temos certas perturbações do material, em uma curvatura produzida pelos pés, no exato espaço entre um pé e outro, o que causa uma distorção particular da luz nesta região. O bojo (D3) se constitui como uma cúpula que é subitamente estreitada para dar 40 Embaixo, temos a linha que subdivide o espaço liso e embaixo desta linha uma curva. Em cima, temos a linha que subdivide o espaço liso e acima desta linha uma curva. 136 forma ao que será parte da tampa, e a tampa dispensa maiores comentários, a não ser que delimita fortemente uma simetria e direcionalidade para a garrafa como um todo. Assim como fizemos com um conjunto de garrafas podemos comparar entre si as partes de uma garrafa (D4). Podemos fazê-lo com uma parte específica, como entre o corpo e a base: o corpo é dividido em duas partes; o espaço liso, o espaço estriado 41, já a base possui uma subdivisão, os pés. Sendo o corpo subdividido em tamanhos iguais, em um espaço estriado e um liso, temos uma relação de espelhamento entre estas formas porém variada quanto a sua textura (D4). Porém se compararmos todo o corpo com a base, esta constituiria uma variação mais ‘afastada’. O tamanho da base é menor e seu limite inferior não é homogeneamente cilíndrico como do corpo, mas constituído por ‘gomos’. Esta parte além de estriada é curvada mais intensamente para o interior da garrafa, e sua estrutura do centro aponta para outra região, a tampa. A garrafa como um todo (Img. D, D4), poderíamos resumir, possui variações sob um corpo cilíndrico, variando do liso ao estriado, deste ao estriado curvado, ao liso côncavo do bojo, e ao cilíndrico estriado da tampa. Todas as regras de organização se basearam em certas notas; forma, luz, volume, textura, cor e transparências. Todas condicionadas pela categoria da qualidade. O conceito reúne notas que constituem pluralidades, se alinham enquanto quantidades, e traçam a totalidade do objeto: Ora, levando em conta que, para Kant, o pensamento do objeto é sempre por representações parciais gerais (isto é, não há apreensão de uma essência individual enquanto individual), a “singularização” acaba sendo explicada pela “totalização”. Como observa Manley Thompson, para leitores familiarizados com Leibniz, a identificação entre individuação e categoria da totalidade deveria ser natural. Compreendemos assim a associação, mais uma vez no §12 da Crítica, entre a categoria da totalidade como conceito das coisas e a perfeição como exigência lógica do conhecimento: a perfeição, diz Kant, “consiste no fato dessa pluralidade em conjunto reconduzir à unidade do conceito, concordando inteiramente com este e com nenhum outro”. Isso só é possível na medida em que essa pluralidade forma um todo. Nas lições de Metafísica, Kant escreve que “muitos, na medida em que é um, é a totalidade. Essa coisa, na qual há a totalidade de muitas coisas, é um todo”. Escreve também que “qualquer composto pode ser considerado um todo, por exemplo, uma maçã. (Altmann 2007:40,41) 41 Parte inferior do corpo onde só há linhas curvas. É delimitado pela linha inferior do espaço liso e pela linha superior do pé. 137 O objeto é justamente este lugar lógico que unifica pluralidades em uma relação todo/parte. Todos estes dados a que tivemos acesso na análise das garrafas foram concebidos pelo entendimento, e estão todos referenciados a um único conceito, o de garrafa. O conceitual, condição de possibilidade do objeto, não doa nenhuma nota, pelo contrário, confere formas que fazem de uma garrafa apenas uma concreção, uma exposição possível de um conceito abstrato. Pois mesmo as condições categoriais da percepção de graus variados (qualidade) não nos dá o ‘azul’ ou o ‘forte’, apenas um lugar lógico para que um múltiplo se insira. É de fato curioso que o elemento lógico da operação opere em sentido oposto à existência real e indelével do objeto, pois que ele tende a unificar objetos muito distintos entre si, se nos ativermos à suas notas. Diferenças muito sutis de dados sensíveis podem modificar drasticamente o resultado da operação de síntese da apercepção, exibindo objetos claramente distintos. Exemplificando de modo inverso, objetos idênticos um ao lado do outro, sem conterem nenhuma nota distinta entre si, não se confundiriam à seu conceito, embora o conceito seja exibido uniformemente sem conflito entre os objetos, cada qual seria uma unidade em si, existente empiricamente. Mesmo sabendo tratar-se de garrafas, uma análise que se detém em pormenores cada vez mais ínfimos decerto nos causaria espanto, dado a quantidade de diferenças que podemos encontrar entre objetos que caiam sob um mesmo conceito. 1.1.3 – Propriedades conceituais de um objeto visual. Fizemos ver que através de dados materiais intuídos sob um objeto podemos demonstrar a atuação de juízos determinantes. Passamos agora para uma consideração acerca das propriedades conceituais contidas em um objeto. O conceitual concentra a objetividade destes fenômenos em dados estáveis à nossa apercepção, sendo assim, extraímos agora as propriedades conceituais presentes em um objeto da experiência. Nos exemplos exploramos o horizonte lógico do conhecimento, que pouco relacionamos com o prático e o estético: “pois os conhecimentos teóricos são aqueles que enunciam, não o que deve ser, mas o que é; portanto, os que tem por objeto não um agir, mas um ser.” (Lógica A 135). Porém é fácil perceber que muito conteúdo 138 prático preenche o conceito de uma garrafa, enquanto pensamos que carregam uma finalidade e uma fabricação. O que há de tipicamente determinante na forma de um conceito seria seu caráter de regra, que subsume o intuído: “de fato, o entendimento deve ser considerado como a fonte e a faculdade de pensar regras em geral.” (Lógica A 2). Em nosso exemplo não há uma regra explícita, não podemos contar com uma equação matemática que nos desse todos os casos onde se tratasse de uma garrafa. Tal possibilidade não é de todo impossível, mas, sem ela, podemos apenas aludir a uma regra implícita que nos permite identificar este objeto. O caráter conceitual é a forma, aquilo que não é uma nota visual, material, mas que possibilita que a percebamos com estas características. Porém o próprio conceito também possui ‘notas’, pois assim como podemos descrever as notas materiais de um objeto, podemos descrever as notas formais de um conceito, como o ‘peso’, contendo analiticamente o conceito de massa e o de gravidade: 1) Características analíticas ou sintéticas. Aquelas são conceitos parciais do meu conceito real (as quais já penso nele); estas ao contrário são conceitos parciais do conceito inteiro meramente possível (o qual, por conseguinte, deve vir a ser constituído por meio de uma síntese de diversas partes). As primeiras são todos os conceitos da razão, as últimas pode ser conceitos da experiência. 2) Características coordenadas ou subordinadas. Essa divisão das características diz respeito à sua conexão uma após a outra e uma sob a outra. (Lógica A 86) A análise das garrafas descreveu características sintéticas pensadas sob a síntese da experiência a qual forneceu uma rica constituição de notas. As garrafas, cada uma, subordina em seu conceito uma pluralidade de notas, enquanto as notas mesmas se coordenam uma com a outra no modo mesmo como destacamos, em séries e relações internas. Diz-nos Kant: “aquela, a agregação de características coordenadas, constitui a totalidade do conceito [...]” (Lógica A 86). Em sentido analítico falar em ‘notas’ conceituais da garrafa implica também em sua função de armazenar líquido, de ser recipiente. Tal nota conceitual é capaz de definir uma série de notas materiais sem que seja parte visível desta, seu caráter constituinte é tal que faz determinar a feitura e forma da ‘boca’ da garrafa, que nos exemplos vistos foi a única nota sem sofrer grandes variações em seu formato. Faz parte da distinção intelectual do conceito de garrafa ser um recipiente para 139 líquidos, portátil. Além de suas condições formais analisadas também o caráter prático incide enquanto parte determinante da regra e portanto da forma como o vamos compreender. A distinção lógica do conceito de garrafa é contudo limitada, e não é capaz de dar fruto a outros conhecimentos, pelo contrário, é um utensílio fabricado a partir destes conhecimentos mais sólidos. Assim, o conceito de garrafa acaba por possuir uma maior extensão prática anterior mesmo às suas determinações lógicas empíricas. Obviamente, conceitos são expressos na linguagem por termos gerais. Seria tentador supor que, correlativamente, as intuições são expressas por termos singulares. Essa visão enfrenta a dificuldade de que a concepção kantiana da forma lógica do juízo não deixa lugar algum para termos singulares. Na concepção kantiana da lógica formal, os constituintes de um juízo são conceitos, e conceitos são universais. (Parsons 2009:89) Compreendamos de forma geral que todo objeto encerra universalidades, porém, sua individuação por notas características é devida a componentes da sensibilidade, embora não sejam tão somente eles, mas a determinação específica de um múltiplo em um objeto faz com que sua expressão em qualquer juízo, qualquer comparação, abstração ou reflexão já conte com conceitos para sua expressão condicionados logicamente. O conceito de garrafa certamente encerra várias acepções. Povos se utilizam de recipientes para guardar liquido, inclusive, estes mesmos recipientes podem facilmente conter outros tipos de materiais, até sólidos como a areia. Não há dúvida de que uma moringa seja muito mais apropriada para guardar líquidos potáveis para o prazer da ingestão do que uma garrafa de plástico. Porém, a garrafa de plástico possui a praticidade de distribuição em um sistema de abastecimento global. De outro lado, e não podemos nos abster deste dado, há uma atividade especializada, o design, voltada apenas para a elaboração de sua forma material, o que explicaria a variedade de formas que encontramos, incluindo nestes o aspecto estético, pois tais utensílios visam despertar gosto. Todas estas características fazem parte do conjunto que compõe o horizonte geral do conceito de garrafa. Dos exemplos analisados podemos dizer que todas as garrafas possuem uma base de apoio, formato cilíndrico e tampa. Porém, estes formatos não podem ser considerados ‘necessários’ por dois motivos. Primeiro porque o bule, a jarra, a moringa, entre outros recipientes, possuem analiticamente estas mesmas 140 características conceituais. Segundo, em vista do seguinte problema: o que aconteceria caso uma garrafa com estrutura não cilíndrica fosse confeccionada? Assim as determinações formais de um conceito não podem conter os dados sensíveis como notas essenciais, e no caso, o caráter prático (e mesmo o ‘produtivo’ em sentido aristotélico) do conceito de garrafa é capaz de confeccionar formas muito diversas entre si. Ao fim, o que resiste a uma busca de notas conceituais essenciais e específicas para as garrafas que analisamos seria apenas a função de armazenar líquidos, enquanto que de sua parte estética, produzir agrado partir da água, forma da garrafa e a sensação de sede, e também, em algum nível, beleza. E a este conceito específico se presta uma gama de garrafas possíveis. Para os casos reais, existentes, podemos igualmente dizer que há um esquema lógico capaz de reconhecer esta aplicação do conceito de garrafa em uma objetividade a qual descrevemos. 1.2 Diferença entre objetos sonoros e musicais. Passamos agora para um tópico intermediário entre a análise de objetos visuais e os musicais. Vamos estabelecer aqui a condição destes objetos auditivos serem considerados como tais, na medida em que são contemplados pelas mesmas categorias e atos de um objeto empírico qualquer. Empreender uma análise musical significa tratar o fenômeno em questão como um objeto, porém, devido à pouca popularidade dos estudos musicológicos, o conceito de objeto musical ainda pode soar pouco ortodoxo. Mas como indicamos na introdução, o conceito de objeto musical surge naturalmente da aplicação da teoria transcendental à experiência musical. Tal conceituação contempla os altos índices de racionalização que o material musical já havia abrigado até o século XVIII (Weber 1995), sobretudo no campo da matemática e física, e menos com a lógica e a epistemologia, onde nos inserimos agora. De todo modo, o conceito de objeto musical já havia sendo utilizado, nesta formulação específica desde a segunda metade do século XX, e fundamentado explicitamente no texto Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo de E. Husserl, onde trata de um exemplo musical e o define enquanto objeto 141 temporal (1994, §7). Didaticamente, exporemos um pouco do histórico do termo para auxiliar o leitor ainda não habituado e assim esclarecer qualquer dúvida que paire sobre sua caracterização lógica. Destacamos o trabalho de Pierre Schaeffer (1977) com a música concreta para uma exposição do sentido epistemológico que o objeto musical e o sonoro suscitam. Este desconhecimento da noção de objeto sonoro se explica, enfim, por razões práticas. Até uma época muito vizinha à nossa, o objeto sonoro, evanescente, ligado ao desenrolar de um tempo irreversível e não recuperável, se apresentava como uma manifestação humana, muito mais que como um fato objetivo. (Schaeffer 1952c: 144 apud Melo 2007:60) O senso-comum ainda carrega esta estranheza na definição de um objeto musical, mas como podemos ver, do ponto de vista lógico o termo não trouxe grande novidade para esta disciplina, mas de outro lado, trouxe contribuições para a técnica musical. Fabrício Melo nos diz que Schaeffer em seu diário de 1948-49 utilizava o termo ‘objeto sonoro’ ainda em um sentido comum, designando apenas o instrumento produtor de som (Melo 2007:58). Na publicação deste diário, sob o título À la recherche d’une musique concrète, a definição de ‘objeto sonoro’ já se vê alterada em função de suas pesquisas em música concreta, qual seja, a gravação de um excerto sonoro disposto a qualquer manipulação técnica: A esta abordagem composicional com materiais extraídos do dado sonoro experimental, eu a denomino [...] Música Concreta, para bem marcar a dependência em que nos encontramos, não mais com relação às abstrações sonoras preconcebidas, mas sim dos fragmentos sonoros existindo concretamente, tomados como objetos sonoros definidos e inteiros. [grifo nosso] (Schaeffer 1952a: 22 apud Melo:9) Nesta publicação são feitas distinções importantes entre o objeto musical e o sonoro. O objeto musical, nos explica Melo: “[…] é abordado, então, como o veículo da comunicação entre alguém que se expressa por seu intermédio e alguém que é sensível a ele. É o porta-voz da linguagem musical” (Melo 2007:59). O objeto sonoro seria qualquer evento de natureza sonora. Ainda no interior desta publicação encontrase o texto Esquisse d'un solfège concret (1952), onde o termo ‘objeto sonoro’ passa a 142 significar um objeto intencional, ou seja, uma unidade conceitual referida em nossa consciência. Assim, verificamos que o termo ‘objeto sonoro’ no século XX tramitou de uma realidade concretamente observável para uma realidade transcendentalmente composta. Tal giro acontece no momento em que Schaeffer quer definir o sonoro em detrimento ao corpo instrumental que o produz. Neste momento o som torna-se matéria de análise e tipologia e os objetos sonoros e musicais compartilham assim da mesma objetividade de demais objetos: “este disco ou esta fita, em sua totalidade, como não admitir que eles contenham, materializado, o objeto musical?” (Schaeffer 1952c: 145 apud Melo 2007:62). Portanto, se quiséssemos, do ponto de partida do objeto sonoro, estudar as Variações Goldberg de Bach teríamos que analisar as características acústicas de um corpo sonoro, o cravo. O objeto sonoro não apresenta nenhuma característica musical, embora o musical contenha características musicais. A denominação ‘objeto’ apenas confere uma implicação objetiva e regrada para fenômenos da audição, não permitindo qualquer relação essencial entre o que seja um objeto sonoro e um musical. E assim nos alerta: Schaeffer comenta em um seminário: “Não caiam no mesmo erro, que foi constante no GRM [Groupe de Recherches Musicales], de tentar explicar o musical pela tipo-morfologia dos objetos sonoros.” (Pierret 1969: 69 apud Melo 2007: 2) A definição do objeto, se musical ou sonoro, compete a certo estatuto transcendental que vai definir o conteúdo visado. Para o caso musical Schaeffer define o uso das intenções como uma certa combinação entre Ouvir e uma outra intenção não ligada diretamente ao sonoro, o Compreender: O estatuto particular da música localizaria-se assim na articulação deste par extravagante formado pelo agente e pela mensagem: a intenção de fazer música consiste em tomar sons da primeira categoria (não especializados nas linguagens) para criar uma comunicação da segunda categoria (que contudo não almeja dizer nada). (Chion 1983:352). Sua característica significativa se desprende das ‘notas’ do sonoro, porém o faz por meio de uma relação entre estas notas, ou seja, por juízos remetidos a uma 143 realidade audível e não apenas a constatação tácita do audível. Ainda de acordo com Schaeffer, o objeto musical traçaria um tipo de compreensibilidade análoga ao da linguagem, pois que significativo, mas não por isto se comportando como uma linguagem. Assim, quando enfatiza que o objeto musical “não almeja dizer nada”, quer comparar com a função típica da linguagem. Para o caso sonoro ou musical temos objetividade, porém no caso do musical temos uma relação de juízos que qualificam o conceito de seu objeto de modo diferenciado. Seria, para o caso musical, a sublevação de juízos de percepção até juízos de experiência (Lógica Ak 113), onde é ajuizada a objetividade de um objeto, e não o modo como somos afetados pelos sentidos. 1.3 Objetividade e subjetividade, musical e sonora. Para dirimir ainda qualquer dúvida a respeito do caráter objetivo dos objetos musicais ou sonoros, abrimos mais um debate acerca da constituição destes objetos. É marca dos objetos visuais estarem presentes em um mundo exterior, para nosso sentido externo. Os objetos musicais, como vimos, compartilham esta mesma propriedade. De modo geral a diferença entre estes dois objetos estaria, assim é comumente compreendido, numa forma de aparição estática dos objetos visuais, em contraposição a uma forma de aparição dinâmica, através do tempo, do musical. Esta definição criou, historicamente, um embaraço na caracterização do objeto musical e sonoro diante de objetos visuais. O fato dos objetos visuais estarem dispostos permanentemente em nossa percepção faz com que sua ‘imagem’ permaneça viva sem grandes recursos da memória, sendo constantemente recriada com frescor atual, ou seja, parecem se relacionar com o imediato e não com um tempo em progresso. O objeto musical e sua ‘imagem’ parecem recorrer, contrariamente, com peso quase que exclusivo ao recurso da memória por uma progressão temporal. Mas se pensamos um pouco mais nesta característica veremos que em comparação com objetos de arte, o musical compartilharia esta característica de mutação pelo tempo com a animação, o HQ, o filme e a leitura de modo geral, que deslocam objetos a todo instante, em um sentido 144 temporal.42 Dado estas características, seria ainda válido pensar a música enquanto conteúdo caracteristicamente ‘subjetivo’, em função de seu recurso mnemônico e temporal, e o objeto visual enquanto conteúdo caracteristicamente ‘objetivo’, em virtude da simultaneidade de seus dados fenomênicos? Para Kant, quando há somente esquema e não um preenchimento temos apenas um pensamento e não um objeto (CRP B 148). Ora, como observamos, ambos os objetos sonoro e musical perfazem a condição esquemática e intuitiva, e seriam assim objetivos na mesma medida: Ora, toda intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode converter-se em nós num conhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos. A intuição sensível ou é intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, pela sensação, é imediatamente representado como real, no espaço e no tempo. (CRP B 148,149) Se há uma diferença substancial entre objetos musicais e sonoros para com os objetos visuais, esta diferença devemos encontrar no estatuto em que estes objetos podem ser exibidos, o que conta sempre e necessariamente com as intuições puras do tempo e do espaço, e assim o debate corre menos quanto a fazerem parte do sentido interno ou externo, objetivo e/ou subjetivo do objeto musical em relação a outros. Torna-se mais importante apreciar o modo como eles contém propriedades temporais e espaciais, visto que excluir qualquer uma das duas pareceria um contra-senso. 1.3.1 Relação espaço-temporal dos objetos. Um exame das relações espaço-temporais dos objetos não é mais que uma consideração a respeito do papel das intuições puras em um regramento categorial. As condicionantes categoriais são válidas para todo e qualquer conteúdo, assim como as intuições puras são para todo o intuído. Compreender as diferenças entre objetos da audição e da visão constitui uma diferença que se inscreve já na sensibilidade. As 42 “Uma peça musical assemelha-se, em alguns aspectos, a um álbum fotográfico, dispondo, sob circunstâncias mutáveis, a vida de sua idéia principal: seu motivo básico.” (Schoenberg 1996:58) 145 diferenças mais gerais entre eles reside nas disposições da sensibilidade para a caracterização de um esquema para estes fenômenos. Esta diferença é tradicionalmente compreendida pelo aspecto temporal que a música possui, algumas vezes classificada como ‘arte do tempo’. De acordo com Kant o tempo e o espaço são condições de possibilidade da sensibilidade para todos os fenômenos. Neste sentido a sensibilidade não pode absterse de aplicar intuições para qualquer fenômeno que se mostre ulteriormente determinado (CRP B 37). Resta verificar se há uma distribuição peculiar destas intuições puras para o objeto auditivo que se contraponha ao visual de modo a priori. Vamos explorar alguns exemplos. Marcas visuais ou auditivas podem constituir índices, e assim um objeto pode ser representado tanto por uma marca visual como por uma marca sonora. Esta passagem do índice para o significado de um objeto é feita a partir de uma característica sensível que permita deduzir o objeto como um todo (Ex. o galopar do cavalo / uma pegada). Para um caso simbólico, como o da linguagem, uma marca sonora ou visual da palavra não contém necessariamente qualquer referência ao objeto em questão, não se percebe qualquer peculiaridade neste sentido, e o caráter temporal parece pouco pertinente em sua identificação na leitura ou escuta. O resultante é o significado conceitual expresso por meio de signos, aquilo que a palavra indica. No caso do ícone, as características do ‘som enquanto som’ parecem estar destacadas. Percebemos por exemplo no som do galope certo desenrolar no tempo, de características sonoras. Da mesma maneira em uma pegada percebemos certo formato impresso na terra, com certa profundidade. Neste caso a diferença entre o visto e o escutado se faz evidente conquanto suas peculiaridades espaciais e temporais. A depender do tipo de determinação que se faz de uma matéria sensível visual ou sonora - diferenças começam a se tornar mais relevantes. Michelle Grangaud nos deixa um interessante enigma: "Eu posso ouvir o que eu vejo: um piano, ou algumas folhas agitada pelo vento. Mas, eu nunca posso ver o que eu ouço." (apud Nancy 2007:10) O enigma se monta apenas para o caso musical. Pois como ilustrado na figura subseqüente, um som, somente sonoro e não musical, pode remeter a um animal (assim brincamos com nossas crianças), e de modo contrário o pensamento ou a visão de um animal pode remeter a seu som. O índice veicula o som à coisa, assim como a coisa ao som, em uma relação 146 claramente conceitual: De que forma podemos pensar o objeto musical sob os conceitos de espaço e tempo? 147 Podemos, antes de tudo, esclarecer o sentido destes termos. Em um sentido, espaço e tempo tratam de intuições puras, são determinações transcendentais que atuam na constituição de um múltiplo da sensibilidade. Em outro sentido, usamos estes mesmos termos para nos referir a aspectos de uma experiência a posteriori. No primeiro sentido, enquanto intuições puras, constituiria um contra-senso dizer de um objeto da experiência enquanto temporal ou espacial pois que as intuições puras são condições de possibilidade de um múltiplo, e o objeto, o resultado unitário de um entendimento: “pois a permanência do que é dado no espaço e no tempo não é ela mesma dada, e sim que só pode ser pensada, justamente por conceitos de objetos.” (Esteves 1996:16) No segundo sentido, diante de um objeto constituído, podemos ressaltar certas características que costumamos predicar como ‘espaciais’ ou ‘temporais’. Aqui aparecessem como simples expressões, usadas em um sentido que não se coincide com o significado transcendental dos mesmos termos, apontam para notas materiais e suas disposições no objeto. Em geral, estes dados espaciais e temporais costumam ser relacionados ao conceito de espaço aplicado na física (diversos espaços) e que Kant trabalhou ainda pré-criticamente na Dissertação (Parsons 2009:99): Pois o que chamamos de diversos espaços não são senão partes de uma mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante. (§ 15 B, 2:402)43 Para tratar das notas espaço-temporais em objetos, em sentido empírico, tomemos novamente o exemplo visual da imagem D. Este objeto contém um limite ‘no’ espaço, de onde podemos classificar suas dimensões e marcas em sua forma espacial. Ele contém também limites ‘no’ tempo, de onde podemos destacar sua perduração e movimento, sua forma temporal. Quando diante de qualquer objeto podemos notar, por exemplo, que a luminosidade é constantemente alterada pela própria modificação do ambiente, pela posição que dispomos o objeto, pela mudança da posição da fonte de luz, pela permanência da luminosidade ou pela qualidade da luminosidade, se artificial ou 43 Para maiores detalhes sobre a relação entre a intuição pura do espaço e sua constituição transcendental não conceitual, e o conceito de espaço na física, ver Charles Parsons em A estética Transcendental, no livro organizado por Paul Guyer, Kant (2009). 148 natural. Em uma foto não há qualquer alteração do ambiente, e nossa posição não altera em nada a imagem do objeto, desde que este ainda se mantenha em nosso campo de visão. No objeto há uma teia de ligações causais que o fazem mais sujo, mais desgastado, entre outras alterações pelo tempo. Tal cadeia não procede no interior da imagem fotográfica. A experiência da imagem da foto nos conduz a uma dedução: ela se encontra abstraída do ‘tempo’. Trata-se de uma metáfora, pois que o tempo é uma intuição pura e em verdade, em nossa observação, percebemos continuadamente a foto ‘correndo pelo tempo’. Estranhamente o objeto ali representado permanece estático na foto, o ‘tempo’ parece ter sido estancado. Caso este mesmo objeto tivesse sido filmado teríamos uma noção de ‘temporalidade’ embutida na imagem. Detenhamo-nos ainda mais na foto, agora em seus aspectos espaciais. Estes estão demarcados pela profundidade (perspectiva), largura e altura, pelas notas distintivas de cor, traços e formas. Da mesma maneira em que todos estes dados se encontram ‘no espaço’, estão ao mesmo tempo perdurando em uma percepção ‘no tempo’. Em cada parte deste espaço vemos também um outro espaço e assim em diante, e, de modo geral, os aspectos espaciais e temporais não podem se dissociar, se excluírem ou mesmo não coexistirem em um objeto, por força de uma determinação a priori. É simplesmente impossível dissociar de uma experiência noções de espaço e de tempo. Seria incoerente com o princípio da sensibilidade pesar apenas sobre um aspecto, espacial ou temporal, para a constituição de um objeto da experiência. Toda constituição conceitual empírica necessita de uma constância no tempo para determinar o objeto enquanto o mesmo se insere espacialmente. Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos. (Flusser 2002:7) Em resumo, tanto a constância no tempo (simultaneidade dos elementos espaciais) quanto a mudança no tempo (a sucessão dos elementos espaciais) são igualmente aspectos intuitivos para todo fenômeno, ao mesmo tempo em que nossa própria forma de percepção de um objeto, do vaguear pela superfície, atua em sentido 149 a coadunar-se temporalmente ao espaço. Esta reflexão, apesar de seu caráter fragmentário, claramente descreve um dos importantes resultados intermediários do argumento da Segunda Analogia: embora subjetivamente todas as percepções se sucedam no tempo, ainda assim tem de ser possível distinguir por meio delas o que é uma sucessão objetiva de estados, ou seja, uma mudança nos próprios objetos, e o que é apenas a apreensão sucessiva de um estado ou objeto que permanece objetivamente inalterado no tempo. (Marques 2010(b):130,131) No caso do objeto musical não pode ser diferente. Tomemos o exemplo de Jesu, rex admirabilis de Palestrina (Img. F). Assim como o espaço visual, há também um espaço acústico abstrato determinado pela capacidade do respectivo órgão. A forma musical, a melodia e a escuta das funções harmônicas, são, as que mais facilmente indicam aspectos dispostos na categoria da quantidade (relações de freqüência e divisão proporcional das ocorrências) em uma exibição espacial, e assim, características que tradicionalmente pareciam mais afeitas ao tempo se mostram facilmente impregnadas de espaço. Do mesmo modo, características tradicionalmente afeitas ao espaço dão lugar a notas temporais. O artigo de José Oscar Almeida Marques (2010 b) possui uma interessante análise sobre a Segunda Analogia da Experiência aplicada a eventos temporais na música. Sua intenção é aplicar critérios lógicos/causais de simultaneidade e sucessão para os casos musicais de acordes e melodia. Marques indica que o tempo, em primeiro lugar, não é uma relação direta com a seqüência da percepção determinada pela coisa em si, mas como já indicamos tratase de uma indexação44 de um múltiplo que não possui qualquer tipo de organização. A tarefa de estabelecer uma ordem efetiva e objetiva é do conceito (Marques 2010(b):134). A causalidade dos eventos sucessivos no tempo é um atributo do entendimento, e assim indica o exemplo kantiano do navio a subir pelo rio. Assim, por exemplo, vejo um barco impelido pela corrente. A minha percepção de sua posição à jusante do curso do rio segue-se à percepção da sua montante e é impossível que, na apreensão deste fenômeno, o barco 44 Indicamos como indexação a síntese promovida pelas intuições puras sob a apreensão de um diverso pela sensibilidade. No sentido deste diverso vir a conter, diferente de determinações, indexações de espaço e tempo sobre este diverso. Não há nenhum objeto, tão somente a agregação destas intuições puras sobre o diverso. 150 pudesse ser percebido primeiro a jusante e depois a montante da corrente. A ordem da seqüência das percepções na apreensão é pois aqui determinada, e a ela está sujeita a apreensão. (CRP B 237) Esta é uma experiência que não pode ser interpretada de modo contrário sem que se altere a própria forma da determinação no tempo. Nenhum elemento pode ser intercambiado, pois é resultado de uma determinação causal temporal necessária. Para Marques, o mesmo sucede com a melodia. Sua sucessão obedece a uma ordem concreta, objetiva e necessária, onde não é possível intercambiar nenhum evento, com pena de se invalidar a relação causal e a realidade do objeto. No caso do acorde, o modelo interpretativo kantiano passa a ser outro, e o exemplo análogo para o caso da simultaneidade é o da casa (CRP B 236,237). Neste caso a regra causal, que ligou uma seqüência melódica por um constrangimento lógico, não teria lugar. Para este caso da simultaneidade os elementos não disporiam de uma hierarquia temporal. É neste sentido que Marques indica que podemos nos dedicar a escuta de qualquer nota do acorde pois a ordem em que escutamos não dependeria de um constrangimento lógico, mas de nosso interesse: “[...] mas não há nenhuma implicação de que esta ordem esteja determinada por algo no próprio objeto, nem que as notas comecem a existir no momento em que as apreendo; assim esta ordem é puramente arbitrária [...]” (Marques 2010(b):135) 45. Abrimos um parêntesis sobre a interpretação de Marques a introduzimos outras questões. No momento em que Marques indica que no caso do acorde, como no caso da casa, temos um objeto exibido e podemos passar o olho ou o ouvido sobre suas características, à nossa escolha, destacamos também como esta mesma experiência – contraste temporal entre o acorde e a melodia – converte-se com facilidade em um caráter espacial. 45 Marques se interroga a respeito da possibilidade de se escutar um acorde sequencialmente, mesmo enquanto simultaneidade, dado que a escuta ocidental se habituou a escutar uma só função entre notas fundidas, com a mesma imediaticidade que escutamos uma nota. Resolvemos este dilema mostrando que não apenas o acorde possui valor funcional, mas as notas melódicas também, porém estas agem com força e possibilidades diversas, dada pelas condições lógicas da experiência. É possível assim perceber seqüência tanto para a percepção de notas quanto no interior do acorde, e como Marques bem o demonstrou, no caso do acorde é passível de certo uso diferencial da causalidade de acordo com a possibilidade singular que se coloca. Estes dependem, além de fatores acústicos e do tipo de seqüência visada (seqüência de acordes), da estaticidade das notas simultâneas e da duração que dispomos para ‘variá-las’. Contudo, queremos ressaltar que uma simultaneidade estrita é dificilmente obtida, tanto em termos temporais cronometrados, como em uma experiência fenomenológica do acorde, que conta com uma hierarquia tonal. Para ouvidos treinados certamente os acordes tonais são inicialmente ouvidos a partir da fundamental. 151 Como Marques mesmo aponta, no acorde temos diante de nós uma faixa que vai do grave ao agudo onde podemos dispor nossa atenção, ou seja, um caso onde a organização não seqüencial nos faz perceber a relação espacial da ‘disposição’ das notas no espectro sonoro. As notas do acorde estando agrupadas em um mesmo momento chamam a atenção de Marques, e dizemos que é justamente porque ali o caráter espacial fica evidente. Se por um lado não há uma hierarquia seqüencial que constranja as notas, não se pode dizer que elas se coloquem não-hierárquicamente, como Marques parece querer sugerir. Todas as notas do acorde se alinham em termos funcionais, sobretudo para o caso da música tonal. É comum também que haja uma nota melódica no próprio acorde. Neste caso a nota melódica pode ao mesmo tempo conter um caráter seqüencial e um simultâneo. Assim também com o acorde, se tomado independentemente ou como parte de uma progressão. Seguindo o mesmo princípio da sensibilidade, válido para qualquer objeto empírico, a melodia não pode ser compreendida enquanto temporal ignorando-se o espacial46. Uma sucessão temporal de notas inscreve-se necessariamente em uma localidade do espectro sonoro, porém, sem sucessão e sem espacialidade (extensão) não seria possível identificarmos algo enquanto melódico. Em uma sucessão melódica temos que perceber não apenas sucessão temporal mas também mudanças de graus (CRP B 210-213). Em Jesu, rex admirabilis (Img. F) temos em um primeiro momento uma homogeneidade rítmica e uma continuidade melódica. Isto segue até o oitavo compasso, onde uma voz, a mais aguda, passa a ser sustentada. Neste momento as demais vozes começam a depreender-se e se tornam mais independentes. No momento em que as vozes se desprendem, cada qual com suas notas rítmicas, podemos dizer que o evento ocorrido foi de caráter espacial ou temporal? Como não estamos tratando de intuições puras, os termos espacial e temporal preenchem uma série de características, e não apenas uma. Um detalhe melódico pode dizer respeito a questão temporal, mas a melodia como um todo obedece às determinações espaciais e temporais, assim como qualquer elemento empírico. Questões tais como: seria o ritmo uma organização do tempo, ou uma delimitação do espaço?, não compreendem o aspecto transcendental ou lógico dos 46 “Todos os fenômenos contem, quanto à forma, uma intuição no espaço e no tempo, que é o fundamento a priori de todos eles. (CRP B 202). 152 termos espaço e tempo. Contudo, a antiga identificação da música como a arte do tempo não contempla uma observação atenta do fenômeno musical, ou de seu fundamento transcendental. Tal definição tende a ser simplesmente metafórica se não aponta para aspectos e notas matérias contidas nestes objetos. Naquilo que é imediatamente pertinente ao nosso trabalho concluímos que tanto objetos sonoros, musicais e visuais partilham de caracteres espaço-temporais de modo necessário. 2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental entre os elementos musicológicos. Passamos agora para a análise lógica exclusiva ao objeto musical. Nele destacaremos regras que são condições de possibilidade de toda escuta musical, que se aliam a técnicas e procedimentos composicionais, e enfim, a um objeto musical distinto intelectualmente. Listamos alguns complexos de elementos sonoros que se sublevam enquanto técnica ou mesmo categorias da escuta: Organização de freqüências: . Série Harmônica . Temperamento . Escala . Harmonia . Acorde . Contínuo (não escalar) . Sons complexos Disposição do material: . Pulso . Andamento 153 . Compasso . Duração . Ritmo . Frase . Série . Forma Controle de parâmetros: . Intensidades . Timbres . Ataques . Corpo . Queda Estes elementos já se constituem como condições de distinção sensível, por isto podemos também chamar de categorias de escuta, mas não em sentido a priori. Outros tipos de distinções se incluem no discurso musical. Dante Grela (1976) em seu artigo Análise Musical: Uma proposta Metodológica, indica por exemplo quais seriam as categorias elementares da articulação em geral: 1) SEPARAÇÃO: quando, entre a conclusão de uma unidade formal e o começo da seguinte, media um silêncio de qualquer magnitude. 2) JUSTAPOSIÇÃO: quando duas unidades formais se sucedem sem que exista descontinuidade sonora entre o final de uma e o começo da outra (neste caso, portanto, o ‘fator articulatório’ deverá ser outro, em lugar do silêncio). 3) ELISÃO: quando o elemento ou grupo final de elementos de uma determinada unidade formal funciona ao mesmo tempo como começo da unidade seguinte (também neste caso deverão existir ‘fatores articulatórios’ de outra índole que o silêncio). 4) SUPERPOSIÇÃO: quando, estando constituída a textura por maus de um ‘plano sonoro’ ( 5) INCLUSÃO: este caso, podemos dizer que constitui fundamentalmente um “modo de articulação especial”, mais que especificamente temporal, e se produz quando, numa textura constituída por mais de um estrato, alguns 154 destes começam e terminam suas unidades formais dentro do tempo que abarcam as unidades em outros estratos, começando, portanto, depois e terminando antes que estas últimas. (Grela 1976) Estas são algumas categorias de percepção musical como descritas pelos manuais. São nomenclaturas próprias da atividade musical que possuem uma contrapartida nos atos de nossa atenção auditiva. No tópico a seguir vamos lançar mão de categorias da percepção e associa-las a operações lógicas, do mesmo modo como fizemos com o exemplo das garrafas. O que se quer qualificar é o uso do entendimento enquanto condição necessária da satisfação dos critérios de inteligibilidade musical. 2.1 Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica. Consideremos um exemplo de fácil assimilação. Uma obra de música tonal da primeira escola de Viena. Fiquemos com uma Deutscher Tanz de Beethoven (Fig. E). Como se trata de uma peça simples, fortemente demarcada por movimentos repetitivos, tratemos antes dos termos que qualificam a repetição em sentido musical, diferente da repetição sonora simplesmente paramétrica. A repetição, nos diz Schoenberg, pode ser literal ou modificada (desenvolvida): As repetições literais preservam todos os elementos e relações internas. Transposições a diferentes graus, inversões, retrógrados, diminuições e aumentações são repetições exatas se elas preservam rigorosamente os traços e as relações intervalares [...] As repetições modificadas, criadas através da variação, geram variedade e produzem novo material (formas-motivo) para utilização subseqüente. (Schoenberg 1996:37) Utilizamos, para melhor qualificação de nosso exemplo, os termos, ‘repetição’ para significar uma repetição literal, ‘repetição semelhante’ para casos de variações funcionais mesmo que a repetição seja literal e ‘repetição modificada’ assim como Schoenberg a emprega. Para modificações mais radicais o termo repetição passa a não valer, e usamos diretamente ‘variação’ ou ‘desenvolvimento’. A repetição, seja aquela impressa pelo ritornello, seja por pequenas variações ou mudanças de grau, resguarda a unidade da peça e sua linguagem particular. A 155 repetição quer justamente propiciar uma familiaridade, uma possibilidade de conhecimento e reconhecimento com o ouvinte, critério que Schoenberg nomeia de compreensibilidade: A variedade não deve obscurecer a lógica ou a compreensibilidade: esta última requer, ao contrário, a limitação da variedade, especialmente se as notas, acordes, formas-motivo e contrastes se sucederem de forma rápida. A rapidez é um obstáculo à percepção de uma idéia e, desse modo, as peças em tempo rápido exibem um grau menor de variedade. Há meios através dos quais se pode controlar a tendência ao desenvolvimento muito rápido, que é sempre conseqüência de uma variedade desproporcionada: os mais usuais são a delimitação, a subdivisão e a repetição simples. (Schoenberg 1996:47) Em nosso exemplo estas repetições estão claramente assinaladas pelo ritornello (Fig. E), porém observamos em cada seção, e sobretudo na primeira, repetições de frases em seu interior: (comp. 1-5 / 5-9). O mesmo se segue na segunda seção, onde há uma repetição transposta (comp. 10-12), uma repetição modificada (comp. 12-14) e uma ‘relembrança’ de um período inteiro, provindo da seção I (comp. 14-18). A segunda seção é demarcada por uma variação do tema reduzido ao motivo (frase 2) a qual é repetido e então variado (comp 10-14) o que faz articular recorrendo a uma grande familiaridade temática. Noções de repetição, relembrança, diferenciação e familiaridade ressaltam atos lógicos, pois a repetição, a lembrança, e a comparação, para a diferenciação ou familiaridade, não são senão variações pontuais de um processo geral de recognição, a partir de distinções intelectuais (Lógica A 44). Escutando mais atentamente, mais características articulatórias relativas ao material tendem a se tornar cada vez mais conscientes, e uma hierarquia dos elementos é assim erigida; seção I e II, frase 1 (e suas variantes), frase 2 (e suas variantes), formas-motivo47, acompanhamento 1 [arpejo] e 2 [acorde]. Destaca-se em toda a obra a ocorrência de um motivo compondo variações e formas-motivo48. A repetição deste elemento, sempre reiterado, cria um padrão que se torna o núcleo recognitivo da obra, servindo de base para demais atos lógicos. Todo 47 As formas-motivos são os temas formados pelo motivo, que no caso constituem na totalidade a frase 1. No caso da frase dois não há uma forma-motivo mas tão somente um motivo, se não se quiser ainda atomicamente definir como tema o simples intervale de terça-menor inicial. 48 “O motivo geralmente aparece de uma maneira marcante e característica ao início de uma peça. Os fatores constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos, combinados de modo a produzir um contorno que possui, normalmente, uma harmonia inerente . Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo de afinidade para com ele, o motivo básico é frequentemente considerado o ‘germe’ da idéia [...]” (Schoenberg 1996:35) 156 juízo que opera no interior de uma obra, todas as ligações e funcionalizações (semelhança, dessemelhança, complementaridade, diferença, lembrança, recapitulação etc.) dizem de estados relativos às formas-motivo. Assim, todo o extrato de valores e funções que emanam da peça se dão em referência a este núcleo temático, que pode ser compreendido em uma dupla função; enquanto elemento material identificável ou enquanto o próprio esquema de subsunção aplicado enquanto condição de possibilidade para a compreensibilidade da peça. Até mesmo a escrita de frases simples envolve a invenção e o uso de motivos, mesmo que, talvez, inconscientemente. Usado de maneira consciente, o motivo deve produzir unidade, afinidade, coerência, lógica, compreensibilidade e fluência do discurso. (Schoenberg 1996: 35) A referência de Schoenberg é sempre a obra de Beethoven, e o modelo de composição a que se refere é justamente o modelo clássico que nos interessa. O motivo enquanto germe presente em toda a obra constitui-se como conceito chave de toda recognição dos elementos de uma obra, referente não só às frases, mas à forma e harmonia. Apenas no momento em que tal estrutura é internalizada – acrescentamos, não necessariamente conscientemente49 – somos capaz de frutiferamente gozar de uma audição musical. No caso musical o esquema têm a função de unificar um diverso, por exemplo, unificar formas-motivo em uma experiência musical. Esta mesma experiência onde podemos estar cientes de perceber formas-motivo constitui prova de uma ação esquemática (CRP B 162), pois que o conceito ‘motivo’ é tão somente uma abstração de um componente empírico, que se dá à experiência sob os mais diversos elementos de uma escuta, mas que atuam mesmo de forma não consciente. Dentro de um modelo transcendental, podemos isolar a forma puramente esquemática, ou seja, retirarmos as intuições presentes no objeto musical a sobrar senão seu padrão lógico. Dado um exemplo temático-motívico (Schoenberg 1996:35), podemos nos debruçar não mais no fático, mas em sua estrutura esquemática, condição de possibilidade de uma 49 O trabalho de Bigand (2005) demonstra que a percepção de melodias, estruturas musicais, harmonias, não se restringe ao especialista: “Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças entre os cérebros de músicos e de não-músicos, postulamos que as redes neuronais postas em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro “músico”. 157 experiência. Sem esta capacidade lógica estaríamos surdos para as frases e consequentemente para a melodia, segue-se assim um crivo para qualquer estrutura significativa em uma obra musical. Em todo o conhecimento de um objeto há a unidade do conceito, que se pode chamar unidade qualitativa na medida em que por ela é pensada só a unidade da síntese do diverso dos conhecimentos, à maneira da unidade do tema num drama, num discurso, ou numa fábula. (CRP B 114) Prosseguindo, no que diz respeito às conexões dadas em uma obra a partir deste núcleo conceitual, veremos que o motivo coaduna outros níveis articulatórios: A menor unidade estrutural é a frase, uma espécie de molécula musical constituída por algumas ocorrências musicais unificadas, dotada de uma certa completude e bem adaptável à combinação com outras unidades similares. (Schoenberg 1996: 29). Como definido na primeira Crítica, podemos dizer que a camada indeterminada da percepção é subsumida por um nível articulatório da experiência, e no caso da música clássica o articulatório compreende sempre o nível melódico, sendo este o resultado de subsunções do esquema motívico em questão. O todo é dado condicionadamente pela apreensão das partes, porém o enlace – inconsciente – dado enquanto condição na própria possibilidade da recognição faz exibir já uma estrutura significativa, temos diante de nós imediatamente uma melodia. Concomitante à esta relação motivo/melodia temos outra dimensão de funcionalização do material sonoro, a harmonia tonal. A harmonia tonal funcionaliza todas as notas materiais presentes em uma obra musical. Constituem uma ordem diversa daquela movida apenas para as formas-motivo, de recognição de seu esquema e ajuizamento de suas ocorrências. A harmonia cria outra ordem de relações, ditas harmônicas, que atuam concomitantemente à escuta melódica. O valor relativo dos graus tonais – pois estes não se aliam a dados empíricos fixados – já demonstram o grau esquemático que possuem. Por exemplo, a região tonal da subdominante não pode ser definida por nenhuma nota ou acorde fixado. Tal função é perceptível apenas ‘em relação’ a outras notas e acordes. Ou seja, tal relação é taxada como funcional, e as notas ‘encarnam’ esta função quando a condição harmônica é satisfeita. Distinguir funções tonais em meio a notas dadas empiricamente configura assim uma ação lógica que subsume o 158 empírico, igualmente recognitiva. A função harmônica, antes de ter seu fundamento colocado à prova psicológica, acústica ou matemática, tratar-se-ia de uma aplicação do juízo, algo como um juízo tonal alocado à um diverso – sinteticamente. Voltemos a nosso objeto (Img. E). Em termos funcionais podemos apontar que a primeira seção como um todo se encontra na tônica, a segunda seção na subdominante e então retorna para a região da tônica. Do entrecruzamento dos padrões temáticos/melódicos com a funcionalidade harmônica emergem novas articulações e portanto novos juízos. Podemos descrever diferenças e igualdades não apenas enquanto características quantitativas dadas na altura das notas, mas enquanto assumem uma função harmônica na organicidade da peça. Retornemos então à totalidade da peça, a sua divisão hierárquica agora acrescida do caráter harmônico a pensar novamente a subdivisão dada por nossa percepção. A frase 1 e 1’ além do conteúdo específico que possuem, encerram uma função de exposição, elas abrem a peça, expõe a tonalidade e o tema. As frases 1a e 1’a 50 tendem a se apresentar como repetição, eco, pois que se seguem sem mudanças, a não ser nos compassos finais da seção I onde há uma cadência final, fazendo o último compasso encerrar a primeira seção. O ritornello repete tudo novamente, reexpõe o tema e a tonalidade, e ecoa, mas agora, com consciência de que se trata de uma seção, pois há um encerramento. A frase 1 e 1’ formam um só período, e a frase (1a) e (1’a) um outro período porém semelhante. Relações que pareciam tão simplórias começam a se tornar mais complexas no momento quando nos compassos finais da segunda seção (14-18) vemos a frase 1 e 1’ ressurgir, porém em um momento muito diverso. A frase 1 aparece idêntica pois que o compasso anterior fez questão de articular a frase anterior (comp. 14) de modo que concluísse na mesma harmonia do início da seção I, com uma pausa e com uma mudança de intensidade, restabelecendo assim todas as condições iniciais da frase 1. Neste momento nossa percepção nos faz remeter a uma volta no tempo, mesmo que curiosamente a frase 1 esteja distante temporalmente é ela mesma 50 A partícula ‘a’ quer destacar que as frases são idênticas quanto às determinações sonoras (freqüências) determinadas na partitura, porém se encontram em momentos temporais diversos. Esta diferença temporal, na verdade, de um lugar na ordem temporal, faz com que percebamos a frase com uma função diversa da anterior. Algumas nuances podem ser evocadas pelo intérprete, por exemplo, tocando-se Xa com intensidade pp poderíamos considerá-la como eco, p como atenuante, f como resposta, a depender das possibilidades da peça. 159 evocada aqui (comp. 14), com a diferença de conter uma ‘explicação’ da origem de sua harmonia, o que não acontece no primeiro compasso pois que a melodia surge pela apojatura. Neste caso (comp. 14) ela surge explicada a partir da cadência para a tônica. Temos a volta para um idêntico. Ao mesmo tempo em que tal volta é impossível pois nos encontramos já entre outras articulações e lugar no tempo. Depois de tal evento somos obrigados a novamente re-significar as articulações. Temos uma apresentação e cadência na seção I, e depois sua repetição pelo ritornello. Temos o contraste introduzido na seção II pela frase 2 e suas variantes, e então subitamente um remetimento ao passado a partir do compasso 14 onde a frase 1 e 1’ são reconstituídas em outro momento, onde 1’ por motivos formais é convertida em cadência final da peça. Há aqui relações harmônico/melódicas/temporais frutos de juízos que se seguem subsequencialmente. Todas estas articulações se inserem em uma forma maior, uma Deutscher Tanz gênero ao qual a obra se inscreve51. Sua forma musical com duas seções (ABa), e compasso 3/4 configuram um gênero musical, e igualmente um gênero de dança. A partir deste gênero compreendemos no interior da seção II o período formado pela frase 2 e suas variações, além da ‘seção contrastante’ típica desta forma (Schoenberg 1996:152). O conceito de Deutscher Tanz (dança) e o de garrafa (utensílio) compartilham de um horizonte prático vinculado ao conceito do objeto. Tal conceito coage o compasso ternariamente. A dança alemã não é um conceito de Beethoven, vemos composições de Haydn, Mozart, Schubert que seguem esta exata ordem, trata-se de uma forma musical, ou, em termos lógicos, de um gênero, um esquema a qual espécies são subsumidas. Para o caso das garrafas podemos traçar certo contorno cilíndrico (ideal) a determinar toda e qualquer garrafa, pertencendo mesmo à determinidade do conceito sobre a forma empírica do objeto. No caso de objetos musicais, ou, a forma musical da Deutscher Tanz, há um contorno prescrito no andamento, na distribuição de compassos e seções que determinam qualquer Deutscher Tanz. Resta-nos determinar a extensão deste conceito. Para o caso do horizonte prático a música, neste caso, deverá se adequar às coreografias da forma de dança homônima. Uma tocata por sua vez não apresentará uma uniformidade na organização 51 “Uma porcentagem esmagadora de formas musicais é composta estruturalmente de três partes. A terceira parte é, por vezes, uma repetição exata (recapitulação) da primeira, mas frequentemente aparece sob a forma de uma repetição modificada” (Schoenberg 1996:151). 160 de seus componentes sensíveis de maneira tão específica como da dança, porém o peso de seu conceito prático impresso em sua definição tocata prevê um virtuosismo instrumental, que contudo não se encontra tão determinado como no caso da dança em geral. Formas como a sonata, sinfonia e quarteto, ou técnicas como cânone e fuga, não apresentam conteúdos práticos, e são tidos como formas da música pura, ou seja, possuem apenas extensão lógica e estética. Contudo, no que tange principalmente ao horizonte estético, Kant ressalta que há um limite de intercessão, ou seja, não é possível que o estético em seu caráter puro se deixe complementar de outros horizontes. Para Kant há características incongruentes entre as extensões lógicas e estéticas, e um equilíbrio destas acarretaria em verdade em um prejuízo equalizado, pois os limites de um implicariam em uma zona de inoperatividade do outro: Sem dúvida, entre a perfeição estética e a perfeição lógica de nosso conhecimento persiste sempre, a rigor, uma espécie de conflito, que não pode ser totalmente superado. O entendimento quer ser instruído; a sensibilidade, animada; o primeiro deseja discernir; a segunda, apreender. Se os conhecimentos devem instruir, eles devem ser, nesta medida mesmo, elaborados a fundo; se eles devem ao mesmo tempo entreter, então também tem que ser belos. Se uma apresentação é bela, mas superficial, ela só pode agradar à sensibilidade, mas não ao entendimento; se ela é, ao invés, elaborada a fundo, mas é árida, só pode agradar ao entendimento, mas não à sensibilidade igualmente. (Lógica A 48) A possibilidade de algo ser ‘instruído’ e belo ao mesmo encontra-se vetada, a partir de algo próximo da máxima, “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”. Ressalta-se aqui que a música tonal traçou o caminho da árida compreensão, da instrução. Porém, diferente do critério estabelecido na citação, a presença de agrado sensível, para não falar mesmo em prazer artístico, está igualmente presente nestas obras. Nenhuma determinação de nossa análise demonstrou, apontou ou vislumbrou qualquer diminuição do valor estético da obra exemplificada a partir das propriedades analisadas, muito pelo contrário as funções lógicas que serviram como condição de recognição são as que garantem a exibição do objeto musical, seu jogo artístico, e assim, qualquer outro juízo que possa recair-lhe. 161 3. Graus de síntese e ajuizamentos sobre um objeto empírico. Todo objeto pode dar lugar a uma série de novas sínteses e ajuizamentos, e esta possibilidade se encontra na base de qualquer ciência, pois uma teoria requer condições empíricas que se sublevem em graus sintéticos de ordem superior. É neste preciso contexto que podemos falar de uma teoria musical, ou de teorias que se associam à arte musical. A partir da segunda metade do século XX verificamos uma retomada, por parte dos compositores, da exploração de recursos provindos tanto da ciência acústica como da psicoacústica, esta última rapidamente migrando para as práticas de composição e manuais de análise musical.52 A realidade no século XVIII não era tão diferente, pois que a acústica vinha florescendo, e mesmo o sistema tonal parte de uma premissa psicoacústica, ou seja, dos efeitos perceptivos a partir de relações sonoras. A teoria tonal constituída conjuga critérios de percepção, criação e sensação, todas sob regras e leis de associação de freqüências acústicas. Esta encontra uma forma axiomatizada já no século XVIII 53. Anteriormente, regras extraídas da proporção áurea monopolizavam a composição e os critérios estéticos em geral, unificando todas as medidas de inteligibilidade para qualquer objeto. A teoria tonal, assim como a ciência moderna, possui uma estrutura axiomatizada, um princípio elegante simplificado. Resumidamente a teoria postula: 1) tudo se encontra sobre uma função; dominante, subdominante e tônica [tonalidade]; 2) para cada função estabelecida há funções homônimas com diferença de intensidades [funções secundárias]; 3) Cada acorde possui a partir de seu centro tonal, funções individuais [dominantes e 52 Para um entendimento histórico da relação entre a ciência e a prática musical ver o artigo de Penélope Gouk, The role of harmonics in the scientific revolution (Gouk 2002). 53 A terminologia e a lógica da teoria tonal expressa-se em sua versão definitiva com a obra de Riemann de 1898 Handbuch der Harmonielehre. Porém o princípio tonal já havia sido proposto por Rameau – sem um princípio lógico evidente como aquele que vem surgir no século XIX. Curioso de toda forma ver que a forma final da teoria tonal fica pronta praticamente no fim da música tonal, na virada para o século XX, onde as leis tonais passaram a ser de pouco uso para os compositores vindouros. De qualquer forma o princípio tonal já estava exposto em Rameau em todos os seus elementos, como indica Bernstein (2002): "[...] A implicação mais significativa da nova teoria das três harmonias primárias de Rameau é vista em sua reconceitualização da tonalidade; agora ele começa a conceber o tom [Key] em termos de relações harmônicas em torno de um centro tonal. Em sua Génération Harmonique ele superou a explicação cartesiana da tonalidade por base mecanicista baseando a tonalidade na ligação dos acordes dissonantes e consonantes a um modelo intelectual [entelechial] inspirado na teoria gravitacional de Newton. Neste sentido a tonalidade resulta das forças de atração entre a tônica e sua harmonia dominante e subdominante." (Bernstein 2002: 795) 162 subdominantes individuais]. A teoria se aplica plenamente para tons organizados escalarmente, a partir de um temperamento igual (12 tons). Fica igualmente possível reproduzir efeitos iguais em qualquer instrumento que satisfaça as condições do sistema. Todo este regramento é necessário na medida em que, diferente da leitura de Kant da terceira Crítica, passamos a descrever uma experiência musical enquanto uma operação plenamente consciente e definida categorialmente. Se for o caso de termos um objeto, e se for o caso de empreendermos distinções lógicas, então certamente que se operam atos lógicos. Se qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e ligadas. Se, pois, atribuo ao sentido uma sinopse, por conter diversidade na sua intuição, a essa sinopse corresponde sempre uma síntese e a receptividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos. Esta espontaneidade é então o princípio de uma tripla síntese, que se apresenta de uma maneira necessária em todo o conhecimento, a saber, a síntese da apreensão das representações como modificações do espírito na intuição; da reprodução dessas representações na imaginação e da sua recognição no conceito. Estas três sínteses conduzem-nos às três fontes subjetivas do conhecimento que tornam possível o entendimento e, mediante este, toda a experiência considerada como um produto empírico do entendimento. (CRP A 97, 98) Toda esta mecânica transcendental que descrevemos para a escuta de uma obra musical diz respeito a estruturas universais presentes em todo sujeito. Portanto, tem que ser acessível, e mesmo possível a todo sujeito, compreender uma organização musical pela simples virtude de sua consciência. A idéia de que um cérebro “não-músico” possa ser expert no processamento das estruturas musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência (contrariamente à explícita, consciente). Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas de maneira passiva. (Bigand 2005:59) O objeto musical constituído, enquanto que um objeto empírico e distinto intelectualmente, constitui-se também como objeto lógico que pode ser compreendido no interior de teorias musicais e ainda no âmbito daqueles fatos legitimados pela teoria da Crítica da Razão Pura, como todo e qualquer conteúdo regrado pelo 163 entendimento. Mas, constituindo-se como um objeto qualquer, sem desconsiderar suas particularidades, e comparando os processos lógicos de sua percepção aos de uma garrafa de plástico, não estaríamos fazendo, como Kant, comparando o conteúdo da música a um papel de parede? Nossa resposta é negativa. Pois o valor de comparação que empreendemos é diverso daquele a qual Kant aplica na terceira Crítica. Defendemos que o que há em comum ao papel de parede, à música e à garrafa é o fato de serem objetos, fruto de um juízo determinante do entendimento. Ainda diferente do caso da terceira Crítica, não implicamos de maneira necessária a impossibilidade da beleza conter algum juízo lógico. O que fizemos foi justamente incluir o objeto musical sob as condicionantes lógicas válidas para qualquer objeto, sem com isto querer igualar o conteúdo destes objetos relativos a seus estatutos. 3.1 Cópula de predicados. Mostramos que o objeto musical se diferencia do objeto sonoro por concorrer com articulações que formam um todo discursivo o qual demonstramos brevemente na análise da Deutscher Tanz de Beethoven. Dado esta condição podemos esboçar uma definição para o objeto musical que indique esta diferença a partir de um estatuto epistemológico sujeitado ao entendimento, implicando um processo de síntese. Ora, toda síntese é produto de um juízo, que faz unir representações a partir da copula verbal ‘x é y’. O objeto musical deve ser o resultado de juízos sob objetos sonoros, juízos típicos desta atividade. Faz parte do senso-comum abranger certas obras musicais em certos gêneros, e isto não perfaz nenhuma atividade especializada, ela só depende do conhecimento de um repertório e de um pequeno montante de determinações do gênero. Trata-se aqui de uma cópula, não em sentido musical, mas uma cópula a respeito de um objeto musical constituído. O mesmo acontece no interior da obra, por exemplo, ao predicar sobre a associação de um tema à uma outra ocorrência modificada como uma variação deste tema, diremos por exemplo ‘y é x (variado)’. Ou quando escutamos o tema sendo executado por outro instrumento o qual não tínhamos atinado dizemos ‘é o tema!’ ou, ‘aquele contrabaixo faz uma imitação!’. 164 A síntese, ou cópula, entre tema e desenvolvimento, entre contra-tema e demais elementos de uma peça é portanto condizente com o verbo ‘ser’ enquanto uma predicação. As possibilidades categoriais de cópula no interior do objeto musical são tão múltiplas quanto a capacidade de ligação inerente aos objetos sonoros de um lado e de nossas potências inatas de outro. Decorrente disso podemos pensar em outra classe de juízos que não o juízo de gosto puro, capaz também de assertar volitivamente – discordando, concordando, dando assentimento, consentimento, dissentimento, etc. Que no caso pode ser erigido a partir do histórico de ajuizamento de objetos musicais, sem que seja preciso recorrer à uma ordem estética, entendida enquanto ordem se assentimento da beleza como descrito por Kant. Estas classes de juízos são muito comuns na apreciação musical, comumente ajuizamos: ‘a ligação entre x e y é válida enquanto contraponto’, ‘a ligação entre x e y não é válida enquanto desenvolvimento’, ‘posso aceitar este acorde apenas no compasso 31’. Este tipo de cópula e avaliação que também desperta prazer ou desprazer não pode ser contemplada pelo estatuto do juízo estético, embora possa ser dito que temos de fato uma sensação subjetiva a respeito da experiência objetiva que temos. Contudo, fica difícil conceber este prazer fora das distinções intelectuais em questão. Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa relação; mas aquilo que nela pode servir ou é utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é a sua validade lógica. (CFJ: XLII) 165 Conclusão 1. A tese de Hanslick. Sendo este um tema amplamente abordado pela musicologia e estética, o estabelecimento de uma música pura, de uma música autônoma ou absoluta se liga à nascente música clássica, e nela, a formalização do sistema tonal engendrado no interior de um discurso eminentemente instrumental. A escolha deste objeto específico, da música clássica, sobretudo a representada na primeira escola de Viena, quis destacar o momento inicial de uma nova forma de significação musical, que pelo menos do ponto de vista quantitativo, possui escassa literatura. Mas, no que concerne à escolha de um objeto de investigação, conta com amplo registro material, composto para as mais diversas formações instrumentais. O sistema tonal contou com uma série de personagens, porém, aquele que podemos conferir o gênio da síntese é sem dúvida Joseph Haydn. O músico erigiu um sistema de composição a partir de formas musicais simples, criando células motívicas e então desenvolvendo a partir delas formas mais complexas. (Dilthey 1945). Esta técnica de composição de Haydn aliada ao tratado musical de Rameau deu forma ao movimento clássico, e a emergência da música instrumental. O sistema tonal e o discurso instrumental deu lugar a outros movimentos e foi diretamente influente até o início do século XX, e é um modelo ainda estudado nos cursos de música. Contudo, os discursos da autonomia da música se cristalizam apenas posteriormente, sendo inicialmente criticado pela falta de texto e compromisso com a representação das paixões. Esta falta de uma definição de um sentido ou função culturalmente alicerçada configura um quadro bastante rico para nosso interesse. Pois a música tendo sido classificada como meio expressivo acessório, se viu obrigada a criar uma linguagem com um nível de compreensibilidade que não poderia ser introduzida por outros meios que não uma escuta direta do material. A solução foi ascender uma inventividade ligada a critérios formais a dar lugar a uma forma autônoma para a arte musical. 166 O impacto sentido em nível cultural parece ter recaído exclusivamente no abandono ao recurso textual. O texto, o meio expressivo poético, seria um tabu ao qual nem Kant abriu mão – liga a dignidade da música a um texto – obrigatoriedade esta decretada desde o Concílio de Trento (1545-1563). 54 Mas em termos epistemológicos temos um caso bastante interessante, estamos diante de uma técnica musical que quer se confrontar diretamente com os dados sensíveis e constituir a partir deles um significado e perfazer um jogo de tipo artístico em exclusividade com a audição. O proveito que a epistemologia poderia ter com o objeto escolhido seria o de elencar uma definição positiva, no sentido de melhor caracterizar quais foram as conquistas e o modo como a música instrumental clássica imprimiu um sentido musical sem recursos extra-musicais e extra-sonoros, e assim, se aproximar da relação entre percepção, juízo e conceito que entram em jogo nesta atividade. Em verdade, estes são princípios os quais Hanslick já havia postulado, e podemos resumidamente expor quais foram as premissas e a ambição de sua estética: a) Especificação da estética para o ramo artístico musical, o que incorre no descarte do conceito geral de beleza, para que se especifique as distinções típicas da arte individualmente. “Cada arte deve ser conhecida nas suas determinações técnicas, quer ser compreendida e julgada a partir de si própria.” (Hanslick 2002:14) b) A estética (aisthesis) deve se encarregar e inquirir “o objeto belo e não o sujeito senciente.” (Hanslick 2002:14) Não entraria em questão os sentimentos despertados com o objeto, mas as relações contidas no próprio objeto. 54 Se pensarmos mais profundamente nesta questão veremos que a idéia da música conter em si um principio notadamente belo, estético e de pura contemplação, sem obedecer à funções sociais maiores, constitui uma revolução profunda no próprio modo como grupos humanos lidam com esta arte, que além do crivo da palavra dado no renascimento, vincula-se a crivos maiores do uso cultural: “Temos aqui que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar sobretudo mágicos, nomeadamente apotropéicos (relativos ao culto) e exorcísticos (médicos). Com isso ela sujeitou-se àquele desenvolvimento estereotipador ao qual toda ação magicamente significativa, assim como todo objeto magicamente significativo, está inevitavelmente exposta; trata-se então de obras de arte figurativas ou de meios mímicos, recitativos, orquestrais ou relativos ao canto (ou, como freqüentemente, de todos juntos) que tinham por objetivo influenciar os deuses e demônios.” (Weber 1995:85) 167 c) A atividade de contemplação, “[...] do ouvir atento, que consiste numa consideração sucessiva das formas sonoras” (Hanslick 2002:16) repercute na faculdade do entendimento, que por sua agilidade de julgamento nos aparece como se tratasse de um processo imediato, mas que de acordo com o próprio Hanslick, “[...] depende de múltiplos processos espirituais mediatos.” (2002:16) d) O campo geral da estética deve se limitar ao conhecimento dos objetos belos, de sua relação com a percepção e com a imaginação tanto do compositor como do ouvinte. A questão dos sentimentos ou estados emotivos seriam “ [...] mais objecto da psicologia do que da estética.” (Hanslick 2002:18) Suas premissas aparecem de um modo ou de outro por toda a dissertação, porém o núcleo da dissertação transita pela consideração do objeto musical enquanto construto do entendimento, contido na premissa ‘c’. A originalidade desta dissertação certamente não se deve à eleição das premissas, que já se encontravam dadas no trabalho de Hanslick, nossa contribuição foi a de inserir uma análise que não se fez presente na obra de Hanslick, mas que o fazemos no sentido de dar legitimidade à sua pretenção de incluir a operação do entendimento numa estética musical. Antes, vejamos ainda quais foram as análises promovidas por Hanslick: 1) Representação de sentimentos: dado o caráter intelectual dos sentimentos, sua ligação com juízos – “o sentimento de esperança é inseparável da representação de um estado mais feliz que deve ocorrer e que se compara com o estado actual.” (Hanslick 2002:24) Hanslick investiga que classe de sentimentos podem ser representados diretamente pela música, e conclui que estes são frutos de sugestões psicológicas mais do que do conteúdo musical. Seu exame consiste em analisar críticas musicais, opiniões, e comparar com as passagens musicais em questão, mostrando que estas mesmas passagens suscitam outros sentimentos caso o libreto mude. 2) Representação de ideias musicais: aqui se acumulam o que de fato a música pode representar a partir de sua particularidade. “[...] as idéias que 168 se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as idéias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.” (Hanslick 2002:25) 3) Descrição musical: a descrição dos eventos e idéias musicais fica limitada pelos termos técnicos musicais, ou mesmo a metáforas que tentam sublinhar certo conteúdo (Hanslick 2002: 43). A atestação de certa incomensurabilidade entre a linguagem ordinária e a compreensão de tipo musical não configura um problema, mas sim, marca a autonomia do campo de conhecimento musical. 4) Caráter lógico: tratam-se de alusões e não de um escrutinamento deste caráter. Listo algumas relações lógicas aludidas por Hanslick: Causalidade - “na música, há sentido e conseqüência, mas musical.” (Hanslick 2002:44). Juízo – “há um conhecimento profundo em aludir também a ‘pensamentos’ nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório.” (Hanslick 2002:44). Conceitualidade – “reconhecemos de igual modo o fechamento racional de um grupo de sons, ao dar-lhe o nome de ‘frase’. É que sentimos exactamente o mesmo em qualquer período lógico, onde termina o seu sentido, embora a verdade de ambos se mantenha incomensurável.” (Hanslick 2002:44) Evidencia-se que nossa dissertação, além de se caracterizar por um investigação acerca do entendimento geral de objetos musicais, compromete-se em elucidar o caráter lógico destes objetos antevisto por Hanslick. Nossas conclusões neste sentido foram: • A correspondência geral entre os elementos musicais e condições lógicas dadas na filosofia transcendental kantiana. ( Seção 2, cap. III – 2 e 2.1) • A caracterização do objeto musical enquanto objeto lógico da consciência, e portanto, agregando conteúdos objetivos. ( Seção 2, cap. III – 1.3 e 1.3.1) 169 • A vinculação de conceitos, sobretudo os lógicos, mas também práticos, na totalidade de um obra musical. ( Seção 2, cap. III – 2.1) • A estruturação hierárquica de conceitos para a composição de uma experiência musical pontual, aliando os conceitos de tema, frase, repetição, harmonia, entre outros, a juízos sintéticos que os une, compreende e avalia. Consequentemente, por seus vínculos lógicos, fica igualmente possível uma cadeia que pode prosseguir até vínculos axiomáticos entre as relações sonoras como no caso da harmonia tonal ou da fraseologia. ( Seção 2, cap. III – 3 e 3.1) 2. A condição sine qua non da experiência musical. Para a consecução e mesmo a eleição de um modelo epistemológico para o objeto musical discutimos questões relativas ao trabalho de Kant. Nossa decisão, que já vinha influenciada por Hanslick quis mesmo assim verificar os argumentos da terceira Crítica que pudessem contribuir para o modelo geral. Antes de analisar a interação possível entre os juízos determinantes e os reflexionantes, seria necessário que estes dissessem respeito às condições fáticas da experiência musical. Os objetos sonoros são sintetizados aditivamente, mas não apenas aditivamente, pois que do simples colecionar de sons pela memória depreende-se conexões de segunda ordem: o fraseado, a progressão, recapitulação, modulação, variação, entre tantos outros juízos. Vimos que esta possibilidade de conexão sempre a um grau mais elevado de juízos foi possível pela coordenação nuclear das formasmotivo em conjunto com as funções tonais. Em vista deste quadro, qual seria então a precisa operação que faz distinguir a percepção do sonoro em agrupamentos que virão a ser musicais? Identificamos esta operação enquanto lógica. Porém - voltando ao quadro dos modelos kantianos do juízo determinante e reflexionante - esta série de juízos necessários para que entremos em contato com uma experiência musical acaba por perfazer uma condição sine qua non de sua 170 experiência, pois caso contrário, não superaríamos o âmbito meramente sensório do som. Quando dizemos ‘isto é uma música’ já estamos assim condicionados a uma experiência específica. Compete aos juízos referentes ao objeto musical que tenham fundamento necessário nos juízos que determinam o sujeito ‘música’ em uma experiência. Esta seria uma condição bastante óbvia para requerer lastro a juízos que tomam a música como um sujeito, tais como; ‘esta música é bela’ ou ‘esta música é um bolero’. Uma réplica diria que Kant, contrário a esta relação entre um objeto artístico ser tomado enquanto sujeito de predicados para um ajuizamento estético, tinha o intuito de demonstrar um ato judicativo puro, não necessariamente ‘anterior’ no sentido cronológico, para qualquer determinação. O fato do juízo da beleza se ancorar de modo a priori em uma autonomia da faculdade do juízo, possibilitaria uma predicação da beleza sem conter uma finalidade, independente da realidade do objeto em questão. Mas tal possibilidade relativizaria o parágrafo §9 da terceira Crítica e a legalidade dos horizontes lógico e estético assinalado na Lógica (2003). Uma réplica consistente deveria manter a organicidade da analítica do belo e a hierarquia das faculdades dada na terceira Crítica, mantendo assim a precedência da sensibilidade em sua autonomia não regrada, e sua sublevação a um estado reflexivo mantendo assim a precedência do estatuto do juízo reflexivo a qualquer determinação, como caracterizado no §9. Sendo assim, uma réplica consistiria apenas em demonstrar a necessidade desta estrutura e a impossibilidade do estético vir a dizer respeito ao que se encontra determinado em um objeto. Nossa tréplica consiste em colocar-nos numa posição privilegiada, no exato momento em que diante de um objeto (tendo em vista que não é possível estar diante de ‘nada’) um sujeito recua sob seu sentido determinante caracterizando assim um sentido estético. Neste instante, aquilo que é um diverso sensível passa a seguir uma trajetória a qual introduzimos dois questionamentos: 1) Para todo objeto de arte, que valha ser contado nesta categoria, é obra, segundo Kant, de um gênio. O Gênio seria um sujeito capaz de impregnar um objeto de uma regra, “dá a regra à arte” (CFJ:181).55 Esta regra condiciona um objeto real, seja um quadro, uma ópera, um livro. Porém, enquanto esta obra é condição de um 55 Para o caso tonal esta regra está dada na funcionalidade harmônica e no núcleo lógico/temático, tomando aqui como exemplo do gênio o trabalho de Haydn, Mozart ou Beethoven. 171 impulso para atingirmos o ato reflexionante do juízo, esta mesma atividade pura não conta com a obra, com o objeto ou com a regra impressa sobre ele. Kant não demonstra como um objeto é capaz de reter materialmente uma característica de impulsionar uma ação reflexionante em detrimento de sua própria constituição objetiva. Não demonstra igualmente qualquer vínculo entre uma capacidade de um objeto conter em si uma regra material que disponha nossa faculdade a um julgamento estético, e o estatuto reflexionante do juízo. Diferente disso, o objeto é abandonado tão logo o gênio tenha sido caracterizado, e não existe qualquer comentário a respeito do produto do trabalho do gênio. Apontamos para uma lacuna na argumentação, que deveria conter, entre o gênio e o juízo de gosto puro, uma explicação desta intermediação feita pelo objeto de arte, pois não é o caso da arte do século XVIII poder ser evocada sem um suporte. 2) Segue-se deste primeiro diagnóstico uma outra questão a que a teoria deva satisfazer. Se este objeto é um item necessário para a experiência estética no sentido de demandar uma atitude desinteressada, o objeto se torna uma condição imprescindível à sua própria dispensa. Concluímos que para a estrutura do juízo de gosto puro é necessário que se defina, sobre o objeto, se este contém algo que se liga à estrutura do juízo puro, ou, diferentemente, o objeto não faça parte em nenhum sentido, mas tão somente uma atitude do sujeito que muda de ‘ponto de vista’ – quanticamente - o seu juízo, a não reconhecer em um objeto uma função determinada, antes mesmo que ela possa ser dada. Feitas estas considerações esboçamos duas opções para o juízo estético kantiano: a) que o objeto seja necessário ao juízo reflexionante, enquanto contenha algo que faça atrelar-se ao juízo estético. b) que o objeto seja desnecessário pois que o juízo estético implica apenas em uma decisão puramente subjetiva. Além da beleza natural, apenas as obras artísticas são contempladas pelo juízo da beleza. Porém não há qualquer especificação ou determinação que explique por que a beleza recaia exclusivamente neste tipo de construção humana. O objeto artístico, tendo a peculiaridade de ser o único objeto de produção humana a suscitar o sentimento da beleza é, pelo próprio critério da beleza, censurado em sua constituição objetiva. Assim, certa qualidade especial, esperável no objeto da arte, naquela ‘natureza impregnada pelo gênio’, não é capaz de especificar a escolha dos objetos artísticos para a promoção da beleza, assim, a escolha de uma categoria de objetos que seriam privilegiadamente belos parece mesmo arbitrária. 172 Atentemos que o que está em jogo é uma condição para o objeto de arte, pois, se o juízo estético for completamente autônomo então ele pode vir a ajuizar independente de haver algum objeto. Porém, como ele lança mão de uma finalidade sem fim, é certo que algum componente sensível adentrou pelo sistema do conhecimento em geral, porém, se o juízo estético puro é uma autonomia da faculdade do juízo, porque ele deve se reportar a objetos da arte, e não a qualquer diverso? Neste item, tenciono ainda salientar como esta mudança de perspectiva reflete a necessidade de referir o fenômeno artístico a estruturas da subjetividade presentes no receptor, e não mais a propriedades intrínsecas do próprio objeto, o que se articula com o projeto maior de um pensamento eminentemente moderno, que consistiria em considerar o que se apresenta não mais como algo que é dado em si mesmo, mas na medida em que é representado pelo sujeito. (Vieira 2003:6) É fato que o gosto possui um âmbito subjetivo e presente no sentido interno, assim como o juízo determinante lida com conceitos do sentido externo. Se houve uma guinada no interesse de aspectos subjetivos por parte dos críticos e filósofos da arte do século XVIII, é certo que Kant não se insere meramente em um contexto geral, empirista, psicologista, Kant empreende um trabalho que compreende uma envergadura superior. Não se detém na subjetividade apenas, mas traça estatutos específicos para estes ajuizamentos em um discurso epistemológico. É necessário respondermos a algo muito mais caro do que um mero índice subjetivo implicado pela beleza, mas à própria estrutura de pensamento que Kant erige para este sentimento. A garantia de uma autonomia para o juízo de gosto implica que este se coloque de fato autônomo, e que resolva sua legalidade em relação ao objeto de arte. E é esta problemática geral de Kant que faz com que construa um estatuto com o do juízo reflexionante estético puro, pois que se preocupa com a autonomia do sentimento da beleza e não com sua ligação a objetos de arte, e à arte como que movendo todas as nossas faculdades. Da parte de nossa análise, ouvir uma melodia implicaria em uma série de regramentos atualizados pelo tempo, fazendo com que postulemos uma anterioridade lógica do objeto musical em relação a qualquer ajuizamento da beleza sobre este mesmo objeto. A beleza de uma música deveria, ao menos, contar antes com uma melodia prefigurada no sentido externo, onde esta melodia surja como resultado de recognições temáticas e harmônicas, ao mesmo tempo em que ajuíza uma série de 173 relações entre seus elementos sonoros a compor a compreensão da forma musical. É necessário, antes, que uma música se dê a entender em um padrão de compreensibilidade, ou não faria sentido dizer da beleza de uma obra musical. É neste sentido que uma condição sine qua non se mostra para a experiência musical, enquanto condição lógica para qualquer outro juízo. 3. Considerações gerais. A ligação entre música e processos matemáticos é certamente a que mais perdura pelo senso comum, e esta descende mesmo de Pitágoras e faz-se presente na máxima de Leibniz: “um exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que conta” (apud Schopenhauer 2003:228). A transposição de uma relação matemática para relações musicais específicas como frase, harmonias e ritmo é realizado inicialmente por Rameau, que consegue a façanha de operar a transposição entre uma percepção musical e uma composição físico-matemática do som. Este discurso não se encerra apenas sob relações matemáticas ou físicas, ele caminhou, como vimos, a direções lógicas para a estruturação de sua forma autônoma. Hanslick sublinhava a relação da música com termos como pensamento, conhecimento e entendimento, pois que no final do século XVIII estas confluências alargam-se de modo a dar lugar ao conceito de música absoluta, onde ele, Hanslick veio a apontar para o caráter lógico presente. Também no excerto de Schlegel transparece esta afinidade entre pensamento e música – ‘music for thought’ [música para o pensamento] (Dahlhaus 1989:107). Torna-se desde então comum associar o musical ao que é lógico, como vemos em manuais do século XX, como o de Schoenberg. Apenas analisando este contexto, já vemos como o intercâmbio entre a música clássica e o ponto de vista da terceira Crítica pareceram, em grandes linhas, excludentes, sendo esta última influenciada por uma tradição que pouco se ligava às novidades trazidas pela arte musical, vinculando-se ainda à tradição clássica francesa inspirada em Boileau (Vieira 2003). Ao mesmo tempo McCloskey (1987:1,2) aponta que os conceitos aos quais Kant agrega os principais sentimentos ligados à arte (belo e 174 sublime)56 pouco diziam respeito a arte romântica, movimento vigente quando da edição da terceira Crítica. O acento ao sentimento da beleza não passa a ser negado, pois parece mesmo ser uma tendência termos unidas às nossas representações afetos e sentimentos prazerosos. E em realidade é assim mesmo como se passa com os conteúdo ordinários em Kant. Com exceção da beleza, o prazer compreende o cumprimento de uma intenção – um juízo determinante – como consta na introdução da terceira Crítica. (CFJ: XXXIX) A beleza estabelece uma distinção do conteúdo do prazer, mas não uma distinção entre graus de prazer, e sim de natureza. Este é o fundamento da análise do juízo de gosto, a localização de sentimentos que contudo possuem estatutos diferenciados; o agradável, o sublime, o belo e o bom. Vimos no primeiro capítulo como o estatuto requerido para o juízo da beleza não se atrela a uma finalidade da faculdade do entendimento, tão somente a uma finalidade em vista de um conhecimento em geral que contudo não é determinado. Neste mesmo sentido os conceitos, as funções e as teorias expressas em tratados musicais, assim como a pedagogia e as técnicas composicionais, de acordo com este mesmo princípio kantiano, não garantiriam qualquer vínculo entre o prazer da beleza e o objeto em questão. Vimos no segundo capítulo que a falta de vínculo conceitual com a faculdade do entendimento ou de vínculo com idéias da razão acarreta em um fracasso da apercepção em exibir um conteúdo. Esta falta de comunicação entre o estatuto do juízo da beleza e do cumprimento de um conhecimento pela apercepção é o que caracterizaria a distinção entre o âmbito estético e o lógico. Se ignorarmos o critério lógico para o estabelecimento objetivo de um vínculo entre o prazer da beleza a um objeto qualquer, nos perguntamos mesmo qual seria a utilidade de tal dicotomia lógico/estética. Pois neste caso, predicar de um objeto, “x é belo”, e mesmo qualquer predicação da beleza não faria sentido, pois o juízo da beleza em momento algum contaria com qualquer sujeito para seu estabelecimento. De outro lado, é mais do que comum vermos associados os juízos da beleza a 56 Estes conceitos diziam respeito ao contexto do classicismo francês, onde a referencia estética centrava-se no conceito de mimesis. Tal conceito passa a ser prescindido pelo discurso instrumental, e seu uso na música programática perde predominância e fora mesmo invertido mesmo em Haydn, neste, a escrita musical dita o conteúdo e não o contrário. Tal discurso mimético que havia ainda migrado, para o contexto musical, da mera imitação da natureza para a imitação dos sentimentos (Rousseau 1998:189) fica assim despatriado pela técnica, formalismo e a lógica interna da composição que passa a predominar e servir de critério de inteligibilidade para o ouvinte 175 objetos determinados. Dizemos isto no sentido de uma sinfonia, enquanto objeto belo, ser acessível universalmente, ou seja, constituir um vínculo necessário àqueles que habitualmente escutam sinfonias e já são capazes de ajuizar sua forma. Podemos inclusive ajuizar beleza em passagens e momentos pontuais, o que vem ressaltar novamente este vinculo entre a beleza e as determinações do objeto. Contudo, o grau de verdade para conceitos empíricos não tem como ser absoluto em nenhuma esfera. A ciência já se compreende atualmente lidando com probabilidades, e a certeza da lei tem sempre que deparar com fenômenos, onde mesmo os de mais alto valor determinístico não conseguem se blindar de exceções. A música, a partir das regras as quais analisamos em parte nesta dissertação, conta também com conceitos empíricos, e estes também não se livram de certa necessidade e certa aleatoriedade. O caráter necessário dos objetos musicais, e mesmo de seu juízo de gosto pode ser exemplificado em uma estrutura estrofe/refrão (AAB:AAB) aplicada à música comercial. Esta é uma estrutura que provoca necessariamente prazer ao ouvinte, e o fato de psicologicamente uma parcela da população preferir uma variação a outra não retira igualmente o valor da predição conferida pela estrutura estrofe/refrão para o gosto da música popular, assim como confirmada no volume de vendas desta estrutura. Este tipo de relação com objetos musicais fica sem paralelo no modelo kantiano da terceira Crítica. Porém, aquilo que tem sede no que é mais caro à técnica clássica de composição - a evolução das formas-motivo e a funcionalidade da harmonia tonal - tem na atividade recognitiva uma chave válida de audição musical do período, ou mesmo em audições que se baseiem em seu paradigma. O labor artesanal dos músicos do período clássico, e este ponto é importante, é comparável ao trabalho dos grandes teóricos do mesmo período. Pois que foram capazes de estabelecer vínculos de significações bastante originais e que perduraram no tempo, dignos das grandes personalidades e intelectuais da época, mas que contudo, não tiveram seu trabalho equiparado a estes. Assim se expressa Dilthey sobre Haydn: “Al parecer, no llegó a comprender jamás el lenguaje de nuestros grandes poetas y filósofos.” (Dilthey 1945:291) Mais do que um grande poeta ou filósofo, Haydn e muitos outros compositores engendraram o que há de mais difícil na atividade do conhecimento, engendrar um novo campo de significações. 176 Encerremos então com um incomum intérprete kantiano, Albert Einstein, a discorrer sobre a compreensibilidade e a dificuldade intelectual concernente a esta tarefa: Uma das grandes percepções de Immanuel Kant foi que, sem esta compreensibilidade, a afirmação da existência de um mundo externo real seria destituída de sentido. Ao falar aqui de ‘compreensibilidade’, estamos usando o termo em seu sentido mais modesto. Ele implica: A produção de algum tipo de ordem entre as impressões sensoriais, sendo esta ordem produzida pela criação de conceitos gerais, pelas relações entre estes conceitos e por relações entre os conceitos e as experiências sensoriais, relações estas que são determinadas de todas as maneiras possíveis. É nesse sentido que o mundo de nossas experiências sensoriais é compreensível. O fato dele ser compreensível é um milagre. (Einstein 1994:65 ) Que o objeto musical seja compreensível, é apoditicamente demonstrável. Que dele depreenda, ou, que possa depreender um forte sentimento, no qual utilizávamos o termo ‘beleza’, isto também é compreensível. Porém o fato de um prazer se ligar à compreensão de um objeto parece ser igualmente e duplamente um milagre. 177 Bibliografia 178 ADORNO, Theodor. 2003. Notas de Literatura. São Paulo: Editora 34. ARISTÓTELES. 1984. Metafísica. São Paulo: Abril S.A. (Tradução: Eudoro de Souza) _______________2001-2. Metafísica. 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