recurso à gamificação como forma de ajudar os alunos de

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RECURSO À GAMIFICAÇÃO COMO FORMA DE AJUDAR OS ALUNOS
DE PORTUGUÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA A DECIFRAR O ENIGMA
DOS VERBOS ABUNDANTES
Letícia José Teixeira BAPTISTA1
RESUMO: Este artigo científico explica como usar, corretamente, os verbos em português que
têm duas ou mais formas de particípio passado (que é um tópico gramatical que os próprios
falantes nativos consideram, de alguma maneira, confuso). Outrossim, a autora fornece algumas
sugestões de como o ensinar a estrangeiros através da gamificação.
Palavras-chave: Particípios passados. Gamificação. Português Língua Estrangeira.
ABSTRACT: This paper explains how to correctly use the verbs in Portuguese that have two or
more past participle forms (which is a grammar topic that even native speakers find somehow
confusing). Also, the author makes some suggestions on how to teach it to foreigners through
gamification.
Keywords: Past participles. Gamification. Portuguese as a Foreign Language.
Segundo Cunha e Cintra (1992: 441), «são chamados ABUNDANTES os verbos que
possuem duas ou mais formas equivalentes».
Inserem-se no grupo dos verbos abundantes, maioritariamente, os verbos que apresentam
duplo particípio (ou mesmo triplo, como é o caso do verbo aceitar, com as formas aceitado, aceito
e aceite2), havendo um regular, o qual é utilizado com os auxiliares ter ou haver (voz ativa), e
outro irregular, que, por sua vez, é usado com os verbos ser ou estar (voz passiva). Assim sendo,
de acordo com a norma padrão, é aconselhável dizer/escrever: “tinha/havia soltado o cão” e “o cão
foi/está solto”.
1
Doutoranda em Linguística, na Universidade de Évora (Portugal).
No português europeu, é preferível a forma aceite; no português brasileiro, aceito(a). Nada obstante, para Bergstorm
e Reis (1956: 141), o particípio aceite não é vernáculo.
2
1
De modo geral, os particípios regulares são termos mais extensos e terminam em –ado, na
primeira conjugação, e em –ido, na segunda e na terceira conjugações, ao passo que os irregulares
são mais curtos e de terminação variável. A título de curiosidade, o particípio irregular «costuma
derivar directamente do latim como cultismo, ainda que algumas vezes se tenha formado já dentro
da língua portuguesa por contracção» (Cuesta & Luz, 1971: 448).
Analisemos os seguintes exemplos:
Os caçadores tinham matado a lebre.
Sujeito ativo
Particípio regular
Os caçadores haviam matado a lebre.
Particípio regular
Sujeito ativo
As lebres foram mortas pelos caçadores.
Sujeito passivo
Particípio irregular
As lebres estão mortas.
Sujeito passivo
Particípio irregular
Com os exemplos sobreditos, inferimos que os particípios variam em género e em número
quando acompanhados dos auxiliares ser e estar, mantendo-se invariáveis com os verbos ter e
haver (Almeida, 1979: 293).
No português arcaico, contudo, os particípios também eram variáveis quando antecedidos
dos auxiliares ter e haver, como elucida o gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida
(idem: 294):
Isso no português actual, porquanto no velho português, como ainda hoje em francês e em
italiano, o particípio junto aos auxiliares ter e haver era variável; um quinhentista podia
dizer: “Carta que eu tenho escrita” – como hoje diz um francês: “La lettre que j’ai écrite” –
e um italiano: “Ho scritte molte lettere”.
Atualmente, muita diferença existe entre: “Tenho corrigidas muitas lições” – que equivale
a dizer: “Tenho já prontas, já corrigidas” – e “Tenho corrigido muitas lições” – ou seja: “Há
tempo venho corrigindo lições”.
2
Posto isto, passamos a listar aqueles que, de acordo com Cunha e Cintra (1992: 441-442),
são os principais verbos abundantes no particípio e respetivas observações:
Primeira conjugação
Infinitivo
Particípio regular Particípio irregular
aceitar
aceitado
aceito
entregar
entregado
entregue
enxugar
enxugado
enxuto
expressar
expressado
expresso
expulsar
expulsado
expulso
isentar
isentado
isento
matar
matado
morto
salvar
salvado
salvo
soltar
soltado
solto
vagar
vagado
vago
Segunda conjugação
Infinitivo
Particípio regular Particípio irregular
acender
acendido
aceso
benzer
benzido
bento
eleger
elegido
eleito
incorrer
incorrido
incurso
morrer
morrido
morto
prender
prendido
preso
romper
rompido
roto
suspender
suspendido
suspenso
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Observações:
1.ª Morto é o particípio irregular tanto de matar como de morrer, e os particípios regulares são
matado e morrido, respetivamente. Ali (1971: 150-151) explica a origem de ambos:
A forma regular morrido só teve aceitação em linguagem literária de português hodierno.
Não registrei exemplo anterior à época de Filinto Elísio:
O que porém é certo é não ter morrido o Duprez em casa de marquez S. Jorge (Filinto
Elísio, Obr. 20, 24)
É singular a aversão que sempre manifestaram os escritores portugueses pelo particípio
derivado naturalmente do verbo matar. Existia todavia o vocábulo matado, sobretudo em
bôca de judeus […] porém a gente letrada cristã, quinhentista e seiscentista, conservou-se
fiel à tradição de pedir o particípio emprestado do verbo morrer, dando-lhe significação
activa. São inúmeros nas crônicas e outros escritores os exemplos semelhantes aos
seguintes:
Por ello Soldão neste tempo ter morto tres grandes capitães (Barros, Déc. 2, 8, 3) – Dous
trabucos nossos que lhe tinham morta alguma gente (ib. 2, 5, 7) […]
2.ª O particípio rompido também é usado com o verbo ser. Ex.: Foram rompidos os laços com o
país confinante.
Terceira conjugação
Infinitivo
Particípio regular
Particípio irregular
emergir
emergido
emerso
exprimir
exprimido
expresso
extinguir
extinguido
extinto
frigir
frigido
frito
imergir
imergido
imerso
imprimir
imprimido
impresso
inserir
inserido
inserto
omitir
omitido
omisso
submergir
submergido
submerso
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Observações:
1.ª Frito é o particípio irregular não só de frigir, mas também de fritar;
2.ª Quando o verbo imprimir tem o sentido de «infundir», é usado tão-somente o particípio regular.
Ex.: Não foi imprimida força suficiente sobre o corpo.
FORMAS DESUSADAS
Quer na ativa quer na passiva os particípios passados dos verbos abrir, cobrir, dizer,
escrever e fazer são: aberto, coberto, dito, escrito e feito, respetivamente. As formas regulares
abrido, cobrido, dizido, escrevido e fazido caíram em desuso há muito tempo (Pinto, 1998: 327;
Roberto & Sousa, 1974: 109).
Também importa assinalar que, na contemporaneidade, já não é recomendável o uso dos
particípios regulares ganhado, gastado e pagado. Em alternativa, devemos usar ganho, gasto e
pago. (Roberto & Sousa, 1974: 109)
Outro caso curioso é o duplo particípio irregular do verbo cozer, igualmente obsoleto:
cozeito e coito (este segundo aparece em biscoito, que significa “cozido duas vezes”). (Almeida,
1979: 298)
Citando, uma vez mais, Almeida (idem: 301), fica registada uma última curiosidade:
O verbo ter e os seus compostos conter, deter, manter e reter possuíam antigamente
as formas participiais em udo: teúdo (pronuncia-se te-ú-do), conteúdo (hoje usado
como substantivo), deteúdo, manteúdo e reteúdo.
Urge, por fim, consignar que antigas formas participiais — como, por exemplo, abstrato
(abstrair), afeto (afeiçoar), aflito (afligir), assunto (assumir), atento (atender), cego (cegar), cinto
(cingir), fixo (fixar), maduro (amadurecer) — pertencem, na atualidade, à classe dos adjetivos ou
dos nomes.
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CASOS EXCECIONAIS
Inúmeros são os verbos que fogem às regras anteriormente explicitadas. Vejamos três
exemplos (descalçar, corrigir e inquietar):
O árbitro foi descalçado pelo jogador com ímpeto.
Sujeito passivo
Particípio regular
Os testes estão corrigidos.
Sujeito passivo
Particípio regular
A aluna foi inquietada pelo professor.
Sujeito passivo
Particípio regular
OUTROS TIPOS DE VERBOS ABUNDANTES
Apesar de os gramáticos se terem remetido ao silêncio no concernente aos outros tipos de
verbos abundantes, tomamos a iniciativa de aludir aos mesmos:
 Verbo ouvir
Na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, o verbo ouvir possui duas formas:
ouço e oiço. O mesmo sucede em todas as pessoas do presente do conjuntivo.
 Verbos comerciar, negociar, obsequiar, premiar, presenciar, sentenciar
Nas três pessoas do singular e na terceira pessoa do plural do presente do indicativo e do
conjuntivo, estes verbos apresentam duas formas.
Vejamos, em seguida, o exemplo do verbo negociar:
Presente do indicativo
Presente do conjuntivo
Negoceio/Negocio
Negoceie/Negocie
Negoceias/Negocias
Negoceies/Negocies
Negoceia/Negocia
Negoceie/Negocie
Negociamos
Negociemos
Negociais
Negocieis
Negoceiam/Negociam
Negoceiem/Negociem
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 Verbos construir e destruir
Na segunda e na terceira pessoas do singular e na terceira pessoa do plural do presente do
indicativo, estes verbos têm duas formas, sendo a primeira a mais usada:
Exemplos
Tu constróis/construis uma casa.
Ele constrói/construi uma casa.
Eles constroem/construem uma casa.
ENSINO GAMIFICADO DOS VERBOS ABUNDANTES A ALUNOS DE PORTUGUÊS
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Só num nível linguístico avançado (o C1 do Quadro Europeu Comum de Referência para
Línguas, 2001) é que fará sentido ajudar os estudantes de Português Língua Estrangeira a decifrar
o enigma dos verbos abundantes — e por enigma entenda-se todo um conjunto de dúvidas que
suscita aos próprios falantes nativos no tocante ao correto uso dos particípios duplos.
O ensino dos verbos abundantes com recurso à gamificação prevê: em primeiro lugar, que
os alunos já sejam capazes de conjugar os verbos ser, estar, ter e haver em todos os tempos/modos,
além de conhecerem as regras de formação dos particípios passados regulares (e do plural e do
feminino, evidentemente) e de terem memorizado os particípios passados irregulares; em segundo
lugar, que o docente já tenha consagrado diversas aulas a uma explicação pormenorizada das
diferenças entre o pretérito perfeito composto do indicativo, o pretérito mais-que-perfeito
composto do indicativo, o pretérito perfeito composto do conjuntivo, o pretérito mais-que-perfeito
composto do conjuntivo, o futuro composto do indicativo, o futuro composto do conjuntivo e o
condicional composto.
A autora, por exemplo, utilizaria as explicações facultadas ao longo deste artigo científico
sob a forma de esquemas simples e concisos em Power Point, apresentando exemplos de frases
com os respetivos verbos sublinhados ou assinalados com uma cor diferente. Por fim, para testar
os conhecimentos dos alunos, recorreria a um puzzle de cartolina, repleto de frases (com grafias
ou significados muito semelhantes — jogos de palavras) e respetivas lacunas, para que eles
pudessem encaixar os verbos nas frases corretas.
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Sugestões de frases que poderiam ser utilizadas na aula de Português Língua Estrangeira
(nível linguístico: C1) com vista à gamificação do ensino dos particípios passados — com
exemplos pontuais de verbos abundantes:
Ele tinha acendido a luz.
Ele tinha ascendido ao céu.
Os alunos tinham acabado de chegar, quando a lâmpada fundiu.
Os alunos só teriam acabado o exercício se não tivessem brincado tanto.
As chaves foram confiadas aos empregados.
Os patrões tinham confiado nos empregados.
O cavalo foi montado pelo polícia.
O cavaleiro foi multado pelo polícia.
Eles terão contado quantas anedotas o João contou.
Incontáveis anedotas foram contadas pelo João.
Suspeita-se que o cão tenha sido morto pelo próprio dono.
Suspeita-se que o próprio dono tenha matado o cão.
Os dados foram cruzados num programa de computador.
Os dedos estavam cruzados... para dar sorte.
O cargo está vago.
O tema foi considerado vago.
Tenho andado distraída, ultimamente.
Tinha andado cerca de 2 km, quando desmaiei.
Ele tem achado estranho tanto silêncio.
Estou a ler uma carta que descreve o que aconteceu quando o Brasil foi achado.
Nota: No final, os alunos teriam de reler as frases e identificar os verbos que são abundantes,
justificando e dando novos exemplos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E WEBGRÁFICAS
Ali, M. (1971). Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 7.ª edição, Rio de Janeiro, Livraria
académica.
Almeida, N. (1979). Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 28.ª edição., São Paulo, Edição
Saraiva.
Bergström, M.; Reis, N. (1956). Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa, 2.ª edição,
Lisboa, Edição da Empresa Nacional de Publicidade.
Cuesta, P.; Luz, M. (1971). Gramática da Língua Portuguesa, 1.ª edição, Lisboa, Edições 70.
Cunha, C.; Cintra, L. (1992). Nova Gramática do Português Contemporâneo, 2.ª edição, Lisboa,
Edições João Sá de Costa.
Pinto, J. (1998). Novo Prontuário Ortográfico, 1.ª edição, Lisboa, Plátano Editora.
Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas – Aprendizagem, Ensino, Avaliação
(2001). Disponível online: http://www.dge.mec.pt/quadro-europeu-comum-de-referencia-paralinguas (Acedido a 28/05/2016)
Roberto, F.; Sousa, L. (1974). Prontuário de Língua Portuguesa, 6.ª edição, Lisboa, Editorial
Século.
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