O ensaio e a experiência do pensar na Filosofia do Renascimento Luiz Carlos Bombassaro – UFRGS RESUMO: Enquanto gênero literário, o ensaio filosófico está originariamente vinculado ao processo de mudança conceitual que se efetivou durante o Renascimento e que encontra um dos seus representantes exemplares e legítimos em Michel de Montaigne. Diante da cristalização dos modelos escolásticos, o ensaio representa não somente o anseio de transformação da forma, mas a possibilidade de efetivação de uma nova e radical experiência do pensar e a instauração de uma nova visão de mundo. Fazendo-se acompanhar por uma crítica mordaz do pedantismo, o ensaio permite assim a instauração do sentido através de uma prática vital de auto-apresentação do autor-leitor, de cujo processo reflexivo não emergem resultados definitivos, mas propostas interpretativas elaboradas a partir da leitura dos textos clássicos e da reflexão sobre a experiência vivida. Situado epistemologicamente nas fronteiras da arte e da ciência, com que de modo diverso compartilha sua natureza, o ensaio filosófico revela o espírito vivo de uma época em transformação que poderia ser descrita com o lema: escrever a vida, viver a filosofia. PALAVRAS-CHAVE: Ensaio, filosofia, Renascimento RESUMEN: El ensayo filosófico surge en la filosofía del renascimento e encuentra su representante legítimo em los Essays de Michel de Montaigne. Representa una crítica a los modelos escolásticos e instaura una nueva forma de expressión de la experiencia del pensar. Situado epistemologicamente en los limites del arte y de la ciencia, el ensayo revela el espírito vivo de una era de cambios radicales, donde confluyen el vivir, la escritura e el filosofar. PALABRAS- CLAVE: Ensayo, filosofia, Renascimento O ensaio e a mudança conceitual na filosofia da Renascença O processo de mudança conceitual, que se desenvolve durante o Renascimento europeu entre os séculos XIV e XVI e que ganha efetividade histórica no mundo moderno, está estreitamente vinculado à transformação das mais diversas formas de expressão do espírito humano. Alterando completamente a visão de mundo, provocando uma virada radical no modo de agir e de pensar, a manifestação mais clara dessa mudança se torna claramente visível na arte, na literatura e na filosofia. Importa aqui salientar somente um aspecto muito peculiar desse processo de mudança conceitual na filosofia da época: o surgimento do ensaio como gênero literário, tomando como referência a obra de Michel de Montaigne (1533-1592). Bem sabemos que o pensamento se manifesta de múltiplos modos. Como já mostrou J. Paviani, na história da filosofia podemos encontrar, em épocas diversas, diversos gêneros literários pelos quais se mostra de múltiplas formas a experiência do pensar. O aforismo, a carta, o poema, o diálogo, o tratado, a suma, a dissertação, a tese, o discurso são somente algumas dessas formas de expressão, mediante as quais quem filosofa procura dar a conhecer o que pensa, construindo com isso um registro permanente de sua experiência intelectual. O que é interessante notar é que o ensaio se presta muito bem à expressão do pensamento em épocas de transição conceitual, quando está em questão a vigência e o vigor de conceitos estabelecidos e hegemônicos. Ou seja, o surgimento do ensaio é também sintoma de uma mudança conceitual e paradigmática. E inclusive as transformações de ordem econômica, social e política podem ter seus reflexos na mudança conceitual que acompanha a variação do gênero literário. No caso de Montaigne, é preciso ter presente a força da mudança conceitual representada pelo questionamento radical das formas de expressão do pensamento vigentes no mundo medieval e a transição para uma mentalidade profundamente distinta que emergia com o processo de laicização e marcava o surgimento de um novo modo de ver o mundo quer no âmbito da cosmologia, quer na esfera dos negócios humanos. A uma nova visão do cosmos deveria corresponder uma nova concepção de homem. Nesse processo não mudavam somente os conceitos, mas também o seu modo de expressão. Então, se buscarmos uma forma específica de expressão da vida do espírito emblemática do Renascimento, certamente poderemos encontrá-la no ensaio filosófico. Enquanto gênero literário, o ensaio filosófico está originariamente vinculado, portanto, àquele processo de transformação intelectual que se efetivou durante o Renascimento e que encontra nos Ensaios de Montaigne um dos seus representantes exemplares e legítimos. Diante da cristalização dos modelos escolásticos e humanistas, centrados na estrutura formal da argumentação, o advento do ensaio representa não somente o anseio de transformação da forma, mas especialmente a possibilidade de efetivação de uma nova e radical experiência do pensar que leva a instauração da nova visão de mundo. Situado epistemologicamente nas fronteiras da arte e da ciência, com as quais de modo diverso compartilha sua natureza (em Montaigne e Giordano Bruno na figura do pintor, em Francis Bacon e em Galileu Galilei na imagem do cientista), o ensaio filosófico revela o espírito vivo de uma época em transformação que poderia ser descrita com o lema: escrever a vida, viver a filosofia. É bem verdade que a idéia de narrar e escrever o vivido não está associada primaria e necessariamente nem ao ensaio nem ao pensamento renascentista. Essa idéia é antes, também para o caso de Montaigne, quase uma conseqüência do programa de redescoberta dos antigos autores clássicos, gregos e latinos, de modo especial aqueles que pretendiam ver na filosofia uma fonte de sabedoria capaz de orientar e dar sentido à vida humana. Nesse singular movimento intelectual, mais que platônicos e aristotélicos, renascem especialmente filósofos epicuristas, estóicos, céticos e cínicos. Isso, por si só, já indica que o conceito de filosofia em voga na época de Montaigne deriva em grande medida de uma atitude filosófica baseada no repensar a tradição conceitual que lhe deu origem. A redescoberta de autores e textos antigos e as suas novas traduções produziram um caldo cultural capaz de fomentar a elaboração de novos argumentos e abrir novas perspectivas filosóficas para velhos temas com os quais se ocupara até então a filosofia. Mas não se tratava de apresentar os velhos temas em novas roupagens, como quem quisesse guardar vinho velho em odres novos. Tratava-se de repensar a tradição filosófica tanto em suas formas quanto em seus conteúdos. Desse modo, o projeto filosófico da Renascença, do qual Montaigne é um dos maiores expoentes, representa muito mais que uma mera recuperação de um passado esquecido e soterrado pelas interpretações recebidas e transmitidas pela mentalidade medieval. Na expressão de seus autores, esse projeto representa a abertura para um novo modo de compreender e de fazer a filosofia. E é exatamente nesse contexto que, rompendo com as cadeias das formas escolásticas, se situa o surgimento do ensaio como um novo modo de escrever a filosofia. Enquanto modo de expressão, o ensaio tem naturalmente características que lhe são próprias. É uma forma expressiva em prosa livre, muito distinta dos outros gêneros literários. Nele entra em jogo o que se insinua como possibilidade, como descrição marcada pela contingência, sem a pretensão de esgotamento do tema em questão, como é o caso do tratado, ou sem a pretensão da síntese, como é o caso da suma. Por outro lado, ele também não traz consigo o peso da exortação, como é o caso da carta. Sua estrutura, na verdade, está mais próxima ao diálogo, mesmo que aparentemente ele se mostre como um monólogo. Nesse sentido, embora busque descrever com veracidade todas as situações vividas pelo seu autor, o ensaio não pode ser definido como um gênero literário que vise uma totalidade. Nele o autor assume, com todos os riscos, uma perspectiva peculiar de interpretar o mundo. Por isso, um ensaio não se caracteriza pela auto-suficiência, nem pode ser considerado definitivo tudo o que nele se apresenta. As afirmações que encerra são marcadas pela possibilidade e pela contingência. O jogo dialógico do saber perspectivado expõe mais o olhar do observador do que propriamente o observado. Não raro são unicamente motivos ocasionais que fazem aflorar seus temas. Porque reúne o que é próprio da singularidade, o ensaio presta-se melhor ao conhecimento conjetural e provisório. Seu modo de abordagem é oblíquo, lateral, por vezes, marginal. Mas o que se torna evidente é que no ensaio o centro de interesse especulativo pode estar em qualquer lugar. Quer trate da investigação da natureza, quer descreva o conhecimento de si, o ensaio somente enuncia a experiência vivida por seu autor e, via de regra, se abstém de apresentar uma solução definitiva ao problema que aborda. Como afirma o próprio Montaigne a respeito de seus Ensaios: “Exprimo livremente minha opinião acerca de tudo, mesmo daquilo que, por ultrapassar meus conhecimentos intelectuais, considero fora de minha alçada. O meu comentário tem entretanto por fim revelar meu ponto de vista, e não julgar o mérito das coisas.” (1972:197). O ensaio parece ser assim o gênero literário que melhor se coaduna com a expressão da relatividade do nosso julgamento. As questões nele tratadas permanecem abertas e pressupõem a confrontação com outros ensaios, com ensaios futuros. Pode-se mesmo dizer que o ensaio é um texto imperfeito, uma obra inconclusa. Isso explica porque, especialmente no caso de Montaigne, o ensaio pode mostrar um caráter fragmentário. Por vezes, o relato e a análise de uma experiência vivida podem ser interrompidos abruptamente, demandando um novo ensaio ou mesmo uma referência e uma citação que nem sempre parece totalmente coerente com o tema que está sendo tratado. Como afirma Montaigne: “Gostaria por certo de possuir, acerca do que comento, um conhecimento completo, mas para o adquirir, não quero pagar o elevado preço que custa. Tenho a intenção de viver tranqüilamente, sem me aborrecer, durante o tempo que me resta, e não desejo quebrar a cabeça com o que quer que seja nem mesmo com a ciência que muito prezo.” (1972: p.196). Por outro lado, o ensaio também renuncia à pretensão de ser um discurso que tenha sua validade garantida por critérios formais. Usa uma linguagem coloquial e direta, numa narrativa que realça a primeira pessoa. Nesse sentido, a recusa da formalidade não é somente uma característica do ensaio enquanto tal; ela também mostra a marca da personalidade do seu próprio autor. É o próprio Montaigne quem afirma ser em tudo avesso às “regras protocolares”. Ele declara que, escrevendo “sem ordem nem propósito”, os seus “ensaios” foram compostos “fora de todas as regras convencionais”. Mas de que regras Montaigne está falando? Certamente aquelas consideradas como constitutivas do discurso na perspectiva da gramática, da lógica e da retórica de seu tempo. No entanto, no ensaio as regras da gramática, a força do silogismo, a persuasão da retórica parecem perder força quando comparadas ao mundo vivido. Diferentemente do tratado filosófico, por exemplo, o ensaio permite escrever sem artifícios e até mesmo explorar o aparecimento da contradição, provocando o espírito e o esforço interpretativo não somente do seu autor mas também do seu possível leitor. Por outro lado, também a persuasão não está garantida pelas regras do discurso, mas pela simples apresentação do tema. No caso de Montaigne, fazendo-se acompanhar por uma crítica mordaz do pedantismo, o ensaio permite a instauração do sentido através de uma prática vital de auto-apresentação, em cujo processo reflexivo não emergem resultados definitivos, mas propostas interpretativas elaboradas tanto a partir da leitura dos textos clássicos quanto da reflexão sobre a experiência vivida. A esse respeito, ele escreve: “Não busco nos livros senão o prazer de um honesto passatempo; e nesse estudo não me prendo senão ao que possa desenvolver em mim o conhecimento de mim mesmo e me auxilie a viver e morrer bem.” (1972: p.196). Desse modo, importa mais o que é dito do que a forma de dizer. E Montaigne tem com isso a pretensão, de “querer permanecer senhor de si mesmo em qualquer circunstância.” (1972: p.388). O que realmente importa ao autor dos Ensaios é o conhecimento de si. O surgimento do ensaio filosófico coincide assim com a emergência do “eu” e com invenção da autonomia que se apresenta de modo especial na escritura das cartas, das crônicas e das memórias. A busca de identidade parece se tornar assim o traço fundamental das reflexões filosóficas. Desse modo, podemos afirmar que o ensaio se define por seu estilo. Embora ao falarmos em ‘estilo’ precisamos ter presente a pluralidade semântica que esse termo evoca, já que ele designa tanto um conjunto de traços característicos que definem um modo de conduta de um indivíduo ou de um grupo, quanto um modo específico de expressão e manifestação cultural, no caso de Montaigne o estilo serve para identificar um modo específico de pensar e de escrever, uma maneira própria de fazer a apresentação de si mesmo e do mundo. Vejamos mais de perto como o próprio Montaigne se refere ao seu próprio trabalho: “Quando ouço alguém se referir ao estilo dos Ensaios, preferia que calasse. Pois não são tanto as expressões que revelam; são as idéias que denigrem e com tanto maior mordacidade quando o fazem de maneira indireta. Pude enganar-me, mas quantos outros se prestam mais ainda à crítica do mesmo gênero! O fato é que, bem ou mal, nenhum escritor ventilou maior número de assuntos, nenhum, em todo caso, os deitou no papel. Para que aí se agrupem mais e mais, enuncio-os apenas; se os desenvolvesse, muitos volumes mais seriam necessários e não apenas um. Muitos fatos aí se mencionam que nada dizem. Quem os quiser analisar engenhosamente fará longos ensaios. Nem eles nem minhas alegações servem sempre simplesmente de exemplo ou se apresentam para dar autoridade ao texto, e maior interesse à obra. Não os encaro apenas do ponto de vista do partido que deles tiro: comportam por vezes, independentemente de minha intenção, a semente de uma matéria mais rica e ousada e revelam, indiretamente, algo mais requintado, tanto para mim, que não quero exprimir mais, como para os que se encontrarem comigo.” (1972: p.125). Assim, é propriamente o uso da linguagem que define o ensaio como uma obra aberta, que ao dispor dos temas propõem uma interpretação possível. Como dissemos, nada no ensaio é necessário a não ser ele mesmo. Tudo se torna possibilidade. Por isso, por vezes o ensaio pode dar ao leitor a sensação de estar confrontado com um excesso de informações e de reflexões que parecem permanecer incompletas. Mas é propriamente essa incompletude que torna o ensaio a ‘semente’ de uma nova reflexão e que permite a proliferação de novos ensaios. É nessa incompletude que reside sua produtividade. Em última instância, o ensaio pretende produzir o efeito disparador capaz de dar movimento à experiência do pensar. O ensaio enquanto experiência estética: Montaigne e Bruno A tentativa de compreender adequadamente a relevância do ensaio enquanto gênero literário na filosofia não alcança êxito sem considerar um elemento estético que lhe é constitutivo: o fato de ele poder ser considerado uma pintura, um retrato ou, se preferirmos, um auto-retrato. Não é por acaso que o ensaio enquanto forma literária tenha surgido exatamente na época em que na filosofia ocidental se desenvolviam a mentalidade e as técnicas da representação pictórica de si. Explorar essa relação entre filosofia e pintura, entre ensaio e retrato na Renascença poderia nos levar longe demais tendo em vista o objetivo deste texto. No entanto, não é possível deixar de apontar aqui para a importância que essa relação adquire, especialmente porque ela aparece como um tema preferido do próprio Montaigne ao falar de si mesmo. Ao descrever sua atividade, o autor dos Ensaios afirma: “Outros formam o homem. Eu o descrevo. E dele apresento um exemplar muito mal formado, de modo que se devesse moldá-lo de novo na verdade o faria muito diferente do que é. Entretanto, ele já está feito. Ora, os sinais de minha pintura são sempre fiéis, embora mudem e variem. O mundo nada mais é do que uma continua gangorra; nele, todas as coisas oscilam sem cessar. (...) Não descrevo o ser, descrevo a passagem: não a passagem de uma idade para outra ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas sim de dia para dia, de minuto para minuto. É preciso que adapte a minha descrição ao momento. Poderei mudar de um momento para outro, não só por acaso, mas também por intenção. Trata-se de registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de idéias incertas e, às vezes, contrárias, seja porque eu mesmo estou diferente, seja porque capto os objetos segundo outros aspectos e considerações. Tanto é assim que talvez me contradiga... Se minha alma pudesse se estabilizar, não faria ensaios, mas soluções.” (1972: p.252). A tarefa do filósofo que Montaigne atribui a si mesmo é em tudo semelhante à atividade do pintor, que pretensamente se limita fazer uma descrição objetiva de si e do mundo. Mas a descrição do mundo e de si mesmo que se ensaia no texto é na verdade uma pintura; um quadro que capta o momento, de acordo com a perspectiva na qual se situa o próprio autor. Dada a constante transformação e o constante fluxo das coisas no mundo, o quadro conceitual que o filósofo pinta não pode ser caracterizado pela objetividade. Montaigne mesmo se considera um filósofo-pintor, como mostra a seguinte passagem: “Contemplando o trabalho de um pintor que tinha em casa, tive vontade de ver como procedia. Escolheu primeiro o melhor lugar no centro de cada parede para pintar um tema com toda a habilidade de que era capaz. Em seguida encheu os vazios em volta com arabescos, pinturas fantasistas que só agradam pela variedade e originalidade. O mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por acaso uns aos outros: “o corpo de uma bela mulher com uma cauda de peixe” (Horácio). Quanto ao segundo ponto fiz, pois, como o pintor, mas em relação à outra parte do trabalho, a melhor, hesito. Meu talento não vai tão longe, e não ouso empreender uma obra rica, polida e constituída em obediência às regras da arte.” (1972, p.95). É com o pintor que Montaigne aprende a técnica de retratar a si mesmo e ao mundo de acordo com a sua própria perspectiva. Escolhe um centro e ao redor dele vai acrescentando os detalhes que ajudam a formar o quadro. Mas o que representa mesmo o quadro pintado por Montaigne? E que técnicas ele próprio usa? Um bom indicativo para uma resposta está nesta sua afirmação: “Devo ao público um retrato realista de mim. Estes ensaios são edificantes porque a verdade, a realidade e a liberdade neles reinam.” (1972, p. 408). A pintura de Montaigne é na verdade um auto-retrato. O resultado da atividade filosófico-artística de Montaigne é na verdade uma duplicação do mundo, pois o retrato que elabora acaba por se tornar também um substituto da realidade. Assim, o retrato realista somente pode revelar sua natureza na medida em que o próprio filósofo faz sua descrição. E o filósofo somente pode descrever o mundo e a si mesmo num momento, sem pretender um olhar sub specie aeternitatis. Desse modo, o ensaio serve para introduzir no reino da filosofia a consciência do perspectivismo e o valor da relatividade do conhecimento. Novamente esse caráter de variabilidade e de mudança de perspectiva combina bem como espírito do tempo e com a idéia de que a filosofia se aproxima da pintura. Também Giordano Bruno, em seus diálogos, assume essa proximidade da atividade filosófica com o trabalho do pintor. Como bem mostrou Nuccio Ordine, para Giordano Bruno, há um vínculo originário entre filosofia e pintura. Em seu primeiro diálogo italiano, a peça O castiçal, Bruno descreve a si mesmo como um pintor. É o filósofo-pintor que urde a teia da tragicomédia, a trama na qual se encena o drama da ignorância, onde se entrelaçam os temas do amor, da alquimia e do pedantismo. No entanto, a relação entre filosofia e pintura não é somente um episódio nos textos de Bruno, mas perpassa toda a obra bruniana, acabando por constituir um elemento central do seu projeto filosófico. Assim como para Montaigne, também para Bruno a filosofia é uma forma de pintura, na qual o filósofo apresenta um retrato tanto da paisagem e quanto de si mesmo. Em A ceia de Cinzas, Bruno parece referir-se ao mesmo tema já indicado por Montaigne. O filósofo italiano afirma estar fazendo em seu diálogo “uma descrição dos passos e das passagens”, “olhando coisa por coisa com os olhos de lince aqui e acolá (não se detendo muito), enquanto faz o seu caminho”, “além de contemplar as grandes máquinas parece-lhe que não há minúcias, nem pedrinhas, nem seixos com o quais não se vá se deparar.” E acrescenta: “E nisto faz justamente como um pintor, ao qual não basta fazer o simples retrato da estória, mas para completar o quadro e conformar sua arte à natureza pinta também as pedras, as montanhas, as árvores, as fontes, os rios, as colinas, e vos faz ver aqui um palácio real, ali uma selva, lá um traço de céu, naquele canto um meio sol que nasce e, de vez em quando, um pássaro, um porco, um cervo, um asno, um cavalo; embora basta fazer ver deste uma cabeça, daquele um chifre, do outro uma anca, deste as orelhas, daquele a imagem inteira; e isso com um gesto e uma expressão que não tem este e aquele, de tal maneira que, como dizem, chega a mostrar a figura com maior satisfação do que quem olha e julga.” (1994, p. 13). Por vezes, na filosofia o retrato produzido pelo filósofo-pintor mostra mais do que o olhar do observador pode perceber. E como nos ensaios de Montaigne, os detalhes somente entram como complemento da cena, como esclarece o próprio Bruno: “Se vos parece que as cores do retrato não correspondem perfeitamente ao modelo vivo e os esboços não vos parecem de todo adequados, sabeis que o defeito provém do fato de que o pintor não pode examinar a pintura com aqueles espaços e distâncias que costumam usar os mestres da arte, pois, além da mesa ou do campo estarem muito próximos ao rosto e aos olhos, ele não podia dar um mínimo passo para trás ou afastar-se de um ou de outro lado sem o temor de dar um salto (...). Recebei pois tal como está este retrato, com aqueles dois, aqueles cem, aqueles mil detalhes e tudo o que ele contém, já que não o envio para vos informar daquilo que já sabeis, nem para acrescentar água ao caudaloso rio de vossa inteligência e de vosso juízo, mas porque sei que segundo o costume, embora conheçamos as coisas ao natural, não devemos porém delas desprezar o retrato e a representação.” (1994, p. 23). A relação entre filosofia e pintura torna a aparecer também em A cabala de Pégaso: “Deveis considerar também que esta pequena obra contém uma descrição, uma pintura; e que, na maioria das vezes, nos retratos basta que seja representada tão somente a cabeça sem o resto. Acho que talvez seja um excelente artifício pintar uma só mão, um pé, uma perna, um olho, uma orelha esbelta, um meio vulto que se projeta atrás de uma árvore, ou de um cantinho de uma janela, ou está como esculpido no bojo de uma taça, a qual tenha por base um pé de pata, ou de águia, ou de qualquer outro animal: nem por isso se condena, nem por isso se despreza, mas melhor é aceita e aprovada a obra. (1994, p. 17-19). Por fim, em seu último diálogo italiano, Os furores heróicos, Bruno volta a se apresentar como um filósofo-pintor especialmente ao tratar das imagens e das metáforas que aludem ao olhar, que é capaz de ir além da superfície e transpor o umbral da sombra. Se após essas referências brunianas voltarmos ao nosso ponto de partida, poderemos perceber então o alcance da proposta que Montaigne realiza em seus Ensaios. Enquanto pretende simplesmente fazer um retrato de si mesmo, através da narrativa de sua experiência no campo do pensar, o filósofo transforma sua própria existência. Referências bibliográficas BRUNO, Giordano. Oeuvres complètes. (G. Aquilecchia, Y. Hersant, N. Ordine) Paris : Les Belles Lettres, 1993-1999.[É minha a tradução de todos os textos citados]. MONTAIGNE, Michel de. Oeuvres complètes. (A. Thibaudet, M. Rat). Paris: Gallimard, 1962 [Trad. br. Ensaios. (Sérgio Milliet), São Paulo: Abril Cultural, 1972]. ORDINE, Nuccio. O umbral da sombra. Literatura, filosofia e pintura em Giordano Bruno. São Paulo: Perspectiva, 2006. PAVIANI, Jayme. Texto inédito.sd