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Universidade Federal do Rio Grade do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Filosofia
Prova prática do concurso público para professor de Ensino de Filosofia
Candidata: Gisele Dalva Secco
Sugestão de atividade - História da filosofia
Texto [1]
“MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o
Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde
remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era
então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas
à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por
um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos préhistóricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam
de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.
Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos
esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um
grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos
inventos. Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de
barba rude e mãos de pardal1, que se apresentou com o nome de
Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo
que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios
alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois
lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os
caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar,
e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos
parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há
muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se
arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de
Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano
1 No original manos de gorrión. Explicação do autor à tradutora: “O importante da
imagem é que esse pássaro tem patas de ave de rapina, mas é bom e inofensivo. Melquíades também, por suas mãos, e à primeira vista, podia parecer uma ave de rapina,
mas não o era, como se viu mais tarde”.
Anotações:
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com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.”
José Arcádio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais
longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre
e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção
inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um
homem honrado, preveniu-o: ‘Para isso, não serve.’ Mas José
Arcádio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez
dos ciganos, de modo que trocou seu jumento e um rebanho
de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán,
sua mulher, que contava com aqueles animais para aumentar
o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo.
‘Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a
casa’, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se
em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo
a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois
lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades.
A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do
século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada
de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme
cabaça cheia de pedras. Quando José Arcádio Buendía e os
quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a
armadura, encontraram dentro um esqueleto calcificado que
trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um
cacho de cabelo de mulher.
Em março, os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculo
de alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram
como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram
uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo
de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento de
cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao
alcance da mão. ‘A ciência eliminou as distâncias’, apregoava
Melquíades. ‘Dentro em pouco o homem poderá ver o que
acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.’
Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa demonstração
com a lupa gigantesca: puseram um montão de capim seco na
metade da rua e atearam fogo nele pela concentração de raios
solares. José Arcádio Buendía, que ainda não se consolara de
todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu a idéia de utilizar
aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra
vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou aceitando os dois
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lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial em troca
da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia
parte do cofre de moedas de ouro que seu pai acumulara em
toda uma vida de privações e que ela havia enterrado debaixo
da cama, à espera de uma boa ocasião para investi-las. José
Arcádio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que
estava por inteiro às suas experiências táticas, com abnegação
de um cientista até mesmo com o risco da própria vida. Tentando
demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se
expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras
que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo
para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão
perigosa inventiva, por pouco não incendiou a casa. Passava
longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades
estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um
manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de
convicção irresistível. Enviou-o às autoridades, acompanhado
de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de
vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um
mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos
desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer
sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um
caminho que o levasse as mulas do correio. Embora a viagem
à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcádio
Buendía prometia tentá-la logo que o Governo ordenasse, com
o fim de fazer demonstrações práticas de seu invento diante dos
poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas
artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta.
Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades
do fracasso da sua iniciativa, e o cigano então deu uma prova
convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da
lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e
vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra
escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann,
que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do
astrolábio, da bússola, e do sextante. José Arcádio Buendía
passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que
construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse
as suas experiências. Tendo abandonado completamente as
obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal,
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vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação
por tentar estabelecer um método exato para determinar o
meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo de seus
instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu
navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados
e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de
abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o
hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar
com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas
na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame,
do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a
sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma
espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado,
repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas
conjeturas sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim,
numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de
uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de
recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai
se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado
pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e
revelou a eles a sua descoberta:
– A terra é redonda como uma laranja.
Úrsula perdeu a paciência. ‘Se você pretende ficar louco, fique
sozinho’, gritou. ‘Não tente incutir nas crianças as suas idéias
de cigano’. José Arcádio Buendía, impassível, não se deixou
amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de
cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro,
reuniu num quartinho os homens do povoado e demonstrou
a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis
para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida
navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava
convencida de que José Arcádio Buendía tinha perdido o
juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos
limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem
já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então
em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu-lhe um
presente que havia de exercer uma influência decisiva no futuro
da aldeia: um laboratório de alquimia.”
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a Você destacaria no texto acima algum ponto de contato com
temas de história da filosofia no ensino médio? Em caso positivo,
além das razões para a relação, apresente exemplos.
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a Comentário
Lord Russell afirma que no ensino de literatura corre-se muito
risco de erro. Seu primeiro exemplo de fracasso é o caso da
insistência em enfatizar informações acerca da literatura aos
alunos (sejam crianças ou adolescentes). Ele diz: “O que tem
valor é a familiaridade com certos exemplos de boa literatura –
familiaridade com o estilo não só de escrever como de pensar.”
([2], p. 229).
Apesar de não tratar do ensino de filosofia creio que a observação
do mentor de Wittgenstein pode nos guiar na identificação de
elementos comuns ao caso do ensino de literatura e o de filosofia
para jovens. Ela nos auxiliaria a perceber que a filosofia possui,
como a literatura, uma intransponível dimensão de textualidade.
É claro que há muito mais do que isso, sobretudo em se tratando
de uma atividade que pode – e de fato assim foi engendrada – se
concretizar na forma oral do diálogo. Além disso, a sala de aula é um
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espaço que pode, em princípio, ser lugar de exercício de diálogo, de
intercâmbios argumentativos, incluindo-se os acerca de conceitos.
Lembra-nos disso R. Rocha em [3], apontando também para o fato
de que é nossa uma de nossas tarefas como professores de filosofia
a de conduzir equilibradamente esses jogos, nos quais não vale,
como na esfera familiar, a regra da obediência ao poderio paterno,
materno ou fraterno. O professor de filosofia, então, pode ser visto
tanto como o condutor de diálogos entre e com os alunos e, claro,
deles consigo mesmos – uma vez que as habilidades de analisar
e criticar ideias, conceitos ou juízos também são exercitadas na
leitura e produção individual de textos.2
Em termos mais objetivos, a abertura do romance seminal de
García Márquez presta-se a exemplificar a multiplicidade de
possibilidades de conexão de um texto literário com temas e
problemas da filosofia, tanto de teoria do conhecimento, filosofia
da ciência, como também com tópicos de filosofia moderna: a
relação de certo tipo de sabedoria (representada na personagem do
cigano Melquíades) com a episteme que o patriarca dos Buendía
desenvolve de modo peculiar; da ciência com a engenharia
(técnicas e armas de guerra); a ultrapassagem da obsessão do
personagem “científico” pelo domínio dos resultados utilitários
ou pragmáticos das invenções na direção da descoberta de
verdades acerca do universo; o processo de construção desse
saber na sociedade na qual é engendrado; o uso e a importância
de instrumentos na construção do saber sobre a natureza; e
até mesmo a importância da linguagem. Sobre esse ponto é
interessante notar que os alunos quase sempre destacam como
”filosófica” a frase sobre o mundo, nos inícios de Macondo, ser
tão recente que, na ausência de nomes para as coisas, era preciso
“apontar com o dedo”.3
2 São esses textos que queremos aprender a conduzir a produção, o que é objetivo das
disciplinas “Lógicas e metodologias para o ensino de filosofia” (Anexo II do projeto
de pesquisa) e “Produção de material didático para o ensino médio” (Anexo V), nas
quais a atividade aqui sugerida poderia figurar, inclusive como avaliação parcial.
3 Isso, aliás, permite uma rápida menção a outro episódio do mesmo romance que pode
ser utilizado em aulas de filosofia da linguagem no EM, a saber: a peste da insônia.
Trata-se da ocasião na qual todos os habitantes da cidade contraem a tal peste, que
tem por um de seus espantosos efeitos colaterais (além da possibilidade de se enxergar
os sonhos alheios) o esquecimento dos nomes das coisas. Esse mal evolui mais tarde
para um progressivo esquecimento das funções das coisas. O leitor/aluno atento
pode perceber aí uma ótima maneira de introduzir uma discussão sobre concepções
filosóficas intuitivas acerca da linguagem e do significado.
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A leitura do texto literário é preambular (nesse caso, ao estudo
de tópicos de filosofia moderna), é verdade, mas não se pode
dispensar algum tipo de preâmbulo em qualquer situação didática
de filosofia. Isso pode ser feito das mais variadas formas, como
o apelo ao cinema, jornalismo, teatro, música… O que cabe
Trabalho
ressaltar é que a literatura cumpre aqui a função daquilo que R. Após leitura e fichamento
Rocha destaca de modo preciso ao final do quinto capítulo de do primeiro capítulo de [4]
[3], a saber: a concretização do lema didático que prescreve ir e do terceiro capítulo de [5]
do vivido para o pensado pode ser boa quando encontramos as identifique e liste conceitos,
assim chamadas situações filosóficas em contextos simbólicos temas e problemas filosóficos
(cinema, jornalismo, teatro, música…) que satisfaçam o critério para serem trabalhados em
da familiaridade que todos temos com os conceitos da reflexão conexão com a leitura de
filosófica (na medida em que atravessam as experiências [1]. Sugira outros textos
humanas no mundo) ao mesmo tempo em não esbarram na literários que dariam conta
efetiva discussão sobre casos individuais de dilemas, paradoxos desses problemas e planeje,
ou perplexidades da cada aluno. Essas coisas, sabemos, ocorrem a partir daí, duas aulas para
com habitual frequência em aulas de filosofia. Nesse sentido, as o ensino médio.
manifestações artísticas e culturais são o melhor repositório das
experiências comuns, nas quais aqueles conceitos habitam, com
as quais se iniciam as experiências filosóficas.
Referências bibliográficas
[1] GARCÍA MÁRQUEZ, G. Cem anos de solidão.
[2] RUSSELL, B. Educação e Vida Perfeita. Tradução Monteiro Lobato. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1956.
[3] ROCHA, R. P. da. Ensino de filosofia e currículo. Petrópolis: Vozes, 2008.
[4] KENNY, A. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Volume III: O Despertar da Filosofia
Moderna. Trad. Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
[5] ROSSI, P. O nascimento da ciência moderna na Europa. Tradução Antonio Angonese.
Bauru : EDUSC, 2001.
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