Monografia Renan - Conservatório Souza Lima

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FACULDADE SOUZA LIMA
RENAN CACOSSI CAPODEFERRO
OS DISTANCIAMENTOS E APROXIMAÇÕES DA MÚSICA DO
QUARTETO NOVO COM O JAZZ NORTE-AMERICANO
SÃO PAULO
2014
RENAN CACOSSI CAPODEFERRO
Os distanciamentos e aproximações da música do
Quarteto Novo com o Jazz norte-americano
Monografia apresentada à Faculdade
Souza Lima como parte dos requisitos para
conclusão do curso de graduação em
Música.
Orientador: Prof. Pós-Dr. Marcelo Coelho
SÃO PAULO
2014
Resumo
Este trabalho pretende analisar o grupo Quarteto Novo a fim de verificar
se existem e quais são os traços remanescentes do jazz norte-americano em
sua música. Pretende-se procurar as características que podem ser
consideradas como influência direta do jazz, bem como os aspectos que fazem
com que a música do Quarteto Novo possa ser considerada como
inauguradora de um estilo original brasileiro, levando-se em conta a questão
composicional e de improvisação. Pretende-se discutir e apontar as possíveis
aproximações e os distanciamentos da música do Quarteto Novo com o jazz
norte-americano.
Palavras-chave: música instrumental brasileira, jazz, Quarteto Novo.
Abstract
This work intends to analyse the Quarteto Novo group in order to verify the
existence and the remaining traces of north american Jazz in its music. The
purpose is to find out the features that can be considered as a straight influence
of Jazz as the aspects that can make the Quarteto Novo’s music as an
inaugurator of a original brazilian style, taking into account the composition and
improvisation question. The intention is discuss and point out the possible
approachs and distances of the Quarteto Novo’s music with north american
Jazz.
Keywords: brazilian instrumental music, jazz, Quarteto Novo.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 5
CAPÍTULO I ...................................................................................................... 7
Contexto político: a Ditadura Militar ............................................................ 7
Influência da indústria cultural estrangeira: uma questão histórica ........... 10
A canção de protesto e a retomada de valores culturais nacionalistas ..... 13
O Quarteto Novo: uma breve trajetória ...................................................... 15
CAPÍTULO II .................................................................................................... 18
A questão modal ........................................................................................ 20
Os solos em chorus .................................................................................... 23
Aproximações cromáticas ........................................................................... 24
A questão rítimica ....................................................................................... 27
A questão da instrumentação ..................................................................... 29
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 33
ANEXOS .......................................................................................................... 35
5
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar o grupo Quarteto Novo a fim de
verificar se existem e quais são os traços remanescentes do jazz norteamericano em sua música. A partir de transcrições já feitas, pretende-se
entender a questão composicional e de improvisação do grupo e verificar se
existe um hibridismo nessa música.
Gerolamo (2012) aponta algumas características que podem ser
discutidas, gerando a possibilidade de considerarmos a música do Quarteto
Novo como inauguradora de um estilo original brasileiro. Leva-se em
consideração a questão composicional e de improvisação. Pretende-se discutir
se há um hibridismo e se os músicos conseguiram eliminar qualquer rusga do
jazz na música instrumental do grupo.
O Quarteto Novo é um capítulo especial na história da música brasileira,
pois desenvolveu uma linguagem de improvisação e de composição até então
nunca praticados na música popular instrumental brasileira. Este trabalho
pretende complementar e discutir os poucos estudos que existem sobre este
grupo que influenciou decisivamente a música instrumental no Brasil.
O Quarteto Novo era formado por Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal,
Théo de Barros e Airto Moreira. O grupo nasceu do Trio Novo, que
acompanhou o cantor Geraldo Vandré na segunda metade dos anos 1960.
Estes anos foram marcados pela dura repressão da Ditadura Militar. Muitos
artistas passaram a pensar uma arte engajada, que fosse capaz de influenciar
as pessoas e ser combativa à condição em que se encontrava o Estado
brasileiro.
Desde o Estado Novo de Getúlio Vargas, o Brasil passou a sofrer uma
influência cultural direta dos Estados Unidos. Isso reverberou seriamente na
produção musical brasileira, culminando no surgimento da bossa nova no final
dos anos 1950. Tinhorão (1966) caracteriza a bossa nova como sendo o
produto da subversão do samba brasileiro pelo jazz dos Estados Unidos. E
essa era a principal produção na música popular brasileira naquele momento.
Depois do golpe militar em 1964, surgem as canções de protesto, onde
os compositores buscavam um nacionalismo musical. Existia um imaginário
nacional popular que era permeado por idéias políticas da esquerda da época.
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Geraldo Vandré foi um dos principais compositores que estavam inseridos
nesse contexto e essas idéias influenciaram seriamente a música que viria a
ser produzida pelo Quarteto que o acompanhava.
Todos os músicos do Quarteto Novo possuíam uma formação jazzística.
Influenciados pelo contexto descrito, tomaram a atitude política de produzir
uma música instrumental que fosse destituída da influência do jazz e trouxesse
características essencialmente brasileiras. Para tal, foram buscar recursos na
música feita no nordeste brasileiro no que tange a questões rítmicas,
melódicas, timbrísticas e harmônicas. A idéia era eliminar qualquer traço
distinguível do jazz. Será que eles alcançaram esse intento?
Este trabalho visa enriquecer a discussão, partindo da reflexão de
alguns traços que poderiam distinguir essencialmente o jazz norte-americano, e
como isso se relaciona com a música do Quarteto Novo. O grupo conseguiu
eliminar a forte influência do jazz que permeava a produção musical brasileira,
emblematicamente caracterizada na bossa nova e no samba jazz?
7
CAPÍTULO I
No contexto brasileiro dos anos 1960, marcado pelo Golpe Militar de
1964 e pelo Ato Institucional nº 5, emergiu uma arte experimental e
comprometida politicamente. Do Tropicalismo, passando pelos projetos teatrais
mais ousados, à movimentação do Cinema Novo, os artistas posicionaram-se
criticamente àquele momento histórico através de suas pesquisas artísticas.
(REIS, 2009).
Para entender a postura política do grupo no sentido de trabalhar um
nacionalismo musical, faz-se necessária uma cobertura do contexto político do
início da década de 1960 e dos acontecimentos relacionados ao golpe militar
de 1964. Piedade (2005, p.2) nos diz que “A compreensão da música
instrumental depende da descoberta de seus nexos ‘musicoculturais’, daí a
necessidade de uma atenta análise musical que inclua o olhar para a cultura e
para o discurso.”
Não seria possível entendermos a relação entre o jazz norte-americano
e a música brasileira sem passarmos pelos acontecimentos políticos internos
que exerceram influência direta no pensamento dos músicos envolvidos no
processo que pretendemos averiguar. Precisamos nos ater também aos
detalhes que aparecem na relação entre música brasileira e jazz , a partir da
relação entre o Brasil e os Estados Unidos.
Esta relação, ao mesmo tempo de tensão e de síntese, de
aproximação e de distanciamento, tem profunda correlação com
discursos sobre imperialismo cultural, identidade nacional,
globalização e regionalismo. (PIEDADE, 2005, p.2)
Contexto Político: a Ditadura Militar
Em 1960, o Brasil encontrava-se em uma situação contrastante, pois o
desenvolvimento econômico que o país experimentava não estava trazendo
consigo a solução para os problemas sociais enfrentados pela população.
O Brasil havia alcançado patamares de desenvolvimento econômico
expressivos, que se contrastavam com os problemas sociais. O
desenvolvimentismo era falho, atingia apenas algumas parcelas da
população e desenhava uma concentração de riquezas que não
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poderia ser mais protelada pelas ações conciliatórias do populismo.
(http://retro55a68.wordpress.com/politica/)
O presidente João Goulart, antes de assumir o governo, foi obrigado a
mostrar-se em acordo com as exigências dos militares, que eram contra a sua
chegada ao governo. Submetido às limitações do parlamentarismo, Jango foi
previamente impedido de apelar para o já conhecido nacionalismo populista
utilizado por Vargas. Mesmo assim, em 1963 ele conseguiu aprovar um
plebiscito
que
reestruturaria
o
presidencialismo
e,
conseqüentemente
fortaleceria a ação do poder Executivo. Neste momento, Jango trouxe ao país
uma série de mudanças previstas pelas Reformas de Base.
João Goulart Esta imagem de “subversivo” e “comunista” era devido
ao seu programa de governo cujo principal projeto era as Reformas
de Base. Tal projeto previa reformas em diversos setores como fiscal,
bancário, na educação e no campo, sendo a Reforma Agrária seu
“carro-chefe”. No entanto, apesar do apoio dos movimentos populares
e de suas organizações como o Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), as Ligas Camponesas, a UNE e o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) etc, Goulart não governava apenas para os
trabalhadores. Seu governo assumiu uma política de conciliação,
atendendo ora aos setores à esquerda, ora àqueles à direita. Jango
não podia assumir compromissos definitivos com estes tampouco
com aqueles, pois necessitava do apoio de ambos para continuar
governando. (SANTOS, 2009, p.102)
Com essas medidas Jango conquistou rapidamente o apoio de líderes
de sindicato nacionalistas e partidos políticos de esquerda. Com isso, os
grupos de tendência conservadora mostraram-se desconfiados e avessos aos
projetos sociais das Reformas de Base. Seu comportamento “dúbio” assustou
os militares, que optaram então pelo caminho do já conhecido golpe militar que,
em 31 de março de 1964, deu fim á democracia brasileira.
O golpe militar de 1964 foi despachado para evitar a ameaça
comunista. Com ele, iniciavam-se os vinte e um anos do chamado
regime militar, marcado pelas restrições aos direitos e garantias
individuais, pela extinção dos antigos partidos políticos e pela
violência, típica dos regimes ditatoriais. Procurando descaracterizarse como um Estado de Exceção, a nova ordem, dita revolucionária,
manteve algumas instituições democráticas: o Congresso Nacional,
tolhido em suas prerrogativas tornaria-se um dócil homologador das
decisões dos governos militares, e as eleições, em todos os níveis se
processariam dentro das variadas regras e restrições, que se
estabeleciam a partir de 1964. De outro lado, o regime autoritário
buscou sua legitimação através de uma legislação [...] através dos
atos institucionais (que estão acima da carta Magna) e da
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Constituição de 1967, mais tarde modificada pela Emenda
Constitucional de 1969. [...] O novo regime tinha um dos seus mais
importantes fundamentos na Doutrina de Segurança Nacional,
fortemente influenciada pela conjuntura da Guerra Fria e pela crise do
populismo. Segundo essa doutrina, que substituía o conceito de
“defesa nacional”, era preciso combater os comunistas e outras
forças “subversivas” que se infiltravam em todos os setores da
comunidade brasileira, visando desestabilizar o governo, as
autoridades
e
as
instituições
nacionais.
(http://retro55a68.wordpress.com/politica/)
Nos últimos meses de 1966, o governo preparou e encaminhou ao
Congresso o projeto para a nova Constituição cuja tramitação foi fixada pelo AI4. A nova Constituição foi promulgada em janeiro de 1967. Ao final do governo
Castelo Branco foi instituída a da Lei de Segurança Nacional, que entrou em
pleno vigor em 29 de setembro de 1969, tornando todos os cidadãos
responsáveis pela segurança do país. A Lei de Segurança Nacional previa a
prisão de grevistas, a apreensão de qualquer edição interna dos jornais e
revistas, bem como a censura plena e severas punições para quem
desrespeitasse as autoridades do governo ou distribuísse propaganda
“subversiva”, além de outras medidas de caráter repressivo.
A partir de 15 de março de 1967 o general Arthur Costa e Silva assumiu
o poder. Nessa época, os movimentos de oposição ao regime dos militares
cresceram significativamente. No VI Congresso do Partido Comunista Brasileiro
foi tirada a condenação da luta armada como forma de combater o governo, o
que gerou várias dissidências na esquerda brasileira da época.
Em 1968, o Brasil passou por uma onda de protestos contra a
ditadura que teve influências de toda a conjuntura histórico-cultural
que pairava sobre o mundo como o “maio francês”, a chamada
contracultura, os protestos nos EUA contra a Guerra do Vietnã e a
favor do movimento negro, os protestos no Terceiro Mundo contra o
imperialismo dos países desenvolvidos etc. Para o ME, 1968
começou com a morte do estudante secundarista Edosn Luís, no
restaurante Calabouço no Rio de Janeiro. Este episódio surtiu
inúmeras manifestações estudantis e populares. (SANTOS, 2009,
p.105)
Em 1968 havia uma forte tensão entre o governo e a oposição. O
movimento trabalhista respondeu a intervenção do governo do sindicato dos
metalúrgicos com duas importantes greves em Contagem-MG e Osasco-SP.
Em outubro, a União Nacional dos Estudantes (UNE) realizou um congresso
clandestino em Ibiúna (SP), que, descoberto, resultou na prisão de vários
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líderes estudantis. Em dezembro foi promulgado ato institucional n° 5 (AI-5),
que, dentre suas resoluções, ampliou ainda mais os poderes presidenciais.
Influência da indústria cultural estrangeira: uma questão histórica
O Brasil sempre esteve sob a influência dos países imperialistas: desde
a chegada dos portugueses, passando até mesmo pela ditadura militar e até os
dias de hoje. Como colônia explorada, sua economia, política e cultura sempre
estiveram sob os mandos e desmandos externos. Desse modo, o
desenvolvimento da música popular no Brasil não se deu sem a influência
direta das culturas imperialistas a que foi submetido. Isso nos remete à
segunda metade da década de 1940, quando uma série de influências ligadas
às transformações econômico-culturais provocadas pela Segunda Guerra
Mundial vieram transformar profundamente o panorama cultural e musical
brasileiro.
Desde o Estado Novo de Getúlio Vargas, o Brasil passou a sofrer uma
influência cultural direta dos Estados Unidos.
Os compositores nacionalistas e alguns intelectuais, compatibilizados
com a política Getulista, almejavam a integração e união entre as
massas populares, tendo como ponto de partida o resgate do folclore,
viabilizando assim, uma música de caráter nacional. (VISCONTI,
2005, p. 14)
Isso reverberou seriamente na produção musical brasileira, culminando
no surgimento da bossa nova no final dos anos 1950. Tinhorão (1966)
caracteriza a bossa nova como sendo o produto da subversão do samba
brasileiro pelo jazz dos Estados Unidos. E essa era a principal produção na
música popular brasileira naquele momento.
A necessidade de intercâmbio intenso com os Estados Unidos
traduzida pela chamada ‘Política da Boa Vizinhança’ levou as elites
brasileiras à uma extraordinária identificação com os interesses e
costumes norte-americanos. Os Estados Unidos iniciavam então uma
campanha de aproximação orientada que, no campo na música
popular explicaria, por exemplo, o extraordinário sucesso de Carmen
Miranda, apoiado pelo Departamento de Estado. Para expandir o
American Way of Life, os EUA forneciam amplo material através da
propaganda de guerra, cultural, de diversão(através dos filmes de
Hollywood e histórias em quadrinhos) e musical, aqui através do
duplo bombardeamento do cinema e dos discos que invadiram o
mercado brasileiro. (TINHORÃO, 1966, p. 59-60)
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O mercado de discos ampliava-se principalmente no Rio de Janeiro e
em São Paulo, chegando ao ponto de tornar-se uma das principais indústrias
do país. “Segundo o IBGE a produção nacional de discos mantinha-se acima
de meio bilhão de cruzeiros em 1955.” (TINHORÃO, 1966, p. 60)
A classe média era o principal público comprador de discos em potencial
e sendo assim o seu gosto e seu interesse musical foi, de certa forma, imposto
ao gosto geral. Os principais meios de comunicação da época, como o rádio,
os discos e posteriormente a televisão foram colocados a serviço da música
norte-americana e da música brasileira que mais se assemelhava aos padrões
norte-americanos da época.
Vários compositores como João de Barro, Alberto Ribeiro, Luís
Bittencourt, José Maria de Abreu e Mário Rossi, entre outros, passaram a
lançar seus sambas com orquestrações “americanizadas”. A produção musical
brasileira dessa época estava muito próxima da música recorrente nos Estados
Unidos, como aponta Tinhorão:
As composições que surgiram nessa época, que em alguns pontos
não se poderia distinguir da música norte-americana, eram arranjadas
pela nova geração de orquestradores, todos eles (incluindo Radamés
Gnattali) profundamente influenciados pela música americana tipo
Gershwin. Esses arranjadores, haviam se formado no período mais
intenso da propaganda de guerra norte-americana. (TINHORÃO,
1966, p. 63-64)
Nos Estados Unidos do final dos anos 30, houve uma séria crise
financeira que fez que com que não houvesse mais tanto dinheiro para bancar
as Big Bands e isso favoreceu o surgimento de grupos com formações
menores.
A partir desse momento, Ella-(Fitzgerald, cantora)*minha notacomeçou a cantar e a fazer turnês acompanhada por grupos menores
como Delta Rhythm Boys, Four Keyes e Ink Spots, e depois aceitou o
convite para se apresentar ao lado da banda de Dizzy Gillespie,
àquela altura já a frente da revoluição do Bebop. (STARLING, 2010,
pg.9)
Tinhorão (1966) aponta um fenômeno semelhante ocorrido no Brasil,
mais especificamente no Rio de Janeiro no final dos anos 40 – o da
substituição gradativa das grandes orquestras por grupos menores.
O fim da era das grandes orquestras, após o fechamento dos
cassinos no Brasil, em 1946, e a rápida decadência dos programas
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de música ao vivo das rádios, ante o aparecimento da televisão em
1950, repercutiu na área da música instrumental através de uma
tendência elitizante que ia explicar, já em 1958, o aparecimento da
chamada bossa nova. Foi a onda dos pequenos conjuntos á base de
piano, baixo e bateria, especialistas em tocar música americana para
o novo público das casas noturnas das áreas elegantes cariocas,
denominadas boites. [...] Reproduziu-se com mais de dez anos de
atraso o que aconteceu nos Estados Unidos, quando músicos como
Dizzy Gillespie, Kenny Clarke e Thelonious Monk criaram em suas
jam sessions no cabaré Minton’s, no Harlem, em Nova York, as
variações complicadas do bebop. (TINHORÃO, 1966, p. 70-71)
Desde a época da Política da Boa-Vizinhança colocada em prática entre
o Brasil e os Estados Unidos, o país sofreu influência direta em várias áreas.
Desse modo, podemos entender que além do contato direto com a música e
com o cinema, o Brasil esteve exposto à cultura norte-americana de maneira
mais abrangente, passando também pelo modo de vida, a idéia de mercado, as
relações sociais e também o lazer.
De fato, como o processo de concentração urbana contemporânea da
Segunda Guerra Mundial havia provocado no Rio de Janeiro uma
verdadeira explosão imobiliária em Copacabana, transformando
aquela área da Zona Sul carioca no bairro das novas camadas média
e alta,(...) a diversão a ser oferecida a tal tipo de gente, na falta de
modelo prévio local, só podia ser o equivalente da mesma classe nos
países mais desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos.
(TINHORÃO, 1966, p. 71)
Assim, quando a grande máquina da indústria e da publicidade
mudou, de repente, o penteado e a altura das saias das mulheres, os
conceitos de moral e o ritmo das danças,(...), as camadas médias da
população do Rio de Janeiro – onde também se verificava um
acelerado processo de urbanização – passaram a adotar as
novidades norte-americanas como modelo, através de um mimetismo
que atingiria a música popular. (TINHORÃO, 1966, p. 51)
Para não deixar dúvidas quanto a essa vinculação dos músicos jovens
componentes dos pequenos conjuntos de Copacabana na década de 1950
com seu modelo norte-americano, suas exibições eram chamadas de “samba
sessions”, e a parte que tocava ao jazz – e logo explicaria o surgimento da
bossa nova – não seria negada mais tarde pelos próprios envolvidos nesse
processo de aculturação desejada.
Nós fazíamos muito negócio de jam session, até que surgiu a idéia de
uma jam session samba” (Menescal p.95); “A nossa formação era
baseada na música americana” (Eumir Deodato p.100); “Acho que a
formação de todo mundo da bossa nova é de jazz. Menescal e Lira,
todos tiveram contato com o jazz” (Ronaldo Bôscoli p.191);
13
“Fundamentalmente na arquitetura da música, na parte da
composição mesmo, nas novidades dos acordes, realmente no
começo fomos influenciados pelo jazz” (Edu Lobo p.140). (MELLO
apud TINHORÃO, 1966, p. 72-73)
A Canção de protesto e a retomada de valores culturais
nacionalistas
A partir de 1958, passamos a reconhecer um dos movimentos musicais
mais importantes e representativos da música brasileira que foi a Bossa Nova.
Visconti destaca que os músicos desse movimento mesclaram harmonias
provenientes do jazz norte-americano com a batida do samba carioca. Novas
concepções musicais foram criadas e, com o disco Chega de Saudade de João
Gilberto, este novo gênero musical foi amplamente divulgado. A tensão entre
nacional (samba) e influência estrangeira (jazz) levou à redefinição do conceito
de música nacional, resultando em uma nova corrente “dissidente” da Bossa
Nova que será a canção de Protesto. (VISCONTI, 2005)
A partir de meados da década de cinqüenta no Brasil, nota-se uma
intensificação dos diálogos estilísticos e transformações técnicas
entre essas linguagens e procedimentos musicais diversos - um
período de sínteses e de fricções, de bricolagens, em que diversas
características de um estilo emergente começam a se estabelecer.
Nas composições ocorrem inovações estruturais e nos
procedimentos, performances tipicamente jazzísticos, sobre um
repertório cuja concepção rítmica se fundamenta no samba.
(GOMES, 2007, p.6)
O Imaginário Nacional Popular consiste em uma importante questão no
debate da música brasileira como coloca Visconti (2005). Ele aponta que na
semana de Arte Moderna de 1922 já se criticavam as tendências
“europeizantes” de alguns compositores brasileiros e se colocava a
necessidade de se romper com padrões da música romântica. E aponta ainda
que os Modernistas preconizavam que a construção de uma música brasileira
se daria baseada na música folclórica, rural e “pura”, entendida como
manifestação autêntica do povo.
O Nacionalismo musical durante o Estado Novo no Brasil, consistiu,
numa tentativa de consolidar uma unidade nacional, por intermédio
da música, com a finalidade de centralizar e unificar a nação. A
música como elemento unificador seria a força propulsora desses
objetivos, para garantir legitimação do Estado Novo frente à
14
modernidade. Os compositores nacionalistas e alguns intelectuais,
compatibilizados com a política Getulista, almejavam a integração e
união entre as massas populares, tendo como ponto de partida o
resgate do folclore, viabilizando assim, uma música de caráter
nacional. Tais questões são amplamente observadas nas obras de
Villa Lobos e Mário de Andrade, onde a (con)fusão entre os
interesses do Estado e os ideais nacionalistas se tornam evidentes.
(VISCONTI, 2005, p. 29)
A essa altura começa-se novamente a trazer à tona os questionamentos
outrora levantados pelos modernistas de 1922. A relação da Bossa Nova - suas
misturas e influências externas - com a conduta política Nacionalista que
crescia cada vez mais passa a se tornar um importante tema de discussões
entre estudiosos da música popular. Nos anos 60, O Nacionalismo musical
aparece com uma nova roupagem, mas ainda considerando o pensamento dos
Modernistas de 1922.
“Conceitos como povo brasileiro, progresso, influência externa, resgate
da música regional, nação entre outros, serão reformulados em decorrência
dos novos contextos políticos, sociais e econômicos do Brasil.” (VISCONTI,
2005, p.15)
Alguns setores da sociedade passaram a destacar a necessidade das
Reformas de Base colocadas pelo governo Jango (1961-1964). O Instituto de
Estudos Brasileiros (ISEB), o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e os Centro
Populares de Cultura (CPCs) da UNE (União Nacional dos Estudantes)
trouxeram uma maneira nova de analisar o contexto sócio-político brasileiro. Os
intelectuais da esquerda brasileira apontavam uma crise estrutural no Brasil e
citavam, por exemplo, a dependência econômica que o Brasil apresentava de
outros países, principalmente o
capital norte-americano e a
grande
concentração de terras nas mãos dos grandes latifundiários.
Este movimento da esquerda brasileira passou a figurar como um
caminho para as mudanças almejadas por grande parte da sociedade. Vários
artistas e intelectuais da época passaram a discutir e a incorporar em suas
obras temas recorrentes como resgate de raízes regionais, conscientização do
povo para a revolução e anti-imperialismo. (VISCONTI, 2005)
No panorama político as canções de protesto realizadas nos anos 60
por vários compositores como Carlos Lyra, Edu Lobo, Sérgio Ricardo
e Geraldo Vandré, representavam uma tentativa de sensibilização da
sociedade em prol de um país mais justo, diminuindo suas
contradições estruturais. (SIMÕES, 2005, p.15)
15
Começamos a perceber que toda a atmosfera política exerceu uma forte
influência direta na música popular brasileira. A produção musical popular dos
anos 1960 passou a ser, de certa forma, pautada pelos acontecimentos
políticos da época. Vários compositores passaram a direcionar politicamente o
seu trabalho como forma de reação à realidade que os cercava. Alguns
optaram por negar o conteúdo musical estrangeiro que tinham como influência,
como veremos adiante o que aconteceu com os músicos do Quarteto Novo e
outros se aventuraram em uma possível fusão.
Devido à situação política brasileira naquele período e ao advento da
Bossa Nova, a canção de protesto, elaborada pelos músicos que
faziam parte do CPC (ou que se identificavam com a política cultural
deste órgão), veio a contestar a Bossa Nova, tida como expressão do
imperialismo norte americano. Edu Lobo, Carlos Lyra e Geraldo
Vandré, que possuíam uma formação musical abrangente, que incluía
a música norte-americana, começaram a pesquisar e compor músicas
baseadas em elementos regionais brasileiros, promovendo assim
uma fusão entre o regionalismo brasileiro e a influência norteamericana. Esses músicos acreditavam que tal prática representava
uma possível aproximação com o povo, o que poderia ser um meio
para a intervenção do artista na realidade social do país, contribuindo
para a transformação da sociedade. (VISCONTI, 2005, p.33)
O Quarteto Novo: uma breve trajetória
Na virada do século XIX para o XX surgiu no Brasil uma música que
passou a ser considerada tipicamente brasileira. O Choro, como foi chamado,
nasceu da mistura da música africana com a música européia no contexto da
urbanização do Rio de Janeiro. Até o final dos anos 1950, o Choro e todos os
seus desdobramentos e variações como a Polca e o Maxixe eram conhecidos
como a música instrumental brasileira dentro e fora do país. Nesta época vimos
nascer a Bossa Nova pela influência direta do jazz norte-americano no samba
brasileiro.
A Bossa Nova ficou então conhecida como Brazilian Jazz e foi exportada
para o mundo todo. Paralelamente à Bossa Nova, temos na música
instrumental a presença do Samba Jazz que misturava a bagagem rítmica do
samba com as harmonias e a linguagem de improvisação calcada no bebop
desenvolvido principalmente por Charlie Parker.
16
A música do Quarteto Novo emerge ao final dos anos 1960 em meio a
um complexo caldeirão político-social baseado na valorização da cultura
nacional. O grupo mergulha em uma experiência política e musical de criar um
gênero musical que explicitasse uma sonoridade brasileira no que tange aos
ritmos típicos do nordeste e um desenvolvimento harmônico, melódico,
composicional e de improvisação que fugisse da influência do jazz norteamericano.
O quarteto era formado por Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, Théo
de Barros e Airto Moreira. O grupo nasceu do Trio Novo, que acompanhou o
cantor Geraldo Vandré na segunda metade dos anos 1960. Estes anos foram
marcados pela dura repressão da Ditadura Militar. Muitos artistas passaram a
pensar uma arte engajada, que fosse capaz de influenciar as pessoas e ser
combativa à condição em que se encontrava o Estado brasileiro.
A trajetória do grupo tem início em 1966 quando os músicos Airto
Moreira, Heraldo do Monte e Théo de Barros formam o Trio Novo para
acompanhar o cantor e compositor Geraldo Vandré. Posteriormente, com a
classificação da canção “Disparada” (autoria de Vandré e Théo de Barros) no II
Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, Hermeto Pascoal (flauta e
piano) se junta ao grupo formando o Quarteto Novo.
A disputa final deste festival se deu entre a supracitada “Disparada” e “A
Banda”, de Chico Buarque. Foi uma passagem polêmica que teve um empate
como resultado final. Mas, segundo Simões (2005), Chico Buarque teria se
recusado a receber o prêmio sozinho, pois reconheceu o valor daquela obra.
A união entre os músicos do Quarteto e Geraldo Vandré foi uma
experiência enriquecedora para todos. Houve uma convergência sadia e
equilibrada entre os interesses políticos e ideológicos no que diz respeito tanto
à forma quanto ao conteúdo da música que eles propuseram.
Heraldo do Monte disse na época que houve de fato alguma relação
entre a parceria do grupo com Vandré, o contexto histórico dos anos 1960 e o
projeto estético do Quarteto Novo:
Tudo isso era acompanhado pela atmosfera da ditadura. Tudo que
você fazia era tentando respirar um pouco. Agora, o negócio do
Quarteto era o nacionalismo musical. O do Vandré era protesto, e a
gente uniu as duas coisas, e acompanhou bastante o Vandré. Ele foi
muito importante no financiamento do Quarteto Novo, porque a gente
17
parou tudo, deixamos outros trabalhos, pra se dedicar ao
grupo.(TARELHO 2004, p.03)
Vandré tinha clareza do som que serviria ao seu propósito e sabia que
aqueles eram os músicos ideais para executar aquela idéia, pois estavam
muito inseridos naquele contexto da canção de protesto e tinham a formação
jazzística que conferiria técnica e acabamento àquela música.
Acho até que os improvisos que uso nas minhas canções nordestinas
são de influencia “jazzística”. Sou fã do “Jazz”. Quando formei o
Quarteto Novo e pedi ao Heraldo para tocar viola e fazer improviso,
pretendia colocar nas mãos de um músico de “Jazz” a possibilidade
de realizar aquilo que um violeiro do meu país realizaria se tivesse a
técnica de um músico de “Jazz”. (MELLO, 1976, p. 191)
Questões como o financiamento do projeto também se mostraram bem
resolvidas e possibilitaram um momento de convivência entre os músicos que
encontraram condições favoráveis para o desenvolvimento das idéias que
pretendiam.
O Vandré foi o mecenas do Quarteto Novo. Nós ficamos um ano
acompanhando-o, éramos exclusivos do Vandré, e daí aparecia
convites de shows em todos os lugares. E todo mundo queria gravar
com
a
gente,
se
apresentar
com
a
gente.
(http://www.jornaleco.com/Entrevistas/)
A esta altura, a imagem e o som do Quarteto Novo com Vandré já
estavam vinculados e associados ao projeto da esquerda intelectual,
caracterizada pelo nacionalismo musical praticado pela nova safra de
compositores. (SIMÕES, 2005)
Havia uma parte desses artistas que não estavam satisfeitos em
abandonar a estética da Bossa Nova e passaram a tentar utilizá-la com letras
engajadas.
Entre 1964 e 1965, o projeto da “bossa” nacionalista dividiu-se em
várias frentes. No panorama musical “engajado”, novos compositores,
novos materiais sonoros e padrões de interpretação foram surgindo, à
medida que o mercado musical se tornava mais complexo e amplo. O
tema da resistência passava a ser tão importante quanto a busca de
uma consciência nacional-popular em forma de canção. A colocação
do problema político ideológico, numa perspectiva “popular”, cujo pólo
passava a orientar o “nacional” (antes de 64 parece ter prevalecido o
contrário), exigia, por parte da esquerda nacionalista produtora de
cultura, uma revisão dos paradigmas de criação. (NAPOLITANO,
2001, p. 105-106)
18
CAPÍTULO II
A importância da produção do Quarteto Novo para história da música
brasileira fica evidente quando se tenta esboçar uma linha temporal estilística.
A música do grupo surge como uma síntese do que vinha acontecendo desde o
choro, a bossa nova e o samba-jazz, além de apontar novos rumos para a
música instrumental brasileira. E ainda que trazendo um material com um
frescor ainda não presenciado, é possível dizer que podemos notar rupturas e
continuidades do que se vinha fazendo nos estilos anteriores no que se refere
à influência direta do jazz.
O Quarteto, de uma forma ou de outra, estava inserido neste
panorama do SJ, entretanto, o ritmo samba já não comporta mais o
conteúdo sonoro do grupo, na medida em que o universo rítmico se
amplia consideravelmente. O estilo introduzido por eles emprega
basicamente os mesmos procedimentos jazzísticos, porém sobre uma
gama de gêneros que vai além do samba, portanto o termo sambajazz não mais suporta a produção do grupo, que improvisa sobre uma
série de ritmos aceitos como de origem nordestina como o baião,
forró, xote, entre outros. (GOMES, 2007, p.11)
Dessa maneira, fica clara a posição do Quarteto Novo como marco na
história da música brasileira, por dialogar com a tradição do jazz e da própria
música brasileira, e fazer dessa mistura uma abertura de possibilidades até
então não exploradas. Gomes (2007, p.11) ratifica a posição do Quarteto Novo
como marco da história da música brasileira: “Por isso o ano de 1967 tem o
papel de marco, pois é provavelmente o primeiro momento em que se observa
a pressão dos discursos engajados da época surtindo efeito num conteúdo
sonoro instrumental, o disco de estréia do Quarteto Novo.”
A solução seria apontar uma data onde a expressão samba-jazz não
suportasse mais a sua produção musical. Como não é possível
delimitar um ponto onde não exista mais influência do jazz, no sentido
de que, virtualmente, tal influência existe até hoje, deve-se achar um
ponto onde o rótulo samba não suporte mais o conteúdo sonoro
produzido, pois outros ritmos começam a fazer parte do tabuleiro do
qual partem as bricolagens. (GOMES, 2007, p. 11)
Havia uma certa polêmica entre uma parte dos bossa-novistas que
praticavam um lirismo voltado ao romantismo com os sentimentos de dualidade
causados por relacionamentos e a exaltação da beleza do objeto amado, em
detrimento daqueles letristas que prezavam por explicitar os problemas vividos
19
pelo país daquela época e utilizavam isso como tentativa de transformação da
realidade.
Na literalidade das canções, até certo ponto pode-se distinguir o que
seria música supostamente alienada ou engajada. De um lado, o
“amor, o sorriso e a flor” e de outro, a canção de protesto. Dentro
desse quadro acontecem discussões específicas sobre o conteúdo
musical, onde existem divergências em relação ao tratamento sonoro
propriamente dito. Para ser verdadeiramente brasileira e
revolucionária, teria a música de ter conteúdo harmônico/melódico
ingênuo, ligado a supostas escutas do povo? (GOMES, 2007, p. 11)
Acontece que não é possível dissociar todo esse contexto da história do
Quarteto, ainda que sua produção seja estritamente instrumental. Isso se torna
então
um
claro
exemplo
onde
discussões
ideológicas
influenciam
drasticamente o critério estético da produção instrumental do grupo.
Algumas correntes entendem que não só o conteúdo poético da BN é
“alienado”, mas também seus procedimentos técnico-musicais.
Outras acreditam que para engajá-la, basta que se alterem suas
letras. Até onde tais premissas ideológicas alteram ou são alteradas
pelo próprio fazer musical? Nota-se então um hiato entre 1963, ano
considerado o da “morte” da BN e 1967, momento em que o discurso
nacional popular atinge a produção instrumental. Vale lembrar que
nesse intervalo de tempo, como já visto, a produção de SJ é intensa.
(GOMES, 2007, p. 11)
Nos discursos dos integrantes do grupo, já pudemos perceber que
apesar de estarem incluídos naquele contexto e sofrerem a influência direta do
discurso Cepecista, eles estavam preponderantemente interessados nos
resultados instrumentais que poderiam e deveriam explorar.
De certa forma, a discussão que se acentua com os CPCs e a
Canção de Protesto , ao eleger as letras como alvo da discussão
nacionalista na música popular, a um só tempo começa a influenciar
conteúdos sonoros, enquanto relega a produção instrumental a um
segundo plano. Todavia, enquanto obra instrumental, ela consegue
se isentar de certas pressões dos discursos nacionalistas e assim
seguir em frente com sua produção. (GOMES, 2007, p. 11)
Gomes faz um classificação de períodos da década de 1950 até o final
dos anos 1960, onde distingue a produção da bossa nova e do samba-jazz até
a ruptura dessa trajetória com o lançamento do disco do Quarteto Novo.
A proposta de periodização resulta no seguinte: uma primeira fase
iniciada em 1952, a partir do disco de estréia de Alf, até 1958, data
inaugural da BN, intitulado período do SJ prébossa nova. E a
20
segunda fase, do SJ pós-bossa nova, começaria no mesmo ano de
1958 e iria até 1967, com a gravação do primeiro disco do Quarteto
Novo. (GOMES, 2007, p. 12)
•
De 1952 a 1958: Samba-Jazz pré-Bossa Nova
•
De 1958 a 1967: Samba-Jazz pós-Bossa Nova
A questão modal
Uma das características muito citadas a respeito da música do Quarteto
Novo é a utilização da música modal para compor e para improvisar. Tiné
(2014) coloca que o uso jazzístico do modalismo passou a figurar na música
popular brasileira através dos meios de comunicação de massa como o rádio e
os discos e atesta que a música brasileira assimilou esses elementos
jazzísticos.
Durante a década de 1960, muitos compositores e instrumentistas do
gênero popular começaram a intencionalmente buscar sonoridades
mais tipicamente brasileiras. Um bom exemplo disso foi o grupo
“Quarteto Novo” formado por Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Theo de Barros (parceiro de Geraldo Vandré em Disparada) e Airto
Moreira. No compacto lançado em 1967, houve a interpretação de
Ponteio (Edu Lobo) e Fica Mal com Deus (Geraldo Vandré), duas
canções marcantes do período, de forte caráter modal ligado à
música nordestina. (TINÉ, 2014, p. 111)
Para um melhor entendimento dessa questão é necessário uma
conceituação um pouco mais detalhada acerca da música modal e do jazz
modal. Wisnik nos mostra uma idéia preliminar sobre esse assunto no capítulo
entitulado “Modal” de seu livro “O som e o sentido:
Aquele conjunto mínimo de notas com as quais se forma a frase
melódica costuma ser chamado de “escala” (ou “modo”, ou
“gama”).(...)A escala é um estoque simultâneo de intervalos, unidades
distintivas que serão combinadas para formar sucessões melódicas.
A escala é uma reserva mínima de notas, enquanto as melodias são
combinações que atualizam discursivamente as possibilidades
intervalares reunidas na escala como pura virtualidade. As escalas
variam muito de um contexto cultural para outro e mesmo no interioir
de cada sistema (os árabes e os indianos, por exemplo têm um
sistema escalar intrincado, composto por dezenas de escalas e
centenas de derivados escalares). As escalas são paradigmas
construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam
fortemente, ganhando acentos étnicos típicos. Ouvindo certos trechos
melódicos, dos quais identificamos não conscientemente o modo
21
escalar, reconhecemos freqüentemente um território, uma paisagem
sonora , seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana ou outra.
(WISNIK, 1989, p. 71-72)
Quando se fala sobre o uso que o jazz fez dos conceitos de música
modal, Jacques cita que:
A improvisação modal tornou-se um estilo de jazz(...) desenvolvido
nos final dos anos 50 no qual escalas modais ditavam o conteúdo
melódico
e
harmônico
das
composições,(...)
baseadas
harmonicamente no emprego de longas sequências sobre um ou dois
acordes utilizando o mesmo modo [...] (JACQUES, 2009, p. 268)
Jacques (2009) ainda cita que Miles Davis gravou um dos mais famosos
álbuns de estrutura modal, o Kind of Blue e da mesma forma Coltrane com A
Love Supreme, nos quais exploraram as possibilidades de improvisação modal.
John Coltrane também fala sobre sua relação com Miles e as
experimentações dos dois com o jazz modal, como Kahn (2007) relatou:
Encontrei Miles em meio a um novo estágio de seu desenvolvimento
musical...no passado, ele se dedicava a estruturas de muitos
acordes. Ele se interessava pelos acordes pelo que eram. Mas agora
parecia seguir a direção oposta, com o uso de cada vez menos
mudanças de acorde na música. Ele tocava frases que fluíam soltas...
graças ás frases diretas e soltas de sua música, tive facilidade de
aplicar as minhas idéias harmônicas. (KAHN, 2007, p.59)
Kahn (2007), cita que “a música de Davis passou a se apoiar nas
escalas em vez de modelos de acordes estabelecidos. Os tempos quase
sempre intensos do grupo foram desacelerados, enquanto o movimento
harmônico foi acalmado.” E enfatiza ainda um marco importante sobre o grupo
de Miles do final dos anos 50 e suas experiências modais, dizendo que “O
sexteto pôs a idéia em prática pela primeira vez em Milestones, em fevereiro de
1958.” Sobre esse disco Miles declara:
Foi o primeiro disco em que realmente passei a compor na forma
modal, e, na faixa-título, usei mesmo essa forma... quando você toca
desse jeito, vai nessa direção, não precisa parar nunca mais... o
desafio quando se trabalha com o modal é perceber quanto você se
torna inventivo melodicamente. (KAHN, 2007, p.59)
Não
há
necessidade
de
entrarmos
aqui
em
uma
discussão
essencialmente temporal sobre qual foi a primeira manifestação musical modal
dentro do contexto do Jazz. Basta deixarmos claro que, em 1958 temos o
lançamento de Milestones que inevitavelmente trouxe à luz a discussão sobre
22
essa abordagem modal no jazz. Fica claro, portanto, que em 1967, quando o
Quarteto Novo lança seu primeiro disco, a utilização do pensamento modal não
era
mais
novidade.
Essa
estética
musical
já
havia
sido
explorada
anteriormente, por músicos que também pretendiam abandonar a linguagem
estabelecida previamente pelo Bebop.
Podemos exemplificar a escolha de seções modais que servem de base
para improvisação em 3 músicas do disco. Na faixa “Vim de Santana”, temos
apenas dois acordes como base para os solos, que caracterizam o modo de
Gm dórico:
Figura 1
Na música misturada, temos o modo de A mixolídio. Para a seção dos
solos, temos uma forma aberta, de samba em 7/4 desta maneira:
Figura 2
Na faixa intitulada “O ovo”, os solos se dão na forma da música, sobre
acordes baseados no modo de B mixolídio. Na parte B percebemos uma
intenção de IV grau, que logo retorna ao B mixo por uma cadência plagal.
23
Figura 3
Os solos em chorus
A idéia em si de ter uma seção com forma fixa aberta a solos
improvisados é uma prática que foi concebida e desenvolvida na tradição do
jazz. Portanto, a improvisação em chorus é uma prática adotada pelo Quarteto
Novo e remete á procedimentos jazzísticos de conceber a música.
Com elementos e procedimentos musicais, tanto na improvisação,
como na composição e arranjos, possivelmente oriundos das
tradições regionais nordestinas (modos, escalas, harmonias modais,
ritmos, sotaque, fraseado etc.) e da linguagem jazzística (estrutura
dos improvisos, instrumentação, improvisação em “chorus”,[...]
(GEROLAMO, 2012, p. 756)
Piedade faz uma distinção entre estilos diferentes de improvisação. Ele
cita a maneira mais “tradicional”, utilizada até hoje por músicos de choro, e
aponta uma maneira mais livre, e utilizada no jazz, onde o solista cria melodias
mais distantes do tema da música, como é o caso do Quarteto Novo.
Talvez não sejam propriamente duas escolas, mas duas tendências
que dialogam entre si. Na tendência mais conservadora, os
improvisos mantêm-se como variações da melodia (para o solista),
acontecendo durante a música inteira (para todos os músicos). Na
tendência mais “jazzística”, as harmonias ganham tensões
características do jazz e os improvisos muitas vezes nada têm a ver
com o tema melódico, mas a harmonia se mantém, como na idéia de
chorus. (BASTOS, PIEDADE, 2006, p.4)
Isso pode ser verificado neste trecho do solo de guitarra de Heraldo do
Monte, na música “Vim de Santana”, transcrito por Eduardo Visconti. Podemos
24
perceber claramente o distanciamento da melodia criada por Heraldo do Monte
da melodia original do tema.
Figura 4
A partitura com o tema original pode ser verificada nos anexos.
Aproximações cromáticas
Quando os integrantes do Quarteto Novo citam e discutem suas
questões se utilizando do termo “jazz”, pode-se inferir seguramente que eles
estão se referindo à linguagem estabelecida na era do Bebop, como podemos
verificar na fala de Heraldo do Monte:
Então tivemos a seguinte idéia : Que tal também criarmos uma
linguagem de improviso ? O Hermeto e eu temos essa coisa de
nordestinos e a gente usou essa vivência para criar. Começamos a
ouvir folclore , treinar e criar. A coisa mais óbvia que se separava do
Bebop era a linguagem nordestina e então a gente se policiava :
Cuidado com essa frase que está parecendo Bebop. (VISCONTI,
2005, p.35)
25
Em geral, tem-se no senso comum, que, quando se fala em jazz e
aproximações cromáticas, principalmente no contexto que tratamos do assunto,
é sintomático que se esteja referindo ao Bebop.
Este termo cobre a referência ao mundo do jazz através de
procedimentos melódicos tipicamente jazzísticos, uso de certas
padrões e convenções, como notas-de-aproximação cromática típicas
do jazz, fraseados do tipo Charlie Parker. (BASTOS, PIEDADE, 2007)
Bastos e Piedade (2007) especificam este “jazz” como uma referência
real ao Bebop: “Este estilo é pontual: trata-se de um jazz específico, o
chamado Bebop, que tinha seu príncipe em Charlie Parker, que delineou os
limites e as convenções que fundam essa linguagem”.
Podemos notar que o estilo Bebop está fortemente associado ao seu
principal ícone, o saxofonista Charlie Parker e vemos que a principal referência
sobre sua obra consta na compilação de transcrições e temas tocados por ele,
chamada Omni Book.
“O jazzista tem sua gramática implícita no famoso Omni Book, livro de
transcrições dos grandes solos de Charlie Parker, que funciona como um
tratado
sem
teoria,
só
com
exemplos.”
(PIEDADE,
http://www.ceart.udesc.br/Revista_Arte_Online/Volumes/Etnomusicologia.htm)
Desse modo, podemos verificar uma passagem onde se encontra um
exemplo claro de como Charlie Parker estruturava sua linguagem baseada nas
aproximações cromáticas.
Figura 5
No terceiro compasso deste trecho temos o acorde de G-. A partir da
segunda semi-colcheia de segundo tempo temos as notas: Sol, Sib, Ré e Fá.
Essas notas caracterizam um arpejo do acorde de G-7 em posição
fundamental. O fato é que na primeira semi-colcheia do segundo tempo temos
uma nota Fa#. Essa é uma nota estranha à harmonia daquele momento que é
tocada em tempo forte, na cabeça do tempo, mas é uma nota curta, de
26
passagem, que gera uma breve tensão e logo escorrega para a nota Sol, que é
a fundamental do acorde. Este é um procedimento típico encontrado nos solos
de Charlie Parker e é uma das principais características atribuídas ao Bebop.
Podemos verificar que este tipo de recurso é seriamente evitado nos
solos improvisados do Quarteto Novo. Vejamos o exemplo de um trecho do
solo de flauta de Hermeto Pascoal na música Misturada.
Figura 6
Fica claro que aqui temos uma abordagem bem diferente da de Parker.
Percebe-se neste trecho que Hermeto utiliza apenas notas diatônicas ao modo
de A mixolídio. Em nenhum momento se verifica a presença de aproximações
cromáticas. O solo é estruturado sobre um rearranjo melódico respeitado o
modo/escala original sobre o qual esta progressão de dois acordes foi
construída.
27
A questão rítmica
A questão rítmica é uma parte muito importante a ser considerada
quando se pretende distinguir as aproximações e distanciamentos da música
do Quarteto com o jazz norte-americano. Todo o fraseado rítmico do Bebop
está fundamentado basicamente nas variações de colcheias. É claro que
outras figuras também aparecem com freqüência, mas a construção da
sensação rítmica do Bebop está concentrada no uso de colcheias e sua
interpretação diferenciada. Podemos verificar essa característica em 1 chorus
de solo de Parker na música Klaun Stance, retirado do Omni Book:
Figura 7
Sobre as nuances de interpretação rítmica no jazz, Piedade nos fornece
a seguinte explicação:
Alguns pressupostos são básicos para se ingressar no universo
musical do jazz. A começar pela partitura, todo aspirante a jazzista
deve saber antecipadamente que a notação musical utilizada, nascida
em berço erudito, é inadequada para o jazz; mesmo assim sendo
usada, a chave é lê-la de forma "errada", tornando doze o que é
quatro, três o que é um: pode-se chamar este processo de
"compostização", um mecanismo imediato para os leitores de
partitura mais experientes. A partitura de jazz, se lida "literalmente",
pode parecer uma marcha militar ou uma canção de ninar, tudo
menos jazz. A "compostização", no entanto, não pode ser algo
mecânico, correndo o risco de não ter swing. Para "swingar", além
dela é necessário deslocar os acentos do primeiro e terceiro para o
28
segundo e quarto tempos. O jazzista conta 1,2,3,4, mas os tempos
considerados fortes, aqueles nos quais ele estala os dedos quando
estão livres, são o 2° e o 4° , contrariando novame nte os
pressupostos teóricos da música européia. Na dimensão rítmica
parece uma guerra entre Europa e África, terminando pela
incorporação "criolizada" do modelo europeu: o que alias se deu em
inúmeras
outras
questões.
(PIEDADE,
http://www.ceart.udesc.br/Revista_Arte_Online/Volumes/Etnomusicol
ogia.htm, Acacio Piedade)
Simões (2005) analisou os solos improvisados contidos nas faixas “O
ovo”, “Síntese”, “Misturada” e “Vim de Santana”. A partir de sua análise das
figuras rítmicas mais recorrentes podemos chegar basicamente às seguintes
figuras:
Figura 8
29
Podemos notar, portanto, que há um predomínio do uso das semicolcheias e suas variações, além da presença da figura da síncope, com uma
semi-colcheia, uma colcheia e outra semi-colcheia ocupando o espaço de um
pulso. Na música “Misturada” percebemos o uso principalmente de colcheias e
semínimas, por se tratar de um samba em 7/4 rápido, mas notamos a
prevalência das semi-colcheias e síncopes nas músicas analisadas.
As diferenças rítmicas entre o jazz e a música do Quarteto são grandes.
A proposta de se tocar ritmos como o baião e seus derivados já implica em
uma abordagem diferente da idéia rítmica do jazz. Não existe a idéia de uma
subdivisão ternária subjetiva, pela qual o solista se guia para encaixar as
colcheias, mas sim um ritmo mais firme, com as notas no tempo exato. A
subdivisão binária é clara e isso faz com que a música e os solos soem bem
diferentes da interpretação do Bebop.
A questão da instrumentação
Como pudemos conferir no capítulo anterior, devido à crise dos anos
1930 nos Estados Unidos, as Big Bands foram dando lugar à “combos”
menores que ficaram consagrados por seu equilíbrio entre instrumentos
percussivos, acompanhamento harmônico e melodia. Tinhorão (1966, p.71)
descreve esses “combos” como “grupo instrumental sem formação certa, que
acabaria fixando a base piano, baixo e bateria, complementada por saxofone
ou piston”.
A instrumentação do Quarteto Novo fricciona-se (Piedade, 2003) com a
formação clássica dos grupos de jazz na medida que rompe com alguns
padrões, mas guarda uma certa continuidade textural.
O grupo é formado pelo contrabaixo acústico que é tocado por Théo de
Barros, um instrumento típico, dos mais antigos e tradicionais, que já estava
presente no jazz desde a era das Big Bands, portanto, uma continuidade do
jazz. A Viola Caipira agrega um timbre inovador para esta formação, pois é um
instrumento tipicamente interiorano, e a abordagem guitarrística conferida por
Heraldo do Monte abre novas possibilidades em termos de acompanhamento e
solo. O piano também é um instrumento consagrado no jazz, porém não se faz
essencialmente presente nesse contexto como nos combos de jazz, pois nesse
30
caso ele tocado por Hermeto Pascoal, que também é o flautista do grupo. A
flauta ganha um destaque especial porque sua sonoridade está intimamente
ligada à música popular brasileira desde o seu início, na tradicional formação
dos regionais de choro com flauta cavaquinho e violão. A escolha da flauta
como instrumento melódico confere uma referência mais brasileira do que um
saxofone o faria.
A grande inovação fica por conta de Airto Moreira, que, além de tocar
bateria, desenvolveu um “set” específico, original e altamente adequado para
completar o som do Quarteto novo. Sua variedade timbrística extrapola as
possibilidades de uma bateria de jazz, preenchendo o som com ostinatos e
efeitos.
Simões (2005) cita a percussão de Airto ainda na época do Trio Novo,
acompanhando Vandré:
O grande triunfo de Disparada foi conciliar a textura sonora de seu
arranjo instrumental com as imagens poéticas que a letra oferece.
Para isso foram usados instrumentos típicos. Mas, o que chamou a
atenção foi o instrumento percussivo de efeito Queixada de Burro,
que consiste na parte inferior da ossada da mandíbula do animal. ‘A
novidade, descoberta por Airto Moreira numa loja em Santo André,
emprestou maior rusticidade ao acompanhamento, além de evocar
uma visão forte da seca’ (SIMÕES, 2005, p. 13)
31
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos acompanhar um breve esboço da trajetória política brasileira
na faixa que contempla basicamente os anos 1950 e 1960 e como os
processos e acontecimentos políticos tiveram uma forte influência direta na
cultura como um todo e pontulamente nas produções musicais dessa época.
Ficou constatado também que a relação do Brasil com os Estados Unidos tem
um papel crucial no desenvolvimento da música brasileira e suas mudanças ao
logo da trajetória.
A Canção de Protesto trouxe à tona o nacionalismo musical que teve
Geraldo Vandré como um importante expoente. A relação de Vandré com os
músicos do Quarteto Novo gerou um impacto irreversível na música
instrumental brasileira, que passou por um processo de renovação e uma
tentativa de se desvincular da influência do jazz norte-americano, mais
precisamente o Bebop – na figura de Charlie Parker.
O Quarteto Novo passou a propor uma música que se voltasse para às
raízes brasileiras e para isso passou a utilizar ritmos provenientes do nordeste
como o baião, além de trabalhar com música modal, composicionalmente e na
improvização. Hove uma tentativa de abandonar as referências jazzísticas a
que estavam acostumados. A partir desse processo, foi possível perceber que
o Quarteto Novo realmente conseguiu estabelecer uma música instrumental
popular brasileira verdadeiramente e que acabou por se tornar um marco
temporal na produção musical brasileira.
O grupo inovou principalmente no aspecto rítmico e na instrumentação e
conseguiu se distanciar do jazz por meio da eliminação da linguagem de
improvisação desenvolvida na era do Bebeop, focada nas aproximações
cromáticas. Para isso, o quarteto fez uso do modalismo, uma prática que
também foi usada pelos jazzistas americanos. Além disso, houve uma
continuidade na idéia de improvisação em chorus, onde as novas melodias
improvisadas guardam profundas diferenças com a melodia original da música.
Sendo assim, optamos por trabalhar então com o conceito de “fricção
musical” desenvolvido por Piedade (2003), por se tratar de um pensamento no
mínimo isento de radicalismos e que propõe a idéia de que tanto a música
brasileira como o jazz possuem essências próprias, que quando colocadas em
32
confronto podem gerar um diálogo que traga outras possibilidades outrora não
exploradas.
Aqui, as musicalidades dialogam, mas não se misturam, suas
fronteiras musical-simbólicas não são atravessadas mas são objetos
de uma manipulação que acaba por reafirmar as diferenças. A
metáfora mecânica da fricção implica que os objetos postos em
contato se tocam e esfregam suas superfícies, podendo chegar a
trocar partículas, mas os núcleos duros das substâncias tende a se
manter. Por isto não é o caso de se falar em complementaridade,
como muitos discursos ingenuamente fazem, pois o caráter não é
construtivo, mas sim de tensão e flexibilidade [...] (PIEDADE, 2005, p.
1068)
Essa relação de tensão e flexibilidade que caracteriza a idéia de “fricção
musical” é benéfica para o processo de evolução musical sendo parte
constitutiva no desenvolvimento da música brasileira e acaba por ser um
importante traço distintivo dessa música que está em constante processo de
mudança.
Mas o jazz brasileiro, como procurei mostrar, ao mesmo tempo que
canibaliza o paradigma bebop, busca incessantemente afastar-se da
musicalidade norte-americana, isto através da articulação de uma
musicalidade brasileira. Esta dialética seria, assim, congênita e
essencial ao jazz brasileiro enquanto gênero musical, dotado de uma
estabilidade em termos de temática (a fricção de musicalidades
sendo aqui constituinte, evidenciando-se principalmente nas
improvisações), de estilos (fundamentalmente idiomas regionais,
como a musicalidade nordestina) e de estruturas composicionais (no
código musical propriamente, como na rítmica e no emprego de
determinados modos). (Piedade, 2005, p. 1066)
33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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